Racialização como Estruturante da Questão Social (2) - PDF
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Summary
Este documento discute a racialização como estruturadora da questão social no Brasil, analisando a relação entre o constructo social de raça e o capitalismo. Argumenta-se que a raça, como ideário político-filosófico, sustenta o sistema capitalista e perpetua o racismo estrutural. O texto explora a continuidade do racismo no Brasil após a abolição e seu impacto na sociedade contemporânea.
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16 2 CAPITALISMO RACIALIZADO – RACISMO ANTINEGRO NO BRASIL 2.1 RAÇA COMO IDEÁRIO POLÍTICO-FILOSÓFICO Precisamos falar sobre raça e faremos isso utilizando o método dialético crítico. Obviamente, da pers...
16 2 CAPITALISMO RACIALIZADO – RACISMO ANTINEGRO NO BRASIL 2.1 RAÇA COMO IDEÁRIO POLÍTICO-FILOSÓFICO Precisamos falar sobre raça e faremos isso utilizando o método dialético crítico. Obviamente, da perspectiva biológica, não existem raças diferentes na humanidade. Ainda assim, há uma hierarquização das pessoas a partir do constructo raça, uma falácia que justificou e justifica atrocidades desde a escravização até hoje, condensando-se no racismo estrutural que marca a sociedade brasileira. Estes dois fenômenos não só estão relacionados como são um processo de continuidade que aqui pretendo abordar parcialmente, elegendo a pretensa abolição como partida para uma discussão sobre a genealogia da raça e do racismo no Brasil contemporâneo. A raça deve ser encarada como uma conceitu(ação). Dialeticamente, o conceito que oprime também foi tomado para denunciar a opressão e insurgir uma destruição dos mecanismos de supremacia branca que a raça estrutura. Diante disso, o que é a raça? Não há exatidão do ponto de vista etimológico na definição, mas podemos compreender raça como classificação, diferenciação a partir de características físicas e biológicas, que diferem criaturas da mesma espécie, por exemplo. Mas, quando falamos sobre este conceito aplicado à humanidade, torna-se muito mais complexo. Para Silvio Almeida (2018), raça não é um termo fixo e estático e, portanto, tem seu sentido inscrito nas circunstâncias históricas, um conceito relacional e histórico. Assim, raça seria mais que um conceito, constituindo um ideário político, filosófico e econômico que forneceria uma das bases de sustentação para o mundo capitalista. Esta universalização do homem branco construiu uma ordem hierarquizada pela supremacia branca, nos moldes conceituais de bell hooks (2020): a supremacia branca ou “cultura supremacista branca” não está ligada (apenas) à ideologia de pureza racial, mas a uma ideologia racista e colonial, a um sistema de opressão que se interrelaciona com o sistema patriarcal, imperialista, colonial e sexista na estruturação do capitalismo. Neste sentido, o racismo é parte constitutiva deste ideário. 17 O racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas em preconceitos raciais, os comportamentos discriminatórios, as disposições estruturais e as práticas institucionalizadas que provocam a desigualdade racial, assim como a ideia falaz de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente justificáveis; manifesta-se por meio de disposições legislativas ou regulamentares, e de práticas discriminatórias, assim como por meio de crenças e atos antissociais; obstaculiza o desenvolvimento de suas vítimas, perverte aqueles que o praticam, divide as nações em seu próprio seio, constitui um obstáculo para a cooperação internacional e cria tensões políticas entre os povos; é contrário aos princípios fundamentais do direito internacional e, por conseguinte, perturba gravemente a paz e a segurança internacionais. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1978). Tal ideário não se dissolveu com o fim do escravismo colonial. De fato, ele persiste e reifica as relações na atualidade. Em março de 2022, momento em que a tese foi escrita, o mundo assiste a mais uma guerra, com invasão de territórios, destruição e mortes de civis. A Rússia invadiu o país vizinho da Ucrânia. Muitos analistas tentam contar o que está acontecendo, prospectar cenários e informar o mundo. A cobertura é parcial e racista. Noticiada como um conflito armado do século XXI, parece apagar os conflitos contínuos e cruéis na Faixa de Gaza, no Afeganistão e em países africanos. Apesar do esforço para isolar este conflito do seu tempo histórico, de geopolítica global, ainda assim o racismo desponta escancarado. Em entrevista à BBC, o ex-procurador-geral adjunto da Ucrânia David Sakvarelidze se disse comovido com o que tem visto na guerra. “É muito emocionante para mim, porque vejo europeus com cabelos loiros e olhos azuis sendo mortos todos os dias com mísseis de Putin, seus helicópteros e seus foguetes” (TUBAMOTO, 2022). No domingo, dia 27 de fevereiro, o apresentador de origem inglesa Peter Dobbie afirmou: Essas são pessoas prósperas, de classe média. Obviamente, não são refugiados tentando fugir de áreas como o Oriente Médio, que ainda estão em estado de guerra. Essas não são pessoas tentando fugir do Norte da África. Eles se parecem com qualquer família europeia que você poderia ter como vizinhos. (TUBAMOTO, 2022). Na rede CBS, o correspondente estrangeiro Charlie D’Agata referiu: “Isto não é o Iraque ou o Afeganistão... Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia” (2022). A cobertura do conflito a partir de comentários 18 supremacistas brancos, xenofóbicos e racistas se proliferam. Além disso, há muitos vídeos e denúncias nas redes sociais sobre a negação de condição de refúgio para pessoas negras que vivem e trabalham na Ucrânia, que estão sendo impedidas de embarcar nos trens que levam a população para Polônia, numa hierarquização para o embarque pela cor da pele. O racismo estrutura o capitalismo e o histórico desprezo do mundo com os povos africanos e os não brancos é bastante conhecido. Ainda assim, é chocante ver externalizados pensamentos despudoradamente e violentamente racistas, que denotam a comoção seletiva pela situação das pessoas brancas, reconhecendo sua humanidade pela cor da pele e dos olhos. Ao mesmo tempo, o desprezo explícito pelo sofrimento da população negra e não branca, assim como pelos povos do oriente médio – ambos afetados pelo cenário de guerra que se instalou. Em síntese, os não europeus não são “merecedores” de comoção, inclusive é esperado o ataque a estas pessoas, já que não são uma “típica família europeia que poderia ser sua vizinha”. As redes sociais como o Twitter têm colaborado para uma cobertura menos parcial e racista. A conta oficial da presidência da Nigéria, país de origem de cerca de 4 mil nigerianos que vivem na Ucrânia, em sua maioria estudantes, publicou: Seja por evidências em vídeo, relatos de fontes primárias e de pessoas em contato com funcionários da diplomacia nigeriana, há infelizes relatos de policiais e oficiais de segurança ucranianos que se recusam a permitir que nigerianos embarquem em ônibus e trens em direção à fronteira Ucrânia-Polônia. (HEGARTY, 2022) Esta guerra é, como todas, vil. Estar atenta a todas as nuances que cercam este conflito é necessário, evitando a dualidade típica de nosso tempo, entre mocinhos e bandidos. Não cabe nesta tese uma análise detalhada do conflito. Além de não ser o tema, estão ausentes as pretensões para realizar este debate com a profundidade que merece. No entanto, é necessário trazer o pano de fundo desta pesquisa, datada e situada em seu tempo histórico, de pandemia global e guerra na Europa, além dos conflitos que se arrastam no Oriente Médio e em África. O racismo, como uma ideologia, não diz respeito tanto a ações individuais de racismo, mas a uma estrutura racista. Nesse sentido, Silvio Almeida, refere ser importante entender que o racismo, enquanto processo histórico e político, é também “um processo de constituição de subjetividades, de indivíduos cuja consciência e os afetos estão de algum modo conectados com as práticas sociais” (ALMEIDA, 2018, p. 19 49). Além disso, é importante compreender a função da ideologia para manutenção da estrutura racista, como um maquinário de produção discursiva de um inconsciente coletivo que perpetua os ideários da raça e do racismo, uma ideologia que se baseia na superioridade branca e na inferiorização de todos os não brancos. Dessa forma, a ação dos indivíduos, ainda que conscientes, “se dá em uma moldura de sociabilidade dotada de constituição historicamente inconsciente” (ALMEIDA, 2018, p. 50). É importante notar, entretanto, que indivíduos que cometem atos racistas devem ser responsabilizados. Embora seja estrutural e não se encerre nas condutas individuais, como define Almeida (2018), o racismo não exime os indivíduos de suas ações. Conforme aponta Frantz Fanon (2008) em “Peles negras Máscaras Brancas”, o racismo é uma chaga da humanidade e, portanto, é preciso que analisemos como ele se apresenta em cada experiência social, nas representações, nas políticas de Estado e nos modos de analisarmos os fenômenos sociais e a própria sociedade. Cabe salientar que partilhamos da concepção de que o racismo criou a raça, e que a racialização está na base do capitalismo. No entanto, para fins de organização teórica, nesta tese centraremos nossas análises a partir do Brasil pós-abolição, visto que o período anterior e o escravismo estão bem documentados por uma brilhante historiografia brasileira. Ainda assim, faremos algumas notas sobre o período escravista, puxando fios sócio-históricos, econômicos e conjunturais que nos ligam ao Brasil pandêmico de 2022. O racismo enquanto estrutura pode atingir todos os sujeitos não brancos. Por isso, é importante frisar que tratarei aqui mais detidamente sobre o racismo antinegro no Brasil, que reserva particularidades. O ódio racial contra pessoas negras, envernizado de democracia racial, tem sido responsável por um genocídio sistemático, ininterrupto e diário, se misturando ao cotidiano das cidades e disfarçando-se de violência urbana, sem que este debate ultrapasse sequer as trincheiras de lutas dos movimentos negros. A morte sistemática dos cidadãos brasileiros pretos e a negação deste flagrante condição colocam o Brasil em uma situação particular no mundo. Nesse cenário, é possível compreender o conflito racial percorrendo a história da escravidão à pandemia. 2.2 COMÉRCIO DE AFRICANOS ESCRAVIZADOS, CAPITALISMO E EXPROPRIAÇÃO DO TRABALHADOR 20 Tomando por base a contribuição de Abdias Nascimento, para iniciarmos este diálogo “Devemos, assim, começar examinando o maior de todos os escândalos, aquele que ultrapassou qualquer outro na história: a escravização dos povos negro- africanos” (2016, p. 57). A escravidão é um fenômeno tão antigo quanto a própria história. No mundo inteiro, desde a mais remota Antiguidade, da Babilônia ao Império Romano, da China Imperial ao Egito dos Faraós, das conquistas do Islã na Idade Média aos povos pré-colombianos da América, milhões de seres humanos foram comprados e vendidos como escravos. Provinham de todas as regiões, raças e linhagens étnicas, incluindo eslavos (designação que originou a palavra “escravo”) de olhos azuis das regiões do Mar Báltico. (GOMES, 2019, p. 25). No entanto, o tráfico, o cativeiro e a escravização de seres humanos dos países da África para as américas modificaram de forma drástica esta história: Nada foi tão volumoso, organizado, sistemático e prolongado quanto o tráfico negreiro para o Novo Mundo: durou três séculos e meio, promoveu a imigração forçada de milhões de seres humanos, envolveu dois oceanos (Atlântico e Índico), quatro continentes (Europa, África, América e Ásia) e quase todos os países da Europa e reinos africanos, além de árabes e indianos que dele participaram indiretamente (GOMES, 2019, p. 25-26). Cabe mencionar que o “Brasil foi o maior território escravista do hemisfério ocidental” (GOMES, 2019, p. 24). O escravismo durou três séculos e meio, período em que o país recebeu 5 milhões de pessoas escravizadas, cerca de 40% do total de 12,5 milhões de pessoas escravizadas e embarcadas para a América. Já Moura estimou que tenham sido 10 milhões. De qualquer modo, a estimativa é “incompleta e ideologicamente comprometida” (MOURA, 2013, p.149), tendo em vista que quanto mais fiéis fossem os registros, mais documentado estaria o maior crime da humanidade. As estimativas com as quais trabalhamos são oriundas de esforços de historiadores e pesquisadores, ainda que o pensamento corrente seja o de apagar esta parte da história sem qualquer reparação. A escravidão moderna, definida por Moura como “Modo de produção que surgiu com o mercantilismo e a expansão do capitalismo, sendo um dos elementos constituintes básicos da acumulação primitiva do capital” (2013, p. 149), esteve presente durante a maior parte da história do Brasil. É importante diferenciar este 21 processo de outros sistemas de escravidão, já que a presença de pessoas escravizadas na Europa, por exemplo, não constituiu um sistema escravista naquele território, ao contrário do que se verificou nas colônias. Por isso, alguns estudiosos denominam o fenômeno de escravismo colonial. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, e o que mais recebeu africanos sequestrados e escravizados. Todo o seu território contou com o trabalho compulsório de pessoas escravizadas, desde as plantações na área rural até os portos nas cidades. Alencastro (2018) aponta que as primeiras embarcações desembarcaram em 1550 e as últimas na década de 1860, quase 30 anos após a proibição do comércio escravagista, estimando-se que 4,8 milhões de africanos desembarcaram obrigados em solo brasileiro. Alencastro (2018, p. 56) complementa a situação do comércio de africanos escravizados, afirmando que o Brasil Foi ainda a única nação independente que praticou maciçamente o tráfico negreiro, transformando o território nacional no maior agregado político escravista americano. Consubstancial à organização do Império do Brasil, a intensificação da importação de escravos africanos após 1822 explica a longevidade do escravismo até sua abolição, em 1888. O autor aponta que o primeiro desembarque se deu em Pernambuco, no ano de 1560, mas o ano geralmente considerado para início do tráfico é 1550. Não há exatidão para o fim do escravismo, já que se estima que “6900 africanos escravizados ainda tenham sido desembarcados no país entre 1851 e 1856” (ALENCASTRO, 2018, p. 56). Isso a despeito do comércio ilegal de pessoas escravizadas ter sido encerrado legalmente em 1850. O escravismo criava seus próprios mecanismos de estagnação econômica e social internos e era estrangulado externamente de forma quase completa pelo polo de poder da Metrópole. O latifúndio escravista (mesmo nas regiões da pecuária) era, por essas razões, a forma fundamental de propriedade substantiva do sistema. Instalou-se até 1850 no Brasil, nacionalmente, com particularidades regionais e históricas, o modo de produção escravista, em toda a sua plenitude, até quando não é mais possível a reposição a população escrava. (MOURA, 1994, p 52). A Lei n. 581, de 4 de setembro de 1850, conhecida como Lei Eusébio de Queirós, estabeleceu medidas para a repressão do tráfico de africanos no Império. A promulgação desta lei estava relacionada, sobretudo, às pressões do império britânico 22 para a extinção da escravidão no país. Em 1807, o comércio escravagista foi abolido pelo governo inglês, que a partir daí iniciou uma campanha para o fim do tráfico internacional de pessoas escravizadas. Posteriormente, em 1815 e 1817, foram assinados dois acordos entre o rei da Inglaterra, Jorge IV, e D. João VI. O Tratado Anglo-português de 1815 proibia qualquer comércio fora dos domínios portugueses e acima da linha do equador. O funcionamento das comissões mistas estabelecidas em Freetown (Serra Leoa) e no Rio de Janeiro foi regulamentado pela Convenção Adicional de 1817. O acordo previa que os africanos emancipados ficariam a cargo do governo de onde a comissão estivesse sediada, que lhes garantiria a liberdade e os empregaria como "criados ou trabalhadores livres". O estatuto dos africanos no Império português foi definido pelo alvará de 26 de janeiro de 1818, que os tratou por "libertos" e fixou o tempo de catorze anos de trabalho compulsório para que pudessem gozar "do pleno direito da sua liberdade". Reiterava- se, assim, o princípio de que os africanos precisavam se preparar, não estariam aptos à liberdade. (MAMIGONIAN, 2018, p.73). De acordo com Mamigonian, no ano de 1822 o Brasil tornou-se independente e os acordos perderam a validade, já que haviam sido assinados entre os governos britânico e português. Entretanto, uma das exigências da Inglaterra para o reconhecimento da independência brasileira foi a proibição da importação de escravizados no Brasil. O Tratado Anglo-Brasileiro, assinado em 1826, proibiu todo o comércio de pessoas escravizadas para o Brasil e manteve as comissões mistas, quando entrou em vigor em março de 1830. (MAMIGONIAN, 2018). Os navios apreendidos durante o patrulhamento da costa brasileira pela Royal Navy Britânica e julgados pelas comissões mistas, quando condenados resultaram na libertação dos homens, mulheres e crianças sequestrados nos navios. Além da longa e insalubre viagem do Continente Africano ao Brasil, os africanos tinham que aguardar o julgamento dentro dos navios. Tal situação prolongava o cárcere e o sofrimento – por consequência, muitas pessoas não resistiam e iam a óbito. No dia 7 de novembro de 1831, foi promulgada no Brasil a lei que, após ser regulamentada pelo decreto de 12 de abril de 1832, deu amplos poderes às autoridades judiciais para reprimir o comércio de pessoas escravizadas e declarou livres todos os africanos sequestrados e trazidos para o território brasileiro. Porém, este decreto não foi capaz de encerrar o tráfico. Ao contrário, fortaleceu o comércio ilegal, por conta da baixa do preço cobrado pelos africanos escravizados na África e pela demanda da grande lavoura cafeeira, aliados à falta de uma vontade política e 23 efetivo controle e repressão do comércio tornado ilegal, sempre imoral e desumano. Desse modo, a lei de 1831 foi comumente conhecida como “lei para inglês ver”. Em 1834, as negociações para a reexportação não avançavam e o tráfico voltava a crescer. O ministro da Justiça, Aureliano Coutinho, determinou a arrematação (e mais tarde a concessão) dos serviços dos africanos e africanas livres para instituições e pessoas "de reconhecida probidade e inteireza". Trabalhariam em troca de alojamento, alimentação, vestuário e cuidados de saúde, além do pagamento de um "aluguel anual" que nunca foi revertido para eles. A Casa de Correção, instituição prisional moderna baseada no princípio da reabilitação por trabalho, centralizaria, a partir de então, o recebimento dos africanos novos e sua distribuição. Muitos africanos trabalhariam nas obras da própria Casa de Correção, que ficava numa chácara nos subúrbios da corte. (MAMIGONIAN, 2018, p. 74) Tendo como marco do fim do tráfico de pessoas escravizadas fixado em 1850, o escravismo pleno inicia sua crise com particularidades em cada região do país. A Lei Áurea decretando a abolição foi assinada em 1888, para atender à pressão externa. Naquele período, a escravidão estava em franco declínio, após inúmeras fugas, rebeliões e alforrias compradas por abolicionistas negros. Segundo Moura (1994), concomitantemente a esses acontecimentos, desenvolveu-se um processo de modernização sem mudança social em diversos aspectos da sociedade escravista. Quando dizemos, na nossa elaboração teórica, modernização sem mudança, queremos afirmar que em determinada sociedade houve um progresso econômico, tecnológico, cultural e em outras partes e níveis da sua estrutura sem uma modificação que a isto correspondesse nas suas relações de produção, ou seja, na sua infraestrutura. Desta forma, se, de um lado, a sociedade acumula, assimila e dinamiza aquilo que o desenvolvimento material, científico e tecnológico criou e aperfeiçoou, do outro lado, as relações entre os homens no processo de trabalho continuaram atrasadas e correspondentes a um estágio anterior e inferior ao da estrutura que avançou. Todo o suporte fundamental da sociedade fica, desta forma, em desarmonia com o desenvolvimento da outra parte que se modernizou. (MOURA, 1994, p 52, grifos do autor). As relações capitalistas se desenvolveram no Brasil associando o arcaico escravagismo com modernização. O progresso econômico, tecnológico e cultural não chegou para a imensa maioria da população. A população de escravos “libertos” foi tardiamente incorporada na mudança, privada por décadas do exercício do trabalho formal e da escolarização, por exemplo. Somente no ano de 1960, com a expansão 24 do sistema público de ensino, uma parte da população negra pôde acessar a escola, expansão interrompida com o golpe civil-militar de 1964. Livres, mas não libertos, africanos e africanas ainda foram submetidos ao trabalho forçado, sem salário. Com o comércio ilegal, as pessoas trazidas à força eram consideradas livres pela lei, mas ficavam sob a guarda da casa de correção e trabalhavam em troca de alojamento, comida e vestuário – direitos que lhes deveriam ser garantidos pelo país que considerava ilegal o tráfico, mas que, na prática, criminalizava a vítima deste horrendo crime. Navio negreiro desde 1550; senzala de 1550 a 1830; casa de correção em 1834. Favelas no Brasil República e presídio em 2022. Como diz a música do grupo O Rappa, “Todo camburão tem um pouco de navio Negreiro” (TODO, 1994). 2.2.1 Pós abolição, eugenia e mito da democracia racial Desde 1888, a lei proibia que pessoas negras fossem tratadas como posse no Brasil, mas a construção de que eram inferiores por conta de sua descendência e fenótipo persistia, inclusive sendo fortemente disseminada entre a elite intelectual. Sem um apoio legal que justificasse a hierarquia racial, outra maquinaria foi utilizada para manter e legitimar a hierarquia racial, bem como a desigualdade de acesso a terras, riquezas produzidas e cidadania no Brasil. Para tanto, a pseudociência racista foi primordial, principalmente a eugenia, que teve berço na Europa e encontrou solo fértil em terras brasileiras. Inicialmente pensada para melhorar plantações, logo a ideologia eugênica passou a ser considerada para os seres humanos. Distanciando-se de seu aspecto técnico e científico, a ideia se desenvolveu como pensamento ético-político. O termo eugenia foi criado por Francis Galton em 1880, baseado na teoria de Charles Darwin, seu primo. Galton idealizava a sociedade perfeita, livre de males que para ele eram inatos, como a miséria. Em sua concepção, bastava que pessoas “boas e ricas” deixassem mais descendentes, tal como na teoria da evolução, que naquela época tornou Darwin um dos cientistas mais conhecidos e respeitados. Durante muito tempo o Brasil foi reconhecido como um país miscigenado, um “espetáculo das raças” (SCHWARCZ, 1993), onde a mestiçagem teria criado uma relação racial harmônica. É como representante deste país mestiço que João Batista 25 de Lacerda, na época diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, foi convidado a participar do I Congresso Internacional das Raças, ocorrido em julho de 1911. Na ocasião ele apresentou a tese: “Sus les métis au Brésil”. Sua visão era clara e direta. Em suas palavras, “O Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” (LACERDA apud SCHWARCZ, 1993, p.11). Através de imagens e reproduzindo um pensamento corrente das elites brasileiras, Lacerda apresentou seu argumento de que o Brasil deixaria de ser miscigenado a partir de um processo de branqueamento, para o qual seria necessário em torno de 100 anos. Uma das imagens apresentadas no congresso foi a reprodução da pintura “A Redenção de Cam”, tela do pintor Modesto Brocos (1852-1936) que faz referência à maldição de Cam e de sua descendência1. Nessa obra, o artista retratou uma senhora negra descalça sob um chão de terra, erguendo as mãos para o céu em agradecimento, ao lado sua filha com traços mais branqueados segurando um bebê branco, com cabelos mais claros. Ao lado, sentado na soleira da porta, mais bem trajado e de pés calçados, há um homem branco com uma fisionomia satisfeita, com os pés sob um chão com piso. Ou seja, uma mãe negra agradecida aos céus por ter recebido um neto branco. Uma família negra em redenção através do branqueamento. Não me deterei na análise da simbologia desta obra, pois está bem documentada na historiografia brasileira, como no livro “O Espetáculo das Raças”, de Lilia Schwarcz. Para a autora, os que viajavam ao Brasil chocavam-se com a mistura de raças, e adjetivavam de forma negativa o que viam dos brasileiros: Observado com cuidado pelos viajantes estrangeiros, analisado com ceticismo por cientistas americanos e europeus interessados na questão racial, temido por boa parte das elites pensantes locais, o cruzamento de raças era entendido; com efeito, como uma questão 1 O título da tela do pintor Modesto Brocos (1852-1936) é uma referência à maldição de Cam e de sua descendência, como relata o texto do Gênesis, IX 20: “Noé começou a praticar a agricultura e plantou uma vinha. Bebeu vinho e se embriagou, ficando despido dentro da tenda. Cam, o antepassado de Canaã, viu a nudez do pai e foi contar aos dois irmãos que estavam fora. Mas Sem e Jafé tomaram o manto, puseram-no sobre os ombros e, caminhando de costas, cobriram a nudez do pai. Como estavam de costas, não viram a nudez do pai. Despertando da embriaguez, Noé ficou sabendo o que fizera o filho mais novo e disse: “Maldito seja Canaã! Que se torne o último dos escravos de seus irmãos”. (SILVA, 2011). 26 para a compreensão dos destinos dessa nação (Schwarcz, 1993, p.13-14). Mas, para compreender tal dinâmica, é preciso resgatar as condições do nascimento do Estado nacional e as suas bases de sustentação, mencionando qual o ideário político econômico que deu origem à república no Brasil: a partir de setembro de 1822, inicia-se a formação de um novo Estado nacional, que se pretendia soberano, independente e liberal, mas que, sobretudo, moldou a escravidão à sua constituição, adaptando os significados da palavra liberdade de acordo com seus interesses. A aparente contradição entre a independência política e a manutenção do escravismo num contexto de profundas mudanças sociopolíticas no quadro Atlântico torna fundamental entender que Estado é esse e, principalmente, as formas pelas quais os assuntos relacionados à escravidão foram tratados (SANTOS, 2007, p.103). Era aparente a contradição entre um novo Estado independente e o velho escravismo como base econômica e social, num contexto de profundas mudanças ao redor do Atlântico (SANTOS, 2007). O Brasil ainda seguia ligado à nação de Portugal; seu território mais parecia uma junção de pequenos territórios, cada um com uma relação com a metrópole, desejos e requisições para o país agora independente. No entanto, o escravismo era a base de sustentação dos interesses das elites. O Estado nacional foi cimentado pela expropriação dos negros brasileiros e africanos. Um cimento tão resistente que supera os grandes eventos históricos que transformaram este país, de colônia a república, de ditadura a governo democraticamente eleito, e segue quase intacto até os dias atuais. Os senhores de escravos aproveitaram o processo de modernização e, ao mesmo tempo, de dependência para manterem os seus privilégios de classe e sobreviverem à passagem do escravismo tardio para o trabalho livre. Ficaram na dependência dessas forças econômicas modernizadoras. Mas ao mesmo tempo, conseguiram estabelecer táticas de manipulação política para, de um lado, apoiarem esse processo modernizador-subalternizador, mas, de outro, conservar os seus interesses e privilégios que tinham como suporte as relações arcaicas no campo, no caso a permanência da escravidão ou, com o seu término, a conservação dos interesses das oligarquias latifundiárias que constituíam a classe senhorial. A passagem da escravidão para o trabalho livre não afetou por isto os interesses dessas oligarquias, pois, ao perderem os escravos, muitos deles já onerosos por serem membros de um estoque envelhecido, continuaram com a posse de terra, símbolo econômico e social do poder. E essa tática apelou para uma solução alternativa que 27 permitisse a essa oligarquia continuar na posse de terra: a vinda dos imigrantes. (MOURA, 1994, p.57-58). Em tese, a passagem da monarquia para a República se fez sem alterações nas relações sociais senhoris, as elites detentoras do poder e dos meios de produção seguiram as mesmas. Este período histórico necessita de um intenso e rigoroso trabalho que não faremos nesta pesquisa por não ser nosso objeto, para compreender melhor as forças, o jogo político e o ideário do período. As pesquisas citadas acima trazem importantes análises, assim como tantas produções historiográficas de mulheres e homens negros. O Estado nacional pautado pelos interesses da classe dominante entendia como problema a questão dos negros libertos. O governo executou a abolição sem compromisso com seu povo negro, como se fosse possível encerrar sem embaraços um processo de intensa desumanização dos negros que perdurou por quase 400 anos por decreto. Não houve qualquer ressarcimento pelo tempo de trabalho escravo, nem uma reparação com a devida restituição das terras que estes trabalhadores tornaram produtivas e sob as quais as elites escravistas enriqueceram. Não houve a necessária reforma agrária até hoje. Inclusive, a alternativa adotada para não manter a estrutura oligárquica e racial foi estimular a imigração branca. Foi estimulada a vinda de europeus para o trabalho no solo brasileiro, com cessão de terras, equipamentos e transporte para a travessia. O imenso contingente de trabalhadores negros não teve acesso a terras, mesmo as que trabalharam e semearam por séculos. Em 18 de setembro de 1850, o imperador Dom Pedro II assinou a Lei de Terras, um marco capitalista no Brasil. Esse instrumento legal direcionava a posse e o uso das terras brasileiras, que passaram a ter valor monetário. A partir desta lei, “o país oficialmente optou por ter a zona rural dividida em latifúndios, e não em pequenas propriedades.” (WESTIN, 2020). A lei de terras, que tornou ilegal a ocupação da zona rural do país, não nasceu ao acaso. A cobranças de taxas para acessar as propriedades impediu que negros libertos tivessem acesso à posse de terras. Afinal, como um trabalhador que foi expropriado durante sua vida e seus familiares poderiam adquirir terras sem nunca ter tido acesso a salário? A lei de terras excluía da anistia pequenos posseiros, que por não poderem arcar com as taxas eram expulsos das terras, privados do seu sustento, vindo a engrossar as massas do trabalho precarizado e mal remunerado pelos grandes 28 latifundiários do café, por exemplo. Desse modo, a estrutura escravista se reorganizou, partindo de um marco legal que garantiu a exploração oligárquica. As bases seguem as mesmas até os dias atuais, e a reforma agrária segue sendo a luta de trabalhadores, uma utopia necessária. Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) agregados para a Agência do Senado, “Atualmente, apenas 0,7% das propriedades têm área superior a 2 mil hectares (20 km2), mas elas, somadas, ocupam quase 50% da zona rural brasileira. Por outro lado, 60% das propriedades não chegam a 25 hectares (0,25 km2) e, mesmo tão numerosas, só cobrem 5% do território rural.” (WESTIN, 2020). Mesmo os territórios quilombolas já reconhecidos como direito estão sob ataque, pois a posse de terras para negros não é tolerada pela elite racista. Se o racismo desumaniza os negros, como um não humano terá direito a terra? O racismo produz continuamente um discurso de eliminação, exclusão e destruição. Assim, o Estado brasileiro sempre foi solo fértil para discursos raciais pautados pela desumanização do negro. Não é de se admirar que a ideologia eugênica fizesse morada em terras brasileiras. Em 2021 a eugenia já não se sustenta nem como teoria nem como pensamento social, mas ainda está presente na produção discursiva punitivista que atribui culpa aos trabalhadores pelas condições precárias de vida, impostas por um modelo neoliberal de superexploração de sociedade. O Brasil também teve expoentes eugenistas. Um movimento que, após a derrubada de Hitler, não desapareceu completamente, apenas submergiu, mas ainda está operando. A eugenia brasileira operou através da esterilização de mulheres negras, sob o manto do controle de natalidade, por exemplo. Era a chamada eugenia positiva, que se ancorava em um racismo científico e um determinismo biológico, visando um melhoramento da espécie. Boa parte dos nomes desses eugenistas é conhecido – já que batizam ruas e avenidas por todo o país (SANTOS, 2019). Ou seja, a proposta era de que no ano de 2012 o Brasil se transformasse em um país branco. O que estava em jogo era uma ideia de nação afinada a um projeto de mundo moderno-colonial cuja construção do que se considera verdadeiramente humano está assentada nos valores civilizatórios europeus. Assim, tudo aquilo que não condiz com esses parâmetros civilizatórios – centrados na produção da supremacia branca, do patriarcado e do capitalismo – precisaria ser eliminado. Este ideário de nação planejada e sustentada pela eugenia foi posto em curso lançando mão de diferentes estratégias; uma delas são as maquinarias do cuidado que se sustentam por práticas de apaziguamento de conflitos e produção da 29 mestiçagem como política de controle e extermínio de populações (BATTISTELLI; RODRIGUES; FERRUGEM, 2021, p. 554). Tais lógicas tinham por base a manutenção de assimetrias raciais, a partir da mestiçagem e do apaziguamento de conflitos raciais. Elas deram corpo ao mito da democracia racial, que se perpetuou fortemente até a década de 80, mas que com menos força e de maneira envernizada persiste até os dias atuais. O mito da harmonia entre negros e brancos é útil, posto que, se se supõe que não existe racismo nem hierarquia racial, sufocam-se os conflitos, mantendo-se controlados os corpos pelo medo, a violência e a sujeição. No Brasil pós-abolição, as teorias eugenistas atendiam aos interesses das elites preocupadas com insurgências da população de ex-escravizados e seus descendentes. Na esteira desta teoria, a medicina legal e o direito penal foram responsáveis por criar mecanismos para controle desta população. Como a teoria sobre raça do século XIX pregava que os sujeitos com determinadas características fenotípicas seriam destituídos de inteligência, incapazes de atender a estatutos morais da época e propensos ao crime e à loucura, era preciso controlar estas pessoas. A constituição dos manicômios das prisões remonta a esta época. No Brasil, o código penal e a medicina legal como disciplinas nascem com raízes compartilhadas e sustentadas na eugenia como ideário social, ancorada em suposto saber científico. Durante o período do Brasil Colônia os negros, por serem escravizados, não tinham direitos. Não havia um sistema de justiça estabelecido; “o que prevalecia era o direito penal doméstico, senhorial, imposto como fenômeno intrínseco ao escravismo. O controle dos corpos negros e indígenas era exercido diretamente pelas próprias mãos dos senhores de escravos”. (CÁSSERES, 2020, p.131). Estas características senhoris se metamorfoseiam, mas guardam a essência racista, colonial e escravagista, à medida que o sistema penal tende a ser mais duro e encarcerador para a população negra. Para Flauzina (2006), um sistema que atende a um ideário de exterminar a população negra: Com os dados do racismo há muito disponíveis no âmbito do controle penal, o que restou obstaculizar, foi a construção de uma teoria que pudesse dar conta dessa realidade. Afinal, foi na biografia da escravização negra que o sistema penal começou a se consolidar e é na lógica de dominação étnica contemporânea que continua a operar em seus excessos. É o arranjo dessa relação de continuidade 30 incontestável que se tenta obstar a qualquer custo. (FLAUZINA, 2006, p.41). A constituição do sistema penal brasileiro atende ao racismo que estrutura a nossa sociedade, atuando para o controle e a criminalização dos negros libertos nos pós-abolição. O simples fato de se estar na rua sem comprovante de um trabalho ou renda poderia ser enquadrado como “vadiagem”, crime com pena de prisão nesta época. Analogamente, a capoeira também era criminalizada no código penal de 1890, sendo legalizada apenas em 1937. Foram criados instrumentos jurídicos penais, sociais e políticos para manter a hierarquia racial com lugares determinados para brancos, como trabalhadores imigrantes, fazendeiros, políticos, médicos e advogados, enquanto para negros restava o processo penal, o cárcere, o manicômio e o trabalho ambulante. O sistema penal no Brasil é ancorado na periculosidade, para punir sujeitos tidos como perigosos. Periculosidade é o centro gravitacional de nossa política criminal que segue a máxima racista-colonial: outrificar para desumanizar, alinhavando o medo de corpos que representem a antítese do padrão branco, ideário que fundamenta a programação do sistema de controle racial por ter sua essência na hierarquização de existências, considerando muitas desprezíveis (GÓES, 2020, p. 156). Desse modo, negros historicamente desumanizados seriam os outros aos olhos dos brancos. Ocupariam, portanto, esta representação histórica de corpo perigoso, que deve ser vigiado e controlado. Não à toa, as primeiras legislações penais brasileiras foram para criminalizar comportamentos ligados aos afrodescendentes (trataremos mais detidamente adiante no texto). Mesmo com a estrutura que visava impedir negros de ocupar lugares resguardados para os brancos, muitas batalhas insurgentes se ergueram e muitas pessoas negras furaram as barreiras, tornando-se advogadas, engenheiras e comerciantes por exemplo. Além de garantirem outras formas de viver e trabalhar, essas pessoas auxiliaram outros negros e negras a pagar a alforria da escravização e a trabalharem no pós-abolição. No entanto, cabe atentar para argumentos falaciosos usados contemporaneamente para minimizar e relativizar a escravização, tomando equivocadamente escassas experiências individuais e exceções como se fossem regras, como se dessem conta de todos os complexos processos vividos por um povo. 31 Nesse sentido, espaços em jornais de grande circulação, audiovisuais e revistas têm sido utilizados para, em nome de uma pretensa pluralidade, perpetuar racismo em forma de opinião ou malabarismos retóricos. Um dos maiores jornais do país vinculou, no mês de setembro de 2021, um artigo de opinião cujo autor defendeu que “sinhás pretas” alcançaram riqueza durante a escravidão e, por isso, constituiriam “uma pedra no sapato de quem acredita que ‘o capitalismo é essencialmente racista e machista’ e que o preconceito é uma força determinante, capaz de impedir que não discriminados enriqueçam” (NARLOCH, 2021). Há casos excepcionais de negros e negras que compraram a alforria e conseguiram adquirir posses; no entanto, tratar excepcionalidade como possibilidade para pessoas expropriadas e escravizadas e, mais ainda, para criar falsas simetrias na contemporaneidade, é desonestidade intelectual. É possível adjetivar como próspero um período de escravidão, pessoas sequestradas que atravessaram o oceano em condições insalubres e desumanas, presas em correntes, obrigadas ao trabalho forçado, ao estupro e à mercantilização de sua humanidade? O artigo em questão é de “opinião”. Um colunista ter espaço e receber para emitir “opiniões” semelhantes no maior jornal do país não diz respeito a uma autoria individual, mas reflete uma produção discursiva corrente e recorrente historicamente a fim de manter no imaginário social uma desejada subalternização dos negros, criar confusão e sustentar uma hierarquia, descaracterizando a realidade. É através do discurso, também, que o racismo se perpetua. Somos subjetivados pelo racismo e pela hierarquia racial. É possível que eu tenha me descoberto negra antes de me descobrir mulher, no entanto, ambos constituem minha existência e marcam a forma pela qual me relaciono e estou no mundo. Raça, gênero e classe imbricados me situam no mundo e como pesquisadora. Ao não considerar estes sistemas interdependentes e interligados de dominação (hooks, 2019), se retira da pessoa negra seu lugar histórico, esvaziando sua capacidade de resistência a estruturas opressivas que deveriam já ter ruído, mas que seguem articuladas, apesar de tantas formas de existência e insurgências. Tais processos de resistência precisam ser considerados, assim como os impactos do racismo na subjetividade de homens e mulheres negras, na identidade que constroem, subjetivados pelo capitalismo racializado de cunho neoliberal e pelas resistências a este sistema mundo. Ou seja, os sujeitos se constituem neste processo dialético. 32 A racialização da sociedade capitalista neoliberal se sustenta na hierarquização das pessoas, com um segmento da população acreditando ser superior a outros segmentos, uma classificação racial a partir da qual outras se estruturam. Neste ideário não há antagonismo entre negro e branco. Os negros sofrem o racismo antinegro, mas a racialização atinge ambos. Brancos e negros são racializados, e este processo não diz respeito a identidades culturais, é anterior a lutas identitárias. Penso que essa é uma chave importante para a compreensão das sociedades capitalistas. Assim como o racismo organiza e estrutura a distribuição de poder econômico, social e jurídico, de modo a subalternizar e excluir pessoas negras e não brancas do usufruto da produção social coletiva dos bens sociais, mantém estas estruturas mais intactas quanto possível a fim de beneficiar as pessoas brancas. De outro modo, ao analisarmos processos históricos, buscamos a compreensão a partir de uma leitura parcial do real. Há inúmeros estudos acerca do escravismo, pensamos na escravidão como um processo de escravização de africanos trazidos à força ao Brasil, mas negamos ou não enxergamos de forma tão explícita o quanto os brancos estavam implicados neste processo, ou melhor, responsáveis por este processo sistemático, progressivo e devastador por cerca de 4 séculos. Ou seja, é como se as pessoas escravizadas tivessem chegado ao Brasil por força de entidades e não de pessoas brancas imbuídas de poder, que desumanizaram estas pessoas, para transformá-las em peças a serem vendidas. Já incorporamos o conceito de racismo estrutural, mas, de novo, o esvaziamos quando supomos que, por ser estrutural, ele não diria respeito também às relações. Nesse cenário, qual a função da branquitude para uma sociedade estruturalmente racista? Ora, a hierarquização racial sustenta o capitalismo, relacionando-se com a macroestrutura. É neste nível que a branquitude e o racismo se organizam e a partir do qual organizam as relações sociais, incidindo nas identidades culturais, na autodeterminação dos sujeitos e nas subjetividades. O racismo estrutural só pode ser compreendido na perspectiva de totalidade. Portanto, o marxismo enquanto pensamento radical é chave para a compreensão das sociedades capitalistas racializadas, sendo antimarxista desassociar raça e classe, já que no movimento do real estão imbricados. Todavia, no interior de parte da discussão marxista, ao menos o que tem chegado hegemonicamente no Serviço Social, há uma desqualificação das lutas das mulheres, dos negros, dos lgbtqia+, dos não brancos, reduzindo esta luta como identitária, com 33 o argumento de que estas lutas, reforço, lutas da maior parcela da classe trabalhadora dividiram e subtraíram a força da luta de classes. De fato, um identitarismo liberal, a cooptação de lutas de segmentos da população que visam particularizar necessidades e direitos, esvaziando estas lutas de conteúdo político, atenderia à lógica individualista e meritocrática do neoliberalismo. No entanto, a luta histórica dos movimentos negros no Brasil, por exemplo, se constitui em lutas por condições dignas de vida e trabalho para os trabalhadores negros e para todos os trabalhadores. A luta do feminismo negro é uma luta contra o racismo e sexismo e, portanto, uma luta pela classe trabalhadora que inclui as mulheres negras. Elas, que ocupam a base de uma pirâmide social, reivindicam condições dignas de vida mirando também a classe trabalhadora, da qual têm consciência de que fazem parte. Como ensina Angela Davis: quando uma mulher negra se movimenta, a sociedade se movimenta com ela. E as mulheres negras aprenderam que o movimento deve ser coletivo. O identitarismo no Brasil é um conceito difuso, utilizado dentro do campo progressista para desqualificar as pautas dos trabalhadores negros, das mulheres e dos trabalhadores LGBTQIA+ e têm servido para sustentar lugares de privilégio, como a manutenção de cargos de poder e prestígio político entre homens brancos. Nessa dinâmica, controlam-se as pautas de lutas e, com isso, são mantidas intactas as estruturas opressivas, enquanto se reformam as “fachadas”. Em essência, não se modificam as engrenagens de opressão. Compreender a classe trabalhadora como heterogênea é, portanto, considerar que há várias lutas no interior da classe, que não dividem, mas consolidam a luta da classe trabalhadora. Ao reivindicar um antirracismo como prioritário, os movimentos negros buscam equilibrar as relações de poder no campo progressista. Ao requerer uma sociedade menos sexista, as mulheres reclamam para si o direito à diferença e a oportunidades iguais. Para isso, é preciso tomar lugares e posições historicamente ocupados por homens. Em suma, as lutas travadas no interior da classe trabalhadora, simplificadamente nomeadas como identitárias, flexionam mudanças estruturantes em prol da própria classe trabalhadora. Não à toa a retórica do identitarismo como forma de deslegitimar tais lutas quase sempre é acionada por homens brancos, cisheteronormativos – sujeitos diretamente atingidos pelas reivindicações destes movimentos. Obviamente, esta falsa dicotomia entre classe, raça e gênero atende aos interesses do capital. Este distende mais e mais os limites da superexploração do 34 trabalho, valendo-se de identidades neoliberais para dissolver e desmobilizar reivindicações e lutas legítimas de trabalhadores que vivem a classe a partir de seus lugares de existência, que são diferentes e, portanto, necessitam do reconhecimento de suas diferenças. Reconhecer estas diferenças é agir para que elas não sejam mais tomadas para mecanismos capitalistas de hierarquização das vidas humanas. Não é possível um país democrático em que metade da sua população parece viver com um alvo no peito. Como canta Emicida, “existe pele alva e pele alvo” (ISMÁLIA, 2019). Naturalizar esta condição é naturalizar e institucionalizar a barbárie. As lutas contra o racismo, sexismo, LGBTQIAfobias, o capacitismo e toda forma de exploração são lutas pela classe trabalhadora. Ao negar estas lutas, ao desqualificar estes processos insurgentes pela restituição da dignidade que o capital tenta apagar, não se está em defesa de uma luta fundamental pela classe, já que esta perspectiva parece compreender a classe apenas como masculina branca e cishetenormativa e, portanto, aí sim, identitária, resguardando privilégios de identidades hegemônicas. O entendimento enviesado acerca do suposto “identitarismo” parece ainda ser hegemônico nos partidos políticos de esquerda, que deveriam ser mais aliados a classe trabalhadora, já que sempre escamotearam a luta antirracista e, ainda hoje, mesmo reconhecendo o racismo estrutural brasileiro, se eximem de ações mais enfáticas para o combate do racismo. A política é palco da branquitude. Não só porque nossos políticos são brancos em sua esmagadora maioria desde sempre, mas também por ser espaço de transmissão de poder da branquitude. Basta verificarmos famílias com gerações de políticos, em que um sobrenome é capaz de garantir votos e mandatos. Não há combate possível ao racismo que não passe pela discussão da racialização enquanto um processo que atinge negros e brancos. Discute-se a escravidão, se estuda a escravidão nas escolas, mas se fala apenas da condição dos negros, majoritariamente como coitados, despossuídos, faltantes, necessitados, como se não estivessem presentes e atuantes na construção deste país, e em todas as lutas da classe trabalhadora. A organização dos quilombos na escravidão era, antes de tudo, uma organização social de trabalhadores, em que se vivia uma democracia racial: negros, brancos e indígenas participavam dos quilombos. Além disso, se esconde a função social da branquitude nestes períodos de escravidão, pós-abolição e na contemporaneidade, como se apenas o negro fosse uma construção social e a brancura não. 35 Como bem aponta Maria Aparecida Bento (2002), é como se os brancos não estivessem presentes, um legado que o país segue não querendo discutir. Para a autora, “evitar focalizar o branco é evitar discutir as diferentes dimensões do privilégio. Mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura, o que não é pouca coisa.” (BENTO, 2002, p.28). Se há desigualdades, há privilégios: Há benefícios concretos e simbólicos em se evitar caracterizar o lugar ocupado pelo branco na história do Brasil. Não se reconhecer como partícipe dessa história é não assumir um legado que acentua o lugar de privilégio que o grupo branco desfruta na atualidade (BENTO, 2002, p.28). A autora defende que os brancos estabeleceram um “pacto narcísico da branquitude” (BENTO, 2002). Tal pacto explicaria, por exemplo, a produção de saber nas universidades com pouca ou nenhuma permeabilidade de autorias negras, indígenas, africanas, asiáticas, ou seja, não brancas – mesmo que o Brasil seja majoritariamente não branco, assim como o mundo é, em sua imensa maioria populacional, não branco. E ainda assim, a produção aceita, referida e validada é branca. O privilégio racial é uma característica marcante da sociedade brasileira, uma vez que o grupo branco é o grande beneficiário da exploração, especialmente da população negra [...]. Quando se trata de competir no preenchimento de posições que implicam recompensas materiais ou simbólicas, mesmo que os negros possuam a mesma capacitação, os resultados são sempre favoráveis aos competidores brancos (GONZALEZ, 2020, p. 46). O reconhecimento, a aceitação e a validação só ocorreriam com uma pessoa lida como igual. Ainda que não fosse um processo racionalizado, se efetivaria pela dimensão racializada a que fomos subjetivados. A nível inconsciente o reconhecimento da intelectualidade, da genialidade ou de uma cognição compatível passaria pela validação racial, o que ocorreria a nível cultural também, na produção coletiva de inconsciente. “Em outras palavras, nós nos tornamos a representação mental daquilo com que o sujeito branco não quer se parecer. (KILOMBA, 2019, p.38). Um tanto drástico? 36 2.3 A VIOLÊNCIA DO RACISMO ANTINEGRO – GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA 2.3.1 Racismo antinegro – colonialismo, pandemia e questão social Crônica de um verão pandêmico Sobre o Brasil em janeiro de 2022, se preparando para o terceiro ano de pandemia; de um lado, vacinas produzidas em tempo recorde por um esforço global de cientistas, de outro lado, discursos negacionistas, desagregadores dos esforços para conter a disseminação do vírus e, principalmente barrar a letalidade do vírus. Crise econômica e amplo desemprego. Cenário desolador de 2022, que coexiste com a escalada violenta do racismo. Moïse Kabagambe era um jovem de 24 anos, natural do Congo, em situação de refúgio com a família no Brasil desde 2014. Foi assassinado a pauladas em um quiosque de praia no Rio de Janeiro, covardemente agredido por 15 minutos por um grupo de homens, que seguiram batendo mesmo ao enxergar aquele corpo negro desacordado no chão. O quiosque estava funcionando, as pessoas aproveitavam a praia em zona nobre da cidade. O caso veio à tona 8 dias após o ocorrido. Por 8 dias o silêncio sepulcral sobre o crime conviveu com a dor dilacerante dos familiares e amigos que buscavam respostas ao que ocorreu. No dia 06 de fevereiro de 2022, o Jovem Yago Corrêa foi à padaria comprar pão em uma favela do Rio de Janeiro, algo absolutamente trivial, vida ordinária de milhares de brasileiros que vão a padaria em um domingo. Na saída, com o saco de pão nas mãos, ele vê uma correria na rua, segue algumas pessoas que buscam se proteger em uma farmácia. A vida em periferias talha as pessoas a se protegerem de tiros que surgem inesperadamente e interrompem o cotidiano. Não há trivialidade em viver em meio a uma guerra declarada e negada ao mesmo tempo. Um policial entra na farmácia e puxa pelo braço este jovem negro, levando-o preso. Assim mesmo, sem mandado, sem crime, sem arma. O único flagrante é a pele negra em um corpo de um jovem pobre. Novamente a família faz as vezes de investigadores, corre atrás de câmeras de segurança que mostram os passos do jovem na padaria e na farmácia. O jovem é solto após passar duas noites em uma delegacia onde não deveria sequer ter pisado. O Brasil da fome retorna, com mais de 600 mil mortos pelo coronavírus, e tragédias se sobrepondo em camadas infinitas por sobre os ombros dos trabalhadores mais pobres. Está no ar um reality show bastante famoso, em sua vigésima segunda edição. As pessoas assistem, acompanham pelas redes sociais. Ao contrário de quem brada contra a alienação desses programas, eu faço pouco caso do que me parece ser apenas classismo. A alienação é intrínseca a uma sociedade capitalista. Como ser humano em um sistema que busca a aniquilação dos sujeitos? O programa é circo em tempos em que falta o pão? Com certeza. No entanto, as críticas de quem viaja de 37 férias mais de uma vez por ano, paga diversas plataformas de streaming, e escolhe o que consumir soa como apenas classismo teórico. O programa escolhe pessoas que possam dar audiência. Há ali produção discursiva poderosa. Há frases sendo ditas por mulheres brancas, frases como a seguinte: “Eu tenho medo da fulana”. Para constar, a fulana é uma mulher preta e pobre. No outro dia, a mesma pessoa diz: “Tem que cuidar com a fulana, ela é perigosa”. Em outro momento: “Ele tem cara de quem se descontrola”. A cara era de um homem preto, famoso, mas de origem humilde. Dias depois, uma mulher loira sulista diz: “Não entendi o que ele fez, o samba do criolo… Ai que horror quase que eu falo uma frase racista". A segunda mulher no quarto (por coincidência a que diz ter medo da mulher negra) ri muito, a terceira diz: “Ia pegar muito mal”. A loira responde: “Eu sei, mas é força do hábito”. Estas cenas ocorreram em sequência entre o final de janeiro e o início de fevereiro. Pincei três cenas, amplamente veiculadas na mídia. A morte do jovem africano gerou protestos em várias cidades, que ocorreram no dia 5 de fevereiro. O vídeo com a sequência violenta de espancamento foi veiculado em todos os jornais, por vários dias. Um programa matinal de amenidades na maior emissora do país, a mesma do reality, reportou o ocorrido e veicularia o vídeo. Não o fez, pois um dos apresentadores, que é um homem negro, solicitou. Mais cedo, na atração, ao falar sobre o crime, o jornalista pediu para a produção da atração, que já estava com a cena na tela, não mostrar o vídeo do homem sendo agredido. “Vou pedir para o diretor do programa não exibir as imagens. É sábado de manhã”, disse ele, ao vivo. Em seguida, o pedido foi respeitado. (UOL, 2021). Neste dia ocorriam as manifestações em várias cidades, o jornalista vai até a manifestação para fazer a cobertura, ao retornar ao estúdio relata: “Doideira aquilo lá. Ao mesmo tempo em que a gente teve muita manifestação querendo justiça, vocês não fazem ideia da quantidade de pessoas me provocando. Tomei cotovelada de pessoas de pele clara” (UOL, 2022). O que pretendo apresentando estas cenas? Não são episódios necessariamente conectados. São fragmentos de um país racialmente segregado. O incômodo do jornalista negro em veicular as cenas de violência é um sentimento comum a muitas pessoas negras: não suportar a angústia de se enxergar em corpos brutalizados. As cenas cotidianas e reiteradas de violência contra pessoas negras parecem chocar menos e incitar mobilizações que causam dor e desconforto aparentemente apenas entre as próprias pessoas negras. A exposição à violência infligida contra si, contra pessoas conhecidas ou que se parecem com seus familiares 38 é danoso, psiquicamente prejudicial, e violentamente atinge a todos os negros e negras deste país. A violência antinegra que chega ao ápice na morte violenta, a prisão arbitrária que mira sempre nos jovens negros periféricos, pouco importa se com pão ou com fuzil (muitas vezes confundido com outros objetos inofensivos como um guarda- chuva) nas mãos. O discurso racista pela força do hábito. As agressões ao jornalista negro, que mesmo diante da câmera que o filma, segurando o microfone que o identifica como repórter e com a equipe da maior emissora de televisão do país o acompanhando não está protegido do racismo. A violência do ato de causar a morte é precedida e articulada pela produção discursiva. O hábito despretensioso de ser racista. O medo verbalizado contra pessoas negras. “A cara de quem se descontrola”. “A cara de quem está envolvido no crime”. “O medo de quem segura a bolsa quando vê um negro aproximar-se”. Frases que circulam sem barreiras na sociedade. O corpo que é empurrado sem qualquer justificativa. Ambos são atos violentos de um racismo antinegro. Não estão descolados. É estrutural e brutal. O racismo atribui características negativas às pessoas negras, associando-as à violência, ao descontrole, a não confiabilidade. São construções sociais do racismo. E há um processo histórico nesta construção. Sem conceituação mínima em nosso ordenamento penal, é sobre a ideia abstrata de periculosidade que se define o “perigoso”, fato, aparentemente, incoerente segundo o princípio básico da legalidade. Porém, longe de ser um equívoco, essa não normatização é, em verdade, vital para o nosso sistema punitivo, uma artimanha da branquitude que expressa, por lacunas legais e sob o véu do livre convencimento motivado, seu racismo, sem nomeá-lo para não falsear o discurso da igualdade, seguindo as diretrizes da política da democracia racial, expressa no encarceramento da massa negra (GÓES, 2020, p. 156). “Olhei no espelho, Ícaro me encarou: / ’Cuidado, não voa tão perto do sol / Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei’ / O abutre quer te ver de algema pra dizer: / ‘Ó, não falei?!’” (ISMÁLIA, 2019). O que o lirismo poético da música do Emicida me reporta é o quanto ainda é insuportável na sociedade brasileira a existência das pessoas negras no Brasil. E por existência me refiro à plenitude de produção da vida, de quem construiu e constrói o país em que vive. Ainda parece ser insuportável para parte da população ver pessoas negras livres. Imagina questionando este sistema 39 racista? O cárcere e, anterior a ele, o medo do encarceramento, tenta reduzir a vida dos negros à sombra da morte e do potencial cárcere. A transição do escravismo colonial para o capitalismo moderno seguiu sem rupturas, num ato contínuo, protagonizado pelas mesmas elites do colonialismo que têm no escravismo sua organização. Elites que conseguiram perpetuar através de gerações seus lucros com a manutenção da exploração sustentada pela colonialidade, a organização social pelo poder, a perpetuação da coisificação, que, por sua vez, é a mesma coisa que colonização, como apontou Aimé Césaire (2020). Sobre os supostos abusos que foram suprimidos com a colonização, ou civilização para os colonizadores, Césaire é direto: Também estou falando dos abusos, mas para dizer que aos antigos - muito reais - sobrepuseram outros - muito detestáveis. Sou informado sobre tiranos locais que foram enquadrados; mas como constato que, em geral, eles se dão muito bem com os novos e que, destes aos antigos e vice-versa, um circuito de bons serviços e cumplicidade foi estabelecido em detrimento dos povos. (2020, p. 25). E prossegue de maneira assertiva: “Falam-me de civilização, eu falo de proletarização e mistificação” (CÉSAIRE, 2020, p. 25). O escravismo moderno, também chamado de escravismo colonial, além de percorrer a maior parte da história do país, influiu para a constituição de nação brasileira. Aliás, “nação é um fenômeno burguês”, como bem aponta Césaire (2020), com marcas persistentes no capitalismo dependente que o substituiu – ou melhor, deu-lhe continuidade. Não houve rupturas entre um processo e outro. Tampouco houve reconhecimento da brutalidade do escravismo, que acabou por moldar o “ethos” de nação brasileira, para utilizar uma definição utilizada por Clóvis Moura (1983). As consequências refletem-se na vida do negro brasileiro, não só pelas piores condições de vida talhadas pelo racismo antinegro, como pelo apagamento de sua contribuição. O sistema competitivo inerente ao modelo de capitalismo dependente, ao tempo em que remanipula os símbolos escravistas contra o negro procura apagar a sua memória histórica e étnica, a fim de que ele fique como homem flutuante, ahistórico. Porque situá-lo historicamente é vê-lo como agente coletivo dinâmico radical desde a origem da escravidão no Brasil (MOURA, 1983, p.125). 40 Gostaria de fazer uma nota acerca deste apagamento, ou flutuação do homem, como bem coloca Moura, quando este trecho da tese foi escrita e se processa em mim. O calendário marcava dia 07 de setembro de 2021, data em que se celebra a independência do Brasil. É necessário pontuar que a celebração e memória da independência do Brasil às margens do Ipiranga foi um destes momentos em que se atendeu aos interesses apenas de uma elite, e sem pudores se tentou riscar da história revoltas populares que a antecederam. Ainda hoje historiadores precisam fazer esforço para tentar jogar luz às lutas e personagens históricos retirados da história oficial do Brasil, como o caso da inconfidência baiana, movimento político organizado em 1798 na Bahia, por pardos e forros, escravos e artesãos, especialmente alfaiates, por isso ficou conhecida (ainda pouco) como Revolta dos Alfaiates, ou Revolta de Búzios. A Revolta dos Alfaiates tinha por objetivo a tomada do poder político, a mais radical revolta anterior à independência. Um movimento emancipacionista popular, iniciado em 12 de agosto de 1798 e encerrado em 8 de novembro do mesmo ano, com seus quatro líderes, Luís Gonzaga das Virgens, João de Deus do Nascimento, Lucas Dantas e Manoel dos Santos Lira sentenciados à morte e executados em praça pública. Com apelo abolicionista, fez com que grande parcela de pardos e negros escravos participassem, marcando sua origem popular e de luta contra a escravidão. (MOURA, 2014). A aposta ética-política desta tese se faz também pelo rompimento do pacto de apagamento, o que se constrói pela reivindicação histórica de existências, que permeia essa escrita. É fundamental salientar que este processo que tenta retirar a pessoa de sua existência histórica foi parte do sistema colonial e azeitou a maquinaria da colonialidade. A “colonialidade é resultado de uma imposição do poder e da dominação colonial que consegue atingir as estruturas subjetivas de um povo, penetrando na sua concepção de sujeito” (GOMES, 2020, p. 227). Não se restringe ao racismo, mas, no Brasil, é a partir do racismo que se mantém e se espraia para o controle das vidas. O racismo deve ser compreendido não enquanto comportamento social, ou atitude individual, a qual podemos apenas não reproduzir, mas sim como base econômica, política e cultural (ALMEIDA, 2018; MOURA, 1994). Uma teoria social que desconsidere a raça enquanto estruturante da classe está apreendendo parcialmente a realidade, sem a devida capacidade de 41 compreender o capitalismo enquanto organização das relações sociais. Esse modo de produção compreende não somente “meios materiais de vida, mas também das relações sociais, em que tudo passa a ser controlado pela lógica de valorização do capital, sem que se levem em conta os imperativos humanos vitais” (SILVA, 2020, p. 168). Portanto, o racismo não se constitui como um recorte social, mas um vetor da divisão de classes, da correlação de forças no interior das classes, na subjetivação das pessoas, na produção das contradições e nas resistências (ALMEIDA, 2018). O racismo, de acordo com esta posição, é uma manifestação das estruturas do capitalismo, que foram forjadas pela escravidão. Isso significa dizer que a desigualdade racial é um elemento constitutivo das relações mercantis e das relações de classe, de tal sorte que a modernização da economia e até seu desenvolvimento também podem representar momentos de adaptação dos parâmetros raciais a novas etapas da acumulação capitalista. Em suma: para se renovar, o capitalismo precisa, muitas vezes, renovar o racismo, como, por exemplo, substituir o racismo oficial e a segregação legalizada pela indiferença em face da igualdade racial sob o manto da democracia (ALMEIDA, 2018, p. 184). O resultado é a morte como cessação da vida, mas também o epistemicídio, que seria a morte, o apagamento da produção intelectual, das trajetórias e das conquistas dos homens e mulheres não brancos, a invisibilização de seus projetos societários e lutas históricas na construção da sociedade. Posto que ocupando a zona do não ser, como aponta Fanon, por consequência também ocuparia a do não saber, a do não sentir e do não construir. Desprovido de privilégios epistêmicos. O privilégio epistêmico dos homens ocidentais sobre o conhecimento produzido por outros corpos políticos e geopolíticas do conhecimento tem gerado não somente injustiça cognitiva, senão que tem sido um dos mecanismos usados para privilegiar projetos imperiais/coloniais/patriarcais no mundo. A inferiorização dos conhecimentos produzidos por homens e mulheres de todo o planeta (incluindo as mulheres ocidentais) têm dotado os homens ocidentais do privilégio epistêmico de definir o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para os demais (GROSFOGUEL, 2016, p.25). O privilégio epistêmico determina a narratividade da história. Vivemos num país cuja formação sócio-histórica foi constituída por um regime escravocrata que perdurou quase 400 anos, e sua ruptura (em constante processo de construção) só tem sido possível com a luta do povo negro. Mesmo diante do escravismo do seu corpo, da sua religiosidade, costumes, arte, trabalho e conhecimentos, esse povo forjou 42 resistências, insurgências em lutas e revoluções como a Revolta dos Alfaiates, apenas um exemplo entre tantas. Resistência negada pela história oficial. Lutas apagadas dos registros sociais. Para o povo negro nunca houve reparação, nem garantias quanto ao acesso à terra e demais direitos inscritos no modelo de cidadania dita universalizante, mas construída para o sujeito universal, que é branco. De fato, as relações no interior da classe trabalhadora precisam considerar as identidades existentes, que determinam as diversas formas de opressão vivenciadas por cada sujeito e como se intercruzam na vida pública (JESUS, 2020, p. 44). Segundo Fanon, psiquiatra e filósofo nascido na Martinica, “Diz-se corretamente que o racismo é uma chaga da humanidade. Mas é preciso que não nos contentamos com essa frase. É preciso procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os níveis de sociabilidade” (FANON, 2008, p.68). Assim, a produção de conhecimento não estaria imune a estas repercussões. […] o racismo estabelece uma hierarquia racial e cultural que opõe “a superioridade” branca ocidental à “inferioridade” negro africana. A África é o continente “obscuro”, sem uma história única (HEGEL); por isso a Razão é branca, e a emoção é negra. Assim, dada a sua “natureza sub-humana”, a exploração socioeconômica dos amefricanos por todo o continente é “considerada natural” (GONZALEZ, 2020, p. 137). Ainda de acordo com os estudos de Lélia, a razão seria masculina, branca e a emoção feminina, negra e ladina. Com relação a este tema, aprendemos com Angela Davis que é “É fundamental resistir à representação da história como o trabalho de indivíduos heroicos, de maneira que as pessoas reconheçam hoje seu potencial de agência como parte de uma comunidade de luta sempre em expansão.” (DAVIS, 2018, p. 19). E como comunidade o protagonismo é móvel, alterando entre coletivos e forças, com maior ou menor possibilidade de luta, mas sempre agenciando resistências. Ainda que o Estado utilize o poder soberano para a vida e morte, Lélia produziu conhecimento contra hegemônico que ainda hoje baliza as produções de intelectuais antirracistas e antissexistas, mas segue sem o devido reconhecimento. O capitalismo e o colonialismo se misturam. A expansão capitalista só foi possível a partir do comércio de pessoas humanas, do cativeiro e da expropriação. Ainda que a escravidão de negros e negras tenha sido extinta, a colonialidade persiste 43 e se reinventa cotidianamente, através do genocídio do povo negro (NASCIMENTO, 2016). 3 PENSAMENTO FEMINISTA NEGRO E HORIZONTES TEÓRICOS DO SERVIÇO SOCIAL 3.1 Práxis das Mulheres Negras – Produzindo Contra- Hegemonias A colonialidade é um empreendimento racista e sexista, assim como a colonização também era. A relação entre colonização e gênero é apontada pela intelectual e pesquisadora nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí (2021). Ela destaca de que forma a colonização e a história do colonizador e do colonizado foram processos ancorados no masculino, assim como a produção de um Estado-nação europeu e do espaço da política no ocidente – que era bem diferente da organização que assumia o Estado Iorubá, atual Nigéria, antes da chegada dos colonizadores. Oyèrónké Oyěwùmí (2021) refere que, nesse contexto Iorubá, as posições de poder não estavam atreladas a diferenças biológicas (se eram homens ou mulheres). De fato, a própria categoria “mulher” não fazia sentido nessa cultura, pois foi uma invenção trazida da Europa e inculcada nos processos de colonização dos corpos e mentes das/os africanas/os. Assim, “para as fêmeas, a colonização era um duplo processo de inferiorização racial e subordinação de gênero” (OYĚWÙMÍ, 2021, p.189), já que raça e gênero se constituíram como produções colonizadoras assentadas na preocupação europeia sobre uma “biológica da cultura ocidental” (OYĚWÙMÍ, 2021, p.186). Para Oyěwùmí (2021), a invenção das mulheres no contexto colonial produziu- as como sujeitos coloniais de segunda classe. Embora a autora fale do contexto Iorubá e de sua herança colonizadora, nossa sociedade também se pauta em uma noção hegemônica de ser mulher e homem que tem suas origens nos valores civilizatórios europeus impostos pelo processo da colonização. Este ideário, como Oyěwùmí mostra em seu trabalho, se pauta em uma dupla hierarquização: racial e de gênero. Lélia Gonzalez (2020), ao analisar o desenvolvimento do Brasil, se refere a esse processo como uma modernização conservadora excludente, que posicionou de um lado uma superpopulação colocada como força de trabalho excedente, dispensável para o modo de produção hegemônico (o que a autora denominou de 44 massa marginal) e, de outro, a dependência neocolonial articulada à permanência de formas produtivas anteriores. Portanto, as lutas antirracista e antissexista não podem ser consideradas lutas identitárias, pois não se trata de lutas de grupos que se identificam. É uma luta pela classe, uma vez que não é possível emancipação da classe trabalhadora se há no seio da classe uma parcela maior das trabalhadoras e trabalhadores que está hierarquicamente rebaixada, que sempre será mais explorada e oprimida, vivendo uma vida colocada como descartável para o capital. Como uma espécie de alerta para os demais trabalhadores, de que há sempre um nível abaixo na exploração, há sempre uma maquinaria de guerra disposta a atacar um povo, uma etnia, para que os demais sintam um alívio amargo em não constituir este grupo, este povo. Um medo alienante que se perpetua de um devir negro que pode chegar a todos. As lutas contra as opressões, todas elas, não são lutas identitárias, são construções da luta de classes. As lutas das mulheres negras são legítimas contra o capital, por compreenderem, através da práxis, que só atacando o capital sustentado pelo racismo, sexismo e classismo se poderá ter uma alternativa de vida. Assim, é fundamental que as nossas teorias sejam lidas “para além das fronteiras de raça, gênero, classe social e nível educacional” (KILOMBA, 2019, p.91), rompendo com as assimetrias e hierarquizações. Audre Lorde nos ajuda nesta análise, ao mencionar que Grande parte da história ocidental europeia nos condiciona a ver as diferenças humanas como oposições simplistas: dominante/subordinado, bom/mau, em cima/embaixo, superior/inferior. Em uma sociedade em que o bom é definido em relação ao lucro, e não as necessidades humanas, deve sempre existir um grupo de pessoas que, mediante a opressão sistemática, pode ser levado a se sentir dispensável, ocupando o lugar do inferior desumanizado. Nessa sociedade, esse grupo é formado por pessoas negras e do Terceiro Mundo, pela classe trabalhadora, pelos idosos e pelas mulheres. (LORDE, 2019, p. 141). Mas a práxis é luta, resistência. Nesse sentido, Magali Almeida lembra que “são muitas as formas de resistência no enfrentamento do racismo e a militância é uma delas” (2011, p. 228). A pesquisa e a escrita também são formas de resistência e estruturam a práxis. As palavras são lugar de autorrecuperação. “O oprimido luta na linguagem para recuperar a si mesmo - para reescrever, reconciliar, renovar (hooks, 2018, p.73). Autorrecuperação como estratégia de sobrevivência coletivizada, para 45 fazer na diáspora seu lugar. A desterritorialização provocada pelo escravismo que é transformada em mobilidade e território existencial de vida. 3.2 Pensamento Crítico Brasileiro – Mulheres Negras na Interpretação do Brasil Onde estão as mulheres negras na intepretação do Brasil? Esta indagação é uma das questões que me guiam neste processo de pesquisa e me impulsiona a percorrer as produções de intelectuais negras brasileiras para inventariar como suas produções ajudam a compor ou poderiam compor o escopo analítico da sociedade no Serviço Social. A formação sócio-histórica do Brasil é um dos pilares de sustentação da produção teórica do Serviço Social, sendo corrente e passivo o entendimento de que somos sujeitos históricos e, portanto, seria a historicidade de nossas relações sociais o ponto angular fundamental para uma práxis social ancorada nos princípios ético- políticos que regem nossa profissão. Um compromisso expresso nas diretrizes curriculares que balizam a formação profissionalizante e no projeto ético-político que ancora nossa atuação profissional na sociedade. Segundo as Diretrizes Curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) o perfil profissional do assistente social englobaria capacitação teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa para a apreensão teórico-crítica do processo histórico como totalidade. Considerando a apreensão das particularidades da constituição e desenvolvimento do capitalismo e do Serviço Social na realidade brasileira. Além da percepção das demandas e da compreensão do significado social da profissão; e o desvelamento das possibilidades de ações contidas na realidade e no exercício profissional que cumpram as competências e atribuições legais (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL, 2014, p. 2-3). Portanto, o processo histórico, como totalidade, não é estanque e linear. Homens e mulheres constroem a história e a reescrevem no presente, à medida que vencidos e vencidas reivindicam seus lugares de luta e protagonismo negados pelos vencedores que narram a história oficial, com apagamentos e distorções. A história narrada é disputada na luta de classes. Emicida, um importante rapper negro brasileiro, lançou no ano de 2021 um trabalho musical, audiovisual e ativista chamado “Amar(elo)” e ajudou a popularizar 46 um ditado Iorubá que diz: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. Uma mensagem potente que carrega em si o poder de inquietação, convocando para a urgência de corrigir as injustiças do passado. É um ensinamento de que a disputa pelo ontem, pela memória, é uma luta por reparação no hoje. As “pedras”, metaforicamente falando, só podem ser lançadas a partir de conjunturas políticas e sociais específicas, não dadas, mas disputadas. A categoria profissional reconhece e afirma a centralidade do debate da formação sócio-histórica brasileira, que ganhou centralidade nos fundamentos da profissão a partir das diretrizes curriculares que faz uma aposta ético-política em definir três pilares para a formação: 1) Núcleo de fundamentos teórico-metodológicos da vida social; 2) Núcleo de fundamentos da formação sócio-histórica da sociedade brasileira; 3) Núcleo de fundamentos do trabalho profissional. (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL, 2018). Assim, além de estruturar um núcleo específico, o tema está transversalmente presente nos outros dois. No entanto, é importante analisarmos que interlocutores acionamos para entender o Brasil. Que intelectuais constituem nosso imaginário social como aqueles que têm autoridade para esta empreitada? Quando inventariamos o pensamento social brasileiro, consideramos um pensamento crítico plural e diverso em termos raciais e de gênero? As mulheres negras, indígenas, cis e trans e os homens negros e indígenas cis e trans também são nossos convidados a emprestarem suas lentes para que possamos compreender este país, de maioria negra e originalmente indígena – ou, como nos ensinou Lélia Gonzalez, este país Amefricano? Partilho com Camargo a sensação de que “a profissão aborda a historiografia iniciada nos anos 1980 como ponto final”. (2015, p.15). E embora seja fundamental para o amadurecimento intelectual da profissão e a sustentação de seu projeto ético- político, não deve ser tomada como fim em si mesma. Interessam-me pensamentos contemporâneos a esta produção que, embora críticos, não foram incluídos nesta historiografia para compreensão da atualidade, nem para a elucidação do que têm provocado esta pouca atenção às bibliografias negras, que colocam a questão racial na centralidade – perspectiva à qual me filio enquanto intelectual negra assistente social. Para Beatriz Nascimento, que assumiu o compromisso de estudar o Brasil, 47 No estudo da formação histórico-social do Brasil proliferam trabalhos relacionados com os aspectos econômicos e políticos, enquanto as “teorias” que tentam explicar os aspectos ideológicos dessa sociedade, limitam-se a adaptar conceitos importados de uma ciência social europeia ou norte-americana [...] (2021, p.47). Esse texto foi originalmente foi publicado na década de 1970, período de ditadura no país e pouca participação de intelectuais e estudantes negros no circuito acadêmico. Reconheço que se produz teoria em muitos espaços. A intelectualidade está presente nas tecnologias de cuidado nos quilombos, nas estratégias de empreender negócios nas favelas ou de narrar histórias, dentre tantas possibilidades de produção de conhecimento. Mas o espaço que a sociedade colonial desenhou como de intelectualidade é a academia, por isso me refiro ao ambiente acadêmico. Talvez Beatriz fosse a única mulher negra que se propunha a estudar a história negra no Brasil naquela época. Cinco décadas me separam da escrita dela, e ainda hoje utilizamos os mesmos autores para compreendermos a formação sócio-histórica do Brasil no Serviço Social. Nas palavras de Beatriz Nascimento, “Essa importação de ideologias é típica do pensamento da intelectualidade brasileira, a mais branca, a mais europeizada de todo o chamado Terceiro Mundo.” (2021, p.48). De fato, tomo a liberdade de afirmar: segue sendo típico. Pouco mudou nestas cinco décadas que separam esta conversa entre mulheres negras que assumem como compromisso a compreensão de um Brasil, também construído por negras e negros. E me socorro novamente em seu pensamento: O escravo negro, assim como o negro atual, não participou da formação social do Brasil só com seu trabalho, com seu sofrimento, ele participou também da mesa, da cama, do pensamento e das lutas políticas do colonizador e de seus descendentes. Para todo o lado que o branco olhar, irá se deparar com o espectro daquele que ele escravizou e que corrompeu. É justamente o fato de nos ter corrompido que maltrata as consciências salvadoras de muitos de nossos “defensores”, daqueles que atualmente nos querem redimir estudando-nos através de aspectos socioeconômicos e, apressando- se em se “sentir” negros, como se séculos de sofrimento e marginalização pudessem ser redimidos por uma sensação de “ser negro” (NASCIMENTO, 2021, p.48-49). Esta reflexão de Beatriz Nascimento é bastante provocativa. Ela deve ser compreendida em seu contexto histórico, o de um país em que as teorias sobre a 48 formação social ajudaram a construir o mito de uma democracia racial, ao mesmo tempo em que fragmentos da cultura negra como a música e religiosidade eram exaltadas e apropriadas por pessoas brancas. Em outra medida, é possível contextualizar esta reflexão na contemporaneidade. Nunca se tratou tanto sobre o racismo no Brasil, nunca se teve uma circulação tão expressiva de livros publicados por intelectuais negros e negras, traduções de livros clássicos estadunidenses, caribenhos e latinos, produção de conteúdo audiovisual, musical, gráfica e digital nas redes sociais, produções diversas e sobre variados temas, de tecnologia a ciência, literatura, poesia, filosofia, finanças, artes e amenidades da vida cotidiana. Ainda assim, a hegemonia das produções na televisão e no cinema brasileiro são de protagonistas brancos, tal como o são na academia. Se o argumento de desconhecimento acerca de uma supremacia branca no Brasil, ou a dificuldade de acesso à produção de negros e negras já não tinha razão de ser na década de 1970, quando viveu Beatriz Nascimento, tem muito menos em 2021. Acerca do conhecimento, resguardadas as diferenças em cada país, Grada Kilomba (2019) trata sobre este processo de objetificação do negro, que nos retira o lugar de sujeito e nos coloca numa posição de objeto. Esse lugar da “Outridade” não indica, como se acredita, uma falta da resistência ou interesse, mas sim a falta de acesso à representação. (KILOMBA, 2019). Este contexto coloca algumas questões relacionadas à possibilidade de ser uma armadilha o fato de intelectuais negros e negras debaterem as questões raciais. Ao denunciarem e analisarem a situação no Brasil em termos de raça e racismo, pesquisadoras e pesquisadores negros se manteriam presos em uma armadilha de teorizar questões das quais a branquitude não quer tratar. Portanto, a intelectualidade negra estaria ocupando um nicho que seria sectário, na medida em que apenas os temas relativos à raça seriam próprios para estes pesquisadores, enquanto todos os demais temas lidos como universais seguiriam interditados a este grupo. Manter-se- ia, assim a hierarquização do saber-poder, visto que financiamentos, publicações, divisão de bolsas e linhas de pesquisa, bem como ocupação de vagas, seguiriam intactos. Reconheço que não tenho uma posição, mas acredito que seja uma questão importante. Imagino que, assim como eu, outras intelectuais gostariam de tratar de temas diversos, mas há uma dupla convocação: a primeira subjetiva, por ser a escrita e a pesquisa uma forma de enfrentamento ao racismo; a segunda externa, por 49 reconhecer como uma reivindicação histórica dos movimentos negros e da nossa ancestralidade a ocupação dos espaços acadêmicos e o resgate da memória e história negada. Em tempo, saliento que esta tese não é sobre racismo. Ela inscreve-se na teorização dos fundamentos da profissão e da necessária atualização, a fim de considerar as relações raciais como cimento de fundação da sociedade capitalista brasileira. Portanto, parte-se da ideia de que o racismo é estruturante da questão social, eleita por esforço teórico e ético como objeto profissional do Serviço Social brasileiro reconceituado e posicionado ao lado da classe trabalhadora da qual faz parte. Sendo o Serviço Social uma profissão guiada pelo compromisso com uma sociedade igualitária e justa, livre de todos os preconceitos, ela jamais poderá se erigir em bases racializantes e hierarquizantes dos humanos. Como sujeitos históricos, cabe aos profissionais reprogramar a rota e corrigir o erro de tangenciar o racismo e a branquitude como categorias de poder e que sustentam o capitalismo racializado e neoliberal. Neste sentido, trazer o pensamento feminista das mulheres negras como ferramenta ética e política de luta contra as opressões parece fundamental. Foram as feministas negras que primeiro apontaram a pretensão de universalismo presente no feminismo branco – que é chamado apenas de feminismo, ao passo que o feminismo vivido por mulheres negras é negro, o das mulheres indígenas é indígena e o das mulheres trans é transfeminista. Ou seja, ao se entender como universal, o feminismo branco pretende abarcar as experiências de todas as mulheres como se fosse algo homogêneo, excluindo as vidas que são constituídas em existências atravessadas pelas opressões de raça, etnia e sexualidades dissidentes. Ainda hoje não se conseguiu ruir com o mito da democracia racial, denunciado por Lélia Gonzalez na década de 1980 como o fundamento de “silêncio ruidoso sobre as contradições raciais” e “um dos mais eficazes mitos de dominação ideológica” (GONZALEZ, 2020, p. 44). Um dos problemas do pensamento feminista foi perceber o movimento como um projeto único, moldado para a mulher branca, ocidental, de classe média, instruída. Uma visão mais relativista do feminismo é incorporada em 1980, em que movimento começa a pensar em questões relativas aos diferentes tipos de mulher, considerando 50 aspectos culturais, sociais e, principalmente, étnicos. (PIEDADE, 2017, p.12). A realidade impôs o imperativo de uma construção teórico-prática que comportasse e auxiliasse na luta das mulheres negras contra o racismo e sexismo. Assim, forja-se o feminismo negro que, para Lélia Gonzalez, “possui sua diferença específica em face do ocidental: o da solidariedade fundada numa experiência histórica comum” (1983, p. 101). Ou, afirma Sueli Carneiro: Enegrecendo o feminismo é a expressão que vimos utilizando para designar a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro. Buscamos assinalar, com ela, a identidade branca e ocidental da formulação clássica feminista, de um lado; e, de outro, revelar a insuficiência teórica e prática política para integrar as diferentes expressões do feminino construídos em sociedades multirraciais e pluriculturais (CARNEIRO, 2003, p.118). Assim, a conceituação da posição e da luta das mulheres negras a partir de um feminismo negro reposicionou as mulheres negras na luta antirracista, antissexista e anticapitalista, uma vez que, historicamente, a luta das mulheres negras esteve de modo tangencial nos movimentos negros, negada nos movimentos ditos feministas no mundo (CARNEIRO, 2003, p.118). Mulheres negras não tinham suas demandas reconhecidas no bojo do feminismo, tampouco nos movimentos negros, mas seguiam tentando construir a pauta coletiva por melhores condições de vida em ambos. As condições de vida destas mulheres negras eram, em sua maioria, precárias no pós- abolição. Ainda hoje elas recebem menores salários, são maioria em casa sem esgoto e como chefes de família, sendo,