Mordeduras de Animais - Cuidado e Manejo PDF
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Universidade Federal do Maranhão
2021
Flávia Castro Andrade
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Summary
Este documento fornece informações sobre o manejo de casos de mordeduras de animais na Atenção Primária à Saúde (APS). Aborda as características dos animais agressores, a classificação dos ferimentos e o protocolo para a profilaxia da raiva. O material é voltado para a informação e a orientação de profissionais de saúde.
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Mordeduras causadas por animais 1 Créditos Coordenação do Projeto Validadoras técnicas da Ana Emilia Figueiredo de Oliveira Universidade de Brasília (U...
Mordeduras causadas por animais 1 Créditos Coordenação do Projeto Validadoras técnicas da Ana Emilia Figueiredo de Oliveira Universidade de Brasília (UnB) Cláudia Brandão (Departamento de Coordenação Geral da DTED/UNA- Saúde Coletiva) SUS/UFMA Amanda Carletto (Coordenação Ana Emilia Figueiredo de Oliveira Geral de Garantia dos Atributos da Atenção Primária – SAPS) Gestão de projetos da UNA-SUS/ Beatriz Zocal (Coordenação Geral de UFMA Garantia dos Atributos da Atenção Amanda Rocha Araújo Primária – SAPS) Nathalie Alves Agripino Coordenação de Produção (Coordenação-Geral de Saúde do Pedagógica da UNA-SUS/UFMA Trabalho - CGSAT/CGDEP/DAEVS/ Paola Trindade Garcia SVS/MS) Coordenação de Ofertas Validadoras pedagógicas Educacionais da UNA-SUS/UFMA Deysianne Costa das Chagas Elza Bernardes Monier Larissa Di Leo Nogueira Costa Coordenação de Tecnologia da Revisora textual Informação da UNA-SUS/UFMA Camila Cantanhede Vieira Mário Antonio Meireles Teixeira Designer instrucional Coordenação de Comunicação da Steffi Greyce de Castro Lima UNA-SUS/UFMA José Henrique Coutinho Pinheiro Designer Gráfico Priscila Penha Coelho Professora-autora Flávia Castro Andrade COMO CITAR ESTE MATERIAL ANDRADE, Flávia Castro. Mordeduras causadas por animais. In: UNIVERSIDADE ABERTA DO SUS. UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO. Cuidado nas queixas comuns no atendimento à demanda espontânea na Atenção Primária à Saúde. Cuidado em casos de mordedura de animais e intoxicação aguda por plantas tóxicas e medicamentos. São Luís: UNA-SUS; UFMA, 2021. © 2021. Ministério da Saúde. Sistema Universidade Aberta do SUS. Fundação Oswaldo Cruz & Universidade Federal do Maranhão. É permitida a reprodução, a disseminação e a utilização desta obra, em parte ou em sua totalidade, nos termos da licença para usuário final do Acervo de Recursos Educacionais em Saúde (ARES). Deve ser citada a fonte e é vedada sua utilização comercial, sem a autorização expressa dos seus autores, conforme a Lei de Direitos Autorais - LDA (Lei n.º 9.610, de 19 de fevereiro de 1998). Sumário Apresentação 5 1 MORDEDURA POR ANIMAIS: PRIMEIRAS INFORMAÇÕES 6 1.1 Características do animal agressor 7 1.2 Características do ferimento provocado 8 2 MANEJO 9 2.1 Raiva Humana: diagnóstico, desenvolvimento e tratamento 12 2.2 Manejo dos casos na Atenção Primária à Saúde 12 2.3 Cuidados com o ferimento 13 2.3.1 Vacinação Antitetânica 13 2.3.2 Antibioticoprofilaxia 14 2.4 Acompanhamento dos casos de mordedura de animais 14 2.5 Prevenção e Vigilância 15 Considerações Finais 16 Referências 17 Apresentação Olá, aluna(o)! As mordeduras causadas por animais são demandas que aparentemente podem parecer simples, mas que devem ser atendidas, observadas e tratadas adequadamente na Atenção Primária à Saúde (APS) tanto quanto qualquer outra queixa que seja comum no cotidiano dos profissionais da saúde. Por meio de mordeduras provocadas por animais, pessoas podem contrair doenças graves, como a Raiva Humana e o tétano. Você, na sua prática clínica, já atendeu algum caso de mordedura por animais? Saberia listar as indicações da profilaxia pós-exposição e os cuidados com a ferida? Ao final deste recurso, você será capaz de compreender qual o manejo adequado em casos de mordeduras causadas por animais de acordo com as informações coletadas no momento do atendimento. Vamos lá? OBJETIVO Ao final deste PDF, espera-se que você seja capaz de entender a abordagem aos casos de mordeduras por animais na APS. 1 MORDEDURA POR ANIMAIS: PRIMEIRAS INFORMAÇÕES Ao atender um caso de mordedura por animais, é importante ter em mente a principal complicação clínica relacionada: a Raiva Humana1. A Raiva Humana é uma antropozoonose transmitida a humanos por mamíferos portadores do vírus da raiva por meio da mordedura e da saliva do animal infectado. Causada pelo vírus da família Rhabdoviridae, ele age no sistema nervoso central e leva a um quadro de encefalite aguda progressiva que culmina em óbito em quase 100% dos casos2. No Brasil, a Raiva é uma doença endêmica. No período de 2010 a 2019, foram notificados 37 casos. O maior registro ocorreu no ano de 2018, em que apenas um surto na cidade de Melgaço, no estado do Pará, foi responsável por dez casos notificados naquele ano³. A Raiva Humana é uma condição de interesse da saúde pública por sua alta letalidade e por ser um agravo imunoprevinível por meio da profilaxia pós- exposição. O atendimento de um caso suspeito é considerado uma urgência médica. Assim, torna-se premente que profissionais de saúde tenham familiaridade com o tema e com os protocolos assistenciais para, assim, indicar adequadamente a profilaxia e evitar desfechos desfavoráveis5. Primeiramente, durante o atendimento de um caso de mordedura, é preciso ter acesso a duas informações fundamentais: as características do animal agressor e do ferimento provocado. 6 1.1 Características do animal agressor O ciclo de transmissão da Raiva no Brasil é classificado didaticamente de quatro formas: urbano, rural, aéreo e silvestre. Em cada um dos ciclos há uma fonte de infecção mais prevalente. Figura 1: Ciclos epidemiológicos de transmissão da raiva no Brasil. Ciclo Aéreo Ciclo Silvestre Ciclo Rural Ciclo Urbano Fonte: Adaptado de INSTITUTO PASTEUR (SP). Profilaxia da Raiva humana: manual técnico. 2.ed. Nos casos de ciclo urbano, cães e gatos são os animais de maior interesse, enquanto no ciclo rural, os representantes são os animais de interesse comercial e de produção, como: bovinos, suínos, ovinos equinos e caprinos, que participam do ciclo de transmissão após serem infectados pelo morcego hematófago. No ciclo aéreo, o responsável pela infecção desse grupo é o morcego. No ciclo silvestre, o maior representante também é o morcego, no entanto, além dele, podem participar desse ciclo: canídeos silvestres (raposas e cachorros-do-mato), felídeos silvestres (gatos-do-mato), outro carnívoros silvestres (jaritatacas, mão- pelada), marsupiais (gambás e sauês) e primatas (saguis)5, 6. Após a identificação do animal agressor, é importante coletar alguns dados sobre ele¹: Perguntas-chave para acidentes com gatos e cães No momento do acidente, o animal estava saudável? Se sim, ele é passível de observação por 10 dias? É animal domiciliado que não tem contato com outros animais? É procedente de área de risco para Raiva? 7 Além disso, é importante saber que, a depender do animal agressor, haverá algumas particularidades que podem mudar a conduta. Animais de produção e de interesse econômico e animais silvestres Sempre serão considerados como animais de risco, sem possibilidade de observação, pois, nesses animais, o período de incubação e transmissibilidade do vírus da Raiva ainda não é bem estabelecido como em cães e gatos¹. Morcegos Casos envolvendo morcegos sempre serão classificados como acidente grave, independentemente da espécie envolvida ou da gravidade do ferimento, dado que o risco de transmissão do vírus nesse tipo de acidente é sempre elevado6. Animais lagomorfos (urbanos ou de criação) Acidentes envolvendo coelhos, porquinhos-da-índia, ratos e camundongos são de baixo risco e não necessitam de profilaxia1, 5, 6. 1.2 Características do ferimento provocado Após identificar o animal, é importante avaliar a característica do ferimento provocado, que pode ser classificado como leve ou grave, a depender do tipo, local, extensão, número de lesões e profundidade. Observe a tabela abaixo (Tabela 1): Tabela 1: Classificação do ferimento Ferimento Leve Grave Mordeduras, arranhaduras Mordeduras, arranhaduras Tipo ou lambeduras na pele ou lambeduras na pele ou mucosas Local Troncos e membros Mãos e cabeça Extensão Pouco extensa Extensos Número de lesões Única Múltiplas Profundidade Superficial Profundas Fonte: Adaptado de DUNCAN, B. B. et al. Medicina Ambulatorial: Condutas de Atenção Primária Baseadas em Evidências. 4ª ed. Artmed Editora, 2014. 8 IMPORTANTE É importante pontuar que toda lambedura de mucosa será considerada um acidente grave1,6. 2 MANEJO Após a identificação e a classificação do ferimento e do animal agressor, é possível definir se o caso é suspeito e, assim, indicar a profilaxia adequada. Veja a seguir o algoritmo (Figura 2): Figura 2: Algoritmo de acidente por mordedura e indicações de profilaxia pós-exposição Ferimento leve Ferimento grave Animal silvestre, de interesse Animal silvestre, de interesse econômico ou produção econômico ou produção Vacinas nos dias Não Soro Suspeito 0, 3, 7, 14 Suspeito Não Suspeito Suspeito Observar animal Vacinas nos dias por 10 dias 0e3 Vacinas nos dias Observar animal 0e3 por 10 dias Descartar o caso e suspender o esquema Observar animal Saúdavel vacinal por 10 dias Observar animal Saúdavel por 10 dias Descartar caso Completar o esquema vacinal: Imunização Passiva: uma dose entre 7º e 10º dia, Suspeito Imunoglobulina antirrábica e outra no 14º ou soro antirrábico Suspeito Fonte: Adaptado de DUNCAN, B. B. et al. Medicina Ambulatorial: Condutas de Atenção Primária Baseadas em Evidências. 4ª ed. Artmed Editora, 2014. 9 Após a leitura do algoritmo, é importante que sejam pontuadas algumas observações:2, 7 Acidentes envolvendo animais domiciliados que não têm contato com outros animais ou que estão sempre acompanhados podem ser dispensados da profilaxia. Se houver dúvida, seguir o fluxo determinado: Contato indireto com o animal e suas secreções não necessitam de tratamento, apenas de lavagem da superfície exposta com água e sabão; O histórico vacinal de cães e gatos não é definidor de conduta, ou seja, um acidente envolvendo um animal vacinado não autoriza a não realização da profilaxia; Casos de contato direto com o morcego indicam início da profilaxia contra a Raiva, com uso de soro e vacina. Nos casos duvidosos, em que não é possível descartar o contato, por exemplo, quando o informante ao acordar se depara com um morcego no interior de sua casa, a profilaxia também está indicada; O soro antirrábico ou a imunoglobulina antirrábica devem ser administrados até 7 dias após a aplicação da primeira dose da vacina. Após esse período, eles não são mais indicados. A aplicação deve ser feita na porta de entrada do ferimento e, se todo o volume não puder ser injetado, o restante deve ser administrado via intramuscular, no glúteo; O soro ou a imunoglobulina antirrábica não estão indicados para pacientes com histórico de profilaxia prévia, exceto se houver incerteza de o esquema ter sido feito adequadamente, ou mesmo se o paciente for imunossuprimido; A vacina antirrábica deve ser aplicada via intramuscular em deltoide ou vasto lateral da coxa, em esquema de 4 doses: dias 0, 3, 7 e 14. A aplicação não pode ser feita em glúteo pelo risco de depósito em tecido adiposo e menor distribuição sistêmica2, 7. Para mais detalhes, observe o quadro abaixo: 10 Quadro 1: Esquema para tratamento profilático antirrábico humano com a vacina de cultivo celular Cão ou gato raivoso, Morcegos e Cão ou gato sem Cão ou gato clinicamente desaparecido ou morto. outros animais Tipos de exposição suspeita de raiva no com suspeita de raiva no Animais domésticos de silvestres momento da agressão momento da agressão interrese econômico (inclusive os ou de produção domiciliados) Contato indireito Ex.: manipulação de utensílios potencialmente contaminados, lambedura da pele íntegra e acidentes Lavar com água e sabão. com agulhas Não tratar. durante aplicação de vacina animal não são considerados acidentes de risco e não exigem esquema profilático. Lavar com água e sabão. Acidentes leves Iniciar esquema profilático Lavar com água e sabão. Ferimentos com 2 (duas) doses, uma superficiais, no dia 0 e outra no dia 3. Observar o animal durante pouco extensos, Observar o animal durante 10 dias após a exposição. geralmente únicos, 10 dias após a exposição. em troncos e Se a suspeita de raiva for Se o animal permancer Lavar com água e sabão. membros (exceto descartada após o 10˚ dia sadio no período de mãos e polpas de observação, suspender observação, encerrar o Iniciar esquema profilático digitas e planta o esquema profilático e caso. com 4 doses de vacina dos pés); podem encerrar o caso. Se o administradas nos dias 0, acontecer em animal morrer, Se o animal morrer, 3, 7 e 14, pela via IM ou nos decorrência de desaparecer ou se tornar desaparecer ou se tornar dias 0, 3, 7 e 28, pela via mordeduras ou raivoso, dar continuidade raivoso, administrar 4 ID. Lavar com arranhaduras ao esquema profilático, (quatro) doses de vacina água e sabão. causadas por unhas administrando o soro e nos dias 0, 3, 7 e 14, pela ou dentes. completando esquema via IM ou nos dias 0, 3, 7 Iniciar Lambeduras de até 4 doses. Aplicar uma e 28, pela via ID. imediatamente pele com lesões dose entre 7º e 10° dia e o esquema superficiais. uma dose no 14° dia, pela profilático via IM ou nos dias 0, 3, 7 e com soro 28, pela via ID. e 4 doses Lavar com água e sabão. de vacina Acidentes graves Observar o animal durante administradas Ferimentos na 10 dias após a exposição. nos dias 0, 3, Lavar com água e sabão. cabeça, face, pes Iniciar esquema profilático 7 e 14, pela via coço, mãos, polpas com duas doses, uma no IM ou nos dias Iniciar esquema profilático digitais e/ou planta dia 0 e outra no dia 3. 0, 3, 7 e 28, com soro e 4 doses de do pé. Se o animal permancer pela via ID. vacina nos dias 0, 3, 7 e 14, Ferimentos sadio no período de Lavar com água e sabão. pela via IM ou nos dias 0, 3, profundos, múltiplos observação, encerrar o 7 e 28, pela via ID. ou extensos, em caso. Iniciar esquema profilático qualquer região do Se o animal morrer, com soro 3 e 4 doses de Observar o animal durante corpo. desaparecer ou se tornar vacina administadas nos 10 dias após a exposição. Lambedura de raivoso, dar continuidade dias 0, 3, 7 e 14, pela via mucosas. ao esquema profilático, IM, ou nos dias 0, 3, 7 e 28, Se a suspeita de raiva for Lambedura de pele administrando o soro e pela via ID. descartada após o 10˚ dia onde já existe lesão completando esquema de observação, suspender grave. até 4 (quatro) doses. o esquema profilático e Ferimento profundo Aplicar uma dose entre 7˚ encerrar o caso. causado por unha de e o 10˚ dia e uma dose animal. no 14˚ dia, pela via IM ou nos dias 0, 3, 7 e 28, pela via ID. Fonte: Adaptado de BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Coordenação Geral de Desenvolvimento da Epidemiologia em Serviços. Guia de Vigilância em Saúde: volume único [recurso eletrônico]. 3ª ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2019. IMPORTANTE Você sabia que em 2018, do total de atendimentos antirrábicos, 400.000 (54%) ocorreram por mordedura de cães observáveis, e 50.000 (7%) envolviam contato indireto. Em ambas as situações, não há indicação de uso de soro, entretanto, foram utilizadas cerca de 45.000 ampolas, a um custo para o SUS de, aproximadamente, 3 milhões de reais8. 2.1 Raiva Humana: diagnóstico, desenvolvimento e tratamento Casos que não receberam profilaxia ou que o tratamento foi inadequado irão desenvolver a doença. A Raiva Humana apresenta período de incubação médio de 45 dias. A variação desse intervalo de tempo dependerá da carga viral inoculada, da inervação do sítio do ferimento e de sua proximidade com o sistema nervoso central2, 5 ,6. A doença em sua forma clássica se inicia com pródromos de duração de até quatro dias e evolui para quadro progressivo de febre, parestesias, fotofobia, aerofobia (intolerância ou medo de ruídos ou correntes de vento), hiperacusia (acuidade auditiva exacerbada) e alterações de comportamento com ansiedade, delírios, espasmos musculares generalizados e convulsões. Os espasmos levam à sialorreia (salivação excessiva) com disfagia e evoluem para paralisia ocasionando alterações gastrointestinais, urinárias e cardiorrespiratórias. Em cinco a sete dias o quadro evolui para estado comatoso e óbito5 ,6. Para o diagnóstico, é solicitado teste laboratorial de identificação do antígeno rábico por imunofluorescência direta em córnea, biópsia de pele ou saliva. Há a possibilidade de realização de reação em cadeia da polimerase (PCR) em folículo piloso, saliva e líquor. Se o paciente não tiver sido vacinado, também pode ser feita a pesquisa de anticorpos no líquor. O resultado negativo não exclui a possibilidade da doença, por isso, é necessário que mais de um teste seja realizado para confirmação do diagnóstico6. Embora não haja tratamento promissor, já há casos documentados na literatura de cura, sendo um deles no Recife, em 2008. 2.2 Manejo dos casos na Atenção Primária à Saúde Casos de mordedura podem ser avaliados inicialmente na Atenção Primária à Saúde (APS). Se o caso for suspeito e houver indicação de profilaxia pós-exposição, o paciente será encaminhado a uma unidade de referência para início do esquema indicado. Se houver suspeita clínica de Raiva, o caso deve ser encaminhando para serviço hospitalar de referência1, 8. 12 É papel da APS a vigilância e o monitoramento de todos casos suspeitos. Acidentes classificados como leves e em que esteja indicada a observação do animal devem ser revistos ao longo do período de 10 dias, se houver falta ou perda de seguimento, deve ser feita busca ativa do usuário. Também é importante garantir todo o acompanhamento dos pacientes em profilaxia pós-exposição, de modo a evitar atrasos ou abandono de tratamento5 ,6. Além disso, durante o atendimento na APS, é possível a abordagem e o seguimento do ferimento, com avaliação de antibioticoprofilaxia e vacinação antitetânica5. 2.3 Cuidados com o ferimento A conduta inicial é a lavagem com água e sabão. Também está indicada a aplicação de antissépticos, como: pirrolidona-iodo, clorexidina ou álcool-iodado. Preferencialmente, a ferida não deve ser suturada. Caso essa conduta não seja possível, deve-se apenas aproximar as bordas e aplicar o soro ou a imunoglobulina antirrábica uma hora antes do procedimento. Também é necessário fazer a vacina antitetânica e a antibioticoprofilaxia5, 6. 2.3.1 Vacinação Antitetânica Mordeduras são consideradas ferimentos com alto risco de ocorrência de tétano. Assim, há indicação de vacinação conforme o histórico vacinal5: Tabela 2: Indicações de vacinação e imunoprofilaxia para ferimentos de alto risco de tétano, como nas mordeduras. Soro antitetâncio ou Histórico vacinal Vacina antitetânica imunoglobina humana antitetânica Desconhecido ou menos Sim, completar Não* de 3 doses o esquema Três ou mais doses, Não Não última há mais de 5 anos Três ou mais doses, última há mais de 5 anos Sim, um reforço Não e há menos de 10 anos Três ou mais doses, última Sim, um reforço A depender do caso* há mais de 10 anos *Para casos em que há apenas indicação de vacinação, avaliar se o paciente é idoso, imunodeprimido ou desnutrido grave, pois, para esses casos, estão indicados soro ou imunoglobulina concomitante à vacina, que deve ser aplicada em local diferente. Além disso, se, durante o atendimento, o profissional de saúde identificar que não é possível garantir que haverá cuidado adequado com o ferimento, a imunização passiva pode ser considerada5. Fonte: Adaptado de DUNCAN, B. B. et al. Medicina Ambulatorial: Condutas de Atenção Primária Baseadas em Evidências. 4ª ed. Artmed Editora, 2014. 13 A imunização passiva com imunoglobulina humana antitetânica deve ser feita via intramuscular em até três dias após a ocorrência do ferimento. A vacinação também deve respeitar o mesmo período2, 7. 2.3.2 Antibioticoprofilaxia O uso de antibiótico profilático está indicado de modo consensual se houver fatores de risco associados ao ferimento, como9: Ferimentos em face e genitália, em mãos ou próximos a ossos e articulações; Ferimentos profundos ou laceração, especialmente por mordedura por gatos; Ferimentos moderados a graves associados a esmagamento; Ferimentos em áreas com comprometimento venoso ou linfático; Ferimentos que necessitem de sutura; Ferimentos em imunocomprometidos; Lacerações submetidas a fechamento primário e feridas que requerem reparo cirúrgico. A medicação de escolha para profilaxia, quando a mordedura é causada por cães e gatos, é a amoxicilina-clavulanato. Para adultos, amoxicilina-clavulanato (875+125mg) duas vezes ao dia por três a cinco dias, enquanto para as crianças, amoxicilina-clavulanato (400+57mg/5ml) 22,5mg/kg pelo mesmo período de tempo. Se o animal agressor for um morcego ou gambá, a primeira escolha é a ampicilina seguida de tetraciclina. Ferimentos profundos tendem a necessitar de antibioticoterapia endovenosa e de extensão de tempo de tratamento5, 8. 2.4 Acompanhamento dos casos de mordedura de animais Todo caso de acidente suspeito deve ser submetido à profilaxia pós- exposição, como já mostrado na Figura 2: Algoritmo de acidente por mordedura e indicações de profilaxia pós-exposição (página 10). O acesso à profilaxia deve ser garantido diariamente e a qualquer momento, independentemente do tempo entre o acidente e a procura por assistência. No entanto, o ideal é que seja o mais precocemente possível². Pacientes faltosos devem ser buscados ativamente para conclusão do esquema. Lembrando que o atraso na dose não indica necessidade de reinício da profilaxia². 14 2.5 Prevenção e Vigilância É importante que sejam levantados, de forma contínua, dados sobre cobertura vacinal dos animais da área endêmica para: definir ações de bloqueio, monitoramento da Raiva Animal e da circulação viral, investigação de casos suspeitos e realização de campanhas de vacinação antirrábica como medidas de prevenção e controle9. Casos suspeitos de Raiva, seja humana ou animal, devem ser identificados pela Vigilância Epidemiológica, e o bloqueio do foco urbano deve ter início em até 72 horas, devendo ser finalizado em até 7 dias, em um raio de 5km do caso índice5. A ação de bloqueio consiste na vacinação de cães e gatos da área de abrangência, na retirada de animais das ruas e no envio de amostras para diagnóstico laboratorial de animais suspeitos6. Casos de bloqueio de foco por infecções de morcego devem ser individualizados, conforme a orientação da Vigilância Epidemiológica do município. Se houver recidiva de outro morcego detectável em menos de três meses, deve ser feita a vacinação de cães e gatos não vacinados ou primo- vacinados5. Além do papel de vigilância e bloqueio, são importantes as medidas de educação em saúde, que informem sobre o ciclo de transmissão, gravidade da doença e esclarecimento de ações que necessitem da cooperação da população. A população também deve ser conscientizada a não manipular morcegos, não domesticar animais silvestres e a buscar atendimento precoce em caso de acidente. Essa conscientização pode ser realizada pelos profissionais da Atenção Primária durante visitas domiciliares, nas reuniões de conselho de saúde e na divulgação de materiais explicativos distribuídos nas Unidades de Saúde5, 6. É importante lembrar que toda suspeita de Raiva Humana é de notificação individual e compulsória e necessita ser reportada de forma imediata às Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde e ao Ministério da Saúde, por meio do Sistema de Informação de Agravos de Notificação, através do preenchimento da Ficha de Investigação Raiva Humana. Além disso, a morte de animais deve ser comunicada, pois podem preceder a ocorrência do agravo em humanos6. 15 Considerações Finais A Raiva Humana é uma doença que pode ser evitada e que tem tratamento conhecido e eficaz. É muito importante que essas informações sejam difundidas entre a população e que os profissionais da saúde também tenham domínio das mesmas para que o fluxo de atendimento na Atenção Primária à Saúde seja seguido adequadamente, de modo a evitar riscos maiores, como o de morte por mordeduras causadas por animais. Esperamos que este recurso tenha sido proveitoso para seus estudos. Divulgue a informação e aplique seus conhecimentos em sua prática profissional. Até a próxima! Referências 1 - BRASIL. Ministério da Saúde. Acolhimento à demanda espontânea: queixas mais comuns na atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2012. (Cadernos de Atenção Básica, n. 28, volume 2). Disponível em:. 2 - BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Normas Técnicas de Profilaxia da Raiva Humana. 1ª ed. Brasília: [s. n.], 2014. 3 - MINISTÉRIO DA SAÚDE. Sistema de Informação de Agravos de Notificação. TabNet Win32 3.0: RAIVA - Casos confirmados notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Brasil. [S. l.], 2021c. Disponível em:. Acesso em: 18 abr. 2021. 4 - SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE. Ministério da Saúde. Vigilância em Saúde no Brasil 2003|2019: da criação da Secretaria de Vigilância em Saúde aos dias atuais. Boletim Epidemiológico, [s. l.], v. Especial, 2019. 5 - DUNCAN, B. B. et al. Medicina Ambulatorial: Condutas de Atenção Primária Baseadas em Evidências. 4ª ed. [S. l.]: Artmed Editora, 2014. 6 - BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Coordenação- Geral de Desenvolvimento da Epidemiologia em Serviços. Guia de Vigilância em Saúde: volume único [recurso eletrônico]. 3ª ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2019.740 p. Disponível em: < https://portalarquivos2.saude.gov.br/ images/ pdf/2019/junho/25/guia-vigilancia-saude-volume-unico-3ed.pdf >. 7 - SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE. Ministério da Saúde. Raiva humana por animais silvestres no Brasil: atualizações e condutas profiláticas. Boletim Epidemiológico, [s. l.], v. 51, 2020b. 8 - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia. TelessaúdeRS (TelessaúdeRS-UFRGS). Como deve ser realizado Referências o esquema para profilaxia da raiva humana pós-exposição? Porto Alegre: TelessaúdeRS-UFRGS. Disponível em:. Acesso em: 25 jun. 2018. 9 - BADDOUR, L. M; HARPER, M. Animal bites (dogs, cats, and other animals): Evaluation and management. UpToDate, [s. l.], 2021. Disponível em:. Acesso em: 8 abr. 2021. MINISTÉRIO DA SAÚDE GUIA DE ANIMAIS PEÇONHENTOS DO BRASIL Brasília/DF 2024 MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente Departamento de Doenças Transmissíveis GUIA DE ANIMAIS PEÇONHENTOS DO BRASIL Brasília/DF 2024 UIÇÃO RIB IDA T DIS OIB A PR VEND IT A G R AT U 2024 Ministério da Saúde. Esta obra é disponibilizada nos termos da Licença Creative Commons – Atribuição – Não Comercial – Compartilha- mento pela mesma licença 4.0 Internacional. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte. A coleção institucional do Ministério da Saúde pode ser acessada, na íntegra, na Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde: bvsms.saude.gov.br.. Tiragem: 1ª edição – 2024 – versão eletrônica Elaboração, distribuição e informações: Lúcia Regina Montebello Pereira MINISTÉRIO DA SAÚDE Marcus Augusto Buononato Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente Nelson Jorge da Silva Jr. Departamento de Doenças Transmissíveis Patricia Miyuki Ohara Coordenação-Geral de Vigilância de Zoonoses e Doenças Paulo André Margonari Goldoni de Transmissão Vetorial Roberto Henrique Pinto Moraes SRTVN 701, via W5 Norte, Edifício PO 700, 6º andar Rogério Bertani CEP: 70723-040 – Brasília/DF Vidal Haddad Junior Site: www.saude.gov.br/ Organização: E-mail: [email protected] Etna de Jesus Leal – CGZV/Dedt/SVSA Flávio Santos Dourado – CGZV/Dedt/SVSA Ministra de Estado da Saúde: Guilherme Carneiro Reckziegel – Denasus Nísia Verônica Trindade Lima Colaboração: Secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente: Departamento de Doenças Transmissíveis (Dedt/SVSA): Ethel Leonor Noia Maciel Cássio Ricardo Ribeiro Edição-geral: Karla Neves Laranjeira Braga Alda Maria da Cruz – Dedt/SVSA Editoria técnico-científica: Alexander Vargas – CGZV/Dedt/SVSA Coordenação-Geral de Editoração Técnico-Científica em Francisco Edilson Ferreira de Lima Júnior – CGZV/Dedt/SVSA Vigilância em Saúde (Cgevsa/Daevs/SVSA) Elaboração: Paola Barbosa Marchesini André Eterovic Natália P. Lima Aníbal Rafael Melgarejo Diagramação e capa: Denise Maria Candido Fred Lobo – Cgevsa/Daevs/SVSA Emanuel Marques da Silva Normalização: Etna de Jesus Leal Delano de Aquino Silva – Editora MS/CGDI Flávio Santos Dourado Giuseppe Puorto Revisão: Guilherme Carneiro Reckziegel Tatiane Souza – Editora MS/CGD Ficha Catalográfica Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. Departamento de Doenças Transmissíveis. Guia de Animais Peçonhentos do Brasil [recurso eletrônico] / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, Departamento de Doenças Transmissíveis. – Brasília : Ministério da Saúde, 2024. 164 p. : il. Modo de acesso: World Wide Web: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_animais_peconhentos_brasil.pdf ISBN 978-65-5993-598-7 1. Animais peçonhentos. 2. Saúde pública. 3. Primeiros-socorros. I. Título. CDU 612.314 Catalogação na fonte – Coordenação-Geral de Documentação e Informação – Editora MS – OS 2023/0463 Título para indexação: Guide to Venomous Animals in Brazil Dedicatória Os autores e organizadores deste Guia dedicam este trabalho ao grande herpetólogo Aníbal Rafael Melgarejo (Instituto Vital Brazil), falecido no ano de 2019. Nosso grande amigo foi um profissional com entusiasmo e alegria contagiantes, sendo uma unanimidade de simpatia entre nossos pares. Dedicou-se ao estudo e à documentação das serpentes e, em especial, das surucucus-pico-de-jaca da Mata Atlântica. Integrou o grupo de consultores do Ministério da Saúde por muitos anos, e promoveu melhor difusão das informações em ofidismo e ofiologia. Teve um papel fundamental na idealização e preparação do capítulo de Serpentes de Importância em Saúde, bem como de vários documentos técnicos do Ministério da Saúde. Deixa o seu legado nos seus trabalhos de fotografias e ilustrações científicas, e a lembrança de uma pessoa iluminada, de coração enorme, abraço fraterno e mãos sempre estendidas a ajudar quem quer que fosse, desde alunos do ensino médio até discentes de pós-graduação. Um uruguaio de alma brasileira. Com certeza se faz presente, mesmo estando ausente. Mucho Gusto!!! Sumário APRESENTAÇÃO 6 1 ANIMAIS PEÇONHENTOS 10 1.1 Animais venenosos e animais peçonhentos 11 1.2 Animais peçonhentos de importância em saúde no Brasil 11 1.3 Cenário epidemiológico dos acidentes por animais peçonhentos 13 Referências 18 2 SERPENTES DE IMPORTÂNCIA EM SAÚDE 20 2.1 Introdução 21 2.2 Características gerais das serpentes e taxonomia 21 2.3 Serpentes peçonhentas de importância em saúde do Brasil 28 2.4 Cobras-corais falsas 37 2.5 Outras serpentes peçonhentas sem importância em saúde 44 2.6 Espécies mais relevantes em saúde no Brasil 48 Referências 76 3 ARANHAS DE IMPORTÂNCIA EM SAÚDE 80 3.1 Introdução 81 3.2 Aranhas de importância em saúde no Brasil 82 3.3 Aranhas-caranguejeiras 93 Referências 94 4 IDENTIFICAÇÃO DE ESCORPIÕES 96 4.1 Introdução 97 4.2 Principais características da família Buthidae 98 4.3 Relação das espécies de importância em saúde no Brasil 100 4.4 Outras espécies comuns 104 Referências 113 5 INSETOS PEÇONHENTOS E VENENOSOS DE IMPORTÂNCIA EM SAÚDE 116 5.1 Introdução 117 5.2 Ordem coleoptera (besouros) 117 5.3 Ordem Hymenoptera (abelhas, vespas, marimbondos e formigas) 120 5.4 Ordem Lepidoptera (taturanas) 122 5.5 Insetos não venenosos ou não peçonhentos de importância em saúde humana 133 Referências 135 6 QUILÓPODES E DIPLÓPODES 136 6.1 Introdução 137 6.2 Quilópodes (Classe Chilopoda) 137 6.3 Diplópodes (classe Diplopoda) 139 Referências 142 7 ENVENENAMENTOS POR ANIMAIS AQUÁTICOS 144 7.1 Introdução 145 7.2 Cnidários 145 7.3 Peixes peçonhentos 148 7.4 Animais aquáticos venenosos 153 7.5 Animais traumatizantes 154 Referências 155 8 PREVENÇÃO E PRIMEIROS-SOCORROS EM CASOS DE ACIDENTES POR ANIMAIS PEÇONHENTOS 158 8.1 Introdução 159 8.2 Prevenção de acidentes ofídicos 159 8.3 Prevenção de acidentes por aranhas 160 8.4 Prevenção de acidentes escorpiônicos 161 8.5 Prevenção de acidentes por lagartas 161 8.6 Prevenção de acidentes por abelhas, vespas e marimbondos 162 8.7 Prevenção de acidentes por animais aquáticos 162 8.8 Prevenção de acidentes por outros animais peçonhentos ou venenosos 163 8.9 Primeiros-socorros 163 Referências 164 APRESENTAÇÃO Guia de animais peçonhentos do Brasil Os acidentes por animais peçonhentos representam um importante desafio para a saúde pública no Brasil. Devido à rica biodiversidade e ao clima tropical favorável, o País abriga uma grande variedade de serpentes, aranhas, escorpiões e outros animais peçonhentos, cujas picadas ou mordidas podem resultar em graves consequências para a saúde humana. Nesse contexto, é crucial compreender e saber identificar esses animais, a fim de implementar medidas preventivas eficazes e fornecer atendimento adequado às vítimas. Na Carta de São Vicente, publicada em 1560, o Padre José de Anchieta já informava sobre as “cobras venenosas” encontradas em terras brasileiras. Ali se falava das “jararacas”, que “abundam campos, matas e até mesmo nas casas”, e cuja mordedura “mata no espaço de vinte e quatro horas”. Anchieta relata também a presença da “boicininga” (cascavel) que, “uma só vez que mordam, não há mais remédio”. Nessa obra, o religioso também detalhou a presença no Brasil de lacraias, aranhas, vespas, lagartas, formigas e abelhas. Já nos séculos XVIII e XIX, diversas espécies foram formalmente descritas, e as suas toxinas passaram a ser estudadas por pesquisadores como João Batista de Lacerda, Otto Wucherer e Vital Brazil, tornando o Brasil um dos países pioneiros da toxinologia. Vital Brazil foi ainda o primeiro cientista a descobrir a especificidade antigênica e imunogênica dos antivenenos, que é o mecanismo por trás da ação destes. Em 1986, por decorrência da crise na produção de antivenenos no Brasil, foi implantado o Programa Nacional de Controle de Ofidismo. Nesse período, os acidentes ofídicos passam a ser de notificação obrigatória. Dados sobre escorpionismo e araneísmo começam a ser coletados a partir de 1988, sendo esses dois agravos incorporados ao denominado Programa Nacional de Controle de Acidentes por Animais Peçonhentos. Em 2010, por meio do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), os acidentes voltaram a ser notificados compulsoriamente e as informações passaram a ser melhor utilizadas para elaborar estratégias de controle desses animais, além de servirem de subsídio para a definição de necessidades de antivenenos a serem distribuídos às unidades federadas (UFs) e a avaliação do seu uso, e, ainda, melhor determinar os pontos estratégicos para o atendimento aos acidentados. A importância dos acidentes por animais peçonhentos para a saúde pública pode ser expressa pelo aumento significativo no número de acidentes e óbitos registrados a cada ano, decorrentes dos diferentes tipos de envenenamento. Ressalta-se o escorpionismo, que vem adquirindo elevada magnitude, devido a fatores como: a expansão da ocorrência de espécies bem adaptadas a convivência humana, a ocupação humana desordenada e as mudanças climáticas. Por constituir um problema de saúde pública que afeta principalmente populações socioeconomicamente vulneráveis, o ofidismo, particularmente, passou a ser considerado uma das doenças tropicais negligenciadas (DTNs) segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Mediante essa situação, e com o objetivo de alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), o Brasil, junto a diversos países, assumiu o compromisso com a OMS de reduzir em 50% a mortalidade dos acidentes ofídicos até 2030. Essa estratégia foi desenvolvida para atender os seguintes pilares: aumentar a acessibilidade aos soros antivenenos; garantir tratamento soroterápico 7 Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente | Ministério da Saúde com ênfase na segurança do paciente, na qualidade e na eficácia; fortalecer os serviços de saúde; capacitar os profissionais de saúde; mobilizar e sensibilizar a sociedade; e integrar parceiros para viabilizar recursos financeiros, por exemplo, o compartilhamento de tecnologias entre os laboratórios produtores para a produção dos antivenenos. Ainda nessa perspectiva, é importante levar em consideração a abordagem de saúde única, a qual reconhece que os seres humanos estão intrinsecamente ligados ao meio ambiente e aos animais e plantas que o habitam. Com isso, a perda de biodiversidade e o desequilíbrio dos ecossistemas podem levar ao aumento do risco de ocorrência de acidentes por animais peçonhentos, pois estes acabam procurando ambientes mais favoráveis para se desenvolverem, como aqueles onde há fartura de alimento e de abrigo, como nas cidades. Portanto, a conservação da biodiversidade, com a promoção do conhecimento junto à população e o investimento em pesquisa e desenvolvimento de tratamentos, pode reduzir significativamente os riscos relacionados a esses acidentes, protegendo tanto a saúde humana quanto o meio ambiente. Além disso, por meio da abordagem de saúde única, incentiva-se a colaboração e a cooperação multiprofissional entre diferentes departamentos, como saúde pública, meio ambiente, agricultura, educação e outros setores afins. Essa cooperação permite que os esforços de prevenção e controle de acidentes sejam mais eficazes, já que diferentes perspectivas e conhecimentos podem ser combinados para desenvolver estratégias mais abrangentes. Os acidentes por animais peçonhentos podem afetar pessoas de todas as idades, grupos socioeconômicos e raças (entre estas destacam-se os povos tradicionais), podendo ainda apresentar particularidades importantes relacionadas a cada perfil de acidentado, como idade e atividade laboral. Por exemplo, crianças, devido à sua curiosidade e menor capacidade de avaliar riscos, muitas vezes encontram-se em situações de maior exposição. Trabalhadores rurais, devido às suas atividades profissionais, estão mais expostos aos ambientes naturais onde esses animais são encontrados. Nesse sentido, este Guia foi cuidadosamente elaborado para fornecer informações essenciais sobre a identificação, a distribuição, os primeiros-socorros e a prevenção de acidentes relacionados aos animais peçonhentos que podem ser encontrados em nosso país. Sabe-se que a convivência com esses animais requer conhecimento e inclusão, e o objetivo deste Guia é fornecer as ferramentas necessárias para lidar com essas situações de forma segura, eficaz e com o intuito de subsidiar as equipes de assistência à saúde. Ao longo deste Guia, o leitor encontrará uma descrição detalhada dos animais peçonhentos mais comuns no Brasil, como serpentes, aranhas, escorpiões, lagartas, abelhas, vespas e marimbondos, animais aquáticos e outros animais peçonhentos, bem como alguns animais venenosos. Cada espécie é apresentada com suas características distintas, incluindo tamanho, cor, hábitos, áreas de ocorrência e os riscos associados à sua picada ou mordida. Em uma situação de emergência, o conhecimento dos primeiros socorros é crucial. Portanto, uma seção deste Guia foi dedicada para orientar a agir de forma correta e oportuna em caso de picada ou mordida de um animal peçonhento. 8 Guia de animais peçonhentos do Brasil O público-alvo deste manual são os profissionais de saúde que atuam em serviços municipais e estaduais de vigilância em saúde e controle de animais peçonhentos, além de profissionais da assistência hospitalar. Espera-se que as informações disseminadas por meio deste Guia de Animais Peçonhentos do Brasil possam contribuir para o aprimoramento das práticas da vigilância em saúde, principalmente, de forma integrada aos serviços de saúde. O presente manual pretende, assim, apoiar na escolha correta do antiveneno específico e agilidade do atendimento, visando sempre à segurança do paciente. O Guia não tem como objetivo apresentar informações clínicas sobre acidentes por animais peçonhentos, e as informações epidemiológicas aqui presentes são pouco aprofundadas. Essas informações podem ser mais bem acessadas em outras publicações do Ministério da Saúde, como o Manual de Diagnóstico e Tratamento de Acidentes por Animais Peçonhentos, o Guia de Vigilância em Saúde e os diversos Boletins Epidemiológicos publicados e disponibilizados no site do órgão. 9 1 ANIMAIS PEÇONHENTOS ETNA DE JESUS LEAL, FLÁVIO SANTOS DOURADO, GUILHERME CARNEIRO RECKZIEGEL, LÚCIA REGINA MONTEBELLO PEREIRA e PATRICIA MIYUKI OHARA Guia de animais peçonhentos do Brasil 1.1 Animais venenosos e animais peçonhentos Embora muitos tratem como sinônimos animais venenosos e peçonhentos – como exemplo, tem-se que ambos produzem toxinas em glândulas ou tecidos – há algumas diferenças conceituais entre eles. Os animais venenosos podem armazenar os componentes tóxicos obtidos do ambiente ou de outros organismos, e utilizam tais toxinas como mecanismo de defesa contra predação. Essas toxinas somente desempenham sua função ao serem ingeridas pelo organismo predador. Já os animais peçonhentos têm, adicionalmente, a capacidade de injetar ativamente esses compostos, tanto em presas (para predação) quanto em predadores (para defesa). Para essa injeção ativa das toxinas, os animais peçonhentos utilizam aparelhos inoculadores, que podem ser dentes especializados (presas), ferrões, quelíceras, cerdas urticantes, esporões etc. Toxinas são substâncias que, quando presentes em quantidades biologicamente relevantes, causam lesões fisiopatológicas dose-dependentes a um organismo vivo, reduzindo assim a funcionalidade ou viabilidade desse organismo. São produzidas por uma grande variedade de organismos, desde vírus até bactérias, protozoários, fungos, plantas e animais. As toxinas produzidas por animais são denominadas zootoxinas, e convencionou-se chamar de venenos as produzidas por animais venenosos e peçonhas aquelas produzidas por animais peçonhentos. No Brasil, esses termos também são tratados como sinônimos. As funções desempenhadas por venenos e peçonhas estão relacionadas ao animal produtor destas substâncias: defesa contra predação, no caso dos venenos, e subjugação e detenção de presas e predadores, no caso das peçonhas. Além disso, podem exercer também função digestiva em alguns animais peçonhentos. Entender esses conceitos é fundamental para a correta notificação dos acidentes por animais peçonhentos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, uma vez que nem todo animal produz toxinas, e nem todo animal que produz toxinas é um animal peçonhento. Dessa forma, entende-se que, por exemplo, carrapatos, mosquitos e morcegos, embora possuam uma saliva tóxica, utilizam tais substâncias para parasitar outros organismos, e não são considerados, classicamente, animais peçonhentos ou venenosos. Alguns autores conceituam ainda um terceiro tipo de animal produtor de toxinas, chamados de animais toxungenosos (toxungenous animals). Estes diferem dos animais venenosos e peçonhentos por ativamente liberarem a secreção tóxica no ambiente, que entra em contato com a vítima sem a necessidade de ingestão do animal ou inoculação da toxina. São exemplos de animais toxungenosos a cobra naja cuspideira, o besouro bombardeiro e o polvo-de-anéis-azuis. Este Guia não trata dos animais toxungenosos. 1.2 Animais peçonhentos de importância em saúde no Brasil Algumas espécies de animais peçonhentos são consideradas de interesse em saúde pública no Brasil, devido à alta capacidade de proliferação em meios urbanos e à magnitude dos acidentes que provocam, seja em razão do número de acidentes que provocam em humanos, ao potencial de evolução clínica do envenenamento com gravidade ou de gerar sequelas temporárias e até mesmo permanentes, entre outros. Para a maioria desses acidentes, o Sistema Único de Saúde disponibiliza gratuitamente, quando necessário, antivenenos para uso no tratamento dos acidentados. 11 Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente | Ministério da Saúde No Brasil, os animais peçonhentos de interesse em saúde pública são algumas espécies de serpentes (gêneros Bothrops, Bothrocophias, Crotalus, Lachesis, Micrurus e Leptomicrurus), algumas espécies de escorpiões do gênero Tityus, aranhas dos gêneros Loxosceles, Phoneutria e Latrodectus, abelhas do gênero Apis e lagartas do gênero Lonomia. O acidente com serpentes de interesse em saúde é dividido em quatro grupos, de acordo com o gênero da serpente causadora. Acidente botrópico: causado por serpentes dos gêneros Bothrops e Bothroco- phias (jararacuçu, jararaca, urutu, caiçaca, comboia), ambas da família Viperidae. É o grupo mais importante, com diversas espécies em todo o território brasileiro, encontradas em ambientes antropizados ou naturais. Acidente crotálico: causado pelas cascavéis (família Viperidae, espécie Crotalus durissus). As cascavéis têm ampla distribuição em cerrados, regiões áridas e semi- áridas, campos e áreas abertas. Acidente laquético: causado por serpente da família Viperidae, no caso a espécie Lachesis muta (surucucu-pico-de-jaca). Seu habitat é a Floresta Amazônica e os remanescentes da Mata Atlântica. Acidente elapídico: causado pelas corais-verdadeiras (família Elapidae, gêneros Micrurus e Leptomicrurus). Apesar de amplamente distribuídas no País, causam poucos acidentes. Os acidentes por aranhas também são divididos em grupos, de acordo com o gênero do animal causador. Acidente loxoscélico: causado pelas aranhas do gênero Loxosceles (aranha- -marrom). Não é uma aranha agressiva, pica geralmente quando comprimida contra o corpo. É o grupo mais importante dentre as aranhas causadoras de acidentes. Acidente fonêutrico: causada pelas aranhas do gênero Phoneutria (aranha arma- deira ou macaca). Bastante agressiva, assume posição de defesa, podendo saltar até 40 cm de distância. O corpo pode atingir 4 cm, com 15 cm de envergadura. Acidente latrodéctico: a viúva-negra (gênero Latrodectus) não é agressiva. A fêmea pode chegar a 2 cm e o macho entre 2 e 3 mm. Tem atividade noturna e hábito gregário. Os escorpiões de importância em saúde pública no Brasil são quatro espécies do gênero Tityus: T. serrulatus (escorpião-amarelo): principal espécie causadora de acidentes no Brasil, principalmente nas Regiões Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste. T. bahiensis (escorpião-marrom): encontrado nas Regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil. 12 Guia de animais peçonhentos do Brasil T. stigmurus (escorpião-amarelo-do-nordeste): espécie mais comum do Nordeste, embora recentemente tenha sido encontrada em outras regiões. T. obscurus (escorpião-preto-da-amazônia): encontrado na Região Norte e no estado do Mato Grosso. A lagarta (também conhecida como taturana, marandová, mandorová, mondrová, ruga, oruga) é uma das fases do ciclo biológico de um lepidóptero (mariposas e borboletas). Embora sejam encontradas várias espécies na natureza, as lagartas do gênero Lonomia são as únicas que têm relevância para a saúde pública, pois podem ocasionar acidentes graves. Finalmente, os acidentes apílicos são aqueles causados por abelhas do gênero Apis, sobretudo as abelhas africanizadas. Outros animais peçonhentos, embora não sejam considerados de importância em saúde pública, podem causar acidentes graves. Esses animais incluem vespas e marimbondos, lacraias, arraias, bagres, entre outros. Esses acidentes também devem ser notificados no Sinan. 1.3 Cenário epidemiológico dos acidentes por animais peçonhentos A heterogeneidade de climas, biomas, animais envolvidos e circunstâncias dos acidentes contribui para uma grande diversidade de cenários epidemiológicos relacionados aos acidentes por animais peçonhentos. Essa diversidade está in- trinsicamente ligada às diferentes pessoas, tempos e lugares afetados, incluindo populações mais vulneráveis a esses acidentes. Os acidentes por animais peçonhentos estão entre os agravos de notificação compulsória do Ministério da Saúde. Os registros das notificações ocorrem no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), e são realizados mediante o preenchimento da Ficha de Notificação/Investigação de Acidentes por Animais Peçonhentos. A ficha do Sinan constitui instrumento fundamental para determinar os fatores de risco relacionados ao acidente, o tipo de envenenamento ocorrido, a classificação clínica do caso, a necessidade de soroterapia, entre outros aspectos da vigilância do agravo. O agravo é de notificação compulsória imediata, devendo ser notificado em até 24 horas à Secretaria Municipal de Saúde. A análise epidemiológica dos acidentes por animais peçonhentos é importante para acompanhar as mudanças e tendências no impacto destes, para a priorização de medidas e recursos voltados à redução da morbimortalidade e à capacidade de produzir sequelas temporárias ou permanentes e, também, como base para programas de saúde do trabalhador e ambiental. Serão descritas, de forma resumida, as características epidemiológicas dos principais acidentes por animais peçonhentos. Para saber mais sobre a situação epidemiológica dos acidentes por animais peço- nhentos, as informações podem ser acessadas por meio da página do Ministério da Saúde “Saúde de A a Z”. Lá são depositados, periodicamente, Boletins Epidemiológicos sobre os acidentes, sendo possível obter dados mais detalhados e atualizados. 13 Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente | Ministério da Saúde 1.3.1 Acidentes ofídicos A maioria dos acidentes ofídicos no Brasil é ocasionada por serpentes do grupo botró- pico, seguida pelo grupo crotálico. A quantidade de espécimes, a dentição altamente especializada, as características comportamentais e a ampla distribuição geográfica podem explicar a maior quantidade de acidentes botrópicos. As cascavéis costumam habitar áreas de mata aberta, como nos biomas Cerrado, Caatinga e campos nas Regiões Sudeste e Sul. Duas subespécies de cascavel também causam acidentes na área de savana de Roraima e na Ilha do Marajó/PA. Raros são os casos de acidentes por Micrurus (corais-verdadeiras) e Lachesis (surucucus-pico-de-jaca). Quanto às corais-verdadeiras, tal fato se deve às características comportamentais, bem como a dentição que não favorece a inoculação da peçonha. Já em relação às surucucus-pico-de-jaca, o baixo número de acidentes tem relação com a área prioritária de ocorrências dessas serpentes: matas primárias da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica. As regiões brasileiras com maior incidência de acidentes são a Norte e a Nordeste, provavelmente devido às intensas atividades agropecuárias e extrativistas. Os meses de maior frequência de acidentes são os quentes e chuvosos, períodos de maior atividade em áreas rurais. Pela complexidade dos acidentes ofídicos no Brasil, é importante levar em conside- ração a abordagem de saúde única, entendendo os seguintes fatores que podem contribuir para maior risco de acidentes: a associação com habitat tropical; menor percentual de urbanização; ocorrência do desmatamento de florestas; e grande diversidade de serpentes peçonhentas. Homens, que se autodeclaram pardos, entre 40 e 64 anos, moradores da zona rural, caracterizam o perfil mais representativo de vítimas de ofidismo. A maioria dos acidentes é classificada clinicamente como leve, porém, a demora no atendimento médico e soroterápico pode elevar consideravelmente o coeficiente de letalidade. Geralmente estão associados ao baixo nível socioeconômico ou pobreza, e grupos como trabalhadores agrícolas, caçadores, pescadores, seringueiros, castanheiros, famílias que vivem em piores condições de moradia e pessoas com acesso limitado à educação e cuidados de saúde. Povos tradicionais, como indígenas e ribeirinhos, constituem as populações mais vulneráveis a prognósticos ruins. Tal fato pode ter relação com questões culturais, nas quais muitas vezes o acidentado é tratado por métodos tradicionais dessas comunidades, e, principalmente, devido às dificuldades no acesso aos serviços de saúde. Pés e pernas são as regiões anatômicas mais afetadas, de modo que a utilização de botas e perneiras constituem um dos métodos mais importantes na prevenção dos acidentes. 1.3.2 Acidentes escorpiônicos De caráter predominantemente urbano, o escorpionismo tem se elevado no Brasil como um todo, principalmente nos estados das Regiões Sudeste e Nordeste. Escor- piões são os responsáveis pelo maior número de acidentes por animais peçonhentos no Brasil desde meados dos anos 2000, com os casos aumentando ano após ano. Tais acidentes costumam ocorrer com maior frequência na época de calor e chuvas, e durante a noite, que é o período de maior atividade dos escorpiões. Em outros períodos, os casos de escorpionismo também ocorrem, mas em menor magnitude. 14 Guia de animais peçonhentos do Brasil Acidentes escorpiônicos acometem igualmente homens e mulheres, embora em alguns estados possa haver maior variação nessas proporções. A maioria dos acidentes concentra-se nas mãos e nos pés. Essas características corroboram o fato do escorpionismo ser um acidente urbano e doméstico, que costuma ocorrer durante atividades de limpeza, arrumação, ao vestir roupas e calçados ou durante o sono. No Brasil, os acidentes são mais frequentes nas faixas etárias economicamente ativa e em pessoas que se autodeclaram como pardas. A maioria dos casos de escorpionismo apresentam apenas manifestações locais e tem evolução benigna. Casos graves e óbitos são mais frequentes em crianças menores de 10 anos, principalmente quando causados pela espécie Tityus serrulatus. 1.3.3 Acidentes por aranhas A Região Sul é a responsável pelo maior número de notificações de acidentes por aranhas no país, sendo o estado do Paraná aquele que mais registra acidentes. Loxosceles é o gênero de aranha que mais causa acidentes no Brasil. Os acidentes loxoscélicos, causados pela popularmente conhecida aranha-marrom, ocorrem com maior frequência nos meses de outubro a março, com sazonalidade semelhante à dos acidentes ofídicos e escorpiônicos. Como são aranhas que preferem lugares secos, escuros e tranquilos, adaptaram-se bem às condições domiciliares, escondendo- -se atrás de quadros, móveis, rodapés soltos, pilhas de tijolos, telhas e entulhos em geral. Assim como no escorpionismo, essas informações apoiam os dados epidemiológicos, que mostram que os acidentes loxoscélicos são mais frequentes em áreas urbanas, atingem ambos os sexos em frequências semelhantes e na faixa etária economicamente ativa (20 a 64 anos). Os acidentes costumam ocorrer após a aranha ser comprimida em alguma parte do corpo, durante o ato de se vestir ou durante o sono. Os membros inferiores e superiores concentram a maioria das regiões anatômicas nas quais ocorrem acidentes, embora incidam vários registros também no tronco ou mesmo na cabeça. No Paraná, estado que mais notifica esses acidentes, ocorrem quatro espécies de Loxosceles. Entre as espécies, a mais comum e que causa mais acidentes, L. intermedia, está distribuída em todas as regiões do estado, ocupando tanto o intra quanto o peridomicílio. Em Curitiba, cidade que mais notifica acidentes no Brasil, a alta incidência de acidentes está relacionada ao comportamento mais ativo (com maior mobilidade) e hábito generalista (menos exigente em relação aos fatores ambientais, como temperatura, umidade relativa do ar e altitudes) dessa espécie, proporcionando maior contato com a população humana. O maior número de acidentes fonêutricos, ocasionados pela aranha-armadeira, é registrado de dezembro a abril, sendo a maioria das notificações concentradas na Região Sul do País, sobretudo nos estados do Paraná e São Paulo. Por ser uma aranha agressiva e de maior porte em relação à aranha-marrom e à viúva-negra, a aranha-armadeira costuma causar acidentes escondendo-se em calçados, materiais de construção, entulhos ou até mesmo em lenhas e, por isso, os acidentes ocorrem, em sua maioria, nos pés e nas mãos e em pessoas do sexo masculino. O latrodectismo, acidente ocasionado pelas aranhas viúvas-negras, é de baixa incidência. Os acidentes estão distribuídos por todo o Brasil, sendo responsável pelo maior número de notificações os estados de Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Santa Catarina e Pernambuco. Homens e mulheres são igualmente susceptíveis, e a maioria dos acidentes ocorrem nas mãos e nos pés. 15 Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente | Ministério da Saúde 1.3.4 Acidentes por lagartas No Sul e Sudeste do País, regiões de maior incidência, o registro dos acidentes é maior de janeiro a abril. Acidentes com lagartas peçonhentas, chamado erucismo, ocorrem majoritariamente na zona urbana. Crianças são mais acometidas, com predominância no sexo masculino. Fatores de risco para gravidade envolvem a quantidade e a intensidade do contato com as lagartas, a espécie envolvida, bem como a presença de traumatismos que podem levar a hemorragia maciça ou em órgão vital. A maioria dos acidentes ocorrem durante o dia, tendo a área das mãos, dos pés e dos braços como regiões do corpo mais atingidas. Todo acidente por lagartas peçonhentas é de notificação obrigatória, contudo, as lagartas do gênero Lonomia são as que têm maior relevância para a saúde pública, pois podem ocasionar acidentes graves ou mesmo óbitos. As lagartas são encontradas frequentemente sobre a vegetação, as folhas e os troncos, o que possivelmente pode expor trabalhadores que têm contato com ambientes rurais e silvestres, como agricultores. Todavia, o aumento da ocorrência de lagartas na vegetação em ambientes urbanos, incluindo a vegetação no peridomicílio, em áreas verde, praças e ambientes escolares expõe a população dessas áreas ao acidente. 1.3.5 Acidentes por abelhas Junto com os acidentes escorpiônicos, os acidentes apílicos tiveram aumento considerável de notificações no Sinan nos últimos anos. No caso das abelhas, as Regiões Sudeste e Nordeste são as que apresentam o maior número de notificações de acidentes. Embora também ocorram com importante frequência na zona rural, os acidentes apílicos são mais comuns em áreas urbanas, possivelmente devido às mudanças antropomórficas, como a expansão das cidades e o declínio de populações rurais de abelhas. Os ambientes urbanos são propícios para a instalação de colônias, pois fornecem não só abrigos, mas também recursos para a sobrevivência da colônia. Pessoas do sexo masculino são mais acometidas, possivelmente por estarem mais ligados às atividades que podem perturbar colmeias, como o uso de tratores e motosserras, ou a atividade de apicultura. Em relação à faixa etária, os acidentes são mais frequentes em pessoas em idade economicamente ativa (20 a 64 anos), embora a coeficiente de letalidade seja maior em pessoas de 65 anos ou mais. Uma possível explicação seria de que pessoas idosas são, muitas vezes, portadoras de condições crônicas, como pressão alta, insuficiência renal e outras, que podem contribuir para o agravamento dos acidentes. Condições climáticas, cultura agrícola e outros fatores influenciam na sazonalidade dos acidentes causados por abelhas, de modo que no Nordeste, por exemplo, a maioria dos acidentes ocorre nos meses de setembro e outubro, e no Sudeste nos meses de janeiro a março. 16 Guia de animais peçonhentos do Brasil 1.3.6 Acidentes por animais aquáticos peçonhentos Embora não muito discutidos no Brasil, os acidentes por animais aquáticos peço- nhentos ocorrem com importante frequência e estão atrelados, muitas vezes, às populações mais vulneráveis, como indígenas e ribeirinhos. A extensa área litorânea brasileira (cerca de 8.500 km) e seu vasto sistema de água doce abrigam muitas espécies de animais aquáticos peçonhentos capazes de causar acidentes graves, podendo, inclusive, levar ao óbito. Por ser um país tropical, as atividades recreativas na água, como a pesca, os banhos em rios, lagos e praias, os mergulhos, assim como atividades laborais, como a pesca profissional e o turismo, são situações de risco para os possíveis acidentes. Os principais animais aquáticos peçonhentos brasileiros são os peixes bagre, as arraias e os cnidários (águas-vivas e caravelas). Porém, outros, que são responsáveis por um menor número de acidentes, podem ser citados, como o peixe niquim (peixe-sapo) e o peixe-escorpião. Arraias e alguns bagres (tanto espécies de água doce quanto marinhas) causam acidentes por meio de seus ferrões, estruturas perfurocortantes recobertas por uma bainha com tecido glandular produtor de toxinas. Já as águas-vivas e caravelas apresentam células defensivas distribuídas por seus tentáculos e corpos. De forma geral, os homens são os mais acometidos, exceto nos acidentes por águas-vivas/caravelas, que apresentam igual frequência entre os sexos. Acidentes com bagres e arraias estão mais relacionados à população em faixa etária econo- micamente ativa; já os acidentes por cnidários estão relacionados às situações de lazer, envolvendo, portanto, a população mais jovem. Águas-vivas e caravelas causam lesões mais frequentemente em áreas do corpo de maior extensão, como tronco e pernas; arraias causam lesões geralmente na região dos pés; e bagres e niquins, nos pés e mãos. Embora os acidentes estejam distribuídos por todas as regiões do País, a Região Norte concentra a maioria dos casos, principalmente quanto aos acidentes por arraias; a Região Sul do País é a segunda com maior frequência de acidentes, destacando-se quanto à alta quantidade de acidentes por águas-vivas e caravelas, bem como de acidentes por bagres (embora a quantidade de registros seja baixa); os acidentes por peixe niquim estão mais relacionados à Região Nordeste; a Região Centro-Oeste apresenta mais casos relacionados às arraias; e a Região Sudeste, embora seja a de menor frequência de acidentes, mostra-se mais relevante quanto aos acidentes por cnidários. É importante destacar que provavelmente exista um alto grau de subnotificação dos acidentes por animais aquáticos peçonhentos, visto que, em sua maioria, o envenenamento não evolui com potencial de gravidade para óbito. Espécies exóticas invasoras, como o peixe-leão, que apresenta toxinas potentes para o ser humano, têm sido frequentemente encontradas nos litorais brasileiros, reforçando a importância de se conhecer as principais espécies com potencial de ocorrência no Brasil e de se intensificar os serviços de vigilância. 17 Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente | Ministério da Saúde REFERÊNCIAS ACIDENTES escorpiônicos no Brasil em 2022. Boletim Epidemiológico. Brasília, DF: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, v. 55, n. 3, 2024. ACIDENTES por abelhas no Brasil em 2022. Boletim Epidemiológico, Brasília, DF: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, v. 54, n. 11, 2023. ASPECTOS epidemiológicos do ofidismo no Brasil em 2022. Boletim Epidemiológico. Brasília, DF: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, v. 54, n. 18, 2023. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. Departamento de Articulação Estratégica de Vigilância em Saúde e Ambiente. Guia de Vigilância em Saúde. 6. ed. Brasília, DF: MS, 2023. 3 v. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de controle de escorpiões. Brasília, DF: MS, 2009. BRASIL. Ministério da Saúde; FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE. Manual de diagnóstico e tratamento de acidentes por animais peçonhentos. Brasília, DF: FNS, 2001. MARQUES-DA-SILVA, E.; FISCHER, M. L. Distribuição das espécies do gênero Loxosceles Heinecken & Lowe, 1835 (Araneae; Sicariidae) no Estado do Paraná. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 38, n. 4, p. 331-335, ago. 2005. MEBS, D. Venomous and Poisonous Animals: a Handbook for Biologists, Toxicologists and Toxinologists, Physicians and Pharmacists. Stuttgart: Medpharm GmbH Scientific Publishers, 2002. NELSEN, D. R. et al. 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Epidemiologia e Serviços de Saúde, v. 31, n. 3, 2022. 19 2 SERPENTES DE IMPORTÂNCIA EM SAÚDE NELSON JORGE DA SILVA JR., GIUSEPPE PUORTO, MARCUS AUGUSTO BUONONATO e ANÍBAL RAFAEL MELGAREJO† Guia de animais peçonhentos do Brasil 2.1 Introdução Nos acidentes ofídicos, reconhecer a serpente agressora é fundamental para agilizar o diagnóstico, o tratamento e, consequentemente, a utilização correta do antiveneno, quando necessário, bem como possibilita o tratamento da maioria dos pacientes agredidos por serpentes sem importância em saúde pública. Assim, mesmo considerando a relevância do diagnóstico clínico para orientar a conduta na maioria dos acidentes, quando o animal causador for apresentado pelo paciente (uma fotografia ou o próprio animal), este deve ser encaminhado para identificação por um técnico treinado na medida do possível. Levando-se em consideração os dados do Hospital Vital Brazil (Instituto Butantan), aproximadamente 40% dos pacientes levam a serpente causadora do acidente. A conservação básica dos animais mortos pode ser feita, mesmo que precariamente, pela imersão deles em solução de formalina a 10%, ou álcool comum, acondicionado em recipiente apropriado, com os dados da procedência do acidente. Por suas características naturais únicas, o Brasil ocupa uma importante posição mundial na diversidade de serpentes, com mais de 400 espécies conhecidas ou descritas até o presente, agrupadas em dez famílias. Desse total, cerca de 350 espécies (83%) são não peçonhentas (têm pouca ou nenhuma importância em saúde) e 70-75 (17%) são peçonhentas (com importância médica). As serpentes de maior importância em saúde, que ocorrem em território brasileiro, pertencem às famílias Viperidae e Elapidae. Essas serpentes estão divididas em quatro grupos: a) Botrópico (representado pelo gênero Bothrops, mas que também inclui o gênero Bothrocophias) – jararacas. b) Crotálico (representado pelo gênero Crotalus) – cascavéis. c) Laquético (representado pelo gênero Lachesis) – surucucus-pico-de-jaca. d) Elapídico (representado pelos gêneros Leptomicrurus e Micrurus) – cobras-corais. As características das serpentes (ofiologia), sua importância médica nos acidentes com humanos (ofidismo) e o estudo da ação dos venenos (toxinologia) possuem uma inter-relação e interdisciplinaridade. Os assuntos se mesclam e se complementam, sendo extremamente importantes no entendimento da casuística de acidentes ofídicos no Brasil. As informações aqui oferecidas, mesmo que limitadas, podem ser extremamente úteis para facilitar o entendimento sobre esse importante tópico em saúde pública. As características básicas e a distribuição geográfica das espécies de maior importância são oferecidas de modo a contribuir com a melhora da qualidade na identificação dos agentes e os procedimentos médicos apropriados. 2.2 Características gerais das serpentes e taxonomia Os répteis (Classe Reptilia) estão incluídos em quatro Ordens: Rhynchocephalia – com apenas um gênero e uma espécie (Sphenodon punctatus), conhecido popularmente como Tuatara e restrito à Nova Zelândia; Testudines (ou Chelonia) – tartarugas, cágados e jabutis; Crocodylia – jacarés, crocodilos e gaviais; e Squamata – serpentes, lagartos e anfisbênias. 21 Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente | Ministério da Saúde A ordem Squamata inclui os répteis cobertos com escamas e que regulam a temperatura corporal externamente (ectotermia). Essas escamas retêm a umidade e reduzem o atrito conforme o animal se move. Dentro dessa ordem estão as serpentes, um grupo familiar e bem definido de répteis dotados de um conjunto próprio de características morfológicas e moleculares. Em muitos países, incluindo o Brasil, utiliza-se muito o termo “cobra” como uma definição geral para “serpentes” o que, na verdade, não é correto. O termo cobra é uma herança do latim que se refere às serpentes do gênero Naja (e semelhantes), criando uma confusão entre esses termos (serpente e cobra), sendo serpente o mais correto. Entretanto, como referência geral no Português (Brasil), perpetuou-se o uso de cobra (e não serpente) para definir popularmente esse grupo. As serpentes possuem um conjunto de características morfológicas que definem o grupo: a) redução do tamanho dos ossos do crânio, com oito pontos de rotação, permitindo que grandes presas sejam engolidas inteiras. Cada lado do crânio pode se mover independentemente; b) forame magno (orifício na base, ou parte posterior, do crânio por onde passa a medula espinhal) formado por dois ossos (exoccipital e basioccipital); c) mandíbula com um ligamento frouxo anterior na linha média rostral (focinho); d) arco sanguíneo sistêmico esquerdo maior; e) ausência de corpo ciliar nos olhos (impossibilidade de acomodação da visão); f) ausência de patas, mas algumas famílias ainda retêm vestígios ósseos de uma cintura pélvica (jiboias e pítons); g) ausência de ouvido externo; médio e tímpano; h) ausência de pálpebras; i) modificação dos órgãos internos (alinhamento com o corpo); j) língua bífida e queratinizada, utilizada como um sentido de quimiossensação; k) dentes recurvados, evitando a fuga de presas apreendidas. As mais de 3.400 espécies de serpentes conhecidas são encontradas em todos os continentes, exceto na Antártida, Islândia, Irlanda, Groenlândia e Nova Zelândia. Dessas espécies, cerca de 600 são peçonhentas, e aproximadamente outras 200 são capazes de causar danos significativos ao ser humano. As serpentes são ainda divididas em dois grupos: Scolecophidia – serpentes de pequeno porte, fossoriais (hábito de se enterrarem no solo) e semelhantes a vermes; e Alethinophidia – serpentes de porte maior, com cabeça e cauda mais definidas, sendo a grande maioria terrestre, com adaptações aquáticas, semiaquáticas e arborícolas. Alguns grupos possuem receptores térmicos labiais ou faciais. A maioria das serpentes é ovípara (bota ovos) com várias espécies vivíparas. As serpentes são parte importante de várias cadeias alimentares nos ecossistemas, sendo distribuídas em vários tipos de habitats que incluem pastagens, pântanos, florestas, campos agrícolas, áreas periurbanas, cerrados, desertos e mares. São predadoras de roedores, anfíbios, pássaros, mamíferos, outros répteis (podendo inclusive serem canibais), artrópodes, ovos e filhotes de pássaros, indicando a variação na seletividade alimentar desses animais e sendo um dos vertebrados mais bem-sucedidos da Terra. 2.2.1 Características externas As serpentes possuem a pele revestida por escamas queratinizadas, com formas e tamanhos diferentes, que envolvem a pele em toda a sua extensão, parcialmente interpostas. A camada de queratina é contínua e espessa, recobrindo toda a pele (denominada de extrato córneo) até o olho, não havendo pálpebra móvel, ou seja, a 22 Guia de animais peçonhentos do Brasil pálpebra (transparente) fica aderida como uma lente de contato, dando proteção e evitando o ressecamento. O estrato córneo não acompanha o crescimento corporal das serpentes, havendo o desprendimento da camada antiga, o que é comumente denominado como muda de pele. Durante o processo, a pele antiga começa a se desprender a partir do focinho e, conforme o animal se locomove, é completamente desprendida do corpo. FIGURA 1. Nomenclatura comparativa das escamas cefálicas das serpentes: A. Existem diferenças no formato e nas dimensões das escamas das serpentes Serpentes fossoriais (família dependendo do local do corpo, variando nas diversas famílias e seus hábitos Typhlopidae); B. Serpentes terrestres (família Dipsadidae); (fossoriais, terrestres, aquáticos e arborícolas). Na cabeça, as escamas dorsais, laterais C. Serpentes semifossoriais e ventrais (região gular) se apresentam com nomenclatura semelhante, mas com as (família Elapidae); D. Serpentes especificidades de cada grupo ou família de serpentes (Figura 1).