Primordios da Ciência na Grecia - Capítulo I PDF

Summary

Este documento discute os primórdios da ciência na Grécia, focando nas ideias dos primeiros filósofos gregos como Tales, Anaximandro e Anaxímenes. O documento examina os contributos destes filósofos para o desenvolvimento da ciência. Os filósofos pré-socráticos começaram a questionar as explicações míticas e religiosas e, em vez disso, desenvolveram teorias baseadas em princípios naturais.

Full Transcript

Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência I – Osvaldo Pessoa Jr. – 2022 Capítulo I PRIMÓRDIOS DA CIÊNCIA NA GRÉCIA 1. O Início da Especulação Científica Considera-se que a ciência teve pelo menos dois nasci...

Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência I – Osvaldo Pessoa Jr. – 2022 Capítulo I PRIMÓRDIOS DA CIÊNCIA NA GRÉCIA 1. O Início da Especulação Científica Considera-se que a ciência teve pelo menos dois nascimentos, na Grécia e na China. No caso da Grécia, o início da ciência é atribuído aos pensadores da cidade de Mileto (Ásia Menor, atual Turquia), no séc. VI AEC. No caso da China, um estágio semelhante existiu mais ou menos na mesma época, especialmente no estado de Chhi, na atual região do Shandong (ver cap. XII). Concentrando-nos na tradição ocidental, por que, afinal, atribui-se o início da ciência aos pensadores de Mileto1? Certamente muito já havia sido feito nas civilizações da Mesopotâmia, do Egito e do Mediterrâneo (Minóica e Micênica). Destaquemos os avanços feitos em tecnologia, medicina e astronomia. Com relação à técnica, em 3000 AEC, já havia a metalurgia, a tecelagem e a cerâmica, assim como o uso da roda em veículos de transporte (adaptado da roda do ceramista). A agricultura, com suas técnicas de irrigação, domesticação de animais, preparação e preservação de alimentos, foi essencial para o surgimento de cidades. Além disso, a escrita surgiu em torno de 3500 AEC. Tais desenvolvimentos técnicos implicam uma ciência? À medida que não envolvem uma teorização explícita, não. No entanto, tais desenvolvimentos certamente envolvem uma grande capacidade de observação, raciocínio e aprendizado, que são essenciais na ciência. A medicina nos antigos Egito e Mesopotâmia era dominada por magia e explicações baseadas em espíritos, mas diversos diagnósticos e tratamentos baseados em ervas já eram oferecidos, e a cirurgia já era feita no Egito (voltaremos a esse assunto na seção VII.1). Com relação à astronomia e à matemática, boa parte do esforço astronômico se dirigia à elaboração de calendários, o melhor dos quais era o egípcio. No entanto, foi na Babilônia que a matemática e a astronomia mais avançaram. Os babilônios introduziram um sistema numérico com “valor posicional”, como o nosso atual, só que na base 60 ao invés de na base 10. Já o sistema egípcio era como o grego e o romano, sendo inferior para certas operações, como as envolvendo frações. Os babilônios registravam sistematicamente os acontecimentos celestes, como os aparecimentos e desaparecimentos do planeta Vênus, eclipses solares e lunares, além de fenômenos meteorológicos. Com isso, eram capazes de fazer algumas previsões astronômicas, baseadas em regularidades aritméticas (e não modelos geométricos do cosmo), como as de eclipses lunares (os solares são mais difíceis de prever). A patronagem (financiamento) do trabalho dos astrônomos já era feita pela corte. Com este pano de fundo, o que os milésios como Tales, Anaximandro e Anaxímenes, além dos outros chamados “filósofos pré-socráticos”, trouxeram de novo? Em primeiro lugar, a separação entre a natureza e o sobrenatural. As explicações dos milésios não faziam referência a deuses ou forças naturais. Se na mitologia grega os terremotos tinham sua origem no deus dos mares (Poseidon), para Tales a explicação não envolvia deuses. Para ele, a terra boiava na água do oceano, e os terremotos teriam sua origem em grandes ondas e tremores marítimos (Fig. I.1). A segunda novidade dos gregos era a prática do debate. Os pensadores pré-socráticos discutiam criticamente as ideias de seus colegas e antecessores, muitas vezes em frente a uma plateia. Uma consequência disso é que diferentes explicações para um mesmo 1 Seguimos aqui a problemática colocada por LLOYD, G.E.R. (1970), Early Greek science: Thales to Aristotle, Norton, Nova Iorque. As seções I.2, III.1 e V.2 também se baseiam neste livro. Outra excelente introdução é: CLAGGETT, M. (1955), Greek science in Antiquity, A. Schuman, Nova Iorque, republicado pela Dover em 2001. A expressão “AEC”, significando “antes da Era Comum”, substitui “a.C.” (antes de Cristo), e “EC” designa a Era Comum, no contexto do Calendário Gregoriano. 1 TCFC I (2022) Cap. I – Primórdios da Ciência na Grécia fenômeno natural passavam a competir entre si. O esforço para encontrar a melhor explicação levava a uma reflexão a respeito dos pressupostos, das evidências e dos argumentos a favor e contra teorias opostas. Por que estas novidades surgiram numa cidade-estado grega no séc. VI AEC, e não em outro lugar ou em outra época? Uma contribuição decisiva foi dada pela organização política de cidades-estado como Mileto, Atenas e Corinto, onde os cidadãos participavam ativamente na escolha de membros do governo e na elaboração de leis. 2. Os Primeiros Filósofos-Cientistas e o Problema da Mudança Os filósofos-cientistas teóricos de Mileto são lembrados pelas três cosmologias propostas. Tales (c. 624-546 AEC) colocou a questão sobre qual é o princípio de tudo, e permanece o mesmo nas mudanças, e concluiu que é a água. Anaximandro (c. 610-546 AEC) sugeriu que a primeira coisa não foi uma substância específica, mas algo indefinido, que chamou de “Ilimitado” (apeiron). No que é considerada a mais antiga sentença sobrevivente do pensamento ocidental, escreveu: “Aquilo de onde as coisas se engendram, para lá também devem desaparecer segundo a necessidade; pois elas se pagam umas às outras castigo e expiação pela sua criminalidade segundo o tempo fixado”. Outra fonte apresentou a concepção de Anaximandro a respeito da origem do mundo da seguinte maneira: “No nascimento deste mundo, uma semente de quente e frio se separou Fig. I.1: Reconstrução conjectural do mapa de mundo do Ilimitado e a partir disto uma bola de Hecateu de Mileto, c. 510 AEC, que seria baseado de fogo surgiu em torno do ar que no primeiro mapa grego, atribuído a Anaximandro.3 circunda a Terra, como a casca de uma árvore.”2 Anaxímenes (c. 585-525 AEC) sugeriu que o ar seria o princípio de tudo, que se transformaria em água através da condensação, e em fogo através da rarefação. O próximo grupo a se destacar no cenário filosófico-científico se concentrou em torno de Pitágoras (c. 572-490 AEC). Nascido na ilha de Samos, próximo de Mileto, mudou-se após a invasão persa para Crotona, na Magna Grécia (atual Itália), onde formou uma escola religiosa, filosófica e política. Aristóteles atribuiu aos milésios a busca pela “causa material” das coisas. Já os pitagóricos viam nos números os elementos básicos de tudo, o que pode ser considerado 2 A primeira sentença é a versão de Hermann Diels (1903), como nos conta M. HEIDEGGER em “A sentença de Anaximandro”, trad. E. Stein, in Os Pensadores – Pré-socráticos, 2a ed., Abril Cultural, São Paulo, pp. 19-47. A segunda sentença é citada por LLOYD (1970), op. cit. (nota 1), p. 21, e está presente na obra Stromateis, atribuída a Plutarco. 3 BUNBURY, E.H. (1879), History of ancient geography among the Greeks and Romans: from the earliest ages till the fall of the Roman Empire, vol. I, John Murray, London, Mapa 2, defronte à p. 148. 2 TCFC I (2022) Cap. I – Primórdios da Ciência na Grécia uma “causa formal” (na terminologia aristotélica). Para os pitagóricos, os números exprimiam mais do que aspectos formais dos fenômenos: as coisas seriam feitas de números. Desenvolveram também vários modelos astronômicos. Os pitagóricos também foram importantes por terem desenvolvido métodos dedutivos na Matemática. O mais conhecido envolve a prova do “teorema de Pitágoras”, aplicável para os lados de um triângulo com ângulo reto: a² + b² = h², cujo enunciado já era conhecido dos babilônios. O grande problema metafísico do início do séc. V AEC era o problema da mudança: como é possível algo mudar, e deixar de ser o que era? Heráclito de Éfeso (c. 535-475 AEC) salientava que tudo estava sujeito a mudanças: “panta rhei” (tudo flui). Explorava exemplos, como o da corda tensionada, que indicava que por trás de um aparente repouso havia uma interação entre contrários, que finalmente podia levar ao movimento (no caso, quando a corda é solta). Parmênides de Eleia (c. 510-450 AEC) tomava uma posição oposta. Mais do que qualquer pensador antes dele, Parmênides duvidava da evidência dos sentidos, colocando a razão como única fonte confiável de conhecimento. Em seu famoso poema, salientou que “o que é não pode deixar de ser”, ou que “do não-ser não pode surgir o ser”. Em suma, a mudança é impossível. As mudanças que vemos à nossa volta são apenas aparentes, não são reais. Após as conclusões de Parmênides, todos os filósofos gregos tinham que tomar uma posição em relação às suas teses.4 Anaxágoras de Clazômenas (c. 500-428 AEC), tutor de Péricles em Atenas, era um que concordava que “nada pode vir a ser a partir do não-ser”, mas explicava a mudança a partir da mistura de todas as substâncias. Por exemplo, enfocando o nosso corpo, perguntava como era possível que um cabelo pudesse surgir a partir do “não-cabelo”. Sua resposta era de que o cabelo já existia em nosso alimento, sendo então incorporado ao nosso corpo e saindo de nossa pele na forma de cabelo. O cabelo, então, deve ter existido desde o começo, na mistura original de todas as coisas. Eis o sentido de seu enunciado de que “em tudo há uma porção de tudo”. Empédocles de Agrigento (c. 490-430 AEC), resolveu de maneira semelhante o paradoxo de Parmênidas. Concordava com as limitações do sentido, mas também argumentava que a razão era limitada. Concordando também que “nada pode vir a ser a partir do não-ser”, restaurava a noção de mudança postulando quatro elementos, terra, água, ar e fogo, que produzem mudanças ao se recombinarem e separarem. Para responder à questão de como apenas quatro “raízes” podiam levar a uma multiplicidade de diferentes substâncias, lançou a ideia de que os elementos se combinariam em diferentes proporções, dependendo da substância. Assim, por exemplo, o osso consistiria de fogo, água e terra na proporção 4:2:2, ao passo que o sangue consistiria dos quatro elementos em iguais proporções. Não efetuou, no entanto, nenhuma investigação empírica metódica para explorar sua ideia, que antecipou (de modo especulativo) a lei das proporções fixas da química moderna. Outra abordagem para o problema da mudança foi o atomismo de Leucipo de Mileto (início do séc. V AEC) e Demócrito de Abdera (c. 460-370 AEC). Segundo esta visão, só têm realidade os átomos e o vazio. Qualquer diferença que observamos no mundo é devido a modificações na forma, arranjo e posição dos átomos. Haveria um número infinito de átomos espalhados no vazio infinito. Os átomos estariam em movimento contínuo, chocando-se frequentemente uns com os outros. Nas colisões, os átomos poderiam rebater ou então se ligarem através de ganchos ou formas complementares. Os atomistas, assim, escapavam das conclusões eleáticas postulando uma infinitude de seres (os átomos) e também a existência do não-ser (o vácuo). Demócrito foi um escritor prolífero, redigindo tratados de física, astronomia, 4 Um excelente relato desse período anterior a Sócrates e Demócrito é: BURNET, J. (2006), A aurora da filosofia grega, trad. V. Ribeiro, H. Cairus, A. Bacelar & T.O. Ribeiro, Contraponto e Ed. PUC-Rio, Rio de Janeiro. (Original: 1a edição, 1892; 4a edição, 1930). Disponível em inglês na internet. 3 TCFC I (2022) Cap. I – Primórdios da Ciência na Grécia zoologia, botânica, medicina, agricultura, pintura e guerra. Aplicou em detalhe o atomismo em sua doutrina das qualidades sensíveis (mais sobre o atomismo na seção V.5). Os pensadores do séc. V AEC ocupavam-se com explicações sobre todo tipo de questão: Por que o mar é salgado? Por que o Nilo transborda? Como ocorre a diferenciação sexual em embriões? 3. Biologia Pré-Aristotélica Os sécs. VI e V AEC na Grécia também marcaram o início da observação e da teorização sobre a vida. Anaximandro, mencionado na seção anterior, escreveu em seu poema “Da natureza” que os seres vivos teriam surgido do barro ou lama (que no princípio cobria a Terra), após o Sol ter agido no molhado. Primeiro teriam surgido animais e plantas, e mais tarde os seres humanos. Os seres humanos, porém, inicialmente teriam a forma do galhudo ou cação-de-espinho (Squalus acanthias), e dele teria se evoluído. Esta opinião curiosa de Anaximandro baseou-se no tipo de gestação deste peixe cartilaginoso, em que o embrião fica atado a um saco vitelino, que lhe lembrou da placenta humana (Fig. I.2). Mais tarde, os que viriam a ser humanos teriam perdido sua pele escamosa e foram habitar em terra firme. Vemos assim que Anaximandro tinha uma concepção primária de evolução, provavelmente herdada de mitos populares que diziam que os diferentes povos nasciam do próprio solo em que viviam.5 Empédocles, que resolveu o problema da mudança a partir de combinações das quatro substâncias (mediadas pelo amor e pelo ódio), era um médico na Sicília, tendo formulado a ideia de fluxo e refluxo do sangue no corpo. Achava que a respiração também se dava através dos poros da pele, onde o sangue se misturaria com o ar. O sangue seria a sede da inteligência. Na reprodução, Empédocles defendia que o embrião recebia algumas partes da semente do pai e outras da semente da mãe. Segundo as lendas, teria debelado uma epidemia desviando o curso de dois rios, para que suas águas se misturassem. Descrevia a visão como sendo o encontro de raios que emanariam dos olhos com raios provenientes dos corpos luminosos. Figura I.2: O cação-de-espinho, cujo embrião se alimenta de um saco vitelino durante parte da gestação materna, que dura dois anos. 5 Esta seção é baseada em NORDENSKIÖLD, E. (1949), Evolución histórica de las ciencias biológicas, Espasa- Calpe, Buenos Aires, pp. 24-38 (orig. em sueco: 1918). Usamos também RONAN, C.A. (1987), História ilustrada da ciência da Universidade de Cambridge. 4 vols. J. Zahar, Rio de Janeiro; Círculo do Livro, São Paulo (orig. em inglês: 1983). A Figura I.1 foi obtida do sítio: https://www.floridamuseum.ufl.edu/discover-fish/species- profiles/squalus-acanthias/ 4 TCFC I (2022) Cap. I – Primórdios da Ciência na Grécia Empédocles concebia quatro estágios de desenvolvimento do Universo. Primeiro havia uma mistura dos quatro elementos; a seguir, os elementos teriam sido separados pela força do ódio (lembrando o big bang, ou seja, o grande estrondo que deu origem ao Universo, segundo a cosmologia moderna). No terceiro estágio havia uma separação total dos elementos, e no quarto eles teriam começado a se misturar devido à força do amor. Neste último estágio, as plantas teriam brotado da terra, e depois teriam brotado os diferentes órgãos e membros dos animais. Estes se atraíam entre si (através da força do amor), ao acaso, gerando monstros que não eram capazes de sobreviver. Mas aos poucos teriam surgido animais em que as partes se ajustavam harmoniosamente, e estes teriam sobrevivido, resultando na fauna atual. Esta concepção é costumeiramente citada como precursora da ideia de seleção natural. Ela é notável como uma tentativa de descrever o mundo apenas em termos de causa eficiente, e não final. Demócrito foi o maior sistematizador da biologia e da ciência em geral antes de Aristóteles. Quase nada, porém, restou de seus numerosos livros, que expunham uma visão de mundo materialista e atomista. “Nada provém de nada; toda mudança é puramente agregação ou separação de partes. Nada acontece por acaso ou por intenção, tudo ocorre por causa e por necessidade. Nada há fora de átomos e espaço; todo o resto é impressão dos sentidos.” Na Biologia, realizou algumas dissecações em animais. Traçou uma distinção entre animais com sangue (vertebrados) e sem sangue, o que seria seguido por Aristóteles. Demócrito considerava que o cérebro é o órgão do pensamento, o coração o do valor e o fígado o da sensualidade. Achava que a alma era feita dos sutis átomos de fogo, que provinham da respiração. Acreditava que as epidemias eram causadas por átomos que caíam à Terra de outros corpos celestes. 5 Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência I – Osvaldo Pessoa Jr. – 2022 Capítulo II DEFINIÇÃO DE CONHECIMENTO 1. Definição Tripartida de Conhecimento Um exemplo de conhecimento adquirido nos primórdios da ciência é a atribuição de números que os pitagóricos fizeram aos sons produzidos por cordas vibrantes. Este é talvez o primeiro estudo empírico sistemático que resultou na elaboração de uma lei científica quantitativa. Estudaram a relação entre os tons musicais de uma corda vibrante e seu tamanho, encontrando que os intervalos de oitava, quarta e quinta poderiam ser expressos em termos de razões numéricas simples de comprimentos da corda, respectivamente 1:2, 2:3, 3:4. Estudaram também os sons gerados em jarros com diferentes níveis de água. Mas o que é conhecimento? Uma definição, aceita ainda hoje, foi desenvolvida por Sócrates, e aparece em diferentes diálogos de Platão, como o Teeteto, o Mênon, a República e o Timeu. Segundo esta análise, chamada de definição tradicional ou “tripartida” do conhecimento, o conhecimento seria uma opinião verdadeira justificada. Nas palavras de Teeteto, “a opinião verdadeira acompanhada de razão é conhecimento, e, desprovida de razão, a opinião está fora do conhecimento”. No Mênon, Sócrates diz que “o conhecimento se distingue da opinião certa por seu encadeamento racional”.6 O pré-socrático Empédocles acreditava que o Cosmos teria sido criado em uma grande explosão (seção I.3); tal crença é verdadeira (segundo a concepção atual do big bang), mas ele não tinha justificação apropriada para tal opinião (pois não tinha como observar o movimento das galáxias distantes, como Edwin Hubble faria em 1929). Assim, sua tese cosmogônica não seria conhecimento. Por outro lado, o médico helenista Erasístrato tinha justificativa para acreditar que as artérias continham apenas ar (seção VIII.1), mas tal crença é falsa, portanto também não seria conhecimento. Analisemos um pouco mais a fundo a definição tripartida de conhecimento. Primeiro, consideremos o gênero nesta definição, que é “opinião”. Na literatura anglofônica, prefere-se o termo “crença”, e diz-se que conhecimento implica crença (ou opinião). Alguns propõem outras alternativas: conhecimento implicaria “aceitação”, “convicção”, ou “certeza psicológica”. Outros autores, porém, argumentam que conhecimento e crença são separáveis, que um não implica o outro. Por exemplo: numa prova, chutei que a data do primeiro incêndio da biblioteca de Alexandria fora 48 AEC, mas não cria nisso; porém, de fato, eu relembrei um conhecimento que adquirira muitos anos antes.7 Em segundo lugar, consideremos a diferença do gênero: opinião “verdadeira”. O que é verdade? Platão e Aristóteles adotavam a concepção de verdade por correspondência, expressa sucintamente na frase de Aristóteles “Dizer do que é que é, e do que não é que não é, é dizer a verdade”. Deixaremos para discutir esta e outras noções de verdade na seção seguinte. 6 PLATÃO (s/d), Teeteto ou Da ciência, trad. F. Melro, Inquérito, Lisboa (orig.: c. 360-355 AEC), p. 159 (201d). PLATÃO (s/d), Mênon, in Diálogos I: Mênon, Banquete, Fedro, trad. J. Paleikat, Tecnoprint (Ediouro), Rio de Janeiro, pp. 44-74 (orig. c. 387-380 AEC), p. 72 (98a). Datas dos originais são estimativas apresentadas em BRICKHOUSE, T. & SMITH, N.D. (2006), “Plato”, The internet encyclopedia of philosophy. Os trechos estão disponíveis no site do curso. 7 Uma boa introdução à análise padrão do conhecimento se encontra em CHISHOLM, R.M. (1969), Teoria do conhecimento, trad. A. Cabral, Zahar, Rio de Janeiro (orig.: 1966). Nesta tradução, porém, quando se lê “h está certo”, deve-se entender “é o caso que h”. Detalhes do debate epistemológico podem ser obtidos de: DANCY, J. & SOSA, E. (orgs.) (1992), A companion to epistemology, Blackwell, Oxford, verbetes “knowledge and belief”, “propositional knowledge”, “Gettier problem”, etc. 6 TCFC I (2022) Cap. II – Definição de Conhecimento Em terceiro lugar, seria preciso discutir o que significa uma opinião ser “justificada” ou “acompanhada de razão”. Este ponto é bastante discutido por Platão, e o Teeteto termina de maneira “aporética”, sem chegar a uma conclusão sobre o que é conhecimento. Este ponto é o mais discutido pelos autores modernos: no que consiste a “evidência” em favor de uma opinião? Na ciência, um peso grande da evidência advém da observação, mas em outras formas de conhecimento, como o matemático, o critério de justificação não passa pela observação empírica. Não adentraremos aqui esta delicada questão epistemológica, mas estudaremos em nosso curso como o conhecimento científico é justificado. A definição tripartida do conhecimento passou a ser alvo de críticas a partir de contra- exemplos formulados pelo estadunidense Edmund Gettier em 1963.8 Uma ilustração de tal tipo de contraexemplo seria o seguinte: “Alguém nesta sala de aula possui um automóvel da marca Gurgel”. Tenho esta opinião porque o aluno Diego me apresentou um certificado de registro atualizado de um Gurgel Tocantins em seu nome. Acontece, porém, que Diego estava mentindo para mim, e forjou o documento porque é um nacionalista convicto e sempre sonhou em ter um carro genuinamente brasileiro! Mesmo assim, o enunciado em questão é verdadeiro, porque há uma aluna na classe, Sueli, que de fato possui um Gurgel Carajás! Está claro que minha opinião não constituía conhecimento, mas era, sem dúvida, uma crença verdadeira e justificada. 2. Duas Concepções de Verdade: Correspondencial e Praticalista Um dos pontos mais polêmicos em discussões epistemológicas é a concepção adotada para o conceito de verdade. Antes de começar, devemos salientar que o termo “verdade” é carregado de valoração positiva. Assim, artistas falam de uma “verdade estética”, mas esta é distinta da verdade “conceitual”, que nos interessa aqui. Geralmente as pessoas querem estar do lado da verdade, então a discussão sobre a definição de verdade pode se tornar acirrada. Há várias concepções ou definições de verdade (no sentido de “verdade conceitual”), mas há duas que iremos priorizar em nosso curso: a noção de “verdade por correspondência” e a noção pragmática “praticalista” de verdade.9 Antes de apresentarmos algumas das concepções mais defendidas, é preciso distinguir entre uma definição de verdade, que envolve o significado do termo “verdadeiro”, e um critério de verdade, ou seja, um critério que fornece um teste para estabelecer se uma proposição é verdadeira ou falsa. Bertrand Russell (1908) acusou os pragmatistas de terem confundido a definição de verdade com o critério de verdade. 1) Concepção de verdade por correspondência. Segundo esta definição, a verdade é uma adequação entre intelecto e coisas (Tomás de Aquino), uma relação entre um enunciado teórico (linguístico) e uma realidade. Nas já citadas palavras de Aristóteles: “Dizer do que é que ele é, ou do que não é que ele não é, é verdadeiro” (Metafísica IV, 7, 1011 b 26). Uma opinião é verdadeira se e somente se ela “corresponder” a um fato real do mundo. No séc. XX, essa concepção foi articulada por G.E. Moore e Bertrand Russell, em torno de 1910, e aparece no Tractatus de Ludwig Wittgenstein (1922), para quem proposições (enunciados) possuem uma estrutura que é idêntica à estrutura dos fatos: “Proposições podem ser ou verdadeiras ou falsas 8 GETTIER, E. (2013), “Conhecimento é crença verdadeira justificada?”, trad. A.N. Pontes, Perspectiva Filosófica (Recife), v. 1, n. 39, p. 124-27 (orig.: 1963). 9 Seguimos aqui a discussão de SUSAN HAACK (2002), Filosofia das lógicas, trad. C.A. Mortari & L.H.A. Dutra, Ed. Unesp, São Paulo (orig.: 1978), cap. 7. Em português, outro livro é: KIRKHAM, R.L. (2003), Teorias da verdade: uma introdução crítica, trad. A. Zir, Ed. Unisinos, São Leopoldo (orig. 1992). Consultamos também: GLANZBERG, M. (2013), “Truth”, Stanford Encyclopedia of Philosophy, online. 7 TCFC I (2022) Cap. II – Definição de Conhecimento apenas por serem retratos da realidade” (§ 4.06). Já para Austin (1950), a relação de correspondência seria uma relação puramente convencional entre as palavras e o mundo. Quando Aristóteles (seção V.2) anunciou que “a lampreia abandonou seus ovos”, pode- se estabelecer uma correspondência entre os termos “lampreia” e “ovos” e um certo animal real e ovos reais, e uma correspondência entre o verbo “abandonar” e uma determinada ação ou comportamento do peixe. O enunciado é verdadeiro se, na realidade, a lampreia e os ovos em questão existirem, e se a primeira abandonou a segunda. Nesse sentido, há uma correspondência entre o enunciado e o fato real, e dizemos que o enunciado é verdadeiro. É esta concepção de verdade que é adotada pelo realismo científico (que veremos na seção VIII.4). Vários pontos desta concepção são atacados pelas outras visões. O que exatamente seria a relação de correspondência? Não se cairia em circularidade ao dizer que “é verdade que há uma correspondência que define a veracidade dessa proposição”? Qual o critério de aceitação de uma verdade relacionada a um enunciado que se refere a uma realidade não-observável? (Ou seja, é legítimo falar em uma realidade não-observável?) Apesar desses problemas, é importante partirmos desta concepção e entendê-la, pois ela se aproxima do uso cotidiano e permite formular questões filosóficas que concepções mais restritivas de verdade (como a praticalista) não permitiriam. Segundo a concepção correspondencial, é preciso distinguir entre uma relação de verdade, que existe por exemplo entre o enunciado “a lampreia abandonou seus ovos” e a ação real da lampreia em relação aos ovos, e um critério de aceitação de verdade, ou seja, um critério que forneça um teste para estabelecer se uma proposição é verdadeira ou falsa. 10 Mesmo que fosse impossível determinar se a lampreia fêmea abandona seus ovos para que o macho tome conta (ou seja, se não houvesse um critério para aceitar ou testar a verdade), mesmo assim haveria (segundo a presente concepção) uma relação entre o enunciado e a realidade, relação esta que pode ser de correspondência (no caso de uma proposição verdadeira) ou não (no caso de sua falsidade). Trataremos agora de uma posição que é englobada no campo da chamada “concepção pragmática de verdade”, o “praticalismo” de William James, que é bem diferente do “pragmaticismo” de Charles Peirce (esta veremos na seção seguinte). Podemos também mencionar a concepção de Hans Vaihinger, na Filosofia do como se (1911), que é considerada pragmatista, mas sua concepção de verdade é correspondencial: dado que não temos acesso à realidade última do mundo, agimos “como se” as nossas teorias correspondessem ao mundo. 2) O praticalismo de William James (1907) defende que o significado de uma proposição é dado pelas suas consequências práticas; assim, uma crença é considerada verdadeira se ela for verificável, ou se ela for útil. Uma proposição inverificável, como “antes de uma observação, um elétron é uma entidade espalhada no espaço” (sendo que todos os elétrons observados são pontuais), é considerada sem sentido, e não deve ser chamada de verdadeira. No caso do praticalismo, o critério de aceitação de verdade se confunde com a própria relação de verdade: não se pode aceitar a veracidade de uma proposição que não se submeta ao critério de aceitação, que é a possibilidade de ser verificada ou testada. Para o instrumentalismo de John Dewey (1938), o termo “verdade” deveria ser substituído por um termo menos carregado emotivamente, como o de “assertabilidade justificada” (warranted assertability). Fica claro que o praticalismo não separa verdade de justificação, como é feito na definição tripartida de conhecimento. 10 RUSSELL, B. (1910), “William James’s conception of truth”, do seu livro Philosophical essays, Cambridge U. Press, pp. 127-49 (original de 1908, intitulado “Transatlantic truth”). Online: http://bertrandrussellsocietylibrary.org/br-pe/br-pe-ch5.html A citação anterior é de WITTGENSTEIN, L. (1994), Tractatus logico-philosophicus, 2a ed., trad. L.H.Lopes dos Santos, EDUSP, São Paulo (orig. em alemão: 1922). 8 TCFC I (2022) Cap. II – Definição de Conhecimento Ao contrário da posição do item (1), as posições pragmáticas não veem a verdade como uma relação entre linguagem e realidade, mas como um conjunto de práticas ou condutas que levam a pessoa (na medida do possível) a evitar a mentira ou o erro.11 3. Outras Concepções de Verdade Para completar a discussão da seção anterior, apresentaremos aqui mais quatro concepções de verdade, mas a leitura desta seção é optativa. 3) Concepção relativista de verdade. Trata-se da visão de que a verdade é uma construção cultural ou social, sendo portanto relativa a uma determinada cultura, e que pode variar de época para época, mesmo no caso das ciências naturais. Bruno Latour utilizou a concepção relativista ao argumentar que seria incorreto atribuir a morte do faraó Ramsés II à “tuberculose”, pois esta categoria foi cunhada apenas no séc. XIX. A concepção relativista foi defendida por Giambattista Vico (1710), com seu lema verum esse ipsum factum (a verdade é ela mesma fato, ou seja, é ela mesma construída). Para Friedrich Nietzsche (1873), a verdade seria “um batalhão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos”, construída para fins práticos. Michel Foucault (1969) retomou a noção de que não há fatos objetivos ou processos de verificação objetivos, e de que o que é considerado um “fato” é uma construção humana imersa nas relações de poder do indivíduo ou grupo social. O que é geralmente considerado “verdade” é o discurso ou ideologia dos grupos que detêm o poder. Mas outros grupos terão a sua verdade, e as mutações dos significados serão constantes, dado que os significados linguísticos são arbitrários e mutáveis. Qualquer discurso pode ser “desconstruído”, expondo as raízes de sua origem histórica e social. Esta concepção relativista, ou descontrucionista, foi incorporada a partir da década de 1980 pelo chamado “pós-modernismo”, como na concepção de Jean Baudrillard (1991) de que muito do que consideramos “verdade” em nossa cultura é na verdade “simulacro”, ou seja, uma pretensa cópia da realidade, quando na verdade não existiria a realidade pretensamente copiada, mas apenas a cópia. Em filosofia da ciência, o relativismo é defendido por exemplo por Paul Feyerabend.12 A posição do relativismo é próxima da do praticalismo (item 2 da seção anterior), mas o relativismo não valoriza o critério de aceitação por verificabilidade, defendendo que cada cultura estabelece seus próprios critérios sobre o que é verdade ou não, mesmo que os enunciados verdadeiros se refiram a cosmogonias ou a deuses inobserváveis. 4) O pragmaticismo de Charles Peirce (1877) define a verdade de maneira mais idealizada do que o praticalismo, como “o resultado final da investigação”, o que no caso da ciência seria o resultado final a ser obtido no futuro. Se porventura a ciência não atingir este grau final de consenso, por exemplo devido a um grande cataclisma, mesmo assim esse limite 11 Um breve introdução ao pragmatismo é: HAACK, S. (2002), “Pragmatismo”, in Bunnin, N. & Tsui-James, E.P. (orgs.), Compêndio de filosofia, trad. L.P. Rouanet, Loyola, São Paulo, pp. 641-57 (orig. em inglês: 1999; ver The Blackwell companion to philosophy, 2nd ed., 2003, pp. 774-89). JAMES, W. (1979), Pragmatismo, Coleção Os Pensadores, trad. J. Caetano da Silva, Abril Cultural, São Paulo (orig. em inglês: 1907). DEWEY, J. (1980), Lógica: a teoria da investigação, Coleção Os Pensadores, trad. M.O.R. Paes Leme, Abril Cultural, São Paulo (orig. em inglês: 1938). 12 LATOUR, B. (2000), “On the partial existence of existing and nonexisting objects”, in DASTON, L. (org.). Biographies of scientific objects, University of Chicago Press, Chicago, p. 247-69. VICO, G. (1999), A ciência nova, trad. M. Lucchesi, Record, Rio de Janeiro (orig. em italiano: 1725). NIETZSCHE, F.W. (1999), “Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral”, trad. R.R. Torres Filho, in Coleção Os Pensadores, Nova Cultural, São Paulo p. 51-60 (orig. em alemão: 1873). FOUCAULT, M. (2008), A arqueologia do saber, trad. L.F. Baeta Neves, Forense Universitária, Rio de Janeiro (orig. em francês: 1969). BAUDRILLARD, J. (1991), Simulacros e simulação, trad. M.J.C. Pereira, Relógio d’Água, Lisboa (orig. em francês: 1981). FEYERABEND, P. (2010), “Notas sobre o relativismo”, em seu Adeus à razão, trad. V, Joscelyne, Ed. Unesp, São Paulo (original em inglês: 1987). 9 TCFC I (2022) Cap. II – Definição de Conhecimento ideal é o que é tomado como verdade. Semelhante concepção foi adotada pela teoria do consenso de Jürgen Habermas (1976), para quem a verdade é vista como o consenso atingido em uma situação ideal de discurso. Essas posições fogem do praticalismo, pois propõem um critério idealizado de aceitação de verdade, um critério que na prática pode nunca ser atingido. 5) Concepção de verdade por coerência. Segundo esta visão, uma opinião é verdadeira se e somente se ela é parte de um sistema coerente de opiniões. Esta é a concepção utilizada por visões idealistas, para as quais o que chamamos de “realidade” é fruto de uma mente. Ela também é utilizada na matemática, no sentido em que a “verdade” de um teorema não depende da correspondência com um mundo, mas apenas da consistência da derivação a partir de postulados. Um problema enfrentado pela concepção coerentista é a acepção exata de “coerência”: ela não poderia ser apenas a consistência interna do sistema, pois um conto de fadas pode ser consistente, e não é considerado verdadeiro. 6) Concepções deflacionárias de verdade. Em oposição às concepções “substantivas” descritas acima, especialmente (1), (4) e (5), alguns autores salientam que a noção de verdade não é muito importante, ou é redundante, ou então propõem definições que são neutras em relação às concepções substantivas. Dizer que uma proposição é verdadeira, como em “é verdade que a neve é branca”, não diz nada a mais do que dizer que “a neve é branca”. Paul Horwich (1990) não define explicitamente o que é verdade, mas define o que é para alguém ter uma concepção de verdade. Outra abordagem que alguns autores consideram deflacionária (mas nem todos) é a chamada “concepção semântica de verdade”, proposta por Alfred Tarski em 1931, no contexto da lógica simbólica. Para evitar os paradoxos lógicos ensejados por enunciados como “Este enunciado é falso”, propôs que toda asserção de verdade se dê na metalinguagem, e não na linguagem objeto. A metalinguagem é a linguagem que se refere à linguagem objeto. Assim, se afirmo que “‘A neve é branca’ é uma proposição verdadeira”, estou na metalinguagem, e ela é uma afirmação adequada se e somente se a neve for branca (na linguagem objeto). Tarski salientou que sua definição é “epistemologicamente neutra” em relação às outras concepções de verdade.13 4. Definição Prototípica de Ciência Se a ciência for considerada uma forma de “conhecimento”, no sentido da definição tripartida, então mesmo a física newtoniana não poderia ser considerada ciência, já que ela é falsa. Uma saída seria trabalhar com uma noção de “verdade aproximada”. Outra alternativa é definir conhecimento como uma opinião que traz vantagens pragmáticas, ou seja, que é verdadeira segundo a definição praticalista, o que não impede que se avalie os enunciados científicos em termos de sua verdade por correspondência. Mesmo sem nos preocuparmos com uma definição estrita de conhecimento, tolerando uma definição mais intuitiva, fica claro que há formas de conhecimento que não são científicas, como o chamado “conhecimento pessoal”. Sei que quando a galinha cacareja, ela está botando ovo, mas tal conhecimento não é considerado científico. Por outro lado, se colocarmos um certo “fator de crescimento” no bico de um embrião de galinha, ela nascerá com dentes, revelando que seus antepassados (dinossauros) tinham dentes e que essa capacidade genética encontra-se 13 PEIRCE, C.S. (1901), “Logical”, uma seção do verbete “Truth and falsity and error”, in Baldwin, J.M. (org.), Dictionary of philosophy and psychology, v. 2, Macmillan, New York, pp. 716-20, citação da p. 718 (reimpresso em Collected Papers 5.565). HABERMAS, J. (1998), “On the pragmatics of communication”, trad. T. McCarthy, in Maeve, C. (org.), On the pragmatics of communication, MIT Press, Cambridge (MA), pp. 21-103 (orig. em alemão: 1976). HORWICH, P. (1990), Truth, Clarendon, Oxford. TARSKI, A. (2007), “A concepção semântica da verdade e os fundamentos da semântica”, in Mortari, C.A. & Dutra, L.H.A. (orgs.), A concepção semântica da verdade, Ed. Unesp, São Paulo, pp. 157-202 (orig. em inglês: 1943). 10 TCFC I (2022) Cap. II – Definição de Conhecimento latente nos pássaros14. Tal conhecimento é claramente científico, pois ele não é óbvio nem imediato, e foi o resultado de muito trabalho metódico e da concatenação de observações e teorias. Assim, de maneira simplificada, podemos dizer que a ciência é uma forma de conhecimento não-imediata, e que por isso requer um método de investigação específico, mais sofisticado do que as simples observações e inferências que empregamos em nosso dia-a-dia. Além disso, o conhecimento científico que é obtido por um pesquisador deve ser verificável por outras pessoas, os experimentos devem ser reprodutíveis, de maneira que a ciência possa ser considerada “objetiva”. Não precisamos nos preocupar com uma definição exata, “conjuntista”, de ciência, que estipularia precisamente as características necessárias e suficientes para que uma atividade seja considerada científica (definição associada a nomes como Aristóteles e Frege). Pelo contrário, podemos nos inspirar em um estilo de definição que podemos chamar de prototípico (inspirado na “semelhança de família” de Wittgenstein e no trabalho da psicóloga Eleonor Rosch, e descrito também pela lógica difusa ou fuzzy). Pesquisas em psicologia indicam que nossa mente não trabalha com conceitos definidos de maneira exata, mas sim com “protótipos”15. Temos um protótipo do que seja “cadeira”, um objeto que satisfaz um conjunto de propriedades: tem quatro pernas, um assento, um encosto, tem um tamanho compatível com o ser humano, pode ser usado para sentar, foi feito com a finalidade de que um ser humano nele sentasse, é rígido, etc. Se retirarmos uma dessas propriedades, continua sendo, claramente, “cadeira”. Mas se retirarmos duas, três, começaremos a ficar em dúvida. A definição prototípica incorpora a existência de zonas de transição entre diferentes protótipos, e não procura estipular de maneira arbitrária e convencional (como faria tipicamente uma “filosofia analítica” de inspiração conjuntista) uma linha de demarcação clara. Falando em galináceos, poderíamos relembrar o infame “problema do ovo e da galinha”: quem veio primeiro? Uma estratégia conjuntista definiria de maneira exata o que seria um Gallus gallus, por exemplo a partir de uma especificação detalhada das sequências de DNA que caracterizariam uma galinha, e das sequências que não a caracterizam. Desta forma, na linhagem das galinhas, teria havido uma primeira galinha que nasceu de um ovo que foi posto por uma não-galinha: assim, o ovo (de galinha) teria vindo antes da primeira galinha. Por outro lado, segundo uma definição prototípica, o problema não teria solução, pois a transição da proto-galinha para a galinha seria suave, sem cortes. Busquemos então, para finalizar essa discussão, levantar uma lista de características que marcaram o surgimento da ciência, segundo o relato feito até aqui. Faremos isso considerando que, para estudarmos a ciência, devemos dividir suas características em três grandes classes: teoria, experimento e social. Assim, a ciência é uma forma de teorização que se baseia na experiência e que é sustentada por uma organização social. 14 Maiores detalhes em: COHEN, P., “Monsters in our midst”, New Scientist 2300, 21 julho 2001, pp. 30-33. Posteriormente, conseguiu-se um mutante de galinha em que nascem dentes: HARRIS, M.P.; HASSO, S.M.; FERGUSON, M.W.J. & FALLON, J.F. (2006), “The development of archosaurian first-generation teeth in a chicken mutant”, Current Biology 16: 371-77. Uma discussão didática sobre esse tipo de atavismo em genética encontra- se no cap. 14 do livro de GOULD, S.J. (1996), A galinha e seus dentes, Paz e Terra, Rio de Janeiro (orig. 1983). 15 LAKOFF, G. (1987), Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind, U. of Chicago Press. Em português, ver BARBOSA DE OLIVEIRA, M. (1999), Da ciência cognitiva à dialética, Discurso Editorial, São Paulo, caps. 7-9. Uma filosofia da ciência baseada na definição prototípica foi desenvolvida por: IRZIK, G. & NOLA, R. (2011), “A family resemblance approach to the nature of science for science education”, Science & Education 20, pp. 591-607. 11 TCFC I (2022) Cap. II – Definição de Conhecimento Dos traços práticos (experimentais) mencionados até aqui, podemos desatacar: – a observação; – a construção de artefatos (instrumentos simples); – a realização de experimentos (o que envolve um método). Dos traços teóricos, encontramos: – o fornecimento de explicações, e especialmente as explicações naturalistas (sem o envolvimento de deuses); – o registro sistemático de observações, entre os babilônios (o que constitui um método); – a realização de previsões, na astonomia (o que requer um método); – a elaboração de leis a partir da linguagem matemática (aritmética e geometria); – a busca de generalizações, a partir de princípios, o que se vê claramente com os pré-socraticos (por exemplo: “tudo é água”). Por fim, dentre os traços sociais, mencionamos: – a prática do debate público; – a difusão da educação; – a importância da patronagem (financiamento da pesquisa). 12

Use Quizgecko on...
Browser
Browser