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GENÊRO, TERRITORIALIDADE E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: A VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES INDÍGENAS NO BRASIL Rogers Alexander Boff1 Valéria...

GENÊRO, TERRITORIALIDADE E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: A VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES INDÍGENAS NO BRASIL Rogers Alexander Boff1 Valéria Koch Barbosa2 INTRODUÇÃO Segundo Hall (2006, p. 9), mudanças estruturais estão transformando as sociedades pós-modernas, as quais são caracterizadas, justamente, por alterações constantes, rápidas e permanentes, contexto esse que está “[...] fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações, como indivíduos sociais.” Consequentemente, tem-se o deslocamento de processos e estruturas centrais da sociedade, estremecendo a base referencial dos indi- víduos e retirando, desse modo, as estabilidades no mundo social. Nas sociedades democráticas, novos valores surgiram para acompanhar o desenvol- vimento humano e promover a liberdade democrática e a igualdade de gênero, transfor- mando o tecido social em um espaço mais humanístico e com ênfase na emancipação do ser humano. Nesse processo, que é acompanhado pela tendência global da democracia, sobressai a preocupação com a igualdade de gênero (INGLEHART; WELZEL, 2009). Desse modo, é possível afirmar que, em uma perspectiva global, as questões culturais de gênero possuem uma dimensão central, pois estão atreladas tanto às relações sociais quanto à vida das pessoas, abarcando os aspectos da subjetividade de cada ser e influenciando na construção/desconstrução das identidades (CONNEL; PERARSE, 2015). É necessário deixar claro que a mulher é a maior vítima da violência de gênero e é por causa disso que, muitas vezes, são usadas como sinônimas as expressões violência contra a mulher e violência de gênero, todavia, há especificidades em relação a tais conceitos. Violência de gênero é um conceito mais amplo e abrange não apenas as mulheres, já que engloba crianças e adolescentes “[...] objetos da violência masculina, que, no Brasil, é constitutiva das relações de gênero. A violência de gênero produz-se e reproduz-se nas relações de poder, onde se entrelaçam as categorias de gênero, raça/classe e etnia.” Para Araújo, Martins e Santos (2004, p. 18), trata-se de uma forma particular de violência “[...] mediatizada pela ordem patriarcal que dá aos homens o direito de dominar e controlar suas mulheres, podendo para isso usar a violência.” Em consequência disso, independentemente da cultura na qual estão inseridas, as mulheres, ao longo da história, têm enfrentado a violência de gênero. Trata-se de um 1 Doutorando em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade Feevale. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Docente do curso de Direito da Universidade Feevale. Doutora e Mestre em Qualidade Ambiental pela Universidade Feevale. Endereço eletrônico: [email protected] 72 | MULHERES E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS problema complexo e multidimensional, que produz consequências na vida de cada uma delas (PORTER; LÓPEZ-ÂNGULO, 2022). No Brasil, mais recentemente, essa proble- mática ganhou notoriedade e repercussão em decorrência da expansão do garimpo ilegal nas terras indígenas, aumentando os conflitos socioambientais e os casos de violência contra as mulheres (ANTUNES, 2022). É mister referir que a diferença cultural dos povos indígenas brasileiros remete a um multiculturalismo do tecido social, tendo em vista que cada um desses povos possui características inerentes e especificidades, inclusive, no que tange à relação que tem com o meio ambiente e o território. A propósito, cabe lembrar que o território é o lugar no qual os povos indígenas afirmam a sua identidade e se sentem valorizados em suas diferenças (ARBOS, 2015). Trata-se de espaço geográfico que propicia a formação de identidades, territorialidades e dinâmicas que se materializam de formas diferentes e, no caso dos indígenas, há diversidade de territórios e territorialidades (SENRA, 2021). Sob essa perspectiva, é o sentimento de pertencimento a determinado território e grupo cultural que dá significado à vida dos indígenas, os quais lutam diariamente por respeito e para que a sua cultura permaneça viva (ARBOS, 2015). Consoante as lições de Hall (2006), as identidades culturais decorrem de aspectos que surgem a partir da noção pessoal de “pertencimento” a culturas nacionais, étnicas, raciais, entre outras. Os povos indígenas são reconhecidos pela sua história e pelos conhecimentos que legaram à humanidade, em especial, no que concerne aos processos de adoecimento e cura. Sempre se mantiveram integrados ao ambiente, à utilização de recursos oriundos da natureza e à sabedoria dos ancestrais (OLIVEIRA et al., 2021). Levando em conta as suas idiossincrasias, torna-se complexo abordar a temática da violência de gênero contra mulheres indígenas, pois inúmeros fatores devem ser considerados e analisados acerca da realidade na qual cada uma dessas mulheres está inserida, como a cultura, os costumes e as crenças dos povos indígenas (UNV, 2017). À vista disso, este estudo exploratório, assentado no método dedutivo e na pesquisa bibliográfica, tem como objetivo apontar e analisar algumas das evidências sobre o aumento da violência contra mulheres indígenas e os conflitos socioambientais instaurados com a exploração do garimpo no território desses povos. Para tanto, inicia-se com uma abordagem sucinta acerca da causa dos conflitos socioambientais e, na sequência, trata-se da desigualdade de gênero e da violência contra mulheres indígenas, para, então, tecer algumas considerações a título de reflexão. INVASÃO E EXPLORAÇÃO EM TERRITÓRIOS INDÍGENAS: A CAUSA DOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS GENÊRO, TERRITORIALIDADE E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: A VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES INDÍGENAS NO BRASIL | 73 Rogers Alexander Boff e Valéria Koch Barbosa Um estudo levado a cabo pela Fundação Osvaldo Cruz e pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional apontou que, no Brasil, os conflitos socioambientais são predominantes em áreas rurais, especialmente em decorrência de atividades produtivas relacionadas à mineração (RAMMÊ, 2012), sendo possível incluir o garimpo, que também visa à exploração de riquezas, embora se realize manualmente e em menores volumes. Essas atividades repercutem tanto nos territórios quanto no modo de vida das populações, podendo gerar situações de injustiça ambiental, que engloba condições de existência coletiva em comunidades nas quais a maior carga dos danos ambientais provenientes do desenvolvimento recai sobre grupos sociais vulneráveis, a exemplo de populações de baixa renda, parcelas marginalizadas e segmentos étnicos (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010), como é o caso das comunidades indígenas. Nessa senda, enfatiza-se que a problemática em torno tanto de invasões quanto de exploração em terras indígenas, no Brasil, é de longa data, todavia, o ano de 2021 foi marcado pelo acirramento da violência contra os povos originários3, acompanhado por uma onda crescente e profunda de violação de direitos devido às invasões e aos ataques aos seus territórios (CIMI, 2021). Silva (2018, p. 494), ao realizar uma análise do processo histórico à luz das lutas e conquistas de direitos dos povos indígenas sobre a terra dentro de uma sociabilidade capitalista, assevera: As populações originais nativas foram engolidas (e dizimadas) durante todo o período colonial pela imposição de um novo sistema de vida. A própria construção de uma identidade nacional, de um poder estatal na realidade brasileira, coloca os indígenas numa condição radicalmente periférica, subalterna, para obedecer e se enquadrar efetivamente no sistema de normas que se refere à sua própria vida. Corroborando o entendimento supramencionado, Santos (2021, p. 114) ressalta que: “Os povos indígenas foram historicamente as primeiras vítimas de contágio por estranhos e da guerra biológica da idade moderna.” Esse histórico repleto de discrimi- nações, vulnerabilidade e eliminação refletiu recentemente na forma com que os povos originários foram afetados pela pandemia da COVID-19, pois, como ocorreu no passado, foram novamente infectados por múltiplos invasores estranho à comunidade, os quais agora possuem novas versões, ou seja, são “[...] garimpeiros, tomadores ilegais de terra, desmatadores, pregadores, comerciantes, e mesmo pessoal médico. E mais uma vez, as possibilidades de proteção eram mínimas.” Nesse passo, quando se verificam as medidas governamentais adotadas nos últimos anos, como a paralisação das demarcações de terras indígenas, cominada com a omissão 3 Segundo Silva (2018), os povos originários são as populações que primeiramente habitaram determinado território, que, no Brasil, foram os indígenas. 74 | MULHERES E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS e a despreocupação do governo quanto à proteção de terras já demarcadas, constata-se que isso representou, sob um olhar da política indigenista e do ponto de vista dos povos, o agravamento de um cenário que já era hostil e estarrecedor (CIMI, 2021). Ao longo do tempo, foram várias as tentativas para supressão e fragilização dos direitos dos povos originários, e tal situação pode ser exemplificada com projetos de lei em pauta no Congresso Nacional, que, para além das pressões como o avanço do garimpo ilegal, a extração de madeira e a expansão do agronegócio, objetivam “[...] a paralisação das demarcações de territórios indígenas (PL 490/2007), para a autorização da mineração e mercadificação dos territórios (PL 191/2020), para facilitação da grilagem e roubo de terras (PL 2633/2020) [...]” (CHAVES, 2021, p. 54). Segundo o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2021 (CIMI, 2021), o descaso do Governo Federal com o território dos povos originários fez com que, pelo sexto ano consecutivo, aumentassem as invasões possessórias, os danos ao patrimônio e a exploração ilegal de recursos. Assim, considerando os fatos do ano de 2021, verifica-se “[...] a ocorrência de 305 casos do tipo, que atingiram pelo menos 226 Terras Indígenas (TIs) em 22 estados do país.” Tais números são superiores ao ano de 2020, em que foram registrados 263 casos de invasão, que afetaram 201 terras em 19 estados. Ressalta-se que os números do ano de 2021 são quase três vezes maiores que os registrados no ano de 2018, em que foi contabilizado um total de 109 casos (CIMI, 2021, p. 8). Com o intuito de ilustrar a violência perpetrada contra os povos indígenas, na sequência, apresenta-se uma síntese do Relatório supramencionado acerca da violência contra o patrimônio com base em dados do ano de 2021. Fonte: Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2021 (CIMI, 2021, p. 278). GENÊRO, TERRITORIALIDADE E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: A VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES INDÍGENAS NO BRASIL | 75 Rogers Alexander Boff e Valéria Koch Barbosa Analisando-se as informações, nota-se que a omissão e a morosidade na regula- mentação de terras tiveram o maior número no estado do Amazonas (223), seguido por Mato Grosso do Sul (152) e Rio Grande do Sul (78). No que diz respeito aos conflitos contemplando direitos territoriais, sobressaíram-se os estados do Rio Grande do Sul (27), Mato Grosso (16) e Pará (13). Entre as 305 situações envolvendo invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio, lideraram os estados do Amazonas (43), Pará (42) e Acre (33). Do total de 1.294 ocorrências acerca dos aspectos analisados, verifica-se que o maior número se concentrou no estado do Amazonas (217), seguido por Mato Grosso (172) e Rio Grande do Sul (114) (CIMI, 2021). Os conflitos socioambientais que se instauram nesse contexto geram crises variadas. Nesse sentido, Oliveira (2021) faz uma síntese relacionada às principais crises que assolam os territórios de povos originários, elencando as seguintes: (I) crise econômica, com o aumento da inflação e a consequente penalização das pessoas mais pobres; (II) crise social, devido ao aumento do desemprego, à precarização das condições de trabalho, à insegurança alimentar e ao aumento dos preços da cesta básica; (III) crise sanitária, com alto índice de contaminação e mortes em decorrência da pandemia de Covid-19, além de ausência de política para o combate à pandemia; (IV) crise energética, com aumento do custo da energia, registro de ‘apagões’ em várias regiões e acionamento de usinas termoelétricas; (V) crise ambiental, provocada pelo acentuado desmatamento na região amazônica, por queimadas intencionais e descontroladas e pelo desmonte dos órgãos de fiscalização e controle, o que facilitou as invasões nos territórios; e (VI) crise política, com ameaça ao Estado Democrático de Direito em decorrência de manobras do governo (2019-2022) voltadas à tentativa de retorno de um regime autoritário. Especificamente no que diz respeito aos direitos territoriais, Rangel e Liebgott (2021) afirmam que, no Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2021, constam 118 ocorrências em vários estados, situação agravada por conflitos rela- cionados a arrendamentos de terras indígenas para a plantação de sementes transgênicas e para pastagens, práticas essas que, inclusive, receberam apoio de agentes da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Os referidos autores também destacam a Instrução Nor- mativa nº 09/2020, da FUNAI, liberando a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas, o que possibilitou que 239 mil hectares de fazendas em áreas indígenas fossem certificadas. A esse contexto, soma-se o avanço do garimpo e da mineração, sublinhando-se que, somente no ano de 2021, 44 territórios indígenas foram invadidos por garimpeiros, cujas atividades causam diversos danos ao meio ambiente e aos seres vivos, entre eles, a destruição de ecossistemas e o comprometimento da qualidade de vida das comunidades em virtude da contaminação do solo e da água com substâncias tóxicas, como é o caso do 76 | MULHERES E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS mercúrio, que é amplamente utilizado nessas atividades (RANGEL; LIEBGOTT, 2021). Em sua análise, Oliveira (2021, p. 14) faz alusão a várias situações de violência empreendidas contra os povos indígenas e acrescenta a ocorrência de assassinatos e ameaças de todo tipo, além de falta de assistência às comunidades. De posse de várias informações que deixam explícita a violência, o autor assevera que “[...] é visível que existe uma crise, mas é fato que a crise na verdade é um projeto. Esse projeto é sem povo e sem os territórios indígenas e das populações tradicionais.” Em síntese, as situações de violência contra a pessoa incluíram abuso de poder, ameaça de morte e de outros tipos, homicídios (e tentativas), lesões corporais, racismo, discriminação étnica e violência sexual. Foi registrado um total de 355 casos de violência em 2021, destacando-se os maiores números para o estado do Mato Grosso do Sul (78), seguido pelo Amazonas (59) e por Roraima (49). Em relação aos assassinatos – que não pouparam também a vida de crianças e adolescentes – o maior número ocorreu nos estados do Amazonas (38), do Mato Grosso do Sul (35) e de Roraima (32). Esses três estados já haviam registrado o maior número de assassinatos nos anos de 2019 e 2020. Por outro lado, a menor quantidade de ocorrências acerca da violência contra a pessoa foi nos estados de Alagoas, Amapá e Espírito Santo, que tiveram um registro envolvendo abuso de poder, assassinato e violência sexual (CIMI, 2021). A seguir, pode-se visualizar os números correspondentes a cada estado em que houve ocorrências. GENÊRO, TERRITORIALIDADE E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: A VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES INDÍGENAS NO BRASIL | 77 Rogers Alexander Boff e Valéria Koch Barbosa Fonte: Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2021 (CIMI, 2021, p. 278). Não se pode omitir a violência decorrente do Poder Público, bem como as mortes por Covid-19, as quais também tiveram relação com as iniciativas do Estado. A primeira teve um aumento em 2021 se comparada com os números do ano de 2020. Já no que tange à pandemia de Covid-19, apesar de se tratar de um acontecimento inesperado, cuja impre- visibilidade justifica, de certa forma, a ausência de preparação, não há como negar que ficou evidenciado o descaso do Governo Federal com os povos originários (CIMI, 2021). A mortalidade infantil, abarcando crianças indígenas de zero a cinco anos de idade, correspondeu a 744 mortes, cabendo destacar que esse número não é preciso. Os estados que tiveram maior incidência de mortalidade infantil foram Amazonas (178), Roraima (149) e Mato Grosso (106). Por outro lado, é relevante mencionar o número de suicídios, os quais, muitas vezes, podem advir da insatisfação com a situação social e a dificuldade para assegurar a sobrevivência. Nesse sentido, em 2021, registraram-se 148 suicídios de indígenas, com ênfase aos estados do Amazonas (51), do Mato Grosso do Sul (35) e de Roraima (13) (CIMI, 2021). A desassistência por parte do Poder Público atingiu não apenas a área da saúde, mas 78 | MULHERES E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS também a educação, entre outras. No que se refere à saúde, foram 107 os casos, seguidos de outros 39 que resultaram em morte. No que diz respeito à educação, houve 28 ocor- rências. Importa referir que essas ocorrências, em sua grande maioria, se deram devido à falta de atendimento e equipes de saúde durante a pandemia de Covid-19, assim como pela falta de informação quanto à vacina para se imunizar contra o vírus SARS-CoV-2. Ademais, há relatos de diversos povos que sofreram com a negação de acesso à vacina, mesmo havendo determinação do Supremo Tribunal Federal de que todos os indígenas deveriam ter acesso prioritário a ela, independentemente do local em que residissem (CIMI, 2021). Todo esse quadro resultou na morte de 847 indígenas. No caso específico do território Yanomami, o garimpo ilegal foi, segundo Mondardo (2021), “[...] um dos principais vetores da propagação do COVID-19 nos indígenas [...].” Isso se deu tanto pelo contato quanto pela livre circulação de garimpeiros entre os garimpos e as cidades próximas, bem como pelo próprio ir e vir nas terras indígenas e no entorno das aldeias. A partir desse panorama, resta evidente “[...] a extrema vulnerabilidade dos povos indígenas e a histórica desatenção de que são vítimas” (SANTOS, 2021, p. 114), cujas violações afrontam a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que visa a assegurar aos indígenas os seus direitos, sejam eles individuais ou coletivos, com a finalidade de garantir o “[...] pleno desfrute de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o direito internacional dos direitos humanos” (ONU, 2008, s. p.). À vista disso, urge que o Poder Público crie medidas eficazes, além de uma fiscalização acirrada dentro dos territórios dos povos originários, para combater a invasão e a exploração das terras indígenas, minimizando os danos causados pelos conflitos socioambientais e, principalmente, para combater o garimpo ilegal, o qual, com a presença de homens de outras regiões do País e do mundo, fez com que crescesse o número de casos de violência, conforme se aborda na seção seguinte. A HISTÓRICA DESIGUALDADE DE GÊNERO E A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES INDÍGENAS Para se falar de gênero é preciso, de acordo com Boff (2004, p. 18), partir de um lugar específico de se estar no mundo, pois gênero é atravessado pela subjetividade de cada pessoa, abarcando a cultura, a história, as características biológicas, entre tantas outras particularidades que compõem cada ser. Isso porque, segundo o autor: [...] el género posee una función analítica semejante a la de clase social. Ambas categorías atraviesan las sociedades históricas, sacan a la luz los conflictos entre hombres y mujeres y definen formas de representar la realidad social y de intervenir en ella. GENÊRO, TERRITORIALIDADE E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: A VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES INDÍGENAS NO BRASIL | 79 Rogers Alexander Boff e Valéria Koch Barbosa A ideia de gênero, geralmente ainda articulada com sexo biológico e sexualidade, está relacionada a um modelo heteronormativo socialmente estabelecido e ancorado em apenas duas possibilidades, isto é, ser fêmea ou macho. Com base nisso, o que é aceito como normal é a atração e o relacionamento entre pessoas de gêneros diferentes, rejeitando-se outros gêneros e outras formas de se relacionar. Ademais, são impostas condutas conside- radas “típicas” para homens e para mulheres, comportamentos que devem ser seguidos e, inclusive, ditam-se regras acerca de como se espera que seus corpos se apresentem, como devem ser as relações interpessoais, o que implica dizer que há uma regulação sobre o modo de viver e expressar a sexualidade e os desejos corporais (PETRY; MEYER, 2011). Nessa esteira, Giffin (1994) afirma que o controle social atua diretamente sobre o corpo das mulheres e, como a família é considerada a principal instituição social que organiza as relações sexuais entre os gêneros, a identidade principal da mulher é a de mãe, cuja sexualidade é socialmente aceita somente para a reprodução de filhos. Não se pode pensar, todavia, que ser homem ou ser mulher são experiências predeter- minadas pela natureza, assim como também não se pode conceber como uma imposição que advém de normas sociais ou pressão de autoridades (CONNELL; PEARSE, 2015). Não são as características sexuais que constituem o feminino e o masculino, mas sim as formas como elas são representadas e/ou valorizadas em determinada sociedade e em momento histórico definido. E, para que se possa compreender as relações entre homens e mulheres na sociedade, é preciso ter um olhar para além do sexo biológico, ou seja, uma visão de tudo que é socialmente construído sobre a dicotomia dos sexos (LOURO, 1997). As pessoas se constroem como masculinas e femininas por vontade própria, no entanto, o que se constata é que os arranjos de gênero são, ao mesmo tempo, fontes de identidade e de injustiça (CONNELL; PEARSE, 2015). Como salientou Giffin (1994, p. 148), para que houvesse o desenvolvimento do conceito de gênero, operou-se “[...] uma desconstrução das categorias ‘sexo feminino/sexo masculino’, apontando a naturalização de aspectos sociais antes fundidos com os aspectos biológicos nestas duas categorias”. O tratamento desigual entre homens e mulheres é histórico e abrange vários âmbitos, pois há diferenças de posição social, diferenças em relação ao que é permitido ao homem e à mulher, entre outros aspectos que deixam clara a desigualdade (BIANCHINI, 2015). Isso se deve ao fato, segundo Bourdieu (2012), de o mundo social conceber o corpo como sendo uma realidade sexuada, composto por princípios sexualizantes, os quais estão enrai- zados em uma cultura arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres. Diante disso, Bourdieu (2012, p. 15) assevera que: Como estamos incluídos, como homem ou mulher, no próprio objeto que nos esforçamos por apreender, incorporamos, sob a forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação, as estruturas históricas da ordem masculina; arriscamo-nos, pois, a recorrer, para pensar a 80 | MULHERES E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS dominação masculina, a modos de pensamento que são eles próprios produto da dominação. Não podemos esperar sair deste círculo se não encontrarmos uma estratégia prática para efetivar uma objetivação do sujeito da objetivação científica. Nessa direção, analisando-se a realidade brasileira e, em especial, o seu arcabouço jurídico, percebe-se que, apesar de a Constituição de 1988 ter estabelecido que todos são iguais perante a lei, vedando distinções em razão de sexo, várias leis anteriores haviam sido criadas estabelecendo diferenças e estas continuam sendo uma realidade, já que a isonomia de fato não foi alcançada. Em uma sociedade machista, que atribui ao homem a supremacia do poder, ainda se constata a ocorrência de vários casos de violência contra a mulher, mesmo após tantas lutas e conquistas para dirimir esse problema. Essa violência “[...] está marcada por um traço de prevalecimento, o qual, por muito tempo, foi susten- tado, e legitimado, por tratamento jurídico que dava ao homem direitos e benefícios não extensíveis às mulheres.” Trata-se, portanto, de uma violência legitimada socialmente, na qual se incluem práticas discriminatórias que atribuem à mulher um papel inferior nas mais diversas atividades e que a colocam também em situação de inferioridade no que diz respeito a direitos e liberdades essenciais (BIANCHINI, 2015, p. 207). Esse fenômeno, que viola as normas universais de direitos humanos, acabou por se tornar, segundo Setenta e Miranda Lopes (2022, p. 1), parte estruturante das relações sociais, pois é sustentado “[...] por uma engrenagem composta de estruturas econômicas, sociais, políticas e culturais que reproduzem a desigualdade de gênero que está na base das violências praticadas contra as mulheres.” Em pesquisa realizada por Quintero e García (2021), foi ratificada a constatação de que existe um conjunto de práticas e relações desiguais entre o feminino e o masculino, restando claro que as mulheres ocupam um lugar de subordinação e de menor valor que os homens na sociedade, ou seja, existe uma estratificação social com base no gênero e nela os homens possuem uma situação privilegiada e gozam de prerrogativas que podem até mesmo afetar a saúde física e mental das pessoas, podendo, inclusive, resultar em morte de mulheres. Nesse norte, registra-se que muitas dessas mortes não são inscritas pelo Estado e, não raras vezes, são omitidas de documentos oficiais acerca da violência (MORAIS, 2022). No Brasil, segundo dados do relatório da pesquisa Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil, em sua terceira edição em 2021, a violência contra as mulheres é definida como hiperendêmica, ou seja, quando se compara essa violência de gênero a uma doença, nota-se que aquela avança e se alastra de tal maneira que toma proporções maiores do que uma epidemia (BUENO et al., 2021). Essa realidade de violência prati- cada contra mulheres não exclui as indígenas, pelo contrário, verifica-se que esse tipo de violência se consubstancia dentro e fora do contexto do território no qual estão inseridas GENÊRO, TERRITORIALIDADE E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: A VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES INDÍGENAS NO BRASIL | 81 Rogers Alexander Boff e Valéria Koch Barbosa (NARVÁEZ; JURADO, 2022). No estado do Mato Grosso do Sul, por exemplo, que é o segundo estado do Brasil com maior contingente populacional tanto de povos indígenas quanto de mulheres indígenas, constatou-se que das 30 vítimas de feminicídios registrados no estado em 2019, cinco delas eram mulheres indígenas (GOVERNO DO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL, 2023). Assim, falar desse tipo de violência requer que se reconheçam os elementos socio- culturais que, em interação com o gênero, produzem formas específicas de abuso, as quais reforçam a estrutura que autoriza tanto a violência quanto a invisibilidade. Ao mesmo tempo, é preciso ter presente que nem todas as mulheres vivem a violência da mesma maneira, uma vez que há diferentes e simultâneos sistemas de opressão, sendo necessário entender o contexto em que a violência opera (NARVÁEZ; JURADO, 2022). Sob esse enfoque, Wenczenovicz e Siqueira (2017, p. 10) asseveram que “As ações de violência acompanham a trajetória histórica das mulheres indígenas, já que desde o processo de ocupação e povoamento essas são expostas a processos coletivos de desumanização de toda ordem.” Soma-se a isso o fato de que as mulheres indígenas foram – e ainda são – “[...] submetidas a um processo de dupla-vitimização em suas próprias sociedades, vítimas das ações violentas de estranhos e pessoas de sua convivência [...]”, o que, com o passar dos anos, fez com que vissem a fila de agressores somente aumentar (WENCZENOVICZ; SIQUEIRA, 2017, p. 10). Essa realidade está estampada no último relatório realizado pela Hutukara Asso- ciação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana (2022, p.88), intitulado “Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na terra indígena Yanomani e proposta para com- batê-lo”, no qual se constatou que o crescimento do garimpo ilegal, além de aumentar os casos de violência contra as mulheres dessa comunidade, ocasionou, em decorrência de estupros, a transmissão de Doenças Sexualmente Transmissíveis e a morte de jovens mulheres, conforme se verifica no relato abaixo de uma mulher Yanomami: Depois que os garimpeiros que cobiçam o ouro, estragaram as vaginas das mulhe- res, fizeram elas adoecer. Por isso, agora, as mulheres estão acabando, por causa da letalidade dessa doença. Estão transando muito com as mulheres. É tanto assim que, em 2020, três moças, que tinham apenas por volta de 13 anos, morreram. Os garimpeiros estupraram muito essas moças, embriagadas de cachaça. Elas eram novas, tendo apenas tido a primeira menstruação. Nesse ponto, não se pode deixar de referir que, conforme aduz Giffin (1994), o estu- pro constitui um exemplo de como a violência sexual objetifica as mulheres, além de que as suas consequências podem perdurar anos, afetando a mulher não apenas fisicamente, mas também psicológica e moralmente. Conforme a autora, há estudos que demonstram 82 | MULHERES E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS a ocorrência de sintomas disfuncionais nas vítimas quatro a seis anos após o evento, o que corrobora a constatação de que os malefícios se prolongam no tempo. Para grande parte das mulheres Yanomami, os garimpeiros representam uma grande ameaça, pois, além de serem violentos, fazem com que elas levem, em seu próprio território, uma vida cercada de angústia, de medo e de insegurança (HUTUKARA ASSOCIAÇÃO YANOMAMI; ASSOCIAÇÃO WANASSEDUUME YE’KWANA, 2022). É mister também mencionar que, segundo apontado por Santos (2021, p. 125), a violência se intensificou no curso da pandemia de COVID-19, pois potencializou as vulnerabilidades de gênero já existentes. A chamada “quarentena”, ou seja, o período de distanciamento social, tornou-se ainda mais difícil para as mulheres, uma vez que foram elas que tiveram a principal responsabilidade de cuidado de suas famílias, ficando muitas vezes indefe- sas de seus agressores, já que “Não se puderem defender em quarentena para garantir a quarentena de outros.” Isso se justifica pelo fato de que, em tempos de crise e de guerra, a violência tende a aumentar, como de fato ocorreu, pois o confinamento familiar em espaços com proporções diminutas e sem saída acabou proporcionando aos agressores mais oportunidades de praticarem violência contra as mulheres. Observa-se que essas ações violentas são praticadas tanto pelas comunidades indíge- nas quanto pelo contato com a sociedade branca, no entanto, o acirramento da violência “[...] nos aldeamentos tem relação direta com as perdas territoriais e o consequente esbo- roamento dos vínculos sociais, das práticas políticas, econômicas e religiosas, perdas estas que são geradoras de miséria e violências múltiplas” (ZIMMERMANN; SERAGUZAE; ALVES VIANA, 2015, p. 123). Ressalta-se, ainda, que a violência praticada dentro das próprias aldeias comporta outras inúmeras práticas discriminatórias que ultrapassam a violência física, como casa- mentos forçados, abuso sexual, doação dos filhos a outras famílias sem o consenso da mulher, despejo da propriedade, limitação de acesso à propriedade, entre outras práticas ilegais que afetam negativamente a vida de mulheres indígenas (UNV, 2017). Verifica-se, ainda, que as mulheres indígenas brasileiras enfrentam a necessidade de encontrar formas para enfrentar a violência dentro da própria cultura, uma vez que os mecanismos existentes, como a Lei Maria da Penha, não atendem às suas necessidades, pois, muitas vezes, quando elas procuram os setores para buscar proteção, esses não fun- cionam (MORAIS, 2022). Como se não bastasse, não é rara a situação de mulheres que recebem informações falsas sobre as leis e os seus direitos, como, por exemplo, a de que serão retiradas de seus territórios e casas e levadas a abrigos. Isso tudo com a intenção de amedrontá-las e evitar que busquem ajuda e exerçam seus reais direitos, denunciando seus agressores (UNV, 2017). A luta das mulheres indígenas se materializou com a denúncia de violação de direitos GENÊRO, TERRITORIALIDADE E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: A VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES INDÍGENAS NO BRASIL | 83 Rogers Alexander Boff e Valéria Koch Barbosa tanto contra seus corpos quanto seus territórios em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados em 2021. Na ocasião, destacaram que são vítimas de dupla discrimina- ção – étnica e de gênero – e afirmaram que são as mais impactadas pela invasão de suas terras, como a que decorre do garimpo, já que, muitas vezes, são elas as responsáveis pelo cuidado da terra e dos recursos naturais, requerendo, portanto, a sua soberania (HAJE, 2021). Isso se deve ao fato de que as mulheres, cada vez mais, têm conquistado espaço dentro do movimento político indígena buscando a efetivação do seu direito ao território e, consequentemente, têm denunciado a violação de direitos, bem como o desmonte da política indigenista, além do avanço da frente extrativa sobre os territórios ocupados pelos povos tradicionais (CHAVES, 2021). É incontestável que o Brasil, sendo uma dos países membros da Organização da Nações Unidas, tem o compromisso internacional e o dever de zelar pelos direitos dos povos originários, especialmente das mulheres, conforme dispõe o artigo 22, parágrafo 2º, da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, in verbis: “Os Estados adotarão medidas, junto com os povos indígenas, para assegurar que as mulheres e as crianças indígenas desfrutem de proteção e de garantias plenas contra todas as formas de violência e de discriminação” (ONU, 2008). As recentes incursões que têm ameaçado as mulheres indígenas brasileiras demons- tram que é preciso ultrapassar as normas e as sanções penais propriamente ditas. Para que isso ocorra, é imperioso que se promova a consolidação “[...] da política de gênero e o fortalecimento da rede de enfrentamento que inclui a prevenção e a construção de uma educação na perspectiva de gênero” (SETENTA; MIRANDA LOPES, 2022, p. 1), pois, somente assim, quem sabe, será possível avançar na prevenção da violação dos direitos humanos, rumo a uma sociedade que respeite todas as mulheres, independentemente da cultura à qual pertençam. CONSIDERAÇÕES FINAIS Historicamente, o ser humano tem se apropriado dos recursos naturais para suprir as suas necessidades e, supostamente, para promover o desenvolvimento. O que ocorre, no entanto, é que a ganância, a ambição pelo lucro e o desejo de dominar tudo e todos o fizeram esquecer a finitude dos recursos naturais e o respeito às raízes, às origens, à história. Um exemplo disso são as atividades do garimpo no Brasil, que levam um grande contingente de pessoas a terras indígenas na tentativa de encontrar fonte de subsistência ou de riqueza, almejando, com esta, a conquista de poder. Se, por um lado, existe um número de pessoas que busca sua sobrevivência por meio do trabalho no garimpo, por outro, há aquelas focadas tão somente na exploração e no lucro, as quais não medem 84 | MULHERES E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS esforços para consegui-lo, mesmo que isso implique destruir o meio ambiente e a cultura de povos originários. Sem a mínima pretensão de se julgar o que é certo ou errado no que diz respeito à promoção do desenvolvimento e do progresso, bem como à maneira de garantir o sustento, o fato é que existe um total descaso em relação aos povos indígenas, descaso esse que não é recente, mas histórico. Populações já foram dizimadas, amargaram incontáveis perdas pessoais, materiais e culturais, ou seja, o contexto de exploração e violência em terras indígenas revela facetas e problemas que aqui não é possível enumerar. É notório que o garimpo ilegal traz consigo uma série de consequências negativas, destrói o modo de vida dos povos originários, promove degradação ambiental e gera conflitos socioambientais dos mais variados tipos. Essa situação não exclui as mulheres indígenas, pelo contrário, elas sofrem toda sorte de violência, que se soma, muitas vezes, àquela que é vivenciada nas próprias aldeias e, com isso, geram-se marcas que podem ser irreparáveis, a exemplo das que decorrem de estupro. Em 2021, os indígenas do Brasil vivenciaram um contexto de violência ainda mais acentuado e os resultados de tantas mazelas e desrespeito aos direitos humanos veio a público por meio de noticiários nacionais e internacionais. Eclodiram comentários e opiniões acerca do garimpo e de suas consequências, em especial, aquelas relacionadas às comunidades Yanomami, mas a realidade dos povos indígenas é tão distante de boa parte da população brasileira que o fervor das discussões e da indignação se arrefeceu e logo caiu no esquecimento até mesmo da mídia, que, não raras vezes, objetiva tão somente conquistar audiência com cenas capazes de chocar, sem que esteja subjacente uma ver- dadeira intenção de denúncia ou reação. Esse contexto de violência, como referido, foi exacerbado em vários aspectos, entre eles, a violência cometida contra as mulheres indí- genas, as quais nem sempre dispõem de uma rede de apoio e ficam à mercê da sorte, sem ter a quem recorrer e amargando dores que se acumulam dia a dia e que se somam àquelas provenientes da invasão de suas terras, do extermínio de sua cultura, da violação de direitos e da afronta à sua dignidade. Verifica-se que a falta de informação e a distância dos serviços públicos potencializam a vulnerabilidade e o risco à vida de mulheres indígenas. Ademais, assim como as mulheres que vivem em contextos urbanos, as indígenas apresentam resistência para denunciar os agressores, pois, além das ameaças de que padecem, preponderam o medo e a vergonha de represálias familiar e social. Em síntese, os resultados desta pesquisa apontam que houve acirramento da violência de gênero em territórios indígenas, trazendo à tona um cenário de violação de uma série de direitos fundamentais e o consequente esfacelamento dos direitos humanos. As vulnerabilidades aqui apontadas permitem concluir que existe um descaso do poder público no que concerne aos conflitos socioambientais estabelecidos, o que se GENÊRO, TERRITORIALIDADE E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: A VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES INDÍGENAS NO BRASIL | 85 Rogers Alexander Boff e Valéria Koch Barbosa evidencia, por exemplo, com a falta de identificação, nos boletins de ocorrência, de infor- mações étnicas das vítimas, reflexo da escassez de políticas públicas essenciais às mulheres e ao combate à violência. Portanto, urge que se estabeleça uma aliança entre todos os estados brasileiros, reu- nindo os mais diversos atores sociais, a fim de buscar medidas eficazes no combate à violência contra mulheres indígenas, respeitando, sobretudo, os seus territórios, as suas identidades e as suas culturas. REFERÊNCIAS ANTUNES, André. Invasão do garimpo em terras indígenas deixa rastro de des- matamento e violência. EPSJV/Fiocruz. Rio de Janeiro, 14 abr. 2022. 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