Nefrologia: Introdução às Doenças Glomerulares PDF

Summary

Este documento é um resumo sobre introdução à nefrologia, focando nas doenças glomerulares. Ele aborda a anatomia e fisiologia dos rins, explorando tópicos como glomerulonefrite e proteinúria. É um recurso valioso para estudantes de medicina interessados nos aspectos detalhados da função renal e suas possíveis disfunções.

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- ÍNDICE - INTRODUÇÃO À NEFROLOGIA INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS DOS RINS E VIAS URINÁRIAS CONCEITOS ANATÔMICOS BÁSICOS O CORPÚSCULO DE MALPIGHI O NÉFRON...

- ÍNDICE - INTRODUÇÃO À NEFROLOGIA INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS DOS RINS E VIAS URINÁRIAS CONCEITOS ANATÔMICOS BÁSICOS O CORPÚSCULO DE MALPIGHI O NÉFRON O SISTEMA TUBULAR O APARELHO JUSTAGLOMERULAR A VASCULARIZAÇÃO RENAL NOS CORPÚSCULOS DE MALPIGHI NOS TÚBULOS CONTORCIDOS PROXIMAIS ASPECTOS FISIOLÓGICOS NA ALÇA DE HENLE NO TÚBULO CONTORCIDO DISTAL NO TÚBULO COLETOR ASPECTOS PATOLÓGICOS AS DOENÇAS DOS GLOMÉRULOS INTRODUÇÃO GLOMERULONEFRITE AGUDA PÓS-ESTREPTOCÓCICA SÍNDROME NEFRÍTICA OU GLOMERULONEFRITE DIFUSA AGUDA (GNDA) GLOMERULONEFRITE AGUDA INFECCIOSA, NÃO PÓS-ESTREPTOCÓCICA GLOMERULONEFRITE AGUDA NÃO INFECCIOSA CLASSIFICAÇÃO E ETIOLOGIA DAS GNRP GLOMERULONEFRITE ANTI-MBG E A SÍNDROME DE GOODPASTURE GLOMERULONEFRITE RAPIDAMENTE PROGRESSIVA GNRP POR IMUNOCOMPLEXOS GNRP PAUCI-IMUNE (ANCA POSITIVO) A PROTEINÚRIA A HIPOPROTEINEMIA A SÍNDROME NEFRÓTICA O EDEMA A HIPERLIPIDEMIA COMPLICAÇÕES DA SÍNDROME NEFRÓTICA DOENÇA POR LESÃO MÍNIMA GLOMERULOES​CLEROSE FOCAL E SEGMENTAR (GEFS) GN PROLIFERATIVA MESANGIAL DOENÇAS RENAIS PRIMÁRIAS QUE SE APRESENTAM COM SÍNDROME NEFRÓTICA GLOMERULOPATIA MEMBRANOSA GN MEMBRANOPROLIFERATIVA OU GLOMERULONEFRITE MESANGIOCAPILAR GLOMERULONEFRITE FIBRILAR E IMUNOTACTOIDE DOENÇA DE BERGER OU NEFROPATIA POR IGA HEMATÚRIA GLOMERULAR BENIGNA (DOENÇA DO ADELGAÇAMENTO DA MEMBRANA BASAL) ALTERAÇÕES URINÁRIAS ASSINTOMÁTICAS (HEMATÚRIA × PROTEINÚRIA) MAL DE ALPORT (NEFRITE HEREDITÁRIA) PROTEINÚRIA ISOLADA (FUNCIONAL × GLOMERULAR × TUBULAR × OVERFLOW) DOENÇAS GLOMERULARES TROMBÓTICAS SÍNDROME HEMOLÍTICO-URÊMICA Intro_25244 CAP. 1 INTRODUÇÃO À NEFROLOGIA Video_01_Nef1 Somente aquele que conseguir assimilar, com detalhes, os principais aspectos macro e microscópicos da anatomia renal estará apto para compreender as diferentes patologias renais. Temos uma tendência irresistível em "pular" estes conceitos iniciais e ir direto ao ponto, ou seja, ao estudo clínico das doenças. Para determinados assuntos, até pode dar certo de uma forma ou de outra, mas alguns temas em medicina exigem um entendimento inicial mais sólido. Esta é a grande razão para um fenômeno comum entre os estudantes de medicina: a aversão a determinadas especialidades (como nefrologia), geralmente consideradas difíceis e chatas... Como entender e memorizar condições como a nefropatia por depósitos mesangiais de IgA, conhecida como doença de Berger (tão comum em concursos), se não se tem a menor noção do que seja o mesângio??? Como aceitar e memorizar que a anemia falciforme é uma das grandes causas de necrose de papila, sem que haja um mínimo de conhecimento sobre a vascularização renal, ou mesmo se não se sabe ao certo o que são as papilas renais??? Estamos começando o ano letivo do MEDCURSO e gostaríamos de alertá-lo: faremos você perder o típico bloqueio a respeito de alguns temas em medicina, simplesmente lhe ajudando a entender conceitos anatômicos e fisiológicos essenciais, antes de relembrarmos as doenças propriamente ditas. INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS DOS RINS E VIAS URINÁRIAS Quem não conhece o ditado "os rins são os filtros do corpo, os órgãos responsáveis por retirar do sangue todas as impurezas e substâncias indesejáveis"? Sem dúvida esta é a imagem que guardamos desses órgãos fantásticos! Nós, seres humanos, retiramos a maior parte de nossa energia vital de três tipos básicos de alimento: (1) açúcares; (2) gorduras; e (3) proteínas. Sabemos que o metabolismo dos açúcares (carboidratos) e das gorduras (lipídios) resulta, em última análise, em energia e água. A única "sobra" no final do processo é o gás carbônico, que será eliminado pela respiração. Já o metabolismo das proteínas também gera energia, mas, ao contrário dos demais, resulta inevitavelmente na formação de substâncias tóxicas residuais, que possuem nitrogênio em sua estrutura e precisam dos rins para serem eliminadas. São estas, as "escórias nitrogenadas", uma espécie de lixo resultante do metabolismo das proteínas, que se acumulam nas situações de falência renal, e que estudaremos profundamente mais adiante. Não podemos perder de vista que, embora a capacidade de depuração seja, sem sombra de dúvida, a função renal primordial, certamente não é a única. Os rins também têm importante participação metabólica, endócrina, e ainda funcionam como verdadeiros maestros no controle do equilíbrio hidroeletrolítico e acidobásico (um dos assuntos mais frequentes nos concursos...). Veremos juntos, com calma, todos esses assuntos, mas precisamos que você não tenha nenhuma dúvida sobre aspectos importantes da anatomia e histologia renal. A seguir, você vai dar o primeiro passo rumo ao fascinante mundo das doenças renais e das vias urinárias. CONCEITOS ANATÔMICOS BÁSICOS O aspecto macroscópico de um rim é característico – Figura 1. O rim de um adulto tem um diâmetro longitudinal de 11-12 cm, pesando cerca de 150 g. Fig. 1: Aspectos fundamentais da anatomia renal. O parênquima renal, ou seja, o tecido renal propriamente dito, é constituído por duas camadas visivelmente distintas: a cortical, mais externa, e a medular, mais interna. Envolvendo o contorno externo dos rins encontra-se uma membrana de tecido conjuntivo: a cápsula renal. Ao redor desta cápsula está a gordura perirrenal: a fáscia de Gerota. A região central da borda côncava, por onde chegam os vasos e nervos que suprem o órgão, é conhecida como hilo renal. A urina formada no parênquima renal é despejada numa complexa rede de cavidades: os cálices renais menores e maiores, e a pelve renal. Os cálices maiores são formados normalmente pela confluência de três ou quatro cálices menores, enquanto a pelve renal costuma ser formada pela confluência de dois ou três cálices maiores. A camada cortical, ou córtex renal, que no adulto mede cerca de 1 cm de espessura, contém os glomérulos (ver adiante) e, assim, é responsável pela depuração do sangue que chega aos rins, dando inicio à formação do filtrado, precursor da urina. A camada medular, ou medula renal, é formada macroscopicamente por 10-18 estruturas cônicas: as pirâmides de Malpighi. As bases destas pirâmides fazem limite com a zona cortical, enquanto seus vértices fazem saliência nos cálices renais. Nas regiões laterais, as pirâmides fazem contato com extensões de tecido cortical para a medula, denominadas colunas de Bertin. As saliências das pirâmides de Malpighi nos cálices renais são as famosas papilas renais, que possuem, nas suas porções mais distais, 10 a 25 aberturas para passagem da urina formada (Figura 2). Cada papila renal se abre para um cálice menor. Fig. 2: Microscopia de varredura revelando um cálice com uma papila renal. Observar na papila as aberturas dos ductos de Bellini por onde os túbulos coletores deságuam a urina no sistema calicial. Os Lobos Renais: o rim pode ser dividido esquematicamente em lobos, cada um formado por uma pirâmide de Malpighi, associada ao tecido cortical adjacente (Figura 1). Todas as estruturas do néfron, descritas a seguir, estão contidas nestes lobos. O NÉFRON O néfron é a unidade funcional dos rins. Podemos descrevê-lo como uma estrutura microscópica formada pela associação do corpúsculo de Malpighi, contendo o tufo glomerular, com o sistema tubular, composto pelo túbulo contorcido proximal, alça de Henle, túbulo contorcido distal e finalmente o túbulo coletor (Figura 3). O néfron se responsabiliza pelos dois principais processos que envolvem a gênese da urina: a produção do filtrado glomerular nos corpúsculos de Malpighi e o complexo processamento deste filtrado em seu sistema tubular. Fig. 3: O néfron – observar a disposição de um néfron, com seu corpúsculo de Malpighi no córtex e sua alça de Henle na medula renal. Cada lobo renal apresenta cerca de 160 mil néfrons. Os rins possuem cerca de 0,5-6,4 milhões de néfrons (média: 1,6 milhões); o que dá aproximadamente 160 mil néfrons por cada lobo renal. O corpúsculo de Malpighi, os túbulos contorcidos proximal e distal e a parte inicial do túbulo coletor são elementos corticais, enquanto a alça de Henle e a maior parte dos túbulos coletores mergulham na zona medular (observar a Figura 3). O CORPÚSCULO DE MALPIGHI O Tufo Glomerular A Cápsula de Bowman A artéria renal, ao entrar no parênquima através do hilo renal, se ramifica em direção à periferia (região cortical). Já no córtex podem ser identificados pequenos e importantes ramos, que recebem a denominação de arteríola aferente. Esta, por sua vez, dá origem a uma série de alças capilares que se enovelam para formar uma estrutura arredondada, denominada glomérulo. Após se enovelarem, estas alças confluem para formar a arteríola eferente, que deixa o glomérulo. Observe a Figura 4. Fig. 4: O corpúsculo de Malpighi – observar a camada parietal da cápsula de Bowman, "inflada" como um cálice para abarcar o filtrado que escoa através das fendas de filtração. A camada interna da cápsula de Bowman é aderida às alças capilares, e compõe a estrutura física das próprias fendas de filtração. No glomérulo circula sangue arterial, cuja pressão hidrostática está sob controle da arteríola eferente: esta arteríola possui maior quantidade de músculo liso, podendo se contrair ou relaxar em função das necessidades do organismo. Quanto mais contraída a arteríola eferente, maior a pressão glomerular e, consequentemente, maior o volume do filtrado. Os glomérulos são envolvidos pela cápsula de Bowman, que possui dois folhetos: um aderido às alças glomerulares e outro "inflado", delimitando externamente o corpúsculo. Estas estruturas são também conhecidas como folhetos visceral e parietal da cápsula de Bowman. Entre estes folhetos está o espaço capsular, que recebe o filtrado glomerular. Como se pode observar na Figura 4, o folheto externo (parietal) da cápsula de Bowman forma uma espécie de cálice, constituído por epitélio simples pavimentoso apoiado em uma membrana basal. Já o folheto interno (visceral) deve ser cuidadosamente identificado, porque na verdade não existe uma camada celular contínua como no parietal. Como se vê na Figura 5, o folheto interno é formado pelos podócitos, que são células especiais situadas junto às alças glomerulares. Estas células emitem prolongamentos que se orientam em sentido radial, denominados primários que, por sua vez, originam prolongamentos secundários, os quais "abraçam" meticulosamente as alças capilares de forma análoga aos tentáculos de um polvo. Os prolongamentos secundários, ao se cruzarem, delimitam importantes espaços alongados – as fendas de filtração. Fig. 5: Representação esquemática de uma alça glomerular recoberta pelos braços dos podócitos – as fendas de filtração. Assim, o folheto interno da cápsula de Bowman está aderido às alças capilares, e não é formado por uma camada celular uniforme, mas sim por poucos corpos celulares (podócitos) situados discretamente distantes da membrana basal das alças e por numerosos prolongamentos que recobrem toda a sua superfície (ver microscopia eletrônica – Figura 6). Fig. 6: Microscopia de varredura (aumento de 6.000 vezes) – observar as alças glomerulares envolvidas pelos prolongamentos primários e secundários dos podócitos. Como as células endoteliais são fenestradas, e o folheto visceral da cápsula de Bowman apresenta estas fendas de filtração, percebe-se que a única estrutura contínua que separa o sangue glomerular do espaço de Bowman é a membrana basal das alças glomerulares (Figura 7). Fig. 7: As fendas de filtração em corte longitudinal – observar a membrana basal como única estrutura contínua. Agora já podemos compreender a estrutura da membrana glomérulo-capilar, através da qual o plasma é filtrado, originando o fluido tubular (futura urina). Constitui-se do endotélio + membrana basal + fendas de filtração dos podócitos (epitélio visceral). Observe novamente a Figura 7. Nos espaços entre as alças capilares glomerulares existe um tecido conjuntivo de sustentação denominado mesângio, que também apresenta um tipo celular: a célula mesangial. Assim, todo o tufo capilar glomerular, na realidade, está preenchido por uma matriz denominada mesangial (Figura 8 – setas). Fig. 8: Corte transversal do tufo glomerular – veja as fenestrações endoteliais (setas pretas), os pés dos podócitos formando as fendas de filtração (setas vermelhas) e as células mesangiais (setas azuis), localizadas entre as alças – envolvidas por uma única membrana basal (seta amarela). É importante ressaltar que há pontos em que a lâmina basal não envolve toda a circunferência de um só capilar, tornando-se comum a dois ou mais capilares. É neste espaço entre os capilares que se localizam as células mesangiais. Entretanto, o mesângio também pode ser encontrado entre a membrana basal e as células endoteliais. Acredita-se que, além de fornecer sustentação, ele tenha a função de eliminar resíduos aprisionados no processo de filtração. O SISTEMA TUBULAR Túbulo Contorcido Proximal Alça de Henle Túbulo Contorcido Distal Túbulo Coletor O filtrado formado nas alças glomerulares, recebido pela cápsula de Bowman, agora vai percorrer o trajeto dos túbulos renais (que compõem o restante do néfron), sendo "processado" e entregue aos cálices como urina. Nesta parte, apenas nomearemos os diversos segmentos do sistema tubular do néfron. A função de cada um será descrita com detalhes adiante, quando falarmos sobre os aspectos fisiológicos. Observe na Figura 9 os quatro principais segmentos tubulares. Fig. 9: Sistema tubular do néfron. O APARELHO JUSTAGLOMERULAR Mácula Densa Células Justaglomerulares As arteríolas aferentes, antes de se capilarizarem em glomérulos, apresentam uma modificação da camada média onde passam a exibir células especiais que, pela localização, são chamadas de células justaglomerulares. O túbulo contorcido distal, em determinado ponto de seu trajeto, aproxima-se da arteríola aferente (do mesmo néfron), exatamente ao nível das células justaglomerulares. Neste local sua parede se modifica, formando uma estrutura conhecida como mácula densa (ver Figura 10). Fig. 10: Aparelho justaglomerular. O conjunto de células justaglomeru​lares com a mácula densa forma o aparelho justaglomerular. Como vere​mos adiante, esta estrutura histológica é fundamental para permitir um "meio de comunicação" entre o fluido tubular e a arteríola aferente – o chamado feedback tubuloglomerular, importante para a regulação da filtração glomerular. A VASCULARIZAÇÃO RENAL Cada rim recebe uma artéria que, no hilo, antes de penetrar em seu parênquima, costuma se dividir em diversos ramos. Estes ramos invadem o tecido renal e logo dão origem às artérias interlobares, que seguem entre as pirâmides de Malpighi, percorrendo o espaço entre os lobos renais. Acompanhe pela Figura 11. Ao atingirem a base das pirâmides (divisão entre o córtex e a medula), as interlobares originam as arciformes, que iniciam um trajeto paralelo à cápsula do órgão, no limite preciso entre o córtex e a medula (observe a Figura 12). Fig. 11: Vascularização renal. Fig. 12: Representação esquemática da circulação renal. Observar exame microscópico correspondente à circulação do córtex, com um glomérulo em close, na Figura 13. Das arciformes surgem as interlobulares, que passam a percorrer um trajeto perpendicular à cápsula do rim e em direção a ela (atravessando o córtex) – Figuras 12 e 13, setas brancas. Fig. 13: A vascularização do córtex renal – observar a emergência das interlobulares, que percorrem toda a espessura do córtex em direção à cápsula renal (setas brancas). Em seu trajeto, originam várias arteríolas aferentes. Em close: dois glomérulos interpostos entre suas arteríolas aferentes (originadas da interlobular) e eferentes. Das interlobulares originam-se as arteríolas aferentes, que vão formar as alças capilares dos glomérulos. Da confluência dessas alças surgem as arteríolas eferentes, que continuam o trajeto arterial para nutrir o parênquima renal. Tais arteríolas originam os vasos peritubulares encarregados da reabsorção tubular. Na realidade, os glomérulos estão interpostos no sistema arterial periférico dos rins, e, assim, são as arteríolas eferentes que, em última análise, nutrem o parênquima do córtex renal com sangue arterial. Além disso, elas também originam arteríolas secundárias que se projetam para irrigar a medula renal: os vasos retos. Video_02_Nef1 A vascularização da medula é extremamente escassa (vasos retos), tornando esta região muito sensível a pequenas alterações de perfusão. Como a estrutura anatômica do tecido renal mais distante da origem destes vasos é a papila, entendemos o motivo da existência da entidade patológica conhecida como "necrose de papila renal" (que será estudada em detalhe mais adiante). Não são raras as questões de prova que exploram este conceito – é o caso da anemia falciforme, em que o fenômeno do afoiçamento das hemácias prejudica a fraca circulação medular... ASPECTOS FISIOLÓGICOS A gênese da urina se inicia com a formação do filtrado glomerular nos corpúsculos de Malpighi – um processo denominado filtração glomerular. A função renal é proporcional à formação deste filtrado e pode ser quantificada pela Taxa de Filtração Glomerular (TFG). Os milhões de glomérulos que povoam nossos rins filtram cerca de 120-180 L de plasma por dia (média: 140 L/dia), o que dá aproximadamente 80-120 ml/min de filtrado – esta é a TFG normal. O filtrado glomerular é coletado pela cápsula de Bowman e ganha o sistema tubular. Agora perceba o seguinte: dos cerca de 140 L/dia de filtrado que chegam ao sistema tubular, os cálices renais recebem apenas 1-3 L/dia de urina. Quase 99% de todo o volume filtrado é reabsorvido no sistema tubular! A princípio alguém poderia pensar: por que os glomérulos não filtram logo os 1-3 L/dia que formam a urina? Para que filtrar uma quantidade absurda de líquido, já que quase tudo retorna ao plasma pela reabsorção tubular? Aqui está a resposta: é principalmente através da reabsorção tubular que os rins "processam" e "elaboram" a urina, eliminando a quantidade estritamente necessária de água, eletrólitos e demais substâncias. O equilíbrio hidroeletrolítico – uma função vital dos rins – é mantido, em grande parte, pelos ajustes da reabsorção tubular nos diversos segmentos do néfron. As células epiteliais dos túbulos são encarregadas de selecionar a reabsorção de cada eletrólito ou substância. Portanto, são células altamente especializadas e que diferem entre si de acordo com o segmento tubular específico. Além do balanço filtração-reabsorção tubular, ainda existe um outro fenômeno que influi na formação da urina: a secreção tubular. Alguns eletrólitos, como o potássio e o hidrogênio (H+), e certas substâncias, como o ácido úrico, passam diretamente dos capilares peritubulares para o lúmen do túbulo, utilizando carreadores específicos presentes nas células tubulares. Sem este processo de secreção tubular os rins não conseguiriam depurar tais elementos, o que levaria ao seu desastroso acúmulo no organismo. NOS CORPÚSCULOS DE MALPIGHI O filtrado glomerular é formado pela ação da pressão hidrostática no interior das alças capilares, em oposição a diversas outras forças, como pressão oncótica do plasma, pressão do líquido contido nos túbulos e pressão do interstício renal (que se reflete na cápsula de Bowman). Fig. 14: Processo de formação do filtrado glomerular. Um rim sadio dispõe de mecanismos de defesa que mantêm a pressão constante nas alças glomerulares. É o famoso mecanismo de "autorregulação da taxa de filtração glomerular". Não só a TFG é mantida relativamente constante, mas também o fluxo sanguíneo renal, através do mecanismo de "autorregulação do fluxo sanguíneo renal". Não são todos os órgãos que possuem um mecanismo de autorregulação do fluxo – os rins, o miocárdio e o cérebro são os principais exemplos. As variações pressóricas dentro das alças capilares glomerulares, tanto para mais quanto para menos, são sempre prejudiciais aos rins. Níveis pressóricos glomerulares reduzidos, como no caso de uma hipotensão arterial severa, resultariam em dificuldade de formação de urina e insuficiência renal... Níveis pressóricos glomerulares constantemente elevados acabariam por resultar em dano às alças capilares dos glomérulos... Mas como funcionam exatamente tais mecanismos de autorregulação? O fluxo sanguíneo renal é mantido constante apesar de variações da pressão arterial sistêmica, que determina a pressão de perfusão renal. Entre pressões arteriais médias de 80 mmHg até 200 mmHg, o fluxo sanguíneo se mantém pela adaptação do tônus da arteríola aferente – o principal determinante da resistência vascular do órgão. O aumento da PA provoca vasoconstrição arteriolar, enquanto sua redução promove vasodilatação arteriolar. Se a PA cai a níveis inferiores a 70-80 mmHg, o fluxo sanguíneo renal sofre redução, pois os vasos já atingiram o máximo de dilatação. O mecanismo deste reflexo vascular depende basicamente de "receptores de estiramento", presentes nos miócitos da arteríola aferente – quando distendidos por uma pressão aumentada, a resposta imediata é a contração muscular. Quando a tensão sobre o miócito é reduzida, a resposta é o relaxamento muscular, promovendo vasodilatação. Esta última também requer a liberação intrarrenal de vasodilatadores endógenos, tais como prostaglandinas (PGE2), cininas e óxido nítrico. A seguir, um resumo sobre os quatro mecanismos básicos da autorregulação da Taxa de Filtração Glomerular (TFG): Vasoconstrição da arteríola eferente: esta arteríola contém mais células musculares do que a arteríola aferente, tendo uma propensão maior a se contrair. Em resposta à liberação local ou sistêmica de angiotensina II, a arteríola eferente se contrai em condições de baixo fluxo renal, fazendo aumentar a pressão intraglomerular, evitando assim que a TFG seja reduzida. O baixo fluxo renal estimula as células justaglomerulares a produzirem um hormônio chamado renina que, por sua vez, transforma o angiotensinogênio em angiotensina I. Esta última, por ação da ECA (Enzima Conversora de Angiotensina), é convertida em angiotensina II. Vasodilatação da arteríola aferente: os mesmos estímulos para o aumento intrarrenal da angiotensina II – um vasoconstritor potente da arteríola eferente – também acabam liberando substâncias vasodilatadoras da arteríola aferente, como a PGE2, as cininas e o óxido nítrico. A dilatação desta arteríola aumenta o fluxo sanguíneo renal e a pressão intraglomerular. Feedback tubuloglomerular: agora vamos descrever a função do aparelho justaglomerular. Ao comunicar o túbulo contorcido distal à arteríola aferente, esta estrutura é capaz de ajustar a filtração glomerular de acordo com o fluxo de fluido tubular. O mecanismo depende da reabsorção de cloreto pelas células da mácula densa. Veja: caso haja uma pequena redução inicial da TFG, menos NaCl chegará à mácula densa e, portanto, menos cloreto será reabsorvido neste segmento tubular. A queda na reabsorção de cloreto é "sentida" pelas células justaglomerulares da arteríola aferente, promovendo uma vasodilatação arteriolar que logo corrige o desvio inicial da TFG. Um aumento inicial da TFG terá um efeito exatamente oposto: mais NaCl chega à mácula densa, mais cloreto é reabsorvido, levando à vasoconstrição da arteríola aferente. Retenção hidrossalina e natriurese: o baixo fluxo renal e a redução da reabsorção de cloreto na mácula densa são importantes estímulos para a secreção de renina pelas células justaglomerulares. Como vimos, a renina contribui de forma crucial para a formação de angiotensina II. Finalmente, esta substância estimula a produção e liberação de aldosterona pelas suprarrenais, um hormônio que estimula a retenção de sódio e água pelos túbulos renais. A retenção volêmica contribui para a restauração do fluxo renal e TFG. Por outro lado, condições de alto fluxo renal (ex.: hipervolemia) exercem efeito oposto, desativando o sistema renina-angiotensina- aldosterona. Esse fato, somado à liberação do Peptídeo Natriurético Atrial (PNA) nos estados hipervolêmicos, induz um efeito natriurético, reduzindo a volemia e retornando a TFG para o normal. Video_03_Nef1 NOS TÚBULOS CONTORCIDOS PROXIMAIS Fig. 15: Os túbulos contorcidos proximais são responsáveis em reabsorver a maior parte do filtrado glomerular. Os TCP são encarregados de reabsorver a maior parte do fluido tubular, juntamente com seus eletrólitos e substâncias de importância fisiológica, como a glicose e os aminoácidos. Cerca de 65% (2/3) do filtrado glomerular é reabsorvido no TCP, o equivalente a 90 L/dia. Este percentual mantém-se constante pelo chamado balanço glomerulotubular (aumenta a TFG – aumenta a reabsorção tubular; reduz a TFG – reduz a reabsorção tubular). Este balanço pode ser modificado em função de alguns hormônios, como a angiotensina II e as catecolaminas, que agem aumentando a proporção de sódio e líquido reabsorvidos no TCP. O principal eletrólito reabsorvido pelos túbulos renais é o sódio. A reabsorção tubular de sódio determina, direta ou indiretamente, a reabsorção da maioria dos outros eletrólitos e substâncias no sistema tubular. O sódio é reabsorvido de forma ativa, um processo que depende da enzima Na-K-ATPase, presente na membrana basolateral das células tubulares – Figura 16. Esta enzima mantém o sódio intracelular em baixas concentrações, promovendo o gradiente necessário para que o sódio luminal se difunda para a célula. Fig. 16: Reabsorção de sódio e água no TCP. A reabsorção de sódio precisa ser acompanhada pela reabsorção de ânions, de forma a manter o equilíbrio eletroquímico no lúmen tubular (cargas positivas = cargas negativas). Na primeira porção do TCP, o principal ânion reabsorvido é o bicarbonato (HCO3-), enquanto na segunda porção do TCP, este ânion passa a ser o cloreto (Cl-). A reabsorção de bicarbonato segue uma via indireta, pois a célula tubular não possui um carreador específico para este ânion. Para penetrar na célula, o bicarbonato luminal precisa ser convertido em CO2 + H2O, utilizando para isso o H+ secretado pelo túbulo em troca do Na+ reabsorvido e a enzima anidrase carbônica luminal. A reação química a seguir, então, se dá da esquerda para direita, no lúmen do TCP. Uma vez reabsorvido, o CO2 é novamente convertido em HCO3- no interior da célula tubular proximal, seguindo a reação acima, mas agora no sentido inverso (da direita para esquerda), e utilizando a anidrase carbônica intracelular. A acetazolamida (Diamox), tem o seu efeito baseado na inibição da anidrase carbônica. Com isso, a reabsorção de bicarbonato é inibida junto com a reabsorção de sódio no TCP. O resultado é natriurese e bicarbonatúria (isto é, alcalinização urinária). A reabsorção do cloreto se dá da seguinte maneira: o ânion formato, oriundo da dissociação do ácido fórmico no interior da célula tubular, é secretado para o lúmen em troca da reabsorção do cloreto (trocador formato/cloreto). O cloreto é então retirado da célula através do cotransportador K+/Cl- na membrana basolateral. O formato reage com íons H+ secretados pelo trocador Na+/H+, gerando ácido fórmico, que se difunde novamente para o interior da célula tubular. A água é reabsorvida por osmose, isto é, para cada molécula de soluto reabsorvida, moléculas de água também são reabsorvidas, mantendo-se a osmolaridade luminal intacta, semelhante a do plasma (290 mOsm/L). As moléculas de H2O passam pelos espaços intercelulares e levam consigo outros eletrólitos – um fenômeno denominado convecção ou solvent drag. Parte do sódio e do cloreto e praticamente todo o potássio reabsorvidos no TCP utilizam este mecanismo. São também reabsorvidos no TCP os seguintes solutos: glicose, aminoácidos, fosfato e ácido úrico. A reabsorção dessas substâncias também está atrelada à reabsorção de sódio, através de carreadores duplos localizados na membrana luminal. Algumas proteínas de tamanho pequeno também são reabsorvidas no TCP, pelo processo de endocitose. Video_04_Nef1 Além dos processos reabsortivos, o TCP responde ainda pela secreção de uma série de substâncias. Dois tipos de carreadores são encontrados: os catiônicos e os aniônicos. As substâncias ácidas, como o ácido úrico, as penicilinas e cefalosporinas, são secretadas pelo carreador aniônico. Esse processo é facilmente explicado, já que todo ácido tem o comportamento de se converter em um ânion, ao liberar o seu H+. As substâncias básicas, como a creatinina e a cimetidina, são secretadas pelo carreador catiônico, já que as bases se convertem em cátions quando se ligam ao H+. NA ALÇA DE HENLE Fig. 17: Alça de Henle, fundamental no controle da osmolaridade urinária. A alça de Henle é responsável pela reabsorção de 25% do sódio filtrado. Este segmento tubular é fundamental para o controle da osmolaridade urinária. Nela, um fenômeno chamado mecanismo de contracorrente é responsável pela formação e manutenção de um interstício hiperosmolar e um fluido tubular hipo-osmolar. Mas como funciona exatamente este "mecanismo de contracorrente"? A porção descendente da alça de Henle promove o aumento da tonicidade do fluido tubular por ser permeável à água, mas impermeável aos solutos. Já na porção ascendente ocorre o contrário: não há reabsorção de água, porém ocorre a saída de solutos, que penetram na célula tubular através do carreador Na-K-2Cl, impulsionados pelo gradiente de concentração, gerado ativamente pela bomba Na-K-ATPase da membrana basolateral. Esse mecanismo faz com que, ao final do trajeto, haja uma urina hipo-osmolar, com um interstício renal hiperosmolar – Figura 18. Fig. 18: Dinâmica da osmolaridade do fluido tubular. Video_05_Nef1 Para saber mais sobre a fisiologia dessa região e do mecanismo de contracorrente, acesse o vídeo abaixo. Cm1119A NO TÚBULO CONTORCIDO DISTAL Fig. 19: Túbulo contorcido distal reabsorve 5% do líquido e sódio filtrados. Esta porção do néfron é responsável pela reabsorção de 5% do líquido e sódio filtrados. Na membrana luminal das células tubulares deste segmento existe o carreador NaCl, passível de inibição pelos diuréticos tiazídicos. Além desta ação, o TCD tem mais duas importantes funções: (1) contém a mácula densa, uma parte do túbulo que compõe o aparelho justaglomerular; e (2) é o principal sítio de regulação da reabsorção tubular de cálcio, sob ação do PTH. NO TÚBULO COLETOR Fig. 20: O Túbulo Coletor (TC), pode ser dividido em porção cortical e porção medular. O túbulo coletor é a última porção do sistema tubular, sendo responsável pela reabsorção de 5% do líquido e sódio filtrados. Chamamos de néfron distal a composição do TCD + TC. Apesar de reabsorver, em média, apenas 10% do líquido e sódio filtrados, podemos dizer que o néfron distal é encarregado dos "ajustes finos" da reabsorção e secreção tubular, respondendo à ação de vários hormônios reguladores do equilíbrio hidroeletrolítico. O TC pode ser dividido em porção cortical e porção medular. O TC cortical é o segmento do néfron responsivo à aldosterona, hormônio que controla a reabsorção distal de sódio e a secreção de potássio e H+. A reabsorção de sódio dependente de aldosterona ocorre por um processo diferente de todos os outros segmentos do néfron – é uma reabsorção de sódio eletrogênica. Isso significa que o sódio é reabsorvido sem nenhum ânion o acompanhando, gerando assim um potencial negativo intraluminal (eletronegatividade). Com o lúmen mais negativo, os cátions K+ e H+ são atraídos para o fluido tubular, estimulando a sua secreção. Veja como funciona: a célula tubular responsiva à aldosterona chama-se célula principal. Quando o hormônio se liga aos seus receptores, estimula a Na-K-ATPase da membrana basolateral, reduzindo o Na+ e aumentando o K+ no interior da célula. A aldosterona também estimula o canal de Na+ e o canal de K+, presentes na membrana luminal. O resultado é a reabsorção de Na+ e a secreção de K+ por esta célula. Lado a lado com a célula principal, existe um outro tipo de célula tubular, chamada célula intercalada, encarregada da secreção de H+. Esta célula contém uma H+-ATPase em sua membrana luminal, capaz de secretar o hidrogênio contra um amplo gradiente de concentração. Esta ATPase é capaz de acidificar a urina até um pH mínimo de 4,50. Apesar das secreções de K+ e de H+ ocorrerem em células diferentes, ambos os processos são estimulados pela reabsorção eletrogênica de Na+. Questões que envolvem o equilíbrio hidroeletrolítico e acidobásico são extremamente frequentes nos concursos de residência e costumam ter o seguinte formato: Na "condição tal" encontramos: Hipocalemia/hipercalemia. Hipernatremia/hiponatremia. Alcalose metabólica/acidose metabólica. As condições mais frequentemente perguntadas são o hiper ou hipoaldosteronismo (hiper ou hiporreninêmico), doença de Cushing, doença de Addison, estenose pilórica ou hiperêmese gravídica (vômitos constantes), doença hipertensiva renovascular, uso de inibidores da ECA e síndromes tubulares específicas como a de Bartter. Acesse o vídeo e veja uma regra prática bastante simples e interessante, que evitará que você tenha que memorizar todas as combinações de alterações hidroeletrolíticas e acidobásicas para cada uma destas condições. Basta entender a regra e dificilmente você terá problemas com esse tipo de questão. Cm1119B Treinaremos exaustivamente esta regra na apostila sobre "Distúrbio do Equilíbrio Eletrolítico-Acidobásico". Video_06_Nef1 O TC recebe um fluido hipo-osmolar (em torno de 100 mOsm/L). Perceba que o interstício que banha a alça de Henle é o mesmo que banha o TC medular. Este interstício vai se tornando mais concentrado à medida que se aproxima da papila renal, quando apresenta uma osmolaridade de 1.200 mOsm/L. As células do TC respondem à ação do hormônio antidiurético (ADH ou vasopressina). O ADH age aumentando a permeabilidade à água neste segmento, fazendo a célula tubular expressar mais canais luminais de H2O. Na presença de altos níveis plasmáticos deste hormônio, a água luminal é reabsorvida em direção ao interstício hiperosmolar. A urina então sai concentrada, com uma osmolaridade máxima de 1.200 mOsm/L. Quando o ADH está suprimido (em níveis mínimos), praticamente não há reabsorção de água no TC. Como a reabsorção de eletrólitos continua, o fluido tubular é diluído ainda mais, atingindo uma osmolaridade em torno de 50 mOsm/L, o que configura a diluição urinária máxima. A osmolaridade urinária de uma pessoa normal pode variar, portanto, entre 50 mOsm/L (ADH suprimido – urina maximamente diluída) e 1.200 mOsm/L (ADH elevado – urina maximamente concentrada). ASPECTOS PATOLÓGICOS As doenças renais costumam ser classificadas de acordo com os seus "alvos" primários: (1) glomérulos; (2) túbulos e interstício; (3) vasos sanguíneos; e (4) sistema uroexcretor. É óbvio que a interdependência anatômica dos diferentes "compartimentos" faz com que o dano de um quase sempre afete secundariamente os demais: um problema vascular primário afeta inevitavelmente todas as estruturas irrigadas pelo vaso acometido; o comprometimento dos glomérulos afeta diretamente o sistema vascular peritubular, etc. Assim, independentemente da origem, todas as formas de doença renal crônica possuem um denominador comum, ou seja, com o tempo todos os componentes estruturais dos rins acabam sendo destruídos, em um caminho inexorável para o estado de "rim terminal". Não entraremos aqui em mais detalhes sobre os mecanismos patogênicos de lesão renal, deixando para descrevê-los em separado nos capítulos das próprias doenças. Entretanto, separamos a seguir alguns pontos importantes para nossos leitores se fixarem cuidadosamente: As doenças renais crônicas costumam apresentar rins com tamanho reduzido, à exceção da doença renal policística, da amiloidose, do diabetes mellitus, da anemia falciforme, da nefropatia obstrutiva, da esclerodermia e da nefropatia pelo HIV; A presença de papila necrótica ao exame macroscópico limita o diagnóstico a cinco doenças principais: diabetes mellitus, nefropatia obstrutiva, pielonefrite, anemia falciforme e nefropatia analgésica; e A presença de deformidade calicial (cicatrizes fibróticas) quase sempre indica pielonefrite crônica. As manifestações clínicas de doença renal variam de acordo com o componente do rim primariamente afetado (glomérulo, túbulo, etc.), da intensidade do processo e do mecanismo de lesão em si. Entretanto, de modo geral, tais manifestações podem ser agrupadas em algumas síndromes razoavelmente bem definidas. Todo o módulo de nefrologia, de agora em diante, terá como objetivo maior a descrição individual de cada uma destas grandes síndromes. O vídeo traz um resumo sobre os principais conceitos microanatômicos sobre a vascularização renal, não deixe de assisti-lo! Cm10120 Tab. 1 Causas de insuficiência renal com rim de tamanho normal ou aumentado Diabetes mellitus Doença policística Amiloidose Anemia falciforme Esclerodermia Nefropatia obstrutiva Nefropatia pelo HIV Causas de necrose de papila Diabetes mellitus Obstrução Anemia falciforme Nefropatia analgésica Pielonefrite grave Presença de deformidade calicial Avaliar pielonefrite crônica CAP. 2 AS DOENÇAS DOS GLOMÉRULOS INTRODUÇÃO Todas as vezes que determinada doença (seja sistêmica ou restrita aos rins) cursar com dano aos glomérulos renais, surgirão sinais e sintomas característicos que poderão sempre ser classificados em cinco grandes síndromes principais: (1) glomerulonefrite aguda (síndrome nefrítica); (2) glomerulonefrite rapidamente progressiva; (3) síndrome nefrótica; (4) alterações urinárias assintomáticas; e (5) doenças glomerulares trombóticas. Este capítulo trata da descrição individual de cada uma delas e também das principais doenças que as originam. Fig. 1: Os glomérulos. Video_07_Nef1 Tab. 1: As síndromes glomerulares. Glomerulonefrite aguda ou síndrome nefrítica. Glomerulonefrite rapidamente progressiva. Síndrome nefrótica. Alterações urinárias assintomáticas: Hematúria glomerular isolada; Proteinúria isolada. Doenças glomerulares trombóticas. SÍNDROME NEFRÍTICA OU GLOMERULONEFRITE DIFUSA AGUDA (GNDA) Uma criança subitamente se apresenta com "urina presa" e de tonalidade avermelhada, com o "rosto inchado" e a "pressão alta". O que está acontecendo em seus glomérulos? A síndrome nefrítica pode ser entendida como sendo o conjunto de sinais e sintomas que surgem quando um indivíduo tem os seus glomérulos renais envolvidos por um processo inflamatório agudo. Esta "inflamação" dos glomérulos pode ocorrer de forma idiopática, como doença primária dos rins, ou ser secundária a alguma doença sistêmica, como infecções e colagenoses. A síndrome nefrítica clássica, também denominada Glomerulonefrite Difusa Aguda (GNDA), tem como protótipo a Glomerulonefrite Pós-Estreptocócica (GNPE), como veremos adiante. Vamos caracterizar os aspectos clínicos da síndrome nefrítica (todo ano presentes em diversas questões de Residência Médica, na prova de Pediatria e de Clínica)... Independentemente da origem, o quadro básico é caracterizado por hematúria (estigma da síndrome), proteinúria subnefrótica (menor que 3,5 g em 24h), oligúria, edema e hipertensão arterial. A redução do débito urinário provoca retenção volêmica, justificando o edema generalizado e a hipertensão arterial. Por vezes, surge também azotemia (retenção de ureia e creatinina), quando há queda significativa na taxa de filtração glomerular (< 40% do normal). A hematúria tem origem nos glomérulos comprometidos, sendo o sinal mais característico e mais comum da síndrome nefrítica, devendo ser esperada na imensa maioria das vezes, na forma macro ou microscópica. A hematúria é detectada pelo exame do sedimento urinário. Este exame é conhecido por nomes diversos em diferentes regiões do Brasil, sendo também chamado de EAS (Elementos Anormais e Sedimentos), urina tipo I, urinálise, EQU (Exame Qualitativo de Urina) e sumário de urina. As hematúrias de origem glomerular possuem características microscópicas especiais, que as diferenciam das hematúrias que se originam em outros locais que não os glomérulos, como as que resultam de lesões nos túbulos, pelve renal, ureteres, bexiga, próstata e uretra... Quando as hemácias encontradas no sedimento urinário são de origem glomerular, elas estão quase sempre deformadas, fragmentadas e hipocrômicas, num fenômeno conhecido como dismorfismo eritrocitário (Figuras 2 e 3). Fig. 2: Hematúria dismórfica (glomerulopatia) – observar hemácias hipocrômicas e com alterações grosseiras do formato (acantócitos). Fig. 3: Hematúria não dismórfica (lesão tubular ou urológica) – observar hemácias bem coradas e com formato preservado. QUADRO DE CONCEITOS I A síndrome nefrítica. A hematúria da síndrome nefrítica é do tipo "dismórfica". O achado de hematúria dismórfica no sedimento urinário (EAS) indica lesão glomerular. O achado de cilindros hemáticos no sedimento urinário (EAS) indica lesão glomerular. Mas por que a hematúria da glomerulonefrite aguda acaba sendo composta por hemácias dismórficas? As hemácias filtradas no glomérulo, ao "viajarem" pelo interior de todo o sistema tubular, sofrem a ação físico-química de mudanças no pH e na osmolaridade nos diferentes segmentos do néfron, tornando-se dismórficas. Além do dismorfismo eritrocitário e da presença de cilindros hemáticos, o sedimento urinário da síndrome nefrítica comumente revela piúria (leucocitúria) e cilindros leucocitários, deixando evidente a natureza inflamatória do processo... A eliminação destes cilindros celulares na urina é um indício importante de que a lesão renal se localiza no parênquima renal (glomérulos ou túbulos). No caso dos cilindros hemáticos, a localização da injúria, até que se prove o contrário, é glomerular. Mas o que são os Cilindros? Diariamente, células epiteliais que compõem a parede da alça de Henle secretam uma proteína conhecida como "glicoproteína de Tamm-Horsfall". Esta proteína segue o fluxo urinário e acaba se depositando nos túbulos contorcidos distais e túbulos coletores, originando uma superfície "pegajosa" em seu interior. Como consequência, diversas substâncias, partículas ou mesmo células podem se aderir a estas proteínas, moldando um corpo cilíndrico-tubular potencial​mente "descamável". Qualquer condição que determine a presença de elementos celulares (epitélio tubular, hemácias e/ou leucócitos) no interior do sistema tubular do néfron pode ser acompanhada pelos cilindros celulares no exame de sedimento de urina (EAS). Os cilindros são classificados em função de sua composição, mas podem ser divididos basicamente em dois tipos: os celulares (epiteliais, hemáticos e leucocitários), sempre patológicos, e os acelulares (como os hialinos), que podem ser encontrados em indivíduos normais. Os cilindros hemáticos indicam quase sempre uma doença glomerular, enquanto os cilindros leucocitários, apesar de serem encontrados com frequência nas glomerulopatias, estão mais associados às nefrites intersticiais (apostila Nefro II). A Tabela 2 exibe os principais tipos de cilindros, e as Figuras 4 e 5 mostram os principais cilindros celulares. Fig. 4: Cilindro hemático. Fig. 5: Cilindro granuloso pigmentar (hemácias dismórficas ao fundo). Tab. 2: Os cilindros urinários. Acelulares Cilindros hialinos: formados apenas pela proteína de Tamm-Horsfall – constituídos por material transparente, às vezes de difícil visualização na sedimentoscopia. Um ou outro cilindro hialino pode ser encontrado em pessoas normais, mas a presença de uma grande quantidade deles pode indicar desidratação, uso de diuréticos (especialmente a furosemida), esforço físico ou febre. Cilindros céreos: acredita-se que sejam a evolução natural de um cilindro granuloso patológico – ver item 6. Apresentam uma cor amarelada e um alto índice de refração, sendo facilmente visualizado na sedimentoscopia. Estes cilindros indicam disfunção renal avançada, pois são formados apenas quando o fluxo tubular é baixo. Cilindros largos: destacam-se por terem um diâmetro bem maior que os outros cilindros, tendo geralmente o aspecto granular ou céreo. São formados pela dilatação dos túbulos coletores, característica da insuficiência renal avançada. Alguns autores os denominam “cilindros da insuficiência renal crônica”. Cilindros graxos: são cilindros birrefringentes que denotam a presença de gotículas de gordura e são característicos dos estados de lipidúria, como a síndrome nefrótica. Celulares Cilindros epiteliais: são compostos por células epiteliais descamadas por túbulos renais que aderem à matriz proteica. Técnicos não treinados podem ter dificuldade de diferenciá-los dos cilindros leucocitários, apesar do tamanho três vezes maior das células epiteliais em relação aos leucócitos. Os cilindros epiteliais podem evoluir para cilindros granulosos, pela degeneração celular. A presença de cilindros epiteliais indica lesão tubular renal, como a necrose tubular aguda e as nefropatias tubulointersticiais. Cuidado para não confundir: o encontro de células epiteliais pode ocorrer na sedimentoscopia de uma pessoa normal, porém os cilindros epiteliais quase sempre são patológicos. Cilindros granulosos: geralmente são formados por debris celulares e sua superfície pode se apresentar finamente ou grosseiramente granulada. Quando acumulam o pigmento hemoglobínico modificado, tornam-se pardo-escuros, ganhando a nomenclatura de cilindros granulosos pigmentares. Os cilindros granulosos indicam lesão tubular e eventualmente glomerular, podendo representar cilindros celulares degenerados. A necrose tubular aguda é uma causa clássica de cilindros granulosos, que costumam ser do tipo pigmentares. Uma pessoa normal raramente pode apresentar um ou outro cilindro granuloso – neste caso, o aspecto granular deve-se à agregação de proteínas aos cilindros hialinos. Cilindros hemáticos: são compostos por hemácias que aderem à matriz proteica. São indicadores confiáveis de lesão glomerular e são clássicos das glomerulonefrites. Cilindros leucocitários (ou piocitários): são compostos por leucócitos polimorfonucleares aderidos à matriz proteica. Os leucócitos degenerados são chamados de piócitos. Podem estar presentes nas glomerulonefrites, mas são clássicos das nefrites tubulointersticiais, como a pielonefrite aguda bacteriana. Podem conter bactérias. QUADRO DE CONCEITOS II A síndrome nefrítica. O paciente que desenvolve síndrome nefrítica é aquele que se queixa de urina "presa" e "vermelho-acastanhada", correspondentes à oligúria e à hematúria, e desenvolve hipertensão arterial e edema por congestão volêmica. O sedimento urinário mostra dismorfismo eritrocitário, piúria e cilindros celulares (hemáticos e leucocitários), e a urina de 24h revela proteinúria em níveis de 150 mg a 3,5 g (subnefróticos). A proteinúria é outro achado comum da GNDA, aparecendo em função de alguns fenômenos, como alterações da permeabilidade e rupturas mecânicas na parede dos glomérulos comprometidos. Diz-se que há proteinúria quando os níveis de proteína na urina ultrapassam 150 mg/dia. Na síndrome nefrítica pura, esta proteinúria não costuma atingir níveis acima de 3,5 g/dia (considerados "nefróticos"), e, tipicamente, é do tipo não seletiva (ver adiante). A oligúria deve ser entendida como resultante do prejuízo da superfície de filtração dos glomérulos, devido, principalmente, à invasão pelas células inflamatórias e ao edema do espaço mesangial. Como os glomérulos filtram menos, sobrevêm retenção hidrossalina e, nos casos mais graves, azotemia. A retenção volêmica provoca hipertensão arterial e edema generalizado (anasarca). Uma prova de que o edema da síndrome nefrítica é decorrente da retenção renal primária é a presença de níveis plasmáticos de renina consistentemente baixos. Por ser nefrogênico, o edema também acomete a região periorbitária. As condições que se enquadram como glomerulonefrite aguda (GNDA), ou seja, aquelas que se caracterizam pelos sinais e sintomas de uma síndrome nefrítica, devem ser agrupadas etiologicamente da forma apresentada na Tabela 3. Tab. 3: Causas de síndrome nefrítica (organizadas pela origem). Síndrome pós-infecciosa Pós-estreptocócica. Não pós-estreptocócica: ➤ Bacterianas: endocardite, abscessos, shunt VP infectado, doença pneumocócica, sepse; ➤ Virais: hepatite B, hepatite C, mononucleose infecciosa, caxumba, sarampo, varicela; ➤ Parasitárias: malária falciparum, toxoplasmose. Causadas por doenças multissistêmicas Lúpus eritematoso sistêmico. Púrpura de Henoch-Schönlein. Crioglobulinemia. Poliarterite microscópica. Granulomatose de Wegener. Síndrome de Goodpasture. Tumores. Primárias do glomérulo Doença de Berger. GN membranoproliferativa (mesangiocapilar​). GN proliferativa mesangial. GN por "imunocomplexos" idiopática. GN antimembrana basal glomerular. GN pauci-imune (ANCA positivo). Em termos de patogenia, podemos afirmar que mais de 70% dos casos de GNDA são decorrentes da deposição glomerular de imunocomplexos, contendo imunoglobulinas (IgG, IgM ou IgA) e fatores do complemento (C3). Tais imunocomplexos aparecem na biópsia renal, quando se faz a imunofluorescência indireta. Possuem o aspecto granular – ver adiante. Menos de 30% dos casos de síndrome nefrítica aguda cursam sem imunocomplexos na biópsia, sendo, portanto, casos de glomerulonefrite pauci- imune, geralmente relacionados à positividade do autoanticorpo ANCA. Este assunto será melhor abordado adiante no item "Glomerulonefrite Rapidamente Progressiva". Video_08_Nef1 Antes de iniciarmos a descrição da primeira doença glomerular, sugerimos que todos os leitores assistam ao vídeo. Seu conteúdo é importante para "sedimentar" os conhecimentos adquiridos até aqui... Cm11127 GLOMERULONEFRITE AGUDA PÓS-ESTREPTOCÓCICA "A GNPE é o protótipo das Glomerulonefrites Difusas Agudas (GNDA)" Sabemos que, em crianças, a GNPE é a causa mais frequente de GNDA! Atualmente, a maioria dos casos (cerca de 97%) acontece em países pobres, onde a taxa de incidência fica entre 9,5-28,5 casos por 100.000 habitantes/ano. Já nos países ricos a incidência desta condição apresentou uma queda vertiginosa nas últimas três décadas, ficando abaixo de 0,5 casos por 100.000 habitantes/ano... DEFINIÇÃO E ETIOLOGIA A GNPE deve ser encarada como uma sequela renal tardia de uma infecção por cepas específicas do estreptococo beta-hemolítico do grupo A (ou Streptococcus pyogenes). As chamadas cepas "nefritogênicas" podem estar presentes numa piodermite estreptocócica, como impetigo crostoso ou erisipela (M-tipos 2, 49, 55, 57, 60), ou numa faringoamigdalite (M-tipos 1, 3, 4, 12, 18, 25). O risco de GNDA após uma estreptococcia ("taxa de ataque") oscila em torno de 15%, variando de 5% (cepas orofaríngeas) até 25% (cepas cutâneas). O período de incubação (infecção-nefrite), quando a via é a orofaringe, costuma ficar entre 7-21 dias (média: 10 dias), enquanto para a via cutânea fica entre 15-28 dias (média: 21 dias). Embora possa acometer indivíduos de qualquer idade, a GNPE é tipicamente uma doença de crianças e adolescentes, ocorrendo mais frequentemente entre 2-15 anos, acompanhando a epidemiologia da estreptococcia: faixa pré-escolar (2-6 anos) para a piodermite e faixa escolar e adolescência (6-15 anos) para a infecção orofaríngea. A incidência é maior em meninos do que meninas (2:1). PATOGÊNESE O mecanismo fisiopatogênico da GNPE envolve deposição de imunocomplexos nos glomérulos do paciente, o que ativa a cascata do complemento resultando em inflamação local. Existem quatro modos pelos quais os glomérulos podem ser "atacados" por imunocomplexos: (1) deposição de imunocomplexos circulantes, formados no sangue por anticorpos do paciente + antígenos estreptocócicos; (2) formação de imunocomplexos in situ, isto é, antígenos estreptocócicos circulantes são "aprisionados" pela membrana basal glomerular, com posterior ligação de anticorpos do paciente; (3) reação cruzada de anticorpos antiestreptococo produzidos pelo paciente com constituintes normais do glomérulo (mimetismo molecular); e (4) alterações moleculares em antígenos do glomérulo, tornando-os imunogênicos... De acordo com os estudos mais recentes, o principal mecanismo na maioria dos casos de GNPE parece ser a formação de imunocomplexos in situ, em consequência à deposição glomerular de antígenos estreptocócicos circulantes... MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS Apesar de representar o grande protótipo das glomerulonefrites agudas, sabe-se hoje em dia que a maioria dos portadores de GNPE é na realidade assintomática! Um estudo revelou que boa parte dos pacientes desenvolve apenas alterações laboratoriais subclínicas (ex.: micro-hematúria dismórfica), enquanto uma pequena parcela do total evolui com manifestações clínicas significativas. Seja como for, os pacientes sintomáticos em geral apresentam os sinais e sintomas clássicos de uma síndrome nefrítica! A apresentação típica se faz com o início abrupto de hematúria macroscópica, oligúria, edema e hipertensão arterial, acompanhada de mal-estar e sintomas gastrointestinais vagos (como dor abdominal e náuseas), e dor lombar bilateral por intumescimento da cápsula renal. O paciente refere urina "presa" e "escura"... A hematúria macroscópica de origem glomerular possui tonalidade acastanhada, que pode ser confundida com colúria, além de não apresentar coágulos. Difere da hematúria vermelho-vivo, com coágulos, proveniente do trato urinário (bexiga, ureter, pelve renal). Como vimos, a hematúria é um achado sempre presente na GNPE, e na maioria dos casos (> 80%) é macroscópica. No restante a hematúria só é detectada através do exame microscópico (micro-hematúria). A oligúria é detectada em até 50% dos pacientes, sendo inferior a 200 ml/dia em 15% dos casos. O edema é muito comum (cerca de 2/3 dos casos) e tende a ocorrer precocemente na evolução do quadro (na maioria das vezes o paciente já tem edema quando procura o médico). Inicialmente é periorbitário e matutino, mas pode se tornar grave e evoluir para anasarca. A hipertensão arterial também é comum, ocorrendo em 50-90%. Como já dito, é volume-dependente. É considerada grave em 50% e pode evoluir para encefalopatia hipertensiva em um pequeno percentual (5-10%). A congestão volêmica sintomática, levando ao edema agudo de pulmão, é outra complicação temida da GNPE. A hipercalemia pode ocorrer em alguns pacientes, pelo hipoaldosteronismo hiporreninêmico. Preste atenção... A queda na TFG resulta em hipervolemia (HAS, edema), o que tende a reduzir a secreção de renina, causando um estado de hipoaldosteronismo (e, consequentemente, uma diminuição da capacidade de excretar potássio)! Vamos entender melhor a fisiopatologia? Assim como acontece em outros sistemas fisiológicos de grande importância, os fatores que regulam o SRAA são "redundantes", isto é, mais de um fator pode igualmente diminuir ou aumentar a secreção de renina (ex.: grau de distensão das células justaglomerulares na arteríola aferente, aporte de NaCl à mácula densa, entre outros)! Todavia, isso não quer dizer que não exista certa "hierarquia" entre esses fatores... Na realidade, o PRINCIPAL determinante da secreção ou não de renina pelas células justaglomerulares da arteríola aferente é o grau de distensão (relacionado à pressão hidrostática) da arteríola aferente!!! Assim, a despeito de ocorrer uma diminuição do aporte de NaCl à mácula densa, a preponderância do estímulo promovido pela referida distensão SUPLANTA E MUITO um efeito potencialmente contraditório de ativação da mácula densa. Desse modo, o rim "entende" que a volemia está aumentada, desativando assim o SRAA... A função renal é comprometida em até metade dos casos, podendo haver moderada retenção de escórias nitrogenadas (aumento de ureia e creatinina). No entanto, um aumento rapidamente progressivo provocando uremia é raro (1% dos casos). A proteinúria subnefrótica é comum e cerca de 5-10% dos pacientes evolui para a faixa nefrótica (maior que 3,5 g/L,73 m2/24h em adultos ou 50 mg/kg/dia em crianças), experimentando uma superposição entre as duas síndromes, principalmente durante a resolução da nefrite. DIAGNÓSTICO Como é o protótipo das glomerulonefrites agudas, qualquer paciente que desenvolva síndrome nefrítica deve ser considerado suspeito para GNPE, especialmente na faixa etária entre 2-15 anos. Diante de um paciente com síndrome nefrítica, a primeira ação diagnóstica deve ser no sentido de tentar encontrar, pela anamnese e exame físico, a presença de manifestações extrarrenais que possam indicar uma etiologia específica (como rash malar e artrite, para o lúpus eritematoso). Caso a síndrome nefrítica seja a única condição do paciente, o médico deve seguir meticulosamente o algoritmo diagnóstico da GNPE (Tabela 4). Tab. 4: Algoritmo diagnóstico da GNPE. Questionar o paciente sobre faringite ou piodermite recente. Verificar se o período de incubação é compatível. Documentar a infecção estreptocócica através do laboratório*. Demonstrar uma queda transitória do complemento**, com um retorno ao normal em no máximo oito semanas, a contar dos primeiros sinais de nefropatia. *A documentação laboratorial de uma infecção estreptocócica deve ser feita pela cultura (de pele ou orofaringe) e/ou pela dosagem quantitativa dos títulos de anticorpos antiexoenzimas estreptocócicas. Existem cinco anticorpos principais: (1) antiestreptolisina O (ASLO ou ASO); (2) anti-DNAse B; (3) anti-NAD; (4) anti-hialuronidase (AHase); e (5) antiestreptoquinase (ASKase). **Na GNPE, temos queda do C3 e do CH50 (atividade hemolítica total do complemento), mas o C1q e o C4 permanecem normais ou discretamente reduzidos. Isso mostra uma ativação preferencial da via alternativa do complemento ("via do C3"), em detrimento da via clássica ("via do C4"). Em outras causas de glomerulite em que também há ativação do complemento (como o lúpus), tanto o C3 quanto o C4 são igualmente consumidos... A confirmação diagnóstica de GNPE requer evidências claras de infecção estreptocócica. Como a cultura (de pele ou orofaringe) pode estar negativa no momento em que a GNPE se manifesta (pois a GNPE é uma complicação tardia da infecção), a dosagem quantitativa de anticorpos antiexoenzimas estreptocócicas acaba se tornando o método mais sensível para cumprir este pré-requisito diagnóstico... Na GNPE pós-faringoamigdalite o anticorpo mais encontrado é o ASLO ou ASO (em 80-90% dos casos), seguido pelo anti-DNAse B (em 75% dos casos). Os níveis de ASLO geralmente se elevam de 2-5 semanas após a infecção estreptocócica, decaindo ao longo de meses. Curiosamente, na GNPE pós-impetigo o ASLO é, com frequência, negativo, sendo positivo em somente 50% dos casos. A explicação é: existem oxidases no tecido subcutâneo que inativam rapidamente esta exoenzima estreptocócica, não dando tempo para que o sistema imune se "sensibilize" contra tal antígeno... Assim, no impetigo, o melhor anticorpo (o mais sensível) passa ser o anti-DNAse B, detectado em 60-70% dos casos, seguido pelo anti-hialuronidase. Devemos ter em mente que, se houver forte suspeita diagnóstica e um anticorpo estiver ausente, deve-se solicitar a pesquisa dos outros anticorpos contra enzimas estreptocócicas, de modo a aumentar a sensibilidade do exame sorológico. SAIBA MAIS... O Streptozyme test. Atualmente já existe um teste rápido capaz de detectar a presença de anticorpos contra TODAS as cinco exoenzimas estreptocócicas através de uma única reação de aglutinação – o Streptozyme test. Caso positivo, este teste confirma a ocorrência de infecção estreptocócica recente com sensibilidade de 95% para faringoamigdalite e 80% para piodermite. A queda do complemento (C3 e CH50) constitui achado laboratorial obrigatório para o diagnóstico, porém é importante reconhecer que se trata de uma alteração inespecífica, já que pode ocorrer também em outras causas de glomerulonefrite difusa aguda, como a glomerulonefrite membranoproliferativa e o lúpus eritematoso sistêmico. A grande utilidade da dosagem de complemento sérico reside em seu acompanhamento evolutivo: a GNPE é uma forma autolimitada de GNDA, sendo esperada a normalização do complemento em, no máximo, oito semanas (na maioria dos casos o complemento normaliza antes de duas semanas)! As demais formas de GNDA que também consomem complemento de um modo geral são glomerulopatias crônicas em que o complemento permanece reduzido por mais de oito semanas... Em resumo, o diagnóstico de GNPE deve ser suspeitado em todo paciente que desenvolva síndrome nefrítica aparentemente "idiopática", que tenha uma história de infecção estreptocócica com período de incubação compatível, e no qual se possa, laboratorialmente, confirmar a infecção e documentar níveis séricos de C3 transitoriamente reduzidos (máx. oito semanas). Não é necessária a realização de uma biópsia renal para confirmação de GNPE nos pacientes que preenchem os critérios acima. Entretanto, esta será indicada caso estejam presentes aspectos ATÍPICOS que sugiram outra glomerulopatia que não a GNPE! A Tabela 5 reúne as principais indicações de biópsia renal para os pacientes com suspeita de GNPE. Tab. 5: Principais indicações de biópsia renal na suspeita de GNPE. Hematúria macroscópica por > 4 semanas. Função renal alterada por > 4 semanas. HAS por > 4 semanas. Hipocomplementemia > 8 semanas. Proteinúria na faixa nefrótica > 4 semanas. Mas qual seria o aspecto histopatológico de uma GNPE, caso se optasse pela biópsia confirmatória? Microscopia óptica: padrão de glomerulonefrite proliferativa-difusa, isto é, a maioria dos glomérulos apresenta infiltrado inflamatório, com neutrófilos e mononucleares invadindo o mesângio e as alças capilares (proliferação endocapilar). Em 5% dos casos observa-se a formação de crescentes no espaço de Bowman (ver adiante, em "glomerulonefrite rapidamente progressiva"), o que indica pior prognóstico. Este último padrão é mais comum em adultos. Imunofluorescência: padrão de glomerulite por imunocomplexos – existem depósitos granulares de IgG/C3 nas paredes dos capilares (endocapilares) e no mesângio. Microscopia eletrônica: a microscopia eletrônica revela o aspecto mais característico da GNPE – as "corcovas" ou "gibas" (Figura 6), que são nódulos subepiteliais eletrodensos formados por depósitos de imunocomplexos. Também podemos encontrar nódulos subendoteliais igualmente compostos por imunocomplexos. A quantidade desses nódulos se correlaciona diretamente com a gravidade das manifestações clínicas e, na medida em que os nódulos desaparecem, o paciente evolui com melhora... Fig. 6: Uma corcova ou giba (nódulo subepitelial) na GNPE, visualizada por microscopia eletrônica. SAIBA MAIS... Curiosamente, os nódulos subepiteliais são “clareados” por último, uma vez que a membrana basal se interpõe entre eles e as células sanguíneas circulantes (leucócitos mononucleares reabsorvem os depósitos de imunocomplexos). Já os nódulos subendoteliais desaparecem primeiro, pois estão em contato mais direto com o sangue... Tal fato parece explicar os diferentes prazos para a melhora de algumas manifestações clínicas da GNPE! Os nódulos subepiteliais distorcem e lesam os podócitos, o que “quebra” a barreira de filtração glomerular gerando proteinúria... Por outro lado, os nódulos subendoteliais atraem e “prendem” os leucócitos na parede dos vasos (proliferação endocapilar), entupindo seu lúmen e levando à glomerulite propriamente dita, com retenção renal de sal e água (pela queda na TFG), além de hematúria (pela passagem de hemácias por entre rupturas nas paredes dos vasos)... Assim, o desaparecimento precoce dos nódulos subendoteliais justifica a melhora relativamente mais rápida da hipervolemia (HAS e edema), da disfunção renal (azotemia) e da hematúria. A proteinúria melhora de forma mais tardia em função do lento desaparecimento dos nódulos subepiteliais. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Os principais diagnósticos diferenciais da GNPE são evidentemente as outras doenças que cursam com síndrome nefrítica e hipocomplementemia: Outras glomerulonefrites pós-infecciosas (ex.: endocardite bacteriana subaguda); Glomerulonefrite lúpica; Glomerulonefrite Membranoproliferativa (GNMP), também chamada de GN mesangiocapilar. Todas estas condições podem ser facilmente excluídas por critérios clínicos e laboratoriais, com exceção de uma: a GNMP (ver adiante), que pode ocorrer após infecções estreptocócicas em crianças e ainda apresentar um padrão semelhante de ativação da via alternada do complemento. A GNMP deve ser suspeitada caso haja proteinúria persistente na faixa nefrótica, ou caso a hipocomplementemia persista por mais de oito semanas (ambas indicações de biópsia na GNPE). É importante sempre termos em mente que as manifestações renais que ocorrem durante uma infecção, geralmente, representam a exacerbação de uma glomerulopatia crônica preexistente, como a doença de Berger ou nefropatia por IgA (ver adiante). Assim, é preciso diferenciar as doenças glomerulares pós-infecciosas específicas (como a GNPE) do papel inespecífico de muitas infecções (principalmente virais), que exacerbam condições renais crônicas, muitas vezes silentes. Tais exacerbações são geralmente caracterizadas por um aumento transitório (ou mesmo surgimento) de proteinúria e hematúria, no curso de uma infecção, sem que haja um período de incubação compatível. Outro dado essencial para a diferenciação com doença de Berger é que esta última NÃO CONSOME COMPLEMENTO!!! TRATAMENTO O tratamento da GNPE consiste em medidas de suporte, com repouso durante a fase inflamatória aguda (enquanto houver edema e hipertensão). A conduta geral deve ser individualizada de acordo com a gravidade das manifestações clí​nicas e com o nível socioeconômico do paciente, sendo sempre preferível o tratamento ambulatorial. A Tabela 6 reúne as principais recomendações. A chave para o controle da congestão volêmica é a restrição de água e sódio. Os diuréticos de alça (furosemida, ácido etacrínico) são as drogas de escolha para o tratamento do edema, da congestão volêmica e da hipertensão. Se a pressão arterial não for controlada com essas medidas, acrescentam-se outros anti-hipertensivos como bloqueadores dos canais de cálcio (ex.: nifedipina), vasodilatadores (ex.: hidralazina) ou inibidores da enzima conversora de angiotensina (ex.: captopril). Vale frisar que estes últimos devem ser feitos com muito cuidado, pelo risco de hipercalemia secundária ao hipoaldosteronismo hiporreninêmico que acompanha a GNPE... O nitroprussiato de sódio é indicado nos casos de encefalopatia hipertensiva. A hemodiálise (com ultrafiltração) será indicada na vigência de síndrome urêmica, bem como para tratar a congestão volêmica grave refratária à terapia medicamen​tosa. Tab. 6: Tratamento de suporte para a GNPE. Repouso e restrição hidrossalina (fundamental). Diuréticos de alça. Vasodilatadores (para a hipertensão, se necessário). Diálise (se necessário). A terapia imunossupressora não tem papel confirmado no tratamento da GNPE, porém, pode ser tentada empiricamente (ex.: pulsos de metilprednisolona intravenosa) nos raros pacientes que evoluem com a síndrome de Glomerulonefrite Rapidamente Progressiva (GNRP = "crescentes em mais de 50% dos glomérulos na biópsia renal" – ver adiante). Está indicado usar antimicrobianos na GNPE? A GNPE não é uma infecção, e sim uma complicação tardia de uma infecção estreptocócica... Preste atenção nas quatro perguntas a seguir, e analise suas respostas: A antibioticoterapia precoce, frente a um quadro de infecção estrepto​cócica (faringite ou dermatite), previne o aparecimento de GNPE? Resposta: NÃO. Sabemos que a antibioticoterapia precoce evita os surtos de febre reumática (que, como veremos no módulo de reumatologia, é outra complicação tardia relacionada exclusivamente à faringoamigdalite estreptocócica). É por este motivo que devemos prescrever antimicrobianos para todas as faringoamigdalites estreptocócicas, porém, é importante ter em mente que o tratamento das faringites ou dermatites, mesmo que precoce, não exerce qualquer influência sobre o desenvolvimento de GNPE. Existe benefício com o uso de antibióticos para a GNPE estabele​cida? Resposta: NÃO. O prognóstico da GNPE não muda se o paciente receber ou não tratamento antimicrobiano. Está indicado o tratamento com antibióticos para aqueles que se apresentam com GNPE? Resposta: SIM. A antibioticoterapia não previne nem influencia o curso de uma GNPE, mas deve ser indicada em todos os portadores de GNPE. O objetivo não é solucionar nem melhorar o quadro agudo de glomerulite, mas sim eliminar da orofaringe (ou pele) as cepas "nefritogênicas" do estreptococo, evitando uma possível recidiva futura, além de reduzir a transmissão para contactantes suscetíveis. Existe, assim como na febre reumática, a necessidade de utilizarmos antibioticoprofilaxia periódica para todos os que algum dia desenvolveram um episódio de GNPE? Resposta: NÃO. Indivíduos com história pessoal de GNPE não estão sob maior risco de desenvolver um novo episódio do que a população geral, e a GNPE, ao contrário da febre reumática, não deixa sequelas... Logo, um segundo ou terceiro episódios teriam a mesma expectativa de morbidade que o primeiro, não havendo benefício confirmado na literatura com a antibioticoprofilaxia... Tab. 7: Uso de antibióticos na GNPE. A antibioti​coterapia​ precoce, em um quadro de infecção estreptocócica, NÃO. previne o aparecimento de GNPE? Existe benefício do uso de antibióticos para o quadro AGUDO de GNPE? NÃO. Está indicado o tratamento com antibióticos para aqueles que se SIM. apresentam com GNPE? Existe, assim como na febre reumática, a necessidade de utilizarmos antibioti​coterapia profilática (periódica) para todos os que já NÃO. desenvolveram algum dia um episódio de GNPE? PROGNÓSTICO Noventa por cento dos pacientes recuperam completamente o volume urinário em até sete dias e, mesmo que tenha sido necessário fazer diálise durante a fase aguda, a tendência é a melhora substancial dos sintomas congestivos (edema, hipertensão) em 1-2 semanas, sem nenhum tratamento específico. Por outro lado, deve-se saber que as alterações do sedimento urinário, especialmente a hematúria microscópica e a proteinúria, PODEM persistir por até 1-2 anos e 2-5 anos, respectivamente, como achados laboratoriais isolados. Na maioria das vezes, a hematúria macroscópica se resolve em duas a quatro semanas... De uma forma geral podemos descrever a história natural da GNPE destacando o tempo máximo esperado para a reversão de cada achado: Oligúria: até 7 dias; HAS e hematúria macroscópica: até 4 semanas; Hipocomplementenemia: até 8 semanas; Hematúria microscópica: até 1-2 anos; Proteinúria subnefrótica: até 2-5 anos. Uma minoria dos pacientes (1-5% dos casos) evolui de forma desfavorável, em particular os adultos de maior idade. A explicação é que estes indivíduos desenvolvem com mais frequência lesões glomerulares muito graves (ex.: GNRP), o que resulta em glomeruloesclerose global irreversível (isto é, todo o tufo capilar é "esclerosado"). Se um grande número de glomérulos for assim perdido, os glomérulos remanescentes acabam sendo "sobrecarregados", o que leva à chamada Glomeruloesclerose Segmentar Focal (GESF) "secundária" (mais detalhes adiante, na parte de síndrome nefrótica). Tais indivíduos evoluem com proteinúria progressiva, podendo atingir a faixa nefrótica. Logo, uma proteinúria na faixa nefrótica é sempre um importante fator ominoso no paciente com história prévia de GNPE! Video_09_Nef1 Tab. 8: GNPE – evolução e prognóstico. Qual é o principal sinal a ser observado nos pacientes que desenvolvem GNPE? A oligúria. Ela costuma melhorar nas primeiras 72h. E se o paciente melhorar o quadro, mas persistir com alterações no EAS, o que fazer? A princípio nada. É possível que exista hematúria microscópica (até dois anos) ou mesmo proteinúria leve (até cinco anos) após o quadro agudo. Quem tem o pior prognóstico? Os adultos. GLOMERULONEFRITE AGUDA INFECCIOSA, NÃO PÓS-ESTREPTOCÓCICA Muitas doenças infecciosas, além da causada pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A, podem estar associadas à GNDA (Tabela 3). Elas incluem os estados bacterêmicos, especialmente os prolongados, e várias patologias virais e parasitárias. Tais condições costumam ser facilmente diagnosticadas pela presença de manifestações extrarrenais típicas, ou mesmo por achados microbiológicos e sorológicos. Assim, devemos reter que existem várias "infecções" que podem ser responsáveis pelo desenvolvimento de glomerulite, para que, diante de um paciente com um quadro infeccioso (bacteriano, viral ou parasitário) associado à síndrome nefrítica, não fiquemos reticentes em afirmar o "porquê" da lesão renal. As condições infecciosas que podem cursar com GNDA estarão minuciosamente detalhadas em material didático complementar. Destacamos, como as mais frequentemente envolvidas, a endocardite bacteriana subaguda, as infecções supurativas crônicas (abscessos viscerais, empiemas cavitários, osteomielite), o shunt VP (Ventriculoperitoneal) infectado, pneumonia por micoplasma, a hepatite viral e a mononucleose infecciosa. As evidências indicam que os imunocomplexos circulantes têm um papel importante na patogenia da GNDA dessas condições, que costumam estar associadas a: (1) depressão persistente dos componentes do complemento (como C3 e C4); e (2) níveis elevados de fator reumatoide e crioglobulinas circulantes. Em alguns estudos, a nefrite relacionada às infecções supurativas crônicas não cursa com queda do complemento sérico. O controle adequado da infecção costuma resultar em melhora dos sinais de inflamação glomerular, embora eventualmente ocorra glomerulonefrite crônica ou mesmo rapidamente progressiva. GLOMERULONEFRITE AGUDA NÃO INFECCIOSA Existem várias doenças multissistêmicas, e até mesmo doenças primárias dos rins, que podem determinar um quadro de glomerulonefrite aguda, sem nenhuma participação (direta ou indireta) de agentes infecciosos. As principais condições que se encaixam neste grupo estão destacadas na Tabela 9, e serão descritas oportunamente. Tab. 9: GNDA não infecciosas. Multissistêmicas Lúpus eritematoso sistêmi​co. Púrpura de Henoch-Schön​lein. Poliarterite microscópica. Granulomatose de Wege​ner. Crioglobulinemia mista es​sencial. Doença de Goodpasture. Primárias Doença de Berger. GN membranoproliferativa (ou mesangiocapilar). GN por imunocomplexos idiopática. GN pauci-imune. GN antimembrana basal glomerular. GN fibrilar/imunotactoide. GLOMERULONEFRITE RAPIDAMENTE PROGRESSIVA Glomerulonefrite crescêntica Glomerulonefrite proliferativa extracapilar Diz-se que há Glomerulonefrite Rapidamente Progressiva (GNRP) quando um paciente que desenvolve síndrome nefrítica, independentemente da causa, evolui para falência renal de curso acelerado e fulminante, com necessidade de diálise, de forma que, sem tratamento precoce, acaba caminhando inexoravelmente para o estado de "rim terminal" em semanas ou meses. Em outras palavras: a GNRP não tratada evolui em muito pouco tempo para esclerose de quase todos os glomérulos, além de fibrose tubulointersticial generalizada, um estado de plena falência irreversível dos rins, tornando necessária a diálise ou o transplante renal para que o paciente sobreviva. O quadro clínico da GNRP pode ser de início abrupto (como na GNDA) ou, mais comumente, de início subagudo, tomando em seguida um curso acelerado. A oligúria costuma ser marcante, por vezes evoluindo para anúria (um sinal de lesão glomerular gravíssima). Em muitos casos, os únicos sintomas do paciente são os da "síndrome urêmica" (insuficiência renal grave), identificados quando a taxa de filtração glomerular torna-se inferior a 20% do normal, com elevação da creatinina além de 5 mg/dl. Podemos citar como exemplos a encefalopatia, a pericardite e o sangramento urêmico – todos indicativos de diálise de urgência. Se um paciente com GNRP for submetido à biópsia renal na fase precoce, provavelmente será encontrada a formação dos chamados crescentes em mais de 50% dos seus glomérulos renais. Mas o que são os crescentes? Os crescentes são formações expansivas que se estabelecem no interior da cápsula de Bowman e rapidamente invadem o espaço das alças glomerulares, desestruturando toda a arquitetura do corpúsculo de Malpighi (Figura 7). Sabe-se hoje que eles são formados pela migração de monócitos (macrófagos) através de alças capilares intensamente lesadas para o interior da cápsula de Bowman – podemos considerar a lesão capilar glomerular o evento inicial deflagrador dos crescentes. A passagem concomitante de fibrinogênio para a cápsula de Bowman e sua conversão em fibrina propicia a sustentação e o crescimento de toda a estrutura. Posteriormente, ocorre a migração de fibroblastos do interstício periglomerular para o espaço capsular. No final, o crescente inflamatório ou celular se converte num crescente fibroso, com perda glomerular irreversível. Fig. 7: Observar toda a arquitetura glomerular destruída pela expansão de um crescente. CLASSIFICAÇÃO E ETIOLOGIA DAS GNRP A GNRP pode surgir em consequência a uma série de doenças sistêmicas, ou então aparecer como complicação ou evolução natural de uma glomerulopatia primária. As principais causas de GNRP estão listadas na Tabela 10. Tab. 10: Causas de GNRP (organizadas pela doença de origem). Doenças glomerulares primárias GN crescêntica idiopática. Glomerulopatias preexistentes: ➤ GN membranoproliferativa; ➤ GN membranosa; ➤ GN focal e segmentar; ➤ Doença de Berger. Doenças glomerulares infecciosas/pós-infecciosas GNPE. Endocardite infecciosa. Hepatite viral B ou C. Outros. Doenças glomerulares multissistêmicas Doença de Goodpasture. Lúpus eritematoso sistêmico. Púrpura de Henoch-Schönlein. Granulomatose de Wegener. Poliarterite microscópica. Crioglobulinemia. Outros (linfoma, carcinoma – próstata, pulmão, vesícula biliar). Doenças glomerulares medicamentosas Alopurinol, d-penicilamina, rifampicina, hidralazina. A GNRP pode ser classificada em três grandes grupos, de acordo com o mecanismo patogênico e os achados laboratoriais. Observe a Tabela 11. A separação em três tipos de GNRP é de fundamental importância na prática, pois o prognóstico e o tratamento geralmente diferem entre eles. Descreveremos adiante com detalhes cada um desses três grupos. No momento, alguns conceitos básicos devem ser colocados... Tab. 11: Tipos de GNRP (organizadas pelo mecanismo de lesão). Tipo I – Depósitos de anticorpo anti-MBG (10% dos casos) Doença de Goodpasture. Glomerulonefrite anti-MBG idiopática (GN crescêntica idiopática tipo I). Tipo II – Depósitos de imunocomplexos (45% dos casos) Renais primárias ➤ Doença de Berger (nefropatia por IgA). ➤ GN membrano​proliferativa. ➤ GN crescêntica idiopática tipo II. Infecciosas/pós-infecciosas ➤ GNPE. ➤ Endocardite infecci​osa. ➤ Hepatite viral B ou C. ➤ Outros. Não infecciosas sistêmicas ➤ Lúpus eritematoso sistêmico. ➤ Púrpura de Henoch-Schönlein. ➤ Crioglobulinemia. ➤ Tumores. Tipo III – Pauci-imunes – pouco ou nenhum depósito (45% dos casos) Granulomatose de Wegener (c-ANCA positivo). Poliarterite microscópica (p-ANCA positivo). Glomerulonefrite crescêntica pauci-imune idio​pática (tipo III). MBG = Membrana Basal Glomerular. A biópsia renal é o exame padrão-ouro para o diagnóstico e classificação da GNRP, em especial o padrão da Imunofluorescência Indireta (IFI). No caso da glomerulonefrite antimem​brana basal glomerular, a IFI demonstra um padrão LINEAR (Figuras 8 e 9), representando os depósitos de anticorpo na membrana basal glomerular. Nas glomeru​lonefrites por imunocom​plexos, este exame revela um padrão GRANULAR. Finalmente, nas glomerulonefrites pauci-imunes, a IFI mostra POUCO ou NENHUM depósito imune. Apenas a fibrina depositada nos crescentes é visualizada no exame. Fig. 8: Observar a deposição de anticorpos apenas na membrana basal. Fig. 9: O resultado é a formação de um padrão linear na imunofluorescência. Três exames sorológicos também auxiliam na classificação da GNRP: Anticorpo anti-MBG elevado: tipo I (GN anti-MBG, síndrome de Goodpasture); C3, CH50 (complemento sérico) reduzido: tipo II (GN por imunocomplexos); ANCA positivo: tipo III (GN pauci-imune ou relacionada a vasculites sistêmicas). ANCA é o anticorpo anticitoplasma de neutrófilo. Video_10_Nef1 GLOMERULONEFRITE ANTI-MBG E A SÍNDROME DE GOODPASTURE O tipo mais raro de GNRP (porém o primeiro a ser descrito) é aquele associado aos anticorpos antimembrana basal glomerular (MBG). Estes autoanticorpos são específicos contra a cadeia alfa-3 do colágeno tipo IV, encontrada apenas na membrana basal dos glomérulos e dos alvéolos pulmonares. O ataque desses anticorpos à membrana basal desencadeia um processo inflamatório grave que pode se manifestar como uma GNRP com ou sem um quadro de pneumonite hemorrágica. De todos os pacientes com a doença do anticorpo anti-MBG, cerca de 50-70% (mais da metade) apresenta, além da síndrome glomerular, uma síndrome hemorrágica pulmonar. Estes pacientes, por definição, possuem a síndrome de Goodpasture. Os 30-50% restantes apresentam apenas a síndrome glomerular – dizemos que eles têm uma glomerulonefrite anti- MBG primária, correspondendo à GN crescêntica tipo I idiopática. A síndrome de Goodpasture acomete basicamente homens jovens (especialmente entre 20-30 anos), com uma relação masculino/feminino de 6:1. Está associada ao marcador genético HLA-DR2 e há nítida relação com história de tabagismo, infecção respiratória recente ou exposição a hidrocarbonetos voláteis (solventes). A hemorragia pulmonar geralmente precede a glomerulite por semanas a meses. A hemoptise é o sintoma predominante. A radiografia de tórax mostra infiltrado alveolar bilateral difuso, correspondendo à hemorragia alveolar generalizada. O teste de difusão do CO (monóxido de carbono) pode distinguir a hemorragia pulmonar de outras causas de infiltrado alveolar (pneumonia, edema). Na hemorragia, há um AUMENTO da difusão deste gás, ao contrário das outras causas de ocupação alveolar; a explicação é a presença de hemácias no interior dos alvéolos – a hemoglobina destas células capta avidamente o CO. Uma anemia microcítica hipocrômica pode se associar à síndrome, devido à perda de ferro para os alvéolos. O diagnóstico diferencial deve ser feito com as outras causas da chamada síndrome pulmão-rim (hemoptise + glomerulite), como a leptospirose e algumas vasculites sistêmicas. Veja a Tabela 12. Tab. 12: Doenças que podem originar a síndrome pulmão-rim. Síndrome de Goodpasture. Poliarterite microscópica. Granulomatose de Wegener. Outras vasculites necrosantes sistêmicas. Lúpus eritematoso sistêmico. Púrpura de Henoch-Schönlein. Crioglobulinemia mista essencial. Púrpura trombocitopênica trombótica. Legionelose. Leptospirose (síndrome de Weil). Hantavirose. Embolia pulmonar consequente à trombose de veia renal associada à glomerulite. Distúrbio da hemostasia. Edema agudo de pulmão com insuficiência renal. Obs.: em nosso meio devemos sempre lembrar da leptospirose como uma das mais importantes causas de síndrome pulmão-rim. Porém, nas provas de residência, as causas mais pedidas desta síndrome são: Goodpasture, Wegener, poliarterite microscópica e LES. O componente renal da síndrome se manifesta como uma GNRP clássica, na verdade, a de evolução mais fulminante e de pior prognóstico! A pesquisa do anti-MBG no soro é positiva em > 90% dos casos, sendo um importante método diagnóstico. Agora cuidado: cerca de 40% dos pacientes também apresentam o ANCA positivo, o que pode indicar a coexistência de uma vasculite sistêmica. O padrão-ouro para o diagnóstico é a biópsia renal, na qual observaremos o padrão linear na IFI e mais de 50% dos glomérulos apresentando crescentes. A glomerulonefrite anti-MBG primária apresenta-se numa faixa etária mais tardia (50-70 anos) e, ao contrário da síndrome de Goodpasture, predomina no sexo feminino. O quadro renal é idêntico ao da síndrome de Goodpasture. TRATAMENTO O tratamento específico deve ser iniciado precocemente, caso contrário, 80% dos pacientes evolui com rins em estágio terminal dentro de um ano, necessitando de diálise ou transplante renal. A terapia deve ser feita com plasmaférese (troca de plasma) diária ou em dias alternados, até a negativação do anti-MBG no soro. Este é o pilar do tratamento da síndrome de Goodpasture. Juntamente com a plasmaférese, devemos acrescentar prednisona (1 mg/kg/dia) e um imunossupressor, que pode ser a ciclofosfamida (2 mg/kg/dia) ou a azatioprina (1-2 mg/kg/dia), sendo esta última usada principalmente após a remissão, na terapia de manutenção. Os títulos seriados dos anticorpos anti-MBG são monitorados para avaliar a resposta à terapia. Se o tratamento for iniciado antes da creatinina plasmática ultrapassar o valor de 5 mg/dl, o prognóstico passa a ser bom, com uma sobrevida renal de aproximadamente 90%. Porém, é inferior a 10% para os pacientes que necessitaram de diálise antes de iniciada a terapia. O transplante renal é viável, mas, devido à possibilidade de recorrência da doença no enxerto, recomenda-se realizá-lo somente após a negativação do anti-MBG por pelo menos 2-3 meses... GNRP POR IMUNOCOMPLEXOS Este item é só para lembrar que quase a metade dos casos de GNRP tem como causa uma glomerulite por imunocomplexos, que pode ser idiopática (rara), infecciosa/pós- infecciosa (ex.: GNPE) ou relacionada a doenças sistêmicas, como o lúpus eritematoso sistêmico (nefrite lúpica proliferativa difusa ou classe IV), além de causas mais raras. O quadro clínico é o de uma GNRP clássica, porém há caracteristicamente uma queda do complemento sérico (C3 e CH50), com anti-MBG e ANCA negativos. A biópsia mostra um padrão granular na IFI, contendo depósitos de IgG e C3, principalmente. O tratamento deve ser feito (pelo menos no caso da nefrite lúpica) com corticoide em pulsoterapia e imunossupressores. Este tema será revisto em material didático complementar. GNRP PAUCI-IMUNE (ANCA POSITIVO) Corresponde a quase metade dos casos de GNRP, competindo em frequência com a GNRP por imunocomplexos. Nos adultos velhos, é a forma mais comum de GNRP! Pode ser primária (idiopática), quando limitada ao rim, ou fazer parte de uma vasculite sistêmica do tipo poliarterite microscópica ou granulomatose de Wegener. Clinicamente, não há diferença em relação às outras causas de GNRP, a não ser a presença eventual dos comemorativos de uma vasculite sistêmica. O dado mais importante do diagnóstico é a pesquisa do ANCA – anticorpo anticitoplasma de neutrófilo, que está presente na maioria destes pacientes, geralmente em altos títulos. Veja a Figura 10. O ANCA na verdade não é um único anticorpo, mas representa qualquer anticorpo que se ligue ao citoplasma de neutrófilos humanos. No caso da GN pauci- imune idiopática, o antígeno principal é a mieloperoxidase, que se concentra na região perinuclear do neutrófilo – neste caso, o padrão do exame é o p-ANCA (p = perinuclear). No caso da granulomatose de Wegener, o antígeno-alvo é a proteinase 3, que se distribui de forma homogênea pelo citoplasma do leucócito – neste caso, o padrão é o c-ANCA (c = citoplasmático). No caso da poliangiite microscópica, geralmente temos o padrão p-ANCA, mas o c-ANCA também pode ser encontrado em alguns casos. Fig. 10: Anticorpo anticitoplasma de neutrófilo (ANCA). 10A: Padrão c-ANCA (citoplasmático), específico para granulomatose de Wegener. 10B: Padrão p-ANCA (perinuclear), que pode s

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