Mundo Helenístico - Volume 1 - PDF
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2012
Juliana Bastos Marques, Monica Selvatici
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Este livro, intitulado "Mundo Helenístico", aborda o período helenístico, focando nas interações entre o mundo grego e o mundo oriental após as conquistas de Alexandre, o Grande. O texto destaca a riqueza cultural e as semelhanças desse período com a atual globalização e multiculturalismo. O material didático explora conceitos importantes da história antiga, utilizando mapas históricos e discutindo paralelo com acontecimentos contemporâneos.
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Juliana Bastos Marques Volume 1 Monica Selvatici Volume 1 ISBN 978-85-7648-861-3 código de barras 9 788576 488613 Mundo Helenístico...
Juliana Bastos Marques Volume 1 Monica Selvatici Volume 1 ISBN 978-85-7648-861-3 código de barras 9 788576 488613 Mundo Helenístico Mundo Helenístico Mundo Helenístico Volume 1 Juliana Bastos Marques Monica Selvatici Apoio: Fundação Cecierj / Consórcio Cederj Rua da Ajuda, 5 – Centro – Rio de Janeiro, RJ – CEP 20040-000 Tel.: (21) 2333-1112 Fax: (21) 2333-1116 Presidente Carlos Eduardo Bielschowsky Vice-presidente Masako Oya Masuda Coordenação do Curso de História UNIRIO – Mariana Muaze Material Didático ELABORAÇÃO DE CONTEÚDO Departamento de Produção Juliana Bastos Marques Monica Selvatici EDITOR DIRETOR DE ARTE COORDENAÇÃO DE Fábio Rapello Alencar Alexandre d'Oliveira DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL COORDENAÇÃO DE PROGRAMAÇÃO VISUAL Cristine Costa Barreto REVISÃO Alexandre d'Oliveira SUPERVISÃO DE Cristina Freixinho ILUSTRAÇÃO DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL REVISÃO TIPOGRÁFICA Fernando Romeiro Flávia Busnardo Beatriz Fontes CAPA Carolina Godói DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL Cristina Freixinho Fernando Romeiro E REVISÃO Elaine Bayma Ana Amélia Brasileiro Medeiros Silva PRODUÇÃO GRÁFICA Patrícia Sotello Verônica Paranhos Fábio Peres Lúcia Beatriz da Silva Alves COORDENAÇÃO DE Marcelo Oliveira PRODUÇÃO Paulo Alves Ronaldo d'Aguiar Silva AVALIAÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICO Thaïs de Siervi Copyright © 2012, Fundação Cecierj / Consórcio Cederj Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Fundação. M357m Marques, Juliana Bastos. Mundo helenístico v. 1. / Juliana Bastos Marques, Monica Selvatici. - Rio de Janeiro : Fundação CECIERJ, 2012. 204 p. ; 19 x 26,5 cm. ISBN: 978-85-7648-861-3 I. Mundo helenístico. 2. Cultura medieval.l 3. Mundo grego. 4. Egito. 5. Macedônia. I. Selvatici, Monica. II. Título. CDD: 930 2012.2/2013.1 Referências Bibliográficas e catalogação na fonte, de acordo com as normas da ABNT. Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Governo do Estado do Rio de Janeiro Governador Sérgio Cabral Filho Secretário de Estado de Ciência e Tecnologia Alexandre Cardoso Universidades Consorciadas UENF - UNIVERSIDADE ESTADUAL DO UFRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO RIO DE JANEIRO Reitor: Silvério de Paiva Freitas Reitor: Carlos Levi UERJ - UNIVERSIDADE DO ESTADO DO UFRRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL RIO DE JANEIRO DO RIO DE JANEIRO Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro Reitor: Ricardo Motta Miranda UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE UNIRIO - UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO Reitor: Roberto de Souza Salles DO RIO DE JANEIRO Reitor: Luiz Pedro San Gil Jutuca Mundo Helenístico SUMÁRIO Volume 1 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais _____________ 7 Juliana Bastos Marques Aula 2 – As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material ________________33 Juliana Bastos Marques Aula 3 – O mundo grego antes de Alexandre: das Guerras Médicas a Filipe II _________________57 Juliana Bastos Marques Aula 4 – As conquistas de Alexandre e a construção da imagem do grande general _________________83 Juliana Bastos Marques Aula 5 – O Egito ptolomaico _________________________ 113 Monica Selvatici Aula 6 – A Ásia selêucida e os reinos asiáticos __________ 141 Monica Selvatici Aula 7 – A Macedônia dos antigônidas e as ligas gregas ____________________________________ 169 Juliana Bastos Marques Referências________________________________________ 197 Aula 1 Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais Juliana l Bastos Marques Mundo Helenístico Metas da aula Apresentar e discutir o recorte temporal que define o período helenístico como uma construção da historiografia moderna, suas definições primordiais e as implicações da interação entre o mundo ocidental grego e o mundo oriental incorporado a partir das conquistas de Alexandre. Objetivos Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de: 1. avaliar de forma crítica a definição do mundo helenístico como recorte temporal e espacial historicamente determinado; 2. identificar elementos das interações sociais, culturais e econômicas entre o mundo grego e o mundo oriental nesse período; 3. estabelecer paralelos entre essas interações no mundo antigo e a realidade atual. Pré-requisitos Para que você encontre mais facilidade na comprensão desta aula, é importante recapitular os conceitos trabalhados na disciplina História Antiga, em especial os relacionados com o período que iremos estudar. Como sempre, um atlas histórico é fundamental para que você saiba situar geograficamente o conteúdo trabalhado. Sugerimos também procurar acompanhar nos jornais e revistas as notícias e comentários sobre a guerra no Iraque e no Afeganistão, para que você trabalhe melhor os objetivos da aula. 8 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais INTRODUÇÃO Esta é a primeira aula de uma disciplina que irá tratar de um período bastante específico da Antiguidade, e que até recentemente havia sido muito pouco explorado pelos estudos acadêmicos da área. Dentro do currículo do Ensino Básico, também há pouco espaço para apresentar o assunto, mas isso é reflexo exatamente dessa posição, hoje superada, que privilegiava o estudo da Grécia clássica e da Roma imperial como os principais blocos temáticos do mundo antigo. Por que estudar o mundo helenístico, então? Veremos, nesta e nas próximas aulas, que este é um período que apresenta características muito similares ao mundo de hoje, quando pensamos em conceitos como a globalização e o multiculturalismo. Porém, ao mesmo tempo que culturas e sociedades tão diversas da nossa se tornam cada vez mais próximas, é ainda o conjunto da cultura ocidental, hoje capitaneada pela sociedade norte-americana, mas ainda também pelos europeus, que determina certa homogeneidade de modos de vida e visões de mundo que caracterizam o fim do século XX e início do século XXI. No decorrer das aulas, estudaremos como se deu a primeira grande conquista de uma sociedade ocidental no Oriente Próximo, com a introdução de uma determinada cultura e um modo de vida em regiões tão vastas e diversas entre si, até os confins do mundo conhecido na Antiguidade ocidental. O paralelo entre esse mundo e o nosso às vezes pode transparecer de maneira mais clara, outras não. E é justamente essa compreensão das semelhanças e diferenças entre realidades diferentes no tempo e no espaço que constitui a habilidade fundamental do historiador. E nada melhor do que estudar o mundo helenístico para entender como isso funciona. 9 Mundo Helenístico Delimitando: o que é o mundo helenístico? Provavelmente você já deve conhecer Alexandre, o Grande, e Cleópatra, duas das figuras mais conhecidas do mundo antigo. Os dois representam o início e o fim do período que iremos estudar nesta disciplina, mas é possível que você não conheça muito sobre o que aconteceu entre as épocas de cada um. O cinema oferece opções interessantes para quem quer conhecer, de modo romanceado, um pouco mais sobre as histórias de Alexandre e Cleópatra. São dois filmes: o primeiro é a cinebiografia do general e rei, vivido por Colin Farrell e dirigido por Oliver Stone em 2004. O segundo é um clássico de 1963 chamado Cleópatra, apresentando a vida da legendá- ria rainha do Nilo (Elizabeth Taylor) envolvida na conquista de Júlio César e Marco Antônio. Este clássico ganhou o Oscar de Fotografia, Direção de Arte, Figurinos, Cenários e Efeitos Especiais. Fontes: http://www.adorocinema.com/filmes/alexandre; http://www.imdb.com/media/rm336500992/tt0056937 10 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais De fato, o período helenístico tem sido muitas vezes deixado de lado como uma transição pouco importante entre a Grécia clássica, de Péricles e do auge da democracia, e a ascensão do Império Romano, que seriam os dois grandes períodos fundadores da tradição cultural ocidental. Veremos, nesta aula, algumas das razões que permitiram a criação desta imagem e também que, na verdade, o estudo do período helenístico traz questões muito relevantes para o estudo da História. As conquistas de Alexandre e os impérios que se sucederam à sua morte representam um novo tipo de interação cultural entre o mundo grego e as diversas sociedades do Oriente Próximo. A cultura grega adentra e instala-se no Oriente, e as formas em como se deu esta mistura são muito ricas e variadas. Iremos nos questionar continuamente durante o curso sobre como funcionou este processo: Houve uma imposição do modo de vida grego no Egito, na Ásia Menor e na Mesopotâmia? Em que medida a cultura grega foi realmente incorporada nessas regiões? E as culturas locais, como sobreviveram? Elas também influenciaram os gregos? E será que podemos falar de uma “cultura grega” única, espalhando-se de maneira uniforme por todo o mundo helenístico? As conquistas de Alexandre destruíram o Império Persa ou alguns dos elementos anteriores permaneceram? Na introdução de seu livro sobre o mundo helenístico, o historiador Peter Green afirma: “A era helenística traz uma grande vantagem para nós: é facilmente definível” (1993, p. 15). Na verdade, os outros estudos dedicados ao tema demonstram que o assunto é um pouco mais complexo. Quando termina o mundo clássico grego e começa o mundo helenístico? Diferentes eventos têm sido propostos como marco: 11 Mundo Helenístico – 338 a.C., quando Filipe II, pai de Alexandre, derrota os gregos na Batalha de Queroneia e inicia a expansão macedônica, que irá dominar o mundo das cidades-Estados clássicas; – 336 a.C., com a coroação de Alexandre, o Grande, e o início das suas guerras de conquista de um novo império; – ou 323 a.C., quando Alexandre morre na Babilônia e seu império é dividido entre seus generais. Para datas que representem o fim do período, geralmente duas são as mais usadas: – 146 a.C., quando os romanos arrasam Corinto e estabelecem a província da Macedônia, assinalando o início da expansão romana que irá dominar a Grécia; – 31 a.C. (a mais comum na historiografia atual), com a vitória de Augusto sobre Marco Antônio e Cleópatra, com a anexação do Egito como província romana e a morte da última rainha do último império helenístico remanescente. Mas por que estamos falando tanto de datas? Você já sabe que irá encontrá-las em toda parte, especialmente nos livros didáticos mais tradicionais. Elas representam momentos em que acontecimentos únicos, como o resultado de uma batalha, determinam mudanças irreversíveis em configurações políticas e econômicas, e também são um artifício prático para que delimitemos nosso campo de estudo. Porém, não são suficientes para entendermos o surgimento de novas ideias e expressões culturais, filosóficas, artísticas ou religiosas. Além do mais, mudanças políticas muitas vezes não representam uma mudança brusca na vida das populações das áreas envolvidas. A morte de Alexandre, por exemplo, não foi percebida por seus súditos distantes como um divisor de águas, como uma nova era que se estabeleceu da noite para o dia. Assim como a ascensão dos selêucidas, na Ásia, pouco ou nada representou de diferente no cotidiano do camponês, que continuava obrigado a pagar impostos não importando qual fosse o novo governante. Portanto, podemos perceber que o que faz do período helenístico uma época 12 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais tão instigante é a mistura entre as mudanças determinadas pela política e pelos novos contatos culturais, assim como a continuidade de determinados e diferentes modos de vida. Os livros mais antigos sobre a história da Grécia geralmente terminam antes ou com a morte de Alexandre, mas nas últimas décadas podemos notar uma maior valorização do período, com uma extensa gama de estudos específicos. De certa forma, é possível compreender por que o mundo helenístico havia sido deixado de lado pelos estudiosos: o cânone dos autores clássicos Cânone gregos, compilado no próprio período helenístico pelos sábios da Um cânone literário é um conjunto biblioteca de Alexandria, foi em boa parte responsável pela falta de obras, fixado de preservação de outros textos que não aqueles considerados por determinados mais importantes e dignos de estudo. Por causa disto, como iremos compiladores ou por uma tradição, que ver na Aula 2, os textos literários produzidos na época helenística representa o auge, um sobreviveram em pequeno número e geralmente sob a forma de padrão, um modelo fragmentos. Também são abundantes as fontes arqueológicas, ideal de literatura a ser epigráficas, papirológicas e numismáticas, mas estas, no entanto, transmitido e imitado. Vem do grego kanón, demandam conhecimentos bastante específicos para seu estudo que significa “regra”, (veremos mais sobre estas fontes na próxima aula). Além disto, “norma”. nem todos os documentos disponíveis estão em grego, e é difícil encontrar algum especialista que tenha conhecimento suficiente de aramaico, demótico e acadiano (as principais línguas das regiões orientais dominadas pelos gregos) para que possa fazer uma leitura mais ampla das fontes. Pólis É a forma grega A visão idealizada da Grécia clássica como berço da por excelência da democracia, auge das realizações culturais do mundo antigo e cidade-Estado antiga, caracterizada no “berço da civilização ocidental”, também ajudou a ofuscar o período período clássico que veio logo em seguida. Muitos autores viram o mundo helenístico pelo autogoverno como a decadência, o fim da pólis, porque as cidades-Estados de seus cidadãos, gregas tornaram-se submissas a novos impérios. Hoje em dia, esta pela presença de determinados espaços visão está sendo questionada e defende-se a ideia de que a pólis urbanos, como a pode ser definida não a partir da existência de uma democracia ágora, o templo radical e livre, mas sim por uma autonomia territorial e institucional e o teatro, e pela independência política que independe da submissão a um determinado governante. e territorial. 13 Mundo Helenístico Por outro lado, quando estudamos a arte e a ciência helenísticas, vemos que esse foi um período de definição e consolidação de padrões estéticos e científicos vistos até hoje como principais definidores do mundo antigo. Na escultura, por exemplo, as peças helenísticas, preservadas geralmente por cópias do período romano (Figura 1.1), estão entre as mais influentes na visão que a História da Arte tradicionalmente tem da herança clássica. Na ciência, foi no período helenístico que os fundamentos da Matemática, da Geometria, da Astronomia e da Física foram estabelecidos pelos estudiosos gregos. Figura 1.1: Lacoonte e seus filhos, cópia romana em mármore de um original helenístico (200 a.C.), Museu do Vaticano. Fonte: Marie-Lan Nguyen / Wikimedia Commons (Domínio Público) 14 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais O termo “helenístico” Em 1836, o historiador alemão Johann Gustav Droysen (Figura 1.2) publicou um livro sobre a história do período entre Alexandre e os romanos, chamado Geschichte des Hellenismus [História do helenismo], cunhando o termo “helenístico” para designar essa época. O termo vem do verbo grego hellenizô, que significa “eu ajo como grego”, “adoto costumes gregos”, “falo como grego”, e, embora já tivesse sido usado esporadicamente no mundo antigo, Droysen foi o primeiro a usá-lo para determinar um período histórico específico. Assim, destacava-se a época helenística como uma nova era, um período distinto da história grega, sinalizando a expansão da cultura grega para o Oriente com as conquistas de Alexandre e o estabelecimento de uma cultura unificada, que fundiria igualmente elementos gregos e orientais em uma mistura única. Figura 1.2: Johann Gustav Droysen (1808-1884). Fonte: Wikimedia Commons (Domínio Público) Droysen tinha um objetivo específico em sua argumentação. Ele defendia a ideia de que esse processo de fusão cultural criava um ambiente de sincretismo religioso, em que havia uma tendência 15 Mundo Helenístico para se cultuar as diferentes divindades como manifestações de uma força divina única, ou seja, uma “predisposição ao monoteísmo”. Segundo Droysen, junto com um ambiente de “solidão individual” e de “clamor por um salvador”, o período teria sido, portanto, a base ideal para o surgimento do cristianismo. O raciocínio de Droysen Teleologia é de causalidade, baseado na teleologia do idealismo de Hegel: Teoria característica Alexandre e o mundo que ele criou teriam sido as ferramentas que do hegelianismo, prepararam e culminaram logicamente na vinda de Jesus. segundo a qual o processo histórico da humanidade — assim como o movimento de cada realidade O contexto histórico de Droysen nos ajuda a particular — é entender sua preocupação com o mundo hele- explicável como um trajeto em direção a nístico. A Alemanha vivia seu processo de unifi- uma finalidade que, cação nacional, e Droysen tomava a conquista e em última instância, é a unificação feitas por Alexandre e seus sucessores a realização plena e exequível do espírito como um prenúncio do que poderia ser o novo Estado humano. alemão: um regime autocrático, esclarecido, cujos Fonte: Dicionário Houaiss. elevados princípios culturais ajudariam a civilizar o mundo conquistado. Os alemães se viam como her- deiros diretos da civilização grega e se apresentavam como responsáveis por sua difusão. Atende ao Objetivo 1 1. “No geral, o período entre 300 a.C. e a absorção da Grécia pelos romanos não é em si mesmo de interesse algum, e apenas tem valor para nos ajudar a compreender os séculos anteriores.” George Grote, historiador inglês, História da Grécia (1856). 16 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais Repare na data em que foi publicada a obra de Grote. É possível dizer que hoje ainda vemos o período helenístico dessa forma? Por que Grote, escrevendo em 1856, tinha essa ideia? O que mudou e por quê? ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Resposta Comentada Essa ideia tradicional, consolidada no século XIX mas ainda hoje presente, vem da valorização da cultura grega clássica e da democracia ateniense, como auge do mundo grego. A historiografia hoje vê o período helenístico como tendo características próprias, bastante particulares, pois se distingue por uma nova presença de elementos gregos dentro das várias regiões orientais conquistadas por Alexandre. Esta presença não resultou em uma nova cultura helenística homogênea, como muito se pensou, mas teve diferentes nuances locais e foi resultado de um longo processo. A integração da cultura grega com o Oriente A visão tradicional sobre o período helenístico traz em si alguns pressupostos que devem ser repensados: A cultura helenística é uma mistura nova e homogênea entre os mundos grego e oriental. 17 Mundo Helenístico Não existem evidências de que as populações locais na Ásia e no Egito tenham adotado a língua e os costumes gregos de maneira universal. A colonização grega se deu de maneira gradual, com a fundação de novas bases militares avançadas e cidades com o modelo urbanístico da pólis em diversos pontos do Oriente Próximo. No Egito, as novas populações gregas que migraram para colonizar os novos domínios apresentaram uma característica importante: os gregos nessas áreas formaram as elites locais, mas apenas em centros urbanos restritos – é o caso de Alexandria, Náucratis e Ptolemais. Como já dissemos, a grande maioria das populações camponesas nas imensas áreas conquistadas pouco ou nada teve de contato direto e intenso com os gregos. Assim, esta cultura helenística que agrega elementos gregos e orientais tem nuances espaciais, já que se concentrou em determinados centros urbanos e temporais, pois foi um processo contínuo. Além disso, os gregos já cultivavam importantes contatos com o Egito e a Ásia Menor havia séculos. A divisão que fazemos entre Ocidente e Oriente é reflexo de uma combinação entre a interpretação de fontes historiográficas antigas, que condenavam o suntuoso comportamento das cortes orientais, e uma construção colonialista que teve seu auge no século XIX. Os próprios gregos só começaram a se conscientizar de que possuíam uma identidade distinta da “oriental” quando conseguiram repelir a invasão persa, no século V a.C. Durante toda a Era do Bronze, nos períodos minoico e micênico (aproximadamente de 2100 a 900 a.C.), a arte e a cultura material na Grécia (Figura 1.3) revelam com clareza a presença de decorações, formas e funções que remetem a contatos com a Anatólia (onde hoje é a Turquia), o Levante (Líbano e Israel) e o Egito. No chamado período orientalizante da história grega, entre 750 e 650 a.C. (aproximadamente a época em que viveu Homero), um exemplo desses contatos próximos é a adoção do alfabeto fenício, bem como de formas religiosas e literárias (BURKERT, 1992, p. 6). 18 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais Figura 1.3: Esfinge grega, 560 a.C., exemplo da influência oriental na arte do período arcaico (Museu Arqueológico de Delfos). Fonte: Ricardo André Frantz. Uso autorizado sob licença Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported http://commons.wikimedia.org/wiki/File:028MAD_ Sphinx.jpg A cultura grega foi levada por Alexandre ao Oriente. Bárbaros Há dois pressupostos generalizantes aqui. Em primeiro lugar, Para os gregos, o não podemos dizer que havia uma “cultura grega” uniforme e termo “bárbaro” significava todos indiferenciada. Há também o paradoxo de que Alexandre e seu aqueles povos que não exército eram macedônios, um povo do norte da Grécia que era falavam a língua grega considerado pelos outros gregos como quase bárbaro. Existe um e nem sempre tinha um valor pejorativo. complexo debate entre os estudos atuais sobre como os gregos se O termo vem de uma viam como um povo culturalmente distinto dos outros, já que nunca onomatopeia: “bar- houve na Grécia uma unificação territorial equivalente à do Império bar” soaria como o Romano, do Egito faraônico ou dos persas, por exemplo. De fato, som incompreensível das línguas que alguns elementos são comuns, em especial a língua e um panteão os gregos não religioso relativamente homogêneo, com práticas rituais semelhantes, compreendiam. 19 Mundo Helenístico embora houvesse muitas pequenas diferenças regionais. Nas Olimpíadas antigas, apenas os povos gregos podiam competir – e os macedônios por muito tempo foram excluídos de participar, o que mostra que não eram vistos como totalmente gregos. Em segundo lugar, falar de “mundo oriental” como um bloco homogêneo é desprezar as enormes diferenças regionais, dado que o império de Alexandre compunha-se de um território imenso e variado. As formas de interação cultural que ocorreram no Egito tiveram características diferentes das ocorridas, por exemplo, na costa da Ásia Menor, onde a presença grega já estava consolidada havia séculos, ou na Báctria, uma área remota onde hoje se encontra o Afeganistão (analisaremos melhor estas localizações na próxima aula). Sendo assim, este “amálgama cultural” que se convencionou atribuir ao mundo helenístico não pode ser visto como uniforme, nem do lado grego nem dos diferentes lados orientais. Uma razão para essas generalizações terem ocorrido é a predominância de fontes textuais e de cultura material relativas à ocupação grega dos novos territórios. Os textos literários mais utilizados pelos pesquisadores para estudar o período foram todos escritos em grego, por gregos ou pela elite local helenizada. Na arqueologia, a exploração de ocupações urbanas é predominante, e a preservação de artefatos de luxo provenientes das elites é geralmente mais comum. Apenas nas últimas décadas, textos produzidos em outras línguas, como papiros administrativos egípcios, e estudos arqueológicos da ocupação das populações locais começaram a ser estudados com mais atenção. 20 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais Figura 1.4: Colunas helenísticas da ágora de Gerasa, hoje Jerash, na Jordânia. Fonte: http://www.elinepa.org/indika2007/papers_hellenismintheorient.htm Portanto, como discutimos agora, embora tenha havido sim uma nova dinâmica nos contatos culturais entre gregos e o Oriente Próximo, não podemos dizer que o período helenístico foi pioneiro nestes contatos nem que houve uma fusão uniforme entre duas culturas distintas e monolíticas. O que houve foi uma intensificação de trocas culturais e comerciais, possibilitadas pela unificação territorial em novos impérios sob a liderança das elites macedônias e gregas, que também se estabeleceram em territórios distantes da Grécia. Atende ao Objetivo 2 2. O historiador inglês Arnold Toynbee, autor de uma história comparativa das civilizações, baseada em fatores culturais e religiosos, representa, no trecho que segue, alguns dos 21 Mundo Helenístico paradigmas que observamos aqui. Utilizando as informações fornecidas na aula, quais argumentos você utilizaria para analisar a ideia defendida por Toynbee? (...) o conflito cultural entre o helenismo e as civilizações orientais reapareceu depois que a cultura helênica tinha assegurado com êxito sua supremacia sobre as outras, como uma crise interna das almas helênicas: uma crise que se declarou na emergência da adoração a Ísis, da astrologia, do mahayana, do mitraísmo e do cristianismo, e de muitas outras religiões sincréticas (TOYNBEE, 1987, p. 147). ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Resposta Comentada Os termos-chave para uma crítica à visão de Toynbee são “conflito cultural” e “crise”, que ele usa para defender a ideia de que a cultura grega perdeu suas características definidoras ao entrar em contato com elementos orientais. Como vimos, não só não podemos falar de uma cultura grega homogênea, penetrando no Oriente, como também a influência oriental no mundo grego é já antiga; ocorre no período helenístico uma aceleração destes contatos, configurando um mundo com valores distintos e não necessariamente inferiores aos da cultura grega clássica. 22 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais O mundo helenístico e as relações Ocidente-Oriente hoje Foi apenas depois do fim das Guerras Médicas, ou seja, a Guerras Médicas partir do período clássico, que os gregos começaram a ter consciência O termo médicas aqui é relativo aos de si como distintos dos orientais em termos de valores, crenças medos, uma das e costumes, surgindo assim uma “identidade grega”. Portanto, a principais etnias do expansão para o Oriente com a conquista de Alexandre representou a Império Persa. O nome designa, portanto, primeira investida conscientemente ocidental para leste com propósitos as invasões persas de dominação e colonização. Como veremos com mais detalhes de Dario e Xerxes ao durante as próximas aulas, este processo colonizador teve tanto território grego e os características semelhantes quanto distintas dos outros processos de períodos de guerra em que os gregos períodos posteriores, que você tem estudado ao longo do curso. conseguiram defender A comparação que vamos apresentar aqui tem como intuito, seu território, entre 499 e 449 a.C. O a princípio, distinguir essas semelhanças e diferenças, mas também mais importante relato servir como subsídio para pensarmos o significado da própria sobre este período está situação em que se encontra o mundo de Alexandre nos dias de na obra do historiador Heródoto. hoje. Afinal de contas, a maneira como olhamos para o passado e as perguntas que fazemos a ele estão diretamente relacionadas à nossa leitura do presente, e estudar um período e um lugar tão distantes de nossa realidade só faz sentido se pudermos entender as implicações dos conceitos que ele nos traz. As conquistas de Alexandre destruíram o Império Persa e anexaram as suas regiões em um império que teve a duração apenas da vida do próprio general. No entanto, com a divisão territorial que se seguiu, os três generais que ocuparam a Macedônia e a Grécia (Antígono), o Egito (Ptolomeu) e a Ásia (Seleuco) continuaram o processo de colonização iniciado de maneira sistemática por Alexandre. Ele fundou várias novas Alexandrias por todo o território conquistado, todas estas cidades dentro do modelo urbanístico da pólis grega, e esta política continuou sob as dinastias seguintes, em especial no imenso território asiático, dominado por Seleuco. Por 23 Mundo Helenístico sinal, este também fundou a cidade de Selêucia, adjacente à cidade da Babilônia. A atribuição de nomes próprios dos reis ou da família real a novas cidades era um procedimento comum. Nessas novas cidades se concentrou a elite de origem grega, responsável pela administração e pelo comando militar. Desta elite, alguns eram macedônios veteranos do exército de Alexandre, mas muitos gregos migraram posteriormente para estas novas regiões em busca de oportunidades, riqueza e poder. De forma geral, não vemos indícios de que esta elite tenha adquirido muitos elementos das culturas locais, mantendo assim o uso da língua e dos costumes gregos. Já as populações locais, se quisessem se inserir dentro das novas redes de poder dos conquistadores, precisavam aprender o grego (você se lembra do termo hellenizô, que mencionamos antes?) e adquirir os costumes dos conquistadores. Ao mesmo tempo, a ocupação dessas regiões por Alexandre e pelas dinastias que se seguiram procurou manter as estruturas administrativas que haviam sido criadas pelos persas, como as divisões em províncias e o complexo sistema de estradas e postos, Cooptar que permitia comunicações mais rápidas e eficientes. A cooptação Agregar, associar, das elites locais continuou a ser feita por meio de alianças com admitir numa sociedade com mecanismos tribais, como presentes e casamentos. Também os dispensa das cultos religiosos de cada região continuaram sem restrições, porém formalidades de praxe; incluindo a nova observância aos cultos oficiais. Isto não significa atrair (alguém) para que não tenham ocorrido rebeliões e outras formas de resistência seus objetivos. Fonte: Dicionário Aurélio. – algumas destas rebeliões, como a dos egípcios sob os Ptolomeus IV e V, e a dos judeus sob Antíoco Epifanes, foram altamente desestabilizadoras e demonstraram que a absorção da cultura grega nem sempre era desejada pelas sociedades locais. Mas a historiografia sobre o mundo helenístico nem sempre ressaltou esses conflitos, tradicionalmente apresentando sem questionamentos uma mistura ordenada entre Ocidente e Oriente. Escrita no contexto da colonização do século XIX e início do século XX, ela geralmente refletia conceitos e comportamento imperialistas. 24 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais O esclarecimento para as massas atrasadas, o presente do governo superior, a adoção de uma língua comum (o grego “koiné”), o estímulo econômico: o “fardo do homem branco” europeu foi transferido com primor para os ombros robustos dos precursores do Raj britânico – os gregos e macedônios. O triunfo da cultura grega, cobrindo e civilizando as indiferenciadas populações “orientais” derrotadas sem esforço por Alexandre, continuou a dominar várias discussões da “colheita do helenismo” (ALCOCK, 1994, p. 171). Portanto, assim como os gregos haviam levado a herança clássica para os bárbaros orientais, seus herdeiros europeus apresentavam-se no século XIX com uma “missão civilizadora” nas mesmas regiões que Alexandre havia ocupado. Macedônia: uma polêmica moderna Na verdade, partindo do que já discutimos, nem mesmo podemos dizer que a Grécia reflita em termos culturais sua unidade política hoje, o que é ilustrado pela sua relação conflituosa com a ex-repúbli- ca Iugoslava da Macedônia: O presidente da Macedônia, Branko Crvenkovski, cancelou nesta quarta-feira sua participação em uma cúpula regional, em Atenas, após ser avisado pelas autoridades gregas que não seria permitida a aterrissagem do avião por causa da inscrição "Macedônia". (...) Os dois países mantêm uma disputa sobre a denominação do país ex-iugoslavo, já que a Grécia considera que o nome "Macedônia" é de tradição exclusiva do helenismo e teme reivindicações territoriais em relação à Província grega de mesmo nome (PRESIDENTE..., 2008). 25 Mundo Helenístico O excerto anterior demonstra também o tipo de questão no qual o termo “helenismo” está envolvido atualmente: a disputa para fazer parte da Europa e as vantagens possíveis de serem obtidas com a participa- ção na União Europeia. A União Europeia (UE) é uma união supranacional econômica e política de 27 “Estados-membros”, estabelecida a partir da assinatura do Tratado de Maastricht em 7 de fevereiro de 1992 pelos doze primeiros países da antiga Comunidade Econômica Europeia (CEE). Além disso, a questão traz o problema de uma identi- dade que estabelece quem são os outros a quem esses países podem se opor e de quem, num contexto de “terrorismo internacional”, eles têm de se defender. Arnaldo Momigliano, em um raciocínio derivado das ideias de Droysen, considera que aquilo que o homem europeu cristalizou como parte de sua herança helenística seria o “triângulo” Grécia-Roma- Judeia, um amálgama destas três tradições culturais, correlacionado com o cristianismo, enquanto religião do Ocidente. De fato, esta ênfase está refletida até mesmo em nosso currículo escolar, pautado em boa parte no conhecimento que os próprios gregos e romanos legaram-nos do Oriente – a Índia e a China, quando muito, têm sido continuamente abordadas de maneira superficial nos livros didáticos. 26 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais Arnaldo Momigliano nasceu em 1908 na Itália A e foi professor em Oxford, no University College London e na Universidade de Chicago. É consi- derado um dos historiadores mais importantes do século XX, sobretudo por seus trabalhos historiográfi- cos. Publicou estudos sobre História grega, romana e judaica. Morreu em Londres em 1987. Atende ao Objetivo 3 3. Comentando o viés colonialista da historiografia tradicional sobre o mundo helenístico, a arqueóloga Susan Alcock escreveu: “O Oriente Próximo e Médio foi visto em geral como uma tabula rasa, esperando a marca da civilização” (1994, p. 171). Baseando-se na foto e no texto que segue, responda: Qual seria a diferença entre a colonização grega do Oriente no período helenístico e os objetivos atuais das tropas americanas na região do Afeganistão atual? O pragmatismo de Obama sepulta o messianismo do “Grande Oriente Médio”, idealizado por Bush: a possibilidade teórica de que um golpe de força varresse décadas de intolerância e, como por encanto, implantasse o sopro modernizador da democracia. Fonte: AMBRÓSIO, Marcelo. A estratégia correta no Afeganistão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 01 abr. 2009. Disponível em:. Acesso em: 10 maio 2010. 27 Mundo Helenístico Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Local_man_of_Zirat_village_discussing_construction_of_road_with_US_Army_ Nuristan_Provincial_Reconstruction_Team_12-30-2008.jpg Resposta Comentada A colonização grega do Oriente Próximo teve como importante característica a preservação das estruturas locais anteriores em diversos níveis da vida cotidiana. Os gregos mantiveram as estruturas administrativas do Império Persa e as adaptaram para a língua grega. Mesmo assim, sua presença também gerou conflitos e resistência, não apenas integração. Já um dos maiores problemas da ocupação americana recente no Iraque e no Afeganistão é a dificuldade em compreender as estruturas de poder e a cultura local, tentando impor o modelo democrático americano a sociedades cujo modo de vida característico, no caso atual, de caráter islâmico, está consolidado há muitos séculos. 28 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais CONCLUSÃO As questões que levantamos nesta primeira aula fazem parte de um exemplo histórico de interação cultural e social. O mundo helenístico tem muito a ver com o relacionamento muitas vezes conflituoso, mas também de mistura entre o Ocidente e o Oriente, e até hoje é relevante. A história da conquista e inserção dos gregos no mundo oriental também pode ser vista como um exemplo de colonização, de dominação de povos locais por autoridades externas. Neste sentido, estudar o mundo helenístico é também um laboratório para que possamos entender as diversas formas de interação de diferentes culturas no nosso mundo e entendê-lo com uma postura crítica e consciente. Atividade Final Leia o trecho a seguir, do escritor grego Plutarco (c. 46-120 d.C.), sobre o papel de Alexandre em suas conquistas no Oriente: (...) se examinarmos os resultados da instrução de Alexandre, verás que ele educou os hircanianos para respeitar os laços do casamento, ensinou os aracosianos a cultivar o solo, persuadiu os sogdianos a tolerar seus pais, e não matá-los, e os persas a reverenciar suas mães, e não se casarem com elas. Ó, maravilhoso poder da instrução filosófica, que levou os indianos a adorar os deuses gregos, e os citas a enterrar, e não devorar, os seus mortos! (PLUTARCO. Moralia, 328 a.C.). Segundo o que podemos ler em Plutarco, qual seria a visão legada pelas fontes gregas à historiografia sobre a expansão cultural helenística? ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ 29 Mundo Helenístico ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Resposta Comentada Parte da responsabilidade pela ideia que a historiografia tradicional consolidou a respeito da conquista grega do Oriente, com a introdução de uma “civilização superior” nas regiões conquistadas, vem das fontes antigas que sobreviveram até nós. Com a consolidação de uma identidade grega, a cultura que os macedônios levaram ao Oriente Próximo era por eles tomada como instrumento de transformação dos povos bárbaros, em especial quando os costumes e hábitos cotidianos eram por demais distintos dos gregos. RESUMO Nesta primeira aula, vimos como a visão tradicional da Grécia clássica como o berço da civilização ocidental ofuscou o estudo do período helenístico até o século XIX. É nessa época, com a obra de Carl Gustav Droysen, que o termo “helenístico” surge para delimitar uma época específica entre o período grego clássico e a supremacia romana. De fato, esta época hoje é considerada um importante amálgama entre a cultura grega e o mundo oriental, do Egito e da Ásia. Na verdade, essa mistura teve diferentes nuances e ritmos de consolidação, de acordo com as grandes variações locais no imenso território legado pelas conquistas de Alexandre. Não podemos 30 Aula 1 – Introdução ao mundo helenístico: definições e problemas fundamentais entender a expansão grega para a Ásia e o Egito como uma imposição deliberada de uma cultura – podemos traçar níveis diversos de resistência e de assimilação deliberada pelas culturas locais. Até hoje, vemos reflexos desta troca cultural, às vezes imposta, às vezes desejada, na maneira como os ocidentais estabelecem suas relações com o Oriente. Um importante exemplo disso pode ser visto na dificuldade que o Ocidente tem de impor conceitos tais como a democracia no modelo dos EUA nas regiões do Iraque e do Afeganistão. Informação sobre a próxima aula A próxima aula irá apresentar o quadro geográfico e as características das regiões que compunham o mundo helenístico, como também trará para você uma introdução às fontes históricas de que dispomos sobre o período, tanto escritas quanto remanescentes da cultura material das sociedades que iremos estudar. 31 Aula 2 As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material Juliana Bastos Marques Mundo Helenístico Metas da aula Descrever e analisar as características geopolíticas da região compreendida pelo império de Alexandre e reinos helenísticos que se seguiram, bem como apresentar a diversidade das fontes históricas disponíveis sobre o período, literárias e arqueológicas. Objetivos Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de: 1. avaliar as implicações da disposição geográfica da Grécia, do Mediterrâneo e do Oriente Próximo para a história da época helenística; 2. distinguir a disponibilidade e a diversidade das fontes históricas antigas disponíveis sobre o período. Pré-requisitos Para esta aula, a consulta a mapas e/ou um atlas histórico é importante. Procure também recapitular os conceitos aprendidos com a disciplina História e Documento. 34 Aula 2 – As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material INTRODUÇÃO É no estudo do mundo antigo que nos confrontamos de maneira mais explícita com o problema de como as fontes históricas determinam as questões que perguntamos sobre o passado e estabelecem o conjunto de referências que usamos. Sendo assim, é apenas através de um estudo crítico rigoroso que podemos criar inferências e conclusões sobre o passado que transcendam as informações diretas, pois essas são recortes, fornecidas por documentos isolados. Existe uma imensa gama de fatores que determinam a preservação de documentos do passado: um texto ou objeto pode se conservar por algum motivo completamente fortuito ou ter sido deliberadamente escolhido por conta de uma motivação específica. Boa parte dos textos literários de que dispomos sobre o mundo antigo justifica sua conservação hoje pela sua introdução em um cânone literário já delimitado pelos próprios antigos, como vimos na aula passada, cujo recorte estendeu-se e em alguns casos se restringiu ao longo do período medieval. No entanto, é através do reconhecimento de um leque variado de fontes documentais para o período helenístico que podemos obter um recorte cada vez mais amplo daquela realidade. Longe está o tempo em que o historiador valorizava apenas o texto literário produzido pelos antigos como base para sua interpretação do passado, critério esse que em boa parte, como vimos, prejudicou o estudo de um período entre dois outros tão valorizados, a Grécia clássica e o Império Romano. Portanto, nesta aula iremos fazer uma introdução às diferentes fontes documentais antigas disponíveis para o mundo helenístico, dando ênfase à sua diversidade, aos métodos de interpretação e a questões específicas que cada uma delas pode nos trazer. 35 Mundo Helenístico A configuração geográfica do mundo helenístico A importância de se considerar o aspecto geográfico, dentro da análise histórica, tem sido ressaltada desde o pioneiro e inovador estudo de Fernand Braudel sobre o Mediterrâneo, no início da Era Moderna. Há alguns anos surgiu um livro que procurava fazer o mesmo tipo de estudo, de longa duração, para o Mediterrâneo, nos períodos antigo e medieval (PURCELL; HORDEN, 2000), e a premissa básica de ambos os estudos é a mesma: o clima, a vegetação e essencialmente a disposição geográfica da Europa Meridional e do Oriente Próximo (o modo como influenciaram enormemente nas dinâmicas políticas, econômicas e culturais que lá se desenvolveram). No livro O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II, publicado em 1949, Fernand Brau- del procurava estudar as dinâmicas econômicas e sociais por trás da história política do mundo mediterrâneo da época moderna, através do estudo da geografia, do clima e da vegetação da região. Tais elementos teriam influenciado diretamente a ocupação da área e as práticas sociais e culturais desenvolvidas, em um processo de unificação em boa parte, portanto, fisica- Fonte: http://br.gojaba.com/pages/ mente determinado. bookImage.jsf?bookid=5651364 36 Aula 2 – As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material Em termos gerais, a oikumene conquistada por Alexandre, além da Macedônia e da Grécia, era equivalente à extensão máxima do Império Persa que ele derrotou e apresentou-se como continuador, compreendendo as seguintes regiões: Figura 2.1: Mapa do Império de Alexandre, o Grande, com equivalência dos países atuais. Fonte: http://www.grahamphillips.net/alexander/Alexander's_Empire.jpg Trácia, no oeste do mar Negro, que era uma parte do território dos Oikumene citas, acima da própria Macedônia (equivalente hoje à Bulgária Palavra grega que significa “o mundo e a partes da Grécia e da Turquia); habitado”, geralmente Ásia Menor e Cáucaso (correspondendo à Turquia asiática, utilizada como denominador geral do Geórgia, Armênia e Azerbaidjão); mundo grego como Levante (Síria, Fenícia, Judeia, hoje o Líbano, Israel, Síria e Jordânia) um todo, já que o termo era utilizado e Mesopotâmia (Assíria e Babilônia, hoje, Iraque e Kuwait); eminentemente por Pérsia (o território atual do Irã); autores gregos. A palavra é derivada de Báctria e Sogdiana (onde agora se localizam as ex-repúblicas oikos, que significa soviéticas da Ásia Central, mais o Afeganistão e o Paquistão); “casa”, “família“. Egito. 37 Mundo Helenístico O império que Alexandre construiu ao longo de sua breve carreira, posteriormente dividido por seus três generais (Antígono, Ptolomeu, Seleuco, como veremos nas aulas seguintes), ainda se baseava na comunicação já antiga das rotas marítimas que ligavam a Grécia à costa da Ásia Menor, ao Levante e ao Egito, portas de entrada para a Mesopotâmia e a Pérsia. Durante todo o período helenístico, ainda serão preponderantes os contatos por essas rotas marítimas, sejam eles comerciais ou fruto da dinâmica de disputas territoriais que caracterizaria os séculos III e II a.C. Além disso, já era uma característica marcante da cultura grega a intimidade com o mar, em detrimento do deslocamento terrestre por longas distâncias. De fato, o transporte por mar era muito mais eficiente, rápido e barato do que por terra, embora estivesse sujeito à sazonalidade do clima e das correntes (geralmente não se navegava no inverno, por exemplo). “O mar, o mar!” Um exemplo bastante representativo da afini- dade grega com o mar é o texto de Xenofonte – historiador grego – em sua Anabasis (c. 370 a.C.), relatando a volta do exército grego mercenário, o qual ele ajudou a liderar, de uma campanha na Pérsia. Os dez mil, como o grupo ficou conhecido, tinham sido contratados por Ciro, o Jovem, para lutar contra seu irmão, Artaxerxes II. Os gregos ajudaram a vencer a guerra, mas Ciro foi morto, tornando a expedição um fracasso. Ao atravessarem a Pérsia e a Mesopotâ- mia na volta para a Grécia, os soldados encontraram- -se em um ambiente inóspito e desconhecido, mas, ao 38 Aula 2 – As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material avistarem o mar, ficaram exultantes, abraçaram-se e correram para ele, gritando “Thalassa, thalassa!!” (“O mar, o mar!”, livro IV, parágrafo 7). Figura 2.2: Duelo entre hoplita grego e soldado persa, vaso do século V a.C. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/ File:Greek-Persian_duel.jpg Atende ao Objetivo 1 1. O mapa a seguir (BOTSFORD, 1913) indica a extensão máxima do império de Alexandre. Repare na linha demarcatória dentro do mar Mediterrâneo. Essa seria uma das fronteiras do império? Por quê? 39 Mundo Helenístico Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Map-alexander-empire.png ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Resposta Comentada O mapa não representa uma fronteira fixada e reconhecida na época, tal como as fronteiras nacionais hoje, mas mostra apenas uma esfera espacial aproximada de influência. Embora no mapa se destaque a imensidão da parte asiática dos territórios conquistados por Alexandre, é 40 Aula 2 – As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material ao ambiente marítimo do leste do mar Mediterrâneo que os gregos ainda davam grande ênfase, como revelam as relações políticas e econômicas posteriores entre os impérios helenísticos. O mar providenciava as rotas de transporte mais usadas para a Ásia Menor, o Levante e o Egito, portas de entrada para o Oriente. Fontes literárias Um dos fatores que mais contribuíram para a desvalorização da época helenística perante a Grécia clássica e os romanos é o estado das fontes literárias produzidas no período e a maneira como elas chegaram até nós, especialmente no caso da historiografia (os outros textos, como a poesia e a filosofia, serão tratados separadamente em uma aula posterior). Se a época clássica tem Heródoto e Tucídides e a república romana tem Tito Lívio, não herdamos nenhuma narrativa histórica contínua sobre o mundo helenístico que contemple do período de Alexandre até a metade do século II a.C. É apenas a partir daí que surge a narrativa de Políbio, historiador que na verdade pretendia contar a história da ascensão de Roma: ela finalmente nos oferece subsídios mais detalhados para uma reconstituição dos acontecimentos relativos aos impérios helenísticos. 41 Mundo Helenístico Podemos agrupar os historiadores do período P em dois grupos principais: aqueles que nar- raram os feitos e a vida de Alexandre, inaugu- rando o estilo narrativo de fundo biográfico e laudatório, e os que escreveram sobre os períodos posteriores dos impérios helenísticos. No primeiro grupo, temos Calístenes, historiador oficial da expedição de Alexandre e que foi por ele executado, Clitarco e o próprio Ptolomeu, general ma- cedônio que tomou o Egito como seu império. Porém, nenhum dos textos, produzidos por eles, sobreviveu diretamente. Com muitos séculos de distância, as nar- rativas mais completas que temos são de Arriano de Nicomédia (cerca de 80-160 d.C.), de Quinto Cúrcio Rufo (século I d.C.) e a Vida de Alexandre de Plutarco (c. 46-120 d.C.). Já quanto aos historiadores das épocas seguintes, a maioria também sobrevive apenas em referências ou fragmentos: Hierônimo, Dúris, Timeu, Filarco e Arato. A mais importante narrativa seguinte é a de Políbio de Megalópolis (c. 200-c. 118 a.C.), da qual temos apenas os cinco primeiros livros completos e alguns fragmentos dos outros 35. Os textos de Tito Lívio e Diodóro Sículo também são importantes, embora foca- dos na ascensão de Roma. Como então é possível reconstruir essa história? A maior parte dos textos que temos é constituída de fragmentos das obras dos historiadores do período, o que é um material de estudo muito difícil e inconclusivo. Quando falamos de fragmentos, isso pode ter um significado literal, ou seja, um pedaço de papiro ou pergaminho. 42 Aula 2 – As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material Porém, na maioria das vezes, consideramos como “fragmentos” os excertos extraídos de citações de autores posteriores, muitas vezes com vários séculos de distância, e que podem ser cópias diretas ou apenas paráfrases. Já que não temos os textos originais, é através da disposição gramatical desses textos que podemos inferir se um fragmento é uma paráfrase ou uma citação mais exata. Muitas Paráfrase vezes, é através da minuciosa comparação de dois fragmentos de É uma figura de linguagem que faz autores posteriores, citando o mesmo evento de forma semelhante, uma “interpretação que podemos inferir a existência de um autor anterior que tenha ou tradução em que o servido como referência para ambos (o termo técnico para essa autor procura seguir mais o sentido do texto reconstrução é a palavra alemã Quellenforschung, “pesquisa de do que sua letra”. fontes”). Fonte: Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Vejamos um exemplo desse problema. No trecho a seguir, Fócio, patriarca de Constantinopla no século IX d.C., cita a obra de Deuxipo, historiador grego que viveu no século III d.C., sobre o período posterior a Alexandre: Em sua história dos eventos após a morte de Alexandre, ele começa com a própria morte do rei e descreve como o império dos macedônios foi legado tanto a seu irmão Arrideu, filho de Filipe com uma mulher de Larissa chamada Filina, e ao filho de Alexandre que iria nascer de Roxane (pois ela estava grávida), e ainda a Pérdicas e seu grupo, que foram tornados guardiões de ambos por uma decisão dos macedônios (FÓCIO, Bibliotheca, parágrafo 82). Essa passagem exemplifica alguns dos problemas das infor- mações contidas nos fragmentos. O texto é no mínimo uma narrativa de terceira mão, com uma distância de mais de mil anos dos eventos relatados: Fócio cita Deuxipo, que provavelmente estava citando um autor mais próximo ao período original, já que também está séculos adiante dos acontecimentos narrados. Se não tivermos outra cópia do mesmo texto de Deuxipo, não poderemos fazer uma comparação com a paráfrase de Fócio, para estabelecer até que ponto ele foi fiel ao texto que mencionou. A reconstituição da sucessão dinástica, 43 Mundo Helenístico logo após a morte de Alexandre, deve, portanto, contar com outros fragmentos de outros autores, em estado mais ou menos semelhante a este, para que um padrão minimamente coeso seja estabelecido entre todas essas narrativas. Mesmo assim, suponhamos que elas tenham partido de uma ou mais fontes do próprio período narrado, pois sabemos os nomes dos principais historiadores que testemunharam a morte de Alexandre e sua sucessão; assim, a leitura crítica da fonte recai, em primeira instância, na análise das motivações destas últimas fontes, as quais nós pouco conhecemos. Existem algumas importantes compilações desses fragmentos dos historiadores gregos. A maior e mais completa delas foi feita pelo ale- mão Felix Jacoby, na primeira metade do século XX, Fragmente der griechischen Historiker, com um total de 15 volumes e 856 autores antigos. Isso tudo não torna a pesquisa impossível, mas tem sido necessário um longo e minucioso trabalho de compilação, comparação e crítica desses fragmentos para que um quadro narrativo suficiente do período possa ser traçado. Nesse sentido, podemos ver que esse quadro tem algumas características definidoras importantes: em primeiro lugar, como é de praxe entre os historiadores antigos, a ênfase da narrativa histórica dá-se quase que exclusivamente nos acontecimentos políticos, nas lutas pelo poder, nas sucessões dinásticas e nas batalhas. É por isso que mesmo as narrativas modernas sobre o mundo helenístico ainda muitas vezes padecem de um recorte descritivo, voltado majoritariamente para a história política (ERRINGTON, 2008). 44 Aula 2 – As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material Em segundo lugar, o material que essas fontes antigas fornecem- nos dá uma ênfase sistemática à presença grega nas regiões conquistadas, e essa perspectiva “helenocêntrica” dificulta nosso conhecimento sobre o ponto de vista dos povos subjugados. Ao mesmo tempo, o recorte fornecido também lida apenas com a elite governante, em especial os reis e sua corte. É necessário, porém, entender que esse recorte temático era o esperado dos historiadores antigos, pois eles deveriam se submeter às regras estritas do gênero literário em que escreviam. Essas narrativas não deixam de ser o fundamento primordial que permite nosso alargamento temático, quando buscamos fatores econômicos, sociais e culturais que podem estar nessas fontes de maneira apenas tangencial. No entanto, essa diferença de ênfase entre a nossa leitura e a dos antigos apenas revela a natureza das questões que são importantes para nós hoje. Fontes arqueológicas As fontes literárias trazem-nos um recorte bastante restrito do mundo antigo. Seus produtores representavam a elite masculina dos cidadãos livres gregos, cujos interesses fornecem-nos um quadro muito pequeno dentro da diversidade humana do mundo helenístico. Porém, com o desenvolvimento da Arqueologia, a partir do século XIX, veio à tona uma imensa quantidade de objetos relacionados ao período, vindos das mais diversas regiões, e que nos revelam aspectos da vida cotidiana, da economia e da cultura que permaneceriam desconhecidos, se contássemos apenas com as fontes literárias. As fontes arqueológicas revelam aspectos dos mais diferentes segmentos sociais: mulheres, crianças, escravos, comerciantes e soldados, por exemplo, têm voz dentro do registro arqueológico, bem como os povos conquistados. Chamamos de “cultura material” o vasto conjunto de objetos e suportes materiais de textos que refletem a vida cotidiana, e essa cultura material envolve uma série de diferentes tipos de artefatos e de técnicas de interpretação para 45 Mundo Helenístico eles. Porém, além da especialização, é preciso também tomar cuidado com a interpretação desse tipo de evidências. Segundo o professor Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, os principais aspectos negativos das fontes arqueológicas são a sua parcialidade, o fato de não expressarem ideias abstratas, o caráter aleatório de sua preservação – pois ela passa por diversas “triagens sucessivas e sem controle” (MENESES, 1983, p. 106) – e seu aspecto de exclusão, pois geralmente os objetos em um depósito arqueológico foram um dia descartados como lixo por seus usuários (cacos de cerâmica, por exemplo). Mesmo assim, como as fontes arqueológicas são complementos fundamentais às fontes literárias, iremos ao longo do curso estudar como também elas podem ser utilizadas para a compreensão do mundo helenístico. Os subgrupos mais importantes dessas fontes, apresentados a seguir, são a epigrafia, a papirologia e a numismática. Epigrafia A epigrafia é o estudo das inscrições, em monumentos públicos ou privados, em pedra ou em outros suportes. O tipo mais comum de inscrição é a lápide funerária, que fornece grande material para estudos demográficos, como sexo, idade e posição social, e prosopográficos, que se constituem no cruzamento de dados sobre nomes e famílias – o que auxilia na compreensão das estruturas políticas e de grupos particulares, geralmente da elite. No caso do mundo helenístico, existem vários exemplares preservados de decretos públicos, documentos cívicos, de templos e de reis. Essa abundância revela uma grande atividade das poleis gregas no período, contrariando a ideia de que elas estavam em decadência. É também possível aprendermos bastante sobre a atividade política de cidades, de resto obscura, e não só de grandes centros conhecidos, como Atenas ou Rodes. 46 Aula 2 – As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material Porém, existem algumas dificuldades na interpretação desse tipo de material. Muitas vezes, não é possível precisar a data e o local a que se refere uma inscrição – a origem do objeto pode não coincidir com seu local de produção. Nem todas as inscrições estão bem preservadas, e, quando encontramos um fragmento, é necessário ter cuidado ao fazer conjecturas sobre a parte do texto que se perdeu. O texto de um decreto pode também ser bastante específico de um determinado contexto e, analisado sozinho, pode não permitir uma visão de conjunto que seja suficiente para entender seu propósito. O estudo da epigrafia é bastante complexo e demanda uma grande especialização do pesquisador. Depois de decifrado o texto, cabe também ao historiador interpretá-lo em seu contexto mais geral. Vejamos um exemplo desse tipo de fonte – um decreto, da cidade de Gortina, sobre o uso de moedas de bronze (segunda metade do século III a.C.): [Deuses. A seguinte decisão foi tomada] pela [cidade] depois de votação com trezentos] homens presentes: deve-se usar as moedas de bronze que a cidade emitiu; não se deve aceitar os / óbolos de prata. Se alguém aceitar (os óbolos de prata) ou se recusar a aceitar as moedas (de bronze) ou vender algo em troca de grãos, será multado em cinco estáteras de prata. Informações (sobre tais casos) devem ser apresentadas / perante os neotas (corpo de jovens acima de 19 anos), e dos neotas os sete escolhidos por sorteio deverão dar seu veredito sob juramento na ágora. O grupo que tiver a maior parte dos votos ganhará e os sete deverão cobrar a multa do grupo perdedor, dando uma metade [para o grupo ganhador] e a outra metade [para a cidade] (AUSTIN, 2006, p. 233). 47 Mundo Helenístico Algumas convenções são utilizadas nas trans- A crições dos textos epigráficos. Utilizamos colchetes para indicar partes do texto que estão faltando, em que a reconstituição é baseada em fórmulas textuais padrão, de traços diagonais, para indicar a divisão das linhas, e parênteses, para esclarecer partes implícitas, não presentes no texto original. Figura 2.3: Fragmento do código de leis da cidade de Gortina, em Creta, século V a.c. Museu do Louvre. Note o uso do boustrophedon: escrita da direita para a esquerda em uma linha e da esquerda para a direita na linha seguinte. Fonte: http://www.flickr.com/photos/dandiffendale/2343583083. 48 Aula 2 – As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material Papirologia Em uma escavação em 1900 no cemitério de Tebtinis, no oásis do Faium, Egito, foram encontradas várias múmias de crocodilos, em vez das múmias humanas que os arqueólogos procuravam. Frustrado com a descoberta, um dos homens atacou uma múmia com sua espada, rasgando a cobertura que envolvia o crocodilo. Para a surpresa de todos, descobriu-se que essa cobertura era uma cartonagem, espécie de papel-machê feito com papiros que haviam sido utilizados para escrever textos e que depois foram descartados e reutilizados nas múmias. Esse tipo de material propiciou a preservação de um imenso número de documentos e textos no Egito. Foram encontrados, por exemplo, fragmentos de peças antes desconhecidas de Menandro e Eurípides e da Constituição de Atenas, atribuída a Aristóteles, mas também inúmeros documentos de transações comerciais, certidões de casamento, cartas particulares e todo tipo de contratos e registros de impostos. A papirologia é uma especialização também bastante complexa, dado o estado muito frágil e fragmentário dos textos, mas técnicas recentes de computador têm permitido uma análise mais acurada, e muitos papiros ainda aguardam decifração. Veja alguns exemplos de papiros em http://www.sas.upenn.edu/re- ligious_studies/rak/ppennint.html e no site do Museu dos Papiros, da Biblioteca Nacional Austríaca, que contém a maior coleção de papiros do mundo: http://www.onb.ac.at/ev/papyrus_museum.htm. 49 Mundo Helenístico O maior cuidado que se deve ter em relação ao estudo dessas fontes é a especificidade de seu conteúdo e do contexto em que foram encontrados. As condições climáticas e o solo úmido não permitiram a preservação de papiros na cidade de Alexandria, a principal do império ptolomaico, e em todo o delta do Nilo, a área mais populosa do Egito na época. Apenas as áreas rurais mais secas e afastadas, bem como o oásis de Faium, em que algumas áreas foram posteriormente tomadas pelo deserto, tinham condições físicas suficientes para preservar esse material. Também não há uma uniformidade cronológica nesses registros. Figura 2.4: Carta pessoal – Oxirrinco, século II d.C. Fonte: http://www.mlahanas.de/Greeks/LX/OxyrynchusPapyrus.jpg Por isso, importantes questões metodológicas são levantadas pelo estudo dos papiros. Por exemplo, um documento fiscal não faz muito sentido se interpretado isoladamente; então, é necessário compilar um conjunto minimamente coeso de documentos semelhantes para podermos fazer inferências a respeito de como funcionava o sistema de impostos nas vilas do Egito ptolomaico. Ao mesmo tempo, coleções de documentos, como o arquivo de Zenão, no santuário de Serápis, em Mênfis, fornecem um quadro mais completo para um determinado indivíduo, instituição ou lugar. Mas até onde é possível fazer generalizações com base nesses documentos? A realidade 50 Aula 2 – As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material de uma vila pode ser estendida para outras ou para situações fora do Egito? É necessário cuidado e uma crítica rigorosa, para não incorrermos em erros e generalizações equivocadas. Numismática A numismática ou o estudo das moedas pode trazer informações importantes para compreendermos diversos mecanismos em ação no mundo helenístico. São dois os aspectos principais, fornecidos por essas informações: a economia e a ideologia (FLORENZANO, 1997). Quanto ao primeiro, devemos antes de tudo lembrar que as moedas no mundo antigo tinham um valor intrínseco de fato e não apenas representavam um valor de face, como ocorre hoje em dia. Assim, o dracma de prata foi estabelecido por Alexandre como contendo 17,2g, que era o padrão ático de medida de peso. Durante todo o período antigo, diminuições na proporção de metal valioso para a fabricação de moedas e substituições de moedas mais valiosas por outras menos valiosas revelam-nos momentos de inflação e de crise econômica. O segundo aspecto é a forma como as moedas revelam ideologias, propaganda política e alegações de soberania. Seguindo a política de Filipe II, Alexandre buscou a unificação das moedas no império, e essa tendência de padronização continuou durante todo o período helenístico. Moedas de menor valor também começaram a ser produzidas, revelando um crescente processo de monetarização da economia, antes pautada pelas trocas em espécie. As primeiras moedas do período foram cunhadas com a efígie de Alexandre, mas o que é importante notar é que esse procedimento continuou a ser adotado até dois séculos após sua morte. Para que um reinado se apresentasse como legítimo continuador do legado de Alexandre, era imprescindível buscar uma associação direta com ele, o que podia ser feito através da emissão e circulação de moedas contendo sua efígie em uma face e outra imagem (muitas vezes retratos do próprio monarca corrente) na outra. 51 Mundo Helenístico Figura 2.5: Demétrio I Soter, ou “Salvador” (162-150 a.C.), da dinastia selêucida. Note-se que já não é necessária para ele uma associação inequívoca com Alexandre, indicando a consolidação da dinastia. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:DemetriosISoter.jpg. Muitas cidades também emitiam suas próprias moedas, desde que fossem ricas o suficiente e possuíssem autonomia política para tanto. As imagens que essas cidades utilizavam em suas moedas são reveladoras do seu contexto político: as moedas podem ter sido emitidas em nome da própria cidade, em nome de Alexandre ou em nome do rei ao qual estavam submetidas. Apenas o fato de emitir moedas já revela um determinado grau de independência das poleis, mesmo que às vezes ela fosse apenas nominal ou aparente. As moedas também podem nos ajudar a estabelecer sequências dinásticas, como é o caso daquelas emitidas na Báctria. Embora o estabelecimento cronológico desse material seja difícil e nem sempre conclusivo, essas moedas são atualmente quase que o único conjunto de documentos grande o suficiente para fornecer um quadro interpretativo coeso da história daquela região. 52 Aula 2 – As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material Atende ao Objetivo 2 2. Leia novamente a inscrição da cidade de Gortina sobre o uso das moedas (na seção “Fontes literárias” desta aula). O contexto desse decreto é a introdução de novas moedas de bronze, em substituição às de prata, para valores abaixo do dracma. A partir da inscrição que você leu, analise: Por que ele se fez necessário? Que informações sobre a vida política e econômica de Gortina nós podemos depreender a partir da leitura desse decreto? ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Resposta Comentada Como as moedas de bronze tinham menos valor intrínseco do que as de prata, o decreto fez-se necessário para forçar os cidadãos a usar as novas moedas. Esse contexto também indica um período de problemas econômicos na cidade, até mesmo pela diminuição do fornecimento da prata como matéria-prima. O texto também mostra a persistência da economia natural contra 53 Mundo Helenístico a tentativa de monetarização das trocas. A segunda parte do texto mostra o funcionamento de uma assembleia na cidade, revelando que o modelo democrático do período clássico ainda estava presente em determinadas instituições na Grécia helenística. CONCLUSÃO Para que o historiador possa compreender o passado, a interpretação crítica e o rigor metodológico no manuseio de fontes são fundamentais. Não basta ler as fontes, também é necessário compreender como se configurava o mundo onde elas foram produzidas, pois a visão que os antigos tinham de seu ambiente permeia o tempo todo a sua interpretação do mundo. As próprias fontes literárias antigas têm especificidades em sua transmissão e preservação, que determinam o recorte que nós temos para compreender essas sociedades. No caso do mundo helenístico, também porque essas fontes literárias são relativamente escassas quando comparado a outros períodos, torna-se crucial para o historiador buscar as fontes arqueológicas ao traçar um quadro o mais completo possível. Dados a extensão territorial, as diversidades locais e os diferentes graus da colonização grega no mundo oriental, é apenas através de uma leitura crítica desse conjunto de evidências que o estudo do período se torna possível. 54 Aula 2 – As evidências: características geográficas, fontes escritas e cultura material Atividade Final Atende ao Objetivo 2 “Não existe uma única ‘história helenística’, mas uma série de histórias diferentes” (SHIPLEY, 2000, p. 17). Com base na diversidade de fontes primárias disponíveis para o mundo helenístico, podemos concordar com a afirmação de Shipley? Como? ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Resposta Comentada As fontes literárias sobre o mundo helenístico que sobreviveram até nós, completas ou em fragmentos, mostram um recorte específico daquela sociedade: o mundo do homem grego livre, da política, das batalhas e dos reis. Se nos basearmos apenas nelas, perdemos de vista a enorme diversidade de povos, culturas e realidades que podemos encontrar através da análise das fontes arqueológicas. Mas mesmo estas também apresentam recortes, tendo sido preservadas de forma arbitrária, e fornecem-nos informações de realidades específicas. É apenas o conjunto dessa diversidade de fontes que nos permite captar as diferentes histórias do mundo helenístico. 55 Mundo Helenístico RESUMO Esta aula apresenta as diversas fontes disponíveis ao historiador para reconstituir o mundo helenístico. Em primeiro lugar, os mapas e o estudo da localização e das características geográficas das regiões conquistadas por Alexandre também podem ser vistos como fontes, já que nos ajudam a compreender dinâmicas políticas, econômicas e culturais que lá se desenvolveram. Os textos escritos sobre o período são muitas vezes fragmentários, o que requer um grande cuidado metodológico em sua utilização. Também as fontes da cultura material estudadas pela Arqueologia, como inscrições, papiros e moedas, podem nos revelar outras facetas do passado, como, por exemplo, a vida cotidiana além do mundo da elite grega letrada. Informação sobre a próxima aula Na próxima aula, faremos uma recapitulação do estado em que se encontrava o mundo grego antes da ascensão de Alexandre ao poder, com os resultados do fim da Guerra do Peloponeso, o enfraquecimento político das cidades-Estados gregas e o surgimento da Macedônia como força milita