MOVIMENTOS DO CORPO EM DANÇA: DO CORPO-SEM-ÓRGÃOS AO CORPORAR PDF

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Jardel Sander Silva

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Este artigo analisa o corpo e o movimento na dança, examinando a relação entre corpo e imagem e a produção de espetáculos de dança contemporânea. Explora conceitos como a hipostasia do corpo como imagem, o corpo-sem-órgãos e a noção do corporar.

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MOVIMENTOS DO CORPO EM DANÇA: DO CORPO-SEM-ÓRGÃOS AO CORPORAR Jardel Sander Silva1 - Doutor (PUCSP) [email protected] Vivemos numa cultura contemporânea arrebatada pela produção de imagens prêt-à-porter. A ima- gética da vida, nosso cotidiano, abarca todos os aspectos do nosso modo de vida, mas recai com especial predileção sobre o corpo. Sim, o corpo humano, visto, revisto e revirado por uma excessiva produção de imagens, que o escrutina nas mais recônditas dobras de sua existência. Mas também as artes, amiúde, instalam-se confortável e acriticamente nesta imagética contempo- rânea. Especialmente as artes do corpo, que em grande parte de sua produção tem nos oferecido palatá- veis espetáculos de virtuosismo, cuja forma se sobrepõe à força com lastimável frequência. Nosso principal problema, para não cairmos em qualquer saudosismo por um passado idílico, é que a imagética espetacular de nossos tempos tende a produzir evidências, tende a evidenciar. E nossa evidenciante atualidade, absolutamente mergulhada no afã pelo movimento e pela velocidade, parece ter conferido ao corpo o destino de habitar esse território de inexorável “transformação”. Não propriamente de devir; mas dessa noção, por assim dizer, pós-moderna de rápida mudança, de frenesi transformista. E parece que as artes do corpo, embora busquem questionar esse império das imagens-evidências, amiúde fracassam quando é necessário sair da experimentação para a expressão (ou mesmo apresentação). Se- ria porque o experimentado é inapresentável? Seria porque as artes também não conseguiram conferir consistência às suas produções quando não espetaculares? Ou talvez porque não tenhamos tematizado suficientemente a questão que envolve o corpo nas artes – na dança, especificamente – em suas relações com o movimento e com a expressão? Neste texto, procura-se refletir acerca dessas questões. Sobretudo, busca-se tecer uma crítica à hipostasia por que o corpo, contemporaneamente, tem passado, reduzindo-o a uma imagética, e transfor- mando-o num corpo-imagem. A tentativa deste artigo é dar consistência a um corpo-movimento, através da dança, sublinhando um conceito desenvolvido para dar conta da especificidade do corpo-em-dança, qual seja, corporar. 1Dançarino, performer, professor do curso de Dança da Escola de Belas Artes (EBA) – UFMG, na área de performance e dança e novas tecnologias; pós-doutorado na UFSC (bolsista CNPq); doutorado na PUCSP (sob orientação de Suely Rolnik); integrante do grupo Zona de Interferência (Belo Horizonte/MG) e do coletivo de dança planoB (Florianópolis). 19 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 CORPO E MOVIMENTO Mesmo que com muita frequência tem-se problematizado e tecido críticas ao imperativo de um corpo tornado imagem em nossa contemporaneidade, também a relação que se tem estabelecido entre corpo e movimento apresenta-se numa faceta paradoxal, uma vez que o movimento em questão – até mesmo como um derivativo da imagem – tem se caracterizado mais por uma intensa velocidade estacio- nária. Ou, falando corriqueiramente, mexer-se muito para não sair do lugar. O paradoxo que se nos apresenta é o de subsistir, em meio ao império da velocidade e do efême- ro (nossa assim chamada “pós-modernidade”), uma estranha conservação: uma engenhosa forma de ma- nutenção e sustentação do estado de coisas através do movimento, no interior mesmo de nossa extrema fluidez atual. A nossa contemporaneidade nos apresenta uma pluralidade de culturas díspares e (supostamen- te) interligadas. Como se a supressão espaço-temporal (via globalização) nos situasse numa grande co- munidade global, tão rica quanto “conectada”. Nesse cenário, o corpo parece servir de anteparo para múltiplas projeções da utópica aldeia global: em sua inelutável evidência, apresenta-se como signo comum da existência humana em qualquer lugar; e, de modo similar, demonstra sua inquestionável capacidade de “transformar-se”. O resultado lógico da constatação de uma pluralidade cultural em toda sua fluidez e intercambiali- dade, e de corpos transformáveis não poderia senão nos conduzir à – também evidente – constatação de que as subjetividades estão, por seu turno, em processos de mudança, transformando-se. A imagem geral que emerge dessas “constatações” todas, como é próprio a um otimismo evolucio- nista, é que estamos seguindo o natural, embora contraditório, curso da evolução. Estamos melhorando, temos melhorado. No entanto, e esse é o paradoxo de que falávamos acima, há estranhos movimentos de conserva- ção que estagnam, amiúde, corpos e subjetividades. O que seriam exatamente estes movimentos? Sim- ples e temerários anacronismos? Tentativas de sobrevivência? Sintomas de que a transformação talvez passe por outras vias que não a da obviedade evolutiva? Formas, às vezes marcadamente obsoletas e mal-sucedidas, de resistência? Ao que nos interessa aqui, podemos pensar que há algo de conservador na extrema evidência que o corpo tem assumido e na insistência com que somos convocados a nos famili- arizarmos com ele. Poderíamos mesmo dizer que o corpo nos ocupa. Isto é, frente ao risco do “sujeito” se esvaziar, ele foi preenchido. O corpo recheia o humano. As subjetividades são referidas cada vez mais ao corpo, 20 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 mas não para aproveitarem-se de seu devir, de sua processualidade; e sim na tentativa desesperada de sustentarem um si-mesmo mais exterior, mais imagético. De fato, o corpo nos ocupa. Mas não só: nos invade, está presente a todo momento. Suas ima- gens, suas transformações, sua saúde, sua beleza, seu prazer. É quase opressiva a presença do corpo no nosso dia-a-dia, principalmente através da mídia. O que poderia levar-nos a perguntar: o que se pode ainda falar sobre o corpo? Talvez seja necessário não mais se falar em corpo, não mais querer defini-lo por aquilo que ele mostra, ou por aquilo que nele se mostra. Mas também, não buscar o que ele ocultaria, tesouro guardado, pronto a cintilar nas mãos do descobridor. Quem sabe possamos buscar outra expressão para as experiências que rejeitam o corpo. Pois, a- final, não teria se tornado impossível, atualmente, falar do corpo sem querer evidenciá-lo? Quer dizer, sempre que se fala dele, está-se fadado a reposicioná-lo, aproximando-o da forma-homem, fazendo o corpo servir de suporte ao humano. Se pensarmos nos processos de subjetivação contemporâneos, e nesta tentativa de sairmos da obviedade, será necessário que arranquemos da carne qualquer coisa de inaudível, de impronunciável. Consideremos a possibilidade de partir do óbvio, e daí derivar: será que não se poderia pensar o corpo como potência do inumano, uma possibilidade de transposição do humano, ou, usando um termo caro a Nietzsche, experimentações do além-homem? Como se, na sua quase insuportável contradição, essa possibilidade descortinasse uma linha de fuga atroz, cruel, pulsante: na obviedade plácida de que todo corpo é o espaço por excelência do humano, justamente aí decompô-lo, fazendo o corpo buscar o intensi- vo que escapa aos órgãos (corpo-sem-órgãos), envolvendo os presentes num ritual de espanto, de estra- nheza, em que o corpo (em sua organização) vai se tornando inumano em sua recomposição intensiva: devir corpo. O que nos aguarda para além do corpo? Há ainda carne, ossos e pele? Para qual nova fronteira estamos sendo arrastados? O corpo nos convida a ultrapassá-lo enquanto morada do humano. Arrasta- nos ao que Deleuze e Guattari denominam – inspirados por Antonin Artaud – de corpo-sem-órgãos. E mais que isso: o corpo nos convida a processualidades abertas, ao que queremos sustentar neste artigo como um corporar. DEVIR NÃO É DESENCARNAR Nessa nova empreitada, algumas prudências são importantes. Primeiramente, não cair na tenta- ção de desencarnar para liberar os fluxos, na utópica tentativa, por exemplo, de erigir um corpo informáti- co, de pura informação, como esboçado na crítica que Le Breton (2003, p.123-137) faz à negação do corpo presente em alguns entusiastas da cibercultura. Para estes – incluindo-se aí o papa do LSD dos 21 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 anos 60, Timothy Leary – o pós-humano passa pela elisão do corpo, como forma de escapar de sua gravi- dade e, conseqüentemente, da imprevisibilidade dos encontros, o que conduziria esse novo sujeito a en- carnar “um cogito puro”, numa espécie de novo gnosticismo. Nas palavras conclusivas de Le Breton: O discurso do fim do corpo é um discurso religioso que crê no advento do Reino dos Céus. No mundo gnóstico do ódio ao corpo que é antecipado por parte da cultura virtual, o paraíso é necessariamente um mundo sem corpo, equipado de chips eletrônicos e de modificações morfológicas. (Le Breton, 2003, p. 136) De fato, temos vivido enredados numa política de subjetividade que espreme nossas experimenta- ções num corpo previamente formatado. Daí que tenhamos buscado, amiúde, uma saída na fluidez da informação, ou melhor, da informática: O corpo é visto por alguns entusiastas das novas tecnologias como um vestígio indigno fadado a desaparecer em breve. Ele se transforma em membro excedente, em obstáculo à emergência de uma humanidade (que alguns já chamam de pós-humanidade) final- mente liberta de todas as suas peias, das quais a mais duradoura é o fardo do corpo. (Le Breton, 2003, p. 123) Mas o que se nega aí é justamente a problemática do corpo como dispositivo de atualização. Pois o que está em questão para este corpo espremido é similar ao que ocorre ao corpo epiléptico: uma onda, uma intensidade que atravessa uma carne formatada, desfigurando-a. Nossa experiência do corpo comum ou trivial2 aponta, contemporaneamente, a uma incapacidade para encarnar certas qualidades de forças que o atravessam, como se aquilo que convencionamos chamar corpo estivesse tão achatado e reduzido que não suportaria mais certas intensidades, não suportaria a desfiguração. Pois há, certamente, uma desfiguração própria ao corpo, e que Deleuze reportará à sensação: “a sensação é a mão da deformação, o agente da deformação dos corpos” (Deleuze, 1981, p. 28). Ele se refere às pinturas de Francis Bacon. Mas porque não podemos pensar também nas experimentações dos corpos e em sua desfiguração? Se um corpo é afetado pelas forças do mundo – o corpo vibrátil3, segundo Rolnik (2006) – não o seria justa- mente pela ativação de suas sensações? Nesse processo o corpo é lançado no paradoxo: um corpo paradoxal, segundo José Gil (2002). E o assombro é inevitável, o que explicaria o porquê desta tentativa de elidir do corpo sua carne, sublinhan- do uma desencarnada fluidez, como forma de eliminar o paradoxo que lhe é inerente. No entanto, não será negando o corpo, ou reduzindo-o a um processador de informações que se abrirá o caminho para os fluxos, para a vida. Pois quando se desencarna o corpo, escamoteia-se seu pa- radoxo, abranda-se sua desfiguração, e, nesse processo, esvaziam-se também suas intensidades. Por isso, se quisermos traçar linhas de fuga a partir do corpo, é preciso arrancá-lo de sua estratificação, mas 2 Para as noções de corpo comum (ou empírico comum) e corpo trivial, cf. Gil, 2002: 131 e ss. 3 O conceito de corpo vibrátil foi elaborado por Suely Rolnik (2004; 2006), e nos remete a um modo de subjetivação que confi- gura o mundo à maneira como este se apresenta ao corpo, na forma de vibração e contágio. Esse modo implica, sobretudo, uma vulnerabilidade ao mundo. 22 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 sem volatilizá-lo em informação. É preciso, pois, conduzi-lo a novos limiares, aproximando-o de uma zona de intensidades livres, “reino do devir, uma tempestade de forças, o não-estratificado, o informe, um ‘espaço anterior’, espaço de singularidades, no qual as coisas não são ainda” (Levy, 2003, p. 78). É assim que Tatiana Salem Levy (2003), em sua leitura da aproximação que Deleuze realiza em relação à obra de Foucault, apresenta-nos o Fora (dehors) (ibid.). E este Fora não é necessariamente um lugar, ou um espaço-tempo; é ele justamen- te aquilo que nos arranca dos lugares: desterritorialização. Talvez a experimentação do corpo nas franjas deste Fora nos abra para um além-corpo, ou melhor, talvez o além-corpo passe por uma abertura porosa do corpo ao Fora e pela invenção de estratégias de não-enlouquecimento e não-morte. E a tentativa deste exercício não pode cair na reatividade que se manifesta na negação do corpo; o além-corpo é um desdo- bramento em relação à sua estratificação atual. O procedimento implica o inabitual, uma busca pelo não familiar no corpo, numa espécie de ampliação. Mas também uma desfiguração. Uma desfiguração do corpo – seguindo a linha de Deleuze-Bacon – é operada pela sensação, que expõe o corpo ao contato com as forças do mundo, com a presença viva do outro. E se o corpo se desfigu- ra, é para tentar encarnar essas forças que o tomam. A desfiguração não quer dizer que o corpo deixe de ser corpo; ele deixa de ser carne formatada, abrindo-se à encarnação, ao intensivo. Este procedimento, enquanto experimentação, demanda uma outra qualidade de movimento, tal- vez mesmo uma outra velocidade. Poderíamos supor que a lentificação, ou desaceleração reintroduzisse o corpo no intensivo. Mas não há solução fácil entre aceleração e lentidão. Pois se encontra no aumento de velocidade (ou seja, na aceleração) uma prontidão para o movimento. Ou melhor, ao se acelerar o corpo, abre-se pequenas brechas para fazer passar fios de invenção. Como se o corpo pudesse se reinventar através da provisoriedade do movimento, mais do que por sua excelência performática, ou estagnação fotogênica. Pois é disso que se trata: a aceleração vai aproximando o corpo dos seus limiares a partir do caráter provisório experimentado no movimento, e apresenta possibilidades de se romper com alguns au- tomatismos corporais. Nesse aspecto, há um exercício de contato improvisação 4 que se faz a partir do rolamento do cor- po no solo, buscando manter o maior contato corporal possível com o chão. À medida que se vai acele- rando o movimento, ou seja, aumentando a velocidade do rolamento, amplia-se a prontidão para a ação. Isto é, o corpo reage à ação5, não às ideias ou pré-disposições mentais. Improviso. E, nesse aspecto, po- 4 Contato-improvisação é uma técnica de dança contemporânea em que os movimentos, a dança, originam-se de pontos de contato: improvisa-se a partir do contato. Funciona segunda uma lógica física de ação-reação, através de movimentos que exploram transferência de peso, rolamentos, quedas, suspensões etc. O contato-improvisação surge no começo dos anos 1970, nos EUA, a partir das experimentações de um grupo de dançarinos, liderados por Steve Paxton e Nancy Stark Smith. 5 Nietzsche, para distinguir os tipos senhor e escravo, em sua Genealogia da Moral, faz uma distinção em termos das forças que prevalecem em cada um. O que interessa a Nietzsche é a afirmação da vida, o que se dá pela prevalência da ação nas condutas, o que distingue, primeiramente, a reação (re-agir) do ressentimento (re-sentir); mas também, mais profundamente, o tipo senhor do tipo escravo. Por isso, para este autor, a verdadeira reação é a da ação (Nietzsche, 1998: 28 (I, §10)). Essa discussão sobre ação e reação é retomada mais à frente, em termos de movimento corporal. 23 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 de-se dizer que na aceleração do movimento se encontra uma outra possibilidade de relação entre pen- samento e corpo. Mas, por outro lado, na lentificação também, na medida em que nos faz mais presentes, tornando o movimento presente ao corpo e ao pensamento, aguçando a sensibilidade ao que se passa com o corpo, com o espaço e com o tempo. Podemos pensar que lentificação e aceleração operem juntas na potencialização do corpo, na medida em que representam diferenças na sua atualização através do movimento. Não qualquer movi- mento, é claro; trata-se aqui do movimento dançado, mais especificamente, do contato improvisação, ou ainda do corpo em estado de improvisação. E é a partir deste movimento que se pode falar de outra quali- dade da relação pensamento-corpo: um corpo pensante, ou um pensamento em corpo. Ou, então, aproximando-nos um pouco de Henri Bergson6, um pensamento movente, e não mais um pensamento sobre o movimento, que muitas vezes quer conduzi-lo. Pois a relação que se busca entre pensamento e movimento corporal, no intuito de criar, é da ordem da parceria, não da prevalência. VELOCIDADE VERSUS PRESSA O problema, pois, não está na própria velocidade; mas na forma de encarná-la, e numa falta de consistência que faz do corpo-subjetividade tomado por uma ininterrupta velocidade – a pressa – o ante- paro para uma infinidade de clichês do consumo, no seu afã de habitar o interior mesmo da velocidade, de não “estar de fora”. Por isso, cabe uma ressalva: é preciso diferenciar velocidade de pressa, pois esta última parece jogar os corpos (e as vidas) numa fragilidade, ou mesmo numa despotencialização, fazendo- os retornar a si, num alheamento e indiferença – o que é o contrário da expansão; é um ostracismo. A aceleração serve a certos modos dos fluxos da força vital: frente a uma pulsação que pede passagem, ela oferece um ritmo, uma sintonia. Já a pressa, é a pura aceleração, sem passagens: é o oco da velocidade, uma volúpia teleológica, que obedece a um fim previamente determinado, qual seja, não parar! Denise de Sant’Anna7 nos fala dos corpos e suas velocidades, de nossa contemporaneidade a- pressada, e de como no início do século XX várias “inovações”, entre elas o automóvel, contribuíram para nos lançar no afã da velocidade. E se, por um lado, isso pode ter representado novas liberdades – “a pos- sibilidade de liberação do homem de sua geografia e de sua história” (Sant’Anna, 2001, p. 14) –, por outro, trouxe uma forma renovada da agonia. Além disso, jogou-nos numa extrema fluidez: “Fluidez dos corpos e desmanche de seus limites” (ibid.: 15). O que não deixa de ser interessante, em termos de processualida- de, não fosse o fato dessa fluidez e da extrema velocidade terem engendrado um instantaneísmo, que, a exemplo do que ocorre com a percepção do corpo dentro de um avião a jato, em que “o movimento trans- 6 Cf. Bergson, 1974: 105 e ss. 7 Cf. Sant’Anna, 2001, principalmente pp. 13-28 e pp. 41-54. 24 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 forma-se em repouso” (ibid.: 16), assenta-nos num movimento estacionário, tal qual aquelas moscas cuja extrema velocidade de suas asas dão a impressão de permanecerem estáticas no ar. Ou seja, aceleramo- nos, mexemo-nos demais para não sairmos do lugar, para permanecermos exatamente onde estávamos. Daí que se pense em desaceleração como contraponto lógico à problemática da velocidade, como uma forma de “limpar” o corpo. Mesmo não havendo grau zero do corpo, como nos adverte Sant’Anna, sente-se a necessidade de introduzir o corpo num outro regime de experimentação, que não reduza seu movimento a um instantâneo fotogênico. Mas, nesse aspecto, a ideia de desaceleração se mostra restrita, pois, como já foi dito, há sim uma prontidão para a ação que se encontra nos movimentos acelerados. O problema está, pois, na extrema fluidez e na repetição do mesmo a que ela conduz. Por isso, a questão deve ser deslocada de um problema referente à velocidade, para outro, refe- rente à densidade: na extrema fluidez exigida – e oferecida – aos corpos, falta-lhes consistência. Adensar, então, seria um caminho: como se o corpo, numa determinada experimentação, fosse imerso nalguma substância mais densa, que retardasse os movimentos, intensificando-os através da desaceleração. Ou mesmo, como se o próprio corpo se adensasse, instaurando uma outra qualidade de relação com o movi- mento. Porque, afinal, o que se adensa é a sensação neste corpo. Este procedimento, que marca a consistência das sensações no corpo, é o adensamento. Ele vi- sa, por um lado, fazer frente à extrema fluidez dos processos de subjetivação contemporâneos; e, por outro, dar uma alternativa não cristalizadora aos processos, como uma forma de territorialização porosa. Além disso, o adensamento refere-se especialmente ao movimento corporal. E nesse sentido, ele serve de modo às processualidades próprias ao corpo, ao seu devir, e de abertura a uma relação entre pensamento e corpo, que estabelece uma zona de trânsito. CORPORAR É na experimentação em contato improvisação que esta ideia ganha sentido, viabilizando outra forma de se experimentar movimento e pensamento, diferentemente daquela das práticas do corpo habi- tual e cotidiano, que tendem a não se encontrar, seja pela extrema fluidez em que ambos são jogados, levando-os a se esvaziar; seja pela tentativa de prevalência de um sobre o outro. Já nas experimentações de contato improvisação, que partem deste mesmo corpo cotidiano, mas que o expõem a outra forma do mover-se, talvez mesmo bastante simples e basilar: o contato do corpo com o chão. Isto é, a problemática que envolve a relação entre movimento e pensamento é trabalhada a partir deste contato corpo-chão e a sensação da gravidade. A partir daí se experimenta o movimento, que pode ser lento ou rápido, mas cuja qualidade é marcada pela densidade própria a este contato (corpo-chão) que não faz outra coisa senão devolver o movimento corporal à sua materialidade: o real redescoberto através do movimento. 25 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 Nesse processo de reencontro com a matéria, o pensamento muda de qualidade também, indo em direção a ela (materializando-se), aproximando-nos do que Bergson chama de inteligência, ou seja, uma descida gradativa do espírito na direção da matéria, visando espacializar-se (Bergson, 1974, p. 126-7). Essa espacialização pode ser viabilizada pelo adensamento, na medida em que ele possibilita uma per- meabilidade entre tempo e espaço, devolvendo-nos a um modo de experiência que se assemelha à ideia de duração bergsoniana: a reconciliação entre a continuidade (própria ao tempo) e a heterogeneidade (própria ao espaço) (Deleuze, 1999, p. 27). Em outros termos, pode-se dizer que para além do movimento e do pensamento, há uma linha transversal que singra o corpo, a linha do acontecimento: “O acontecimento não é o que acontece (aciden- te), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera” (Deleuze, 2003, p. 152). É um incorporal que atravessa o que se constituía como corpo. Não que este deixe de existir como superfície de inscrição e de expressão, mas não será como visibilidade plena, como estado de coisa. Pois o que se inscreve aí é a inevitabilidade do processo, e o que se expressa é a encarnação da força. Quando um acontecimento toca o corpo, expõe-no na sua processualidade: é um corpo em devir. É um corporar. Corporar é o processo que arrasta pensamento e corpo a uma relação em que ambos se abrem às forças, ao intensivo, a partir de seus encontros e através de seus agenciamentos. Essa relação envolve um extra-ordinário corporal – e talvez o corpo não sustente mais seu nome, não consiga perpetuar ne- nhuma continuidade simples, torne-se denso. O adensamento é o método (a operação) para se corporar. A densidade que resulta desse processo é justamente a do encontro entre pensamento e corpo: um devir corpo só se torna possível quando as formas do agir e do pensar compactuam, e isso se produz através de uma densidade experimentada no movimento. Mas não pensemos que é o corpo que é adensado; é o movimento que o é. Ao corpo cabe experimentar os registros das passagens – seja por aceleração ou lentificação – viabilizadas pelo adensamento no ato de mover-se. O corpo é o índice de que algo se move. Ele é também a garantia de que não se tratam de puras ideias, ou de algum espírito impalpável. Ele é a materialização do movimento. Deste modo, afastamo-nos da já citada utopia cibernética de um corpo-informação, criticada por Le Breton. No entanto, ainda permanece o risco de uma aceleração esvaziada, sem densidade, muito presente nalgumas práticas corporais contemporâneas, como é o caso exemplar das academias de ginás- tica e suas múltiplas modalidades de exercício, em que acelerar é a ordem do dia, pois a transformação do corpo passa por sua ligeireza. Isso se dá por sermos tentados a pensar que as rupturas com o habitual se fazem pela acelera- ção, o que, num certo sentido, não deixa de ser verdadeiro. Mas precisamos considerar o que se objetiva com as acelerações, principalmente a tentativa de uma utópica supressão tempo-espaço no seio do que se tem chamado de “virtual”. E precisamos considerar esses efeitos nas corporeidades. A primeira conse- 26 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 quência, como uma forma de hipótese ao que tem acontecido ao corpo, na velocidade em que este tem sido jogado, é a banalização de um corpo-mercadoria, infinitamente transformável – o que, inclusive, tor- nou-se bastante desejável: mutabilidade, “fluidez”, numa matéria plástica chamada corpo, aparentemente sem limites. No entanto, este modo que muitos corpos encarnam traz consigo um complicador, pois se cai nu- ma circularidade assaz infrutífera, em que a pressa tem feito da velocidade um fim em si mesma, e não mais um modo. Nesse processo, a intensidade foge do corpo, pois ela habita a própria velocidade, não o corpo. Semelhante ao que colocam Deleuze e Guattari a respeito de alguns riscos da (não) produção do corpo-sem-órgãos (CsO): “Havia mesmo várias maneiras de perder seu CsO, seja por não se chegar a produzi-lo, seja produzindo-o mais ou menos, mas nada se produzindo sobre ele e as intensidades não passando ou se bloqueando” (Deleuze; Guattari, 1996, p. 23 – o grifo é meu). Como uma forma de estratégia geral a nossa contemporaneidade, temos nos intensificado (ao menos o temos tentado) no próprio afã infinito de velocidade. Aos nossos corpos se grudam todos os cli- chês, sem seletividade, pois o que interessa é a aceleração, em que o movimento vale por si, e os corpos gozam de uma possibilidade metamórfica, ou melhor, de uma promessa de eterno futuro. Poderíamos pensar que estamos no Eldorado da processualidade: nossa contemporaneidade co- mo um manancial de transformação, de devir. Mas não é este, dos usos do dispositivo-corpo8, o que mais se efetiva9. Antes o contrário: a aceleração como forma de negar o devir – o devir do corpo, da vida, da morte. O que se observa é uma aproximação à mudança, à modificação (algo como um “melhorar-se”) na mesma proporção em que se procura negar o devir, uma vez que este envolve uma aproximação ao caos, ao informe, e nos coloca a dimensão do acontecimento. Isto é, nosso afã por velocidade é na verdade uma necessidade de aceleração: acelera-se a vida, principalmente o corpo, num mover-se frenético, justamente para espantar os devires10, pois não se suporta o acontecimento. De forma semelhante, lida-se mal com a desterritorialização, pois quando nos arriscamos nos limiares, não é como forma de aproximação ao Fora e à porosidade que então se faz necessária; mas como um melhoramento, rumo às imagens de perfeição & sucesso que nos invadem. Daí que se tenha ojeriza do caos, principalmente em relação ao corpo. Por isso, também, que o frenesi do movimento (a aceleração) é uma forma de defesa, que nos resguarda da triste constatação da impermanência dos nossos corpos. E o que se quer são as mudanças, não as im- permanências, pois estas inviabilizam qualquer tipo de voluntarismo: ao Eu-me-transformo voluntarista 8 A discussão sobre o corpo como dispositivo está alhures. Cf. Silva, 2007; Silva, 2006. 9 É um grande desafio lidar, atualmente, com aceleração e devir, sem se cair nos clichês do movimento, sobretudo no que diz respeito às artes cênicas e à dança: como promover velocidade, com leveza, e sem o frenético debater-se dos corpos, per- didos na sua própria falta de densidade? 10 Referência (invertida) a Deleuze que, a respeito das viagens (como professor, por exemplo), assim coloca: “... sou pouco inclinado a viagens; é preciso não se mexer demais para não espantar os devires.” (Deleuze, 1992, p. 172). 27 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 contrapõe-se o devir, em que algo acontece. O acontecimento é justamente o que nos coloca frente ao esplendor das impermanências, jogan- do-nos num lancinante paradoxo, pois se deseja o acontecimento-esplendor, mas quase nunca aquilo que nos escapa. E é próprio ao acontecimento essa “dupla estrutura” 11: um presente de efetuação; e um pas- sado-futuro, impessoal e pré-individual. O que seria este impessoal, isso que nos escapa, este infinitivo que nos age, que atravessa o cor- po? Talvez uma rajada de tempo, mas principalmente o silêncio. O silêncio do corpo, seu ócio, seu peso, seu vagar. Não se suporta um corpo que não se evidencia, que não comunica, que não se fala: tagarelice do corpo. Os indícios das mutações que acometem o corpo são frequentemente recebidos com algum mo- vimento antecipatório: alguma estratégia preventiva e uma piscadela de “eu-já-sabia”. Por isso, e como não conseguimos lidar com essas mutações que nos assaltam, temos preferido habitar a circularidade da velocidade, como uma espécie de antecipação obsessiva: acelerar-se, modificar-se, apressar-se para não ser pego de surpresa pelo devir (novamente: do corpo, da vida, da morte...). É uma circularidade identitá- ria: girar em torno de si mesmo, em que o Eu-me-transformo move-se infinitamente em torno do próprio umbigo. Daí que adensar surja como a possibilidade de uma experimentação do corporar. O adensar como um modo do corporar, como um silêncio falado, uma pausa atuada, agida. Mas adensar é um trabalho paciente: “Não se atinge o CsO e seu plano de consistência desestratificando grosseiramente” (Deleuze; Guattari, 1996, p. 23). Adensar envolve prudência em toda experimentação. No entanto, quando surge a temática da prudência, logo vem atrelada à da conservação. Pois te- mos essa necessidade de reposição, de recolocar o corpo em seu lugar, de reconstruí-lo como morada humana a cada vez, de novo e sempre “humano, demasiado humano”, como nos alerta Nietzsche 12. Por- que, afinal, a negação do devir no/do corpo requer uma paciente e infinita operação de adequação, que mescla ajuste e mudança. E que, de um modo geral, refere-se à conservação, não propriamente do corpo, pois este deve ser transformável; mas de um modo de existência que se perpetua através das infinitas transformações. Como se a experimentação servisse à conservação, quando o que se busca, no intuito de potencializar a vida, é o contrário: um mínimo de conservação que sirva à experimentação. Por isso, é preciso não se falar em conservação, que traz atrelada a si a ideia mesma da perma- nência. Retomando o que já dissemos acima, falemos de prudência e em como isso se daria em termos de 11 Para o que se segue sobre acontecimento, cf. Deleuze, 2003 p.151 e ss. 12 Referência ao livro de Nietzsche, de mesmo título, em que o autor critica toda uma série de “sentimentos morais” que têm reduzido a vida a seus níveis mais baixos de potência, na figura do “homem moral”, que reflete a necessidade metafísica do (tipo) homem. Contra isso, Nietzsche inventa os “espíritos livres”, como uma forma de antídoto. Cf. Nietzsche, 2000. 28 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 experimentação. Ou seja, como pensar experimentalmente a sutil diferença – ou mesmo possíveis aproxi- mações – entre prudência e conservação? Como exemplo, é possível citar uma experimentação da dança. Um dançarino realiza um determi- nado rolamento: deitado com as costas no chão, joga as pernas na direção da cabeça, para rolar para trás e subir numa grande bola. De repente, um descuido: rola de forma errada, deixando a cabeça e pescoço retos, causando um estiramento da coluna, machucando-se. Na hora não para, e continua a dançar. No dia seguinte, não consegue mexer o pescoço. E, dias depois, mesmo recuperando a mobilidade do pesco- ço, a dor e uma certa resistência a movimentos na região persistem, e assim por várias semanas. Ou seja, o resultado é uma redução das possibilidades de movimento, logo, de experimentação. Este exemplo pode nos indicar um caminho, qual seja, pensar a prudência como forma de garantir a continuidade e, no melhor dos casos, a ampliação das experimentações. Mas haveria diferença entre prudência e conservação? Seria útil diferenciá-las? Se referidas às experimentações, podemos distingui-las da seguinte forma: a conservação nos remete mais à permanên- cia de um estado de coisas (questão essencialista); enquanto que a prudência nos remete a modos, a um como: como fazer tal coisa (questão de funcionamento). Em termos “espinosistas”13, teríamos uma con- servação-moral e uma prudência-ética. É claro que, colocado dessa forma, a prudência – diferentemente da conservação – não nos as- senta na plena segurança. Mas nem tampouco a conservação garante a plena segurança-em-vida; apenas seu ideal é uma aposta de que a evitação dos limiares, de que a permanência nas raias do normal venham a promover o paraíso na Terra. E isso parece responder a uma demanda de “maioria”, de rebanho, de todas essas pessoas comuns, que somos todos de alguma forma, e que tentamos a muito custo alinhavar nosso corpo em desagregação: uma espécie de plástica como prática de alisamento do Frankenstein que nunca deixaremos de ser. O ideal da conservação é Dorian Gray, de Oscar Wilde: ah! se pudéssemos confinar todas as marcas das processualidades, dos fluxos que nos atravessam num quadro escondido no sótão... As experimentações deixam marcas. A diferença se encontra na sutileza dessas marcas, como condição para a experimentação e sua continuidade. Como coloca Lapoujade – inspirado em Nietzsche: (...) as feridas são as mais sutis. Isto quer dizer que a exposição do corpo se faz no inte- rior dos mecanismos de defesa... e que o protegem das feridas mais grosseiras. Sutil, aqui, não quer dizer leve ou benigno, mas, ao contrário, quer dizer que as defesas ope- ram suficientemente para que eu tenha acesso à profundeza e à violência de uma ferida sutil – ou, inversamente, que eu tenha acesso à sutileza que esconde uma ferida grossei- ra. (Lapoujade, 2002, p. 88) 13 Refiro-me à distinção que Espinosa faz entre ética e moral (cf. Deleuze, 2002, pp. 28 e ss.; Espinosa, 1991). 29 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 Voltando ao exemplo narrado acima, a prudência do dançarino o conduziu (mais ou menos intac- to) até o mal-realizado rolamento. No entanto, ela não é a suprema guardiã, pois é preciso explorar o mo- vimento, e isso envolve risco. Não nos cabe, pois, repreender a experimentação, ou o nosso ato de expe- rimentar, como se ele fosse a causa de nosso infortúnio. Pois o que está em questão é o modo, e não a própria realização do movimento. Só que a esse como, que nos intriga, não encontraremos resposta defi- nitiva que nos salvaguarde da dor e até mesmo da morte. Pois a prudência apresenta-se como esse míni- mo de conservação que não nega o trágico, mas que busca trair-lhe o desfecho final: primeiramente, a morte física, mas também a morte-em-vida. Dito de outra forma, a prudência é uma tentativa de afirmação, através da experimentação, da vida contra a dor e a morte, mas que não as nega. E isso nos assusta, e por isso ficamos mais frequentemente na conservação. Mesmo porque nossos corpos são machucados, doem e se atemorizam frente às experi- mentações. Afinal, não devemos esquecer que nossa história recente marcou nossos corpos de uma ma- neira muito específica e dolorosa, através de uma ditadura militar (entre os anos 1960-1980)14, que agiu e age no invisível do corpo vibrátil, calando a potência de criação, e associando-a ao medo de morrer15. E o que se busca, então, é acabar com a angústia que as forças do mundo provocam nesse corpo que não se cala, mas que não consegue, muitas vezes, articular sua fala: corpo gago. E se, por um lado, as identida- des podem inspirar alguma segurança, pois organizam, garantem e conservam; por outro, algo aí se es- tanca, e muitos fluxos vitais são barrados. Como se situaria o corpo nesse contexto? Podemos traçar o seguinte diagrama: linhas de experi- mentação, linhas de prudência, linhas de conservação, e linhas mortíferas nos atravessam; e o corpo é o ponto em que estas linhas se entrecruzam. A partir disso, podemos entender como se busca afastar o risco, e o que sobra, então, é o corpo sem o que por ele passa, sem o que o atravessa. Se, para Deleuze e Guattari, o corpo-sem-órgãos (CsO) é um meio pelo qual os fluxos podem se escoar, em que as intensidades circulam, é o indeterminado, em relação à determinação dos órgãos (sua organização); o que temos em nossa contemporaneidade assemelha-se mais ao contrário: um corpo-com- órgãos. A conservação da vida tornou-se um dever e um estandarte, que deve ser empunhado e exibido. Paradoxalmente, o corpo humano pode não ter mais uma essência, sem com isso deixar de ser essenci- almente humano, em seu modo de constituição e de manutenção, isto é, em sua conservação. Esse corpo, reconstruído como morada humana a todo o momento, leva-nos a crer que o que se tem buscado é justamente conservar o humano através do corpo. Mas o que seria isso? É a operação humana – demasiadamente... – de se refletir nas coisas, de se enfiar nelas e crer que é próprio das coisas 14 Mas não só. Se a ditadura militar é nossa herança, cuja dor se inscreve em grande medida em nossas corporeidades, há também todo um rol de violências e agressões cotidianas, das mais “simbólicas”, às mais “concretas” e encarnadas. Para a discussão sobre as marcas nos corpos operadas pela ditadura militar brasileira de 1964-1985, Cf. Silva, 2006, p. 35 e ss. 15 Reflexão desenvolvida por Suely Rolnik, no seminário Produção de Sentido, Produção de Si I, do Programa de Pós- Graduação em Psicologia Clínica – Núcleo de Subjetividade, PUC-SP, 09/11/2005 (anotação de aula). 30 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 serem assim – humanas. Além disso, há o voluntarismo: um sujeito que age e de onde emanam as ações. E, por fim, a negação do trágico. Não teria o corpo passado por essa re-humanização? Não estaria ele passando por isso, tornando-se a imagem-e-semelhança do sujeito, que outrora o comandava, como coisa estranha, alheia, do alto de sua razão redentora, e que agora parece ver-se espelhado em seu corpo? Mais de quatro séculos nos separam de Espinosa (1991), e, na verdade, há algo de inquietante desde lá. Mas a pergunta espinosista volta transmutada: o que pode um corpo – o que pede um corpo... quem pede um corpo? O quem não é uma simples ironia de ocasião, jogo de palavras. O quem responde por uma identificação: eu sou meu corpo. É uma tentativa de apropriação de si através do corpo identifica- do, com seus índices de adequação (o prazer, a saúde etc.). O corpo é chamado a prestar contas de si, é chamado a falar-se, a apresentar-se, e a representar-nos. Todos os possessivos que costumamos usar (meu corpo, meu sexo, minha vida etc.) não marcam supostos territórios que colonizamos e que nos pertencem, pois o corpo-imagem só existe no ato de sua exteriorização visível. O meu corpo é primeiramente a marca de uma (eterna) busca, mas também é o indicativo de adequação, em que “corpo” é o modo de exibição; e “meu” é o que me identifica a ele, me subjetiva nele. Daí que o que pedimos é o nosso corpo. Por isso que falar em corpo-sem-órgãos seja, amiúde, impensável, pois corpos e órgãos viraram outra coisa. Eles foram reorganizados e, em vez de engendra- rem uma indeterminação aberta, eles se prestam a encarnarem uma organização que se apresenta como a imagem hi-tech do humano. É o índice de nossa impossibilidade de arrancar as corporeidades do territó- rio humano que as restringe. A imagem que podemos utilizar para exemplificar isso é a dos filmes de fic- ção científica, em que as forças e formas alienígenas acabam sempre se rebatendo sobre o humano numa espécie de antropomorfismo inexorável: o cinema de ficção científica como diagnóstico de nossa incapaci- dade de lidar com um além-corpo, que não seja desencarnado (pura energia, ou informação ou qualquer outro blá-blá-blá do gênero). Corpo-sem-órgãos parece estranho, atualmente, quando vivemos um momento em que nos apro- ximamos mais de órgãos-sem-corpo16. Ou ainda, de um modo de subjetivação que não se fixa em órgãos ou ao próprio corpo, embora passe necessariamente por eles. Corpos e órgãos tornaram-se fluídos, em- bora em sua insustentável e esvaziada fluidez, demarquem um mais novo espaço de interdições. A im- pressão que fica, passado o frêmito das excitações momentâneas, é que o corpo foi esvaziado. Não esvaziado de coisas, mas de potência disruptiva. E resta a questão: seria possível pensar um além-corpo a partir da carne? A carne não é o que de mais próprio existiria no corpo; ela é fome de mundos, o que desfigura, 16 Vem à mente uma imagem do filme Clube da Luta (Fight Club, EUA, 1999, Dir.: David Fincher), em que, numa determinada cena, o personagem principal lê trechos de uma revista em que os órgãos de alguns pacientes falam em primeira pessoa: “Eu sou a medula de Fulano-de-tal... etc.”. 31 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 para voltarmos a Deleuze-Bacon. Ela não nos preenche, não é nosso estofo. A carne é um movimento que singra o corpo. Trata-se de um atletismo da carne, à maneira que Artaud fala de um “atletismo afetivo”, isto é, “uma saída corporal para a alma” (Artaud, 1993, p. 131). A pulsação da carne atravessa as estratificações que até aqui examinamos: o corpo acuado, a- medrontado e dolorido; o investimento de um determinado discurso neurocientífico que, juntamente com as novas tecnologias informáticas (e a euforia pós-corpórea de seus entusiastas), ajudam a compor o cor- po-informação; e a impalpabilidade do corpo-imagem. Dor e mudez, evidência plácida e a falta de densi- dade, estes efeitos das estratificações mais frequentes que fazem corpo e que se podem visualizar na atualidade, são problematizadas pela carne. Porque, afinal, não se deixa de falar, mesmo que estranhamente, ou de modo bizarro e muitas ve- zes grotesco; também não se deixa de conquistar consistência nalgumas experiências subjetivo- corpóreas. Uma força vital não deixa de pulsar nos corpos, desfigurando-os, contorcendo-os. E se há um corpo emudecido que gagueja ao tentar se expressar; há também um movimento que inventa uma nova língua em ato: corporar. EXPRESSAR Numa sociedade da informação, como a nossa, como poderia o corpo escapar desse regime? Ali- ás, contemporaneamente, o que nos permite agrupar certas práticas sob o nome de corpo assenta-se, de algum modo, num regime de produção de informações sobre o corpo. A esta visibilidade – o corpo-informação –, como estrato contemporâneo, vem-se juntar um corpo- imagem como modo de subjetivação o mais cotidiano. O corpo é uma imagem, e os processos de adequa- ção se direcionam mais ou menos à produção de si através do corpo, em conformidade com imagens- padrão veiculadas e difundidas. Mas não aleatoriamente, pois há boas e más imagens: uma nova moral, que delimita uma outra divisão entre o Bem e o Mal se insinua aí. O que importa é que o corpo se torne imagem, pois se há alguma potência nele ativada é justa- mente a de exibição. Nesse procedimento, o movimento aparece, na maioria das vezes, não como uma potência vital, mas como elemento de trânsito entre imagens, como um elo de ligação que une um antes e um depois: ele é a linha (às vezes o caminho mais curto) entre dois pontos. O movimento, aqui, é usado como ponte que leva de uma imagem à outra. 32 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 O efeito que se tem é o de um corpo dócil, ou melhor, re-docilizado, capturado pela onipresença da sua imagética, em que as subjetividades são corporalizadas segundo o mesmo registro, através de imagens-padrão: corpo-sucesso, corpo-saudável, corpo-atraente etc. E não se escapa disso por intermé- dio de outras imagens (território facilmente capturável), como se o simples reverso das imagens-padrão nos conduzisse a fugas de seu registro. É através de uma outra qualidade de movimento, que consiga colocar em jogo outras potências do corpo, que o tire de seu particularismo e de sua pertença a este terri- tório das puras imagens que encontraremos linhas de fuga que estejam à altura dos fluxos vitais que pe- dem passagem. Se não quisermos reduzir o corpo a uma entidade – “O” corpo – que nos identifica e dessa forma guia nossa subjetivação, é preciso sublinhar a multiplicidade para além de qualquer pluralidade fácil. É preciso tirá-lo de sua evidência e transparência, que o identifica. Pois, ao mantermos estes anseios – transparência e evidência – não fazemos mais que reacomodar imagens em nosso corpo-tela; ou softwa- res, em nosso corpo-hardware. Ou seja, mais e mais evidências. Se há ainda alguma potência disruptiva no que se tem experimentado como corpo (que efetiva- mente são corporeidades), esta advém do mistério, da surpresa, logo de uma forma de relação com o Fora, isto é, com o campo de forças. Se quisermos ativar esta potência temos que correr o risco de desfi- gurar o corpo: levá-lo a seus limiares, expô-lo às forças, ao intensivo, mesmo porque talvez seja essa sua – do corpo – insuportável vocação. Neste aspecto, expressar assume outro sentido: para além de alguma imagem confortável, tornar visível no corpo o registro das processualidades que o riscam, que o marcam. A expressão do intensivo. Pois expressar não é exibir, não é fazer transparecer, não se refere a alguma forma de simples- mente tornar conhecido o desconhecido. Não se refere, enfim, ao cognoscível, a uma modalidade da in- formação. Pelo contrário, é aprofundar o mistério, é torná-lo mais irredutível. Se há alguma razão para se falar em expressão, é no sentido em que o que se expressa não são imagens, mas forças. Uma pulsação vital que pede passagem e que pede forma, e na sua procura por forma, a força deforma o que estava formatado (o corpo), e abre passagem para o informe (a carne). A corporeidade que se abre às passagens não se sustenta mais como corpo (identificado), pois é deformativa. E o movimento pode ser uma solução para se evitar o colapso, que ameaça as experimentações, quando não há forma para abrigar a força, e ela, ou se detém, ou – dependendo da intensidade – desfigura grosseiramente, à maneira da ferida gros- seira de que nos falava Lapoujade. Pensemos, então, numa deformação sutil, numa espécie de limiar, numa forma que agregue mo- vimento e imagem deformada, que parta dos contornos, alargando-os e deformando-os. Pensemos na sombra, como uma forma mínima de exteriorização, que se sustenta no limite do informe: as sombras do corpo. Não como o obscuro, ou o falso. Mas a sombra como um delineamento das forças escapando ao corpo (virtual), do qual ele, em sua organização, se afasta. Aí temos a sombra, riscando um outro corpo 33 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 num lugar qualquer (no chão, por exemplo). E ela, que depende de uma fonte de luz e de um anteparo, forma uma composição: algo se produz na composição luz-corpo-anteparo, no entre. A sombra do corpo é dependente do modo como a luz incide, logo é um corpo perspectivado. Também depende do anteparo, que pode ser plano ou irregular, por exemplo, produzindo sombras diferentes. Portanto, a sombra produz um outro contorno a partir do corpo, ou melhor, um movimento corporal que não é mais corpo, mas um corporar. Não há feições na sombra. Há um traçado, uma geografia, ou melhor, uma cartografia do movi- mento. É ruptura e esboroamento das formas bem traçadas, organizadas, em proveito da produção de linhas instáveis, da ampliação de algumas potências do corpo: por exemplo, de lentificação, desaceleração na dança das sombras. De todo modo, e por estranho que pareça, há, através da sombra, um devir-corpo. Há um corpo- sem-órgãos que é possível vislumbrar nos tênues e instáveis contornos borrados das sombras, que permi- tem não negar o corpo, mas cruzar-lhe as fronteiras. Como se o mais superficial (a pele) fosse duplicado e ganhasse outros contornos nessa exteriorização instável, remetendo-nos a profundidades até então inau- díveis e inexpressáveis. E eis que a máxima de Paul Valéry ganha sentido: o mais profundo é a pele. No entanto, não há densidade na sombra; é um corpo chapado num anteparo qualquer. É por isso que, se por um lado a sombra é uma linha de fuga para o corpo, uma dobra que libera os fluxos na carne; por outro, ela não é uma solução, uma garantia, nem uma fórmula, ou um ponto de chegada. Ela é uma pista para pensarmos uma exteriorização instável e informe, que sublinha a prevalência do movimento. A sombra nos recoloca no mistério, como forma de expressão; mas é o movimento que nos abre ao aden- samento e ao corporar. MOVIMENTO Falamos acima de um corpo-imagem cujo movimento traça o percurso de uma imagem a outra, e que nos enreda num procedimento expressivo em que não se sai da circularidade das imagens. Por outro lado, temos a sombra como um mínimo de expressão, em que a imagem se desfigura, perde seus contor- nos, e sublinha a prevalência do movimento. Mas a sombra é desencarnada. Ela é somente o indício de que um corpo-carne é possível. Mas como pensá-lo? Ou melhor, como pensar a desfiguração no próprio corpo, não como falência, mas como ampliação, como um mais além, um passo à frente? Em que o movi- mento se diferenciaria da expressão? Ou ainda: qual relação há entre movimento e expressão? O movimento, antes de ser o que move o corpo, é algo que se move no corpo. Nesse procedimen- to, o corpo é a forma que se presta e se empresta ao movimento, sendo que este, uma vez tomado pelo 34 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 movimento, faz-se corpo em ação. É um processo, em que o intensivo percorre o corpo, evidenciando neste as passagens dos fluxos. É corporar, que em muito se diferencia das formas de identificação (ser- corpo). Mas o movimento aqui referido não é qualquer um, e sim um movimento de agenciar: compor, co- nectar. E se pode-se falar em corpo – como em corpo intensivo – é no sentido de uma composição. Essa composição deve funcionar como dispositivo, de modo a pôr em relação interior e exterior, superfície e profundidade. Compõe-se no, pelo e para o movimento, e daí pode-se dizer que se expressa. Não como um corpo expressivo, cuja inelutável vocação seria a de se evidenciar, e que objetivaria se desvelar, reve- lar-se ou algo parecido; mas como corpo intensivo que se faz forma, que encontra uma forma. O que se expressa, pois, é o movimento das forças, das intensidades encarnadas no corpo, ou seja, os mapas tra- çados pelo intensivo. Nesse aspecto, podemos pensar em distintos níveis ou registros corporais, que se referem a dife- rentes modalidades expressivas. Tomemos como base uma distinção utilizada pelo teatro Nô japonês17. Segundo os ensinamentos de Zeami (final do século XIV) o ator de Nô é composto por três condições fundamentais: pele, carne e esqueleto (Amagasaki, 1996, p. 27). A pele é sua superfície mais evidente, sua bela aparência; a carne é o movimento, conquistado através dos exercícios; e o esqueleto é seu corpo em estado latente, intenso, virtual (Amagasaki, 1996, p. 28). O objetivo é atingir a este último, pois é dele que emana a dança. Essa distinção em muito nos serve, pois o movimento que se pretende aqui ressaltar é justamente aquele que nos permita atingir as intensidades desse esqueleto. Afinal, a pele, essa superfície aparente e evidente, já há muito que tem sido capturada pela indústria da imagem e pelo sistema de produção e con- sumo. Mas também a própria carne, talvez em menor medida, é convocada a se identificar, a se amoldar a uma forma de movimento padrão, seja ele o da agilidade, da competitividade (incluída aqui a resistência), da “fluidez”, da espontaneidade etc. E nosso esqueleto, essa porção intensiva e virtual é o que parece ser mais indócil, o mais avesso às capturas. Na verdade, é preciso pensar na tensão própria a estes diferentes níveis da experiência corporal, e que se tornam visíveis na dança. Talvez possamos pensar aqui na small dance de Steve Paxton, como discutida por Gil (a partir das descrições do próprio Paxton): “É o movimento microscópico que descobri- mos no interior do nosso corpo e que o mantém de pé” (Gil, 2004, p. 109). Esse “movimento microscópico”, essa tensão que nos passa despercebida na maioria das vezes, isto tudo pode ser remetido à ideia de esqueleto, como descrita acima. Mesmo porque, em muitos exercícios de dança contemporânea focaliza-se muito a coluna verte- bral, bem como os próprios ossos: a coluna com seus movimentos ondulatórios, serpenteantes; os ossos 17 Para o que segue sobre o teatro Nô, cf. Amagasaki, 1996. 35 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 em suas relações de aproximação e afastamento entre si. Há dois exemplos neste sentido: a coluna é evocada para se experimentar o movimento reptiliano, é ela que deve conduzi-lo, a partir de sua potência ondulatória; e os ossos são presentificados, por exemplo, num exercício em que se experimentam linhas imaginárias ligando diversos ossos do corpo (occipital-cóccix, ísquios-calcanhares etc.), seus afastamen- tos e aproximações. Esqueleto-carne-pele são postos em relação, no movimento dançado, para que a vida pulse, ou, para sermos deleuzianos, atualize-se. Pois, se há um corpo virtual que se atualiza no movimento dançado, como coloca Gil (2004, p. 24), é porque esta qualidade de movimento permite a construção do corpo-sem- órgãos, na medida em que “esvazia o corpo dos seus órgãos desestruturando o organismo”, instaurando nele uma nova relação com o vazio, que não é de falta, mas de uma plenitude de potências, ou melhor, um vazio-pleno18. Ou ainda, na belíssima formulação de Quilici, referindo-se a Artaud: “Corpo sem órgãos, corpo multidão, corpo que acolhe o vazio” (Quilici, 2004, p. 203). Mais que um corpo, que o corpo, trata-se aí de corporeidades, ou melhor, de formas de corporar. E o vazio, para além da falta, funciona como uma limpeza de terreno, uma espécie de deserto que é fruto da ação de desertar, fugir, fazer fugir. E que é preciso povoar, com novas matilhas, com novas legiões nômades e indomáveis. Pois se trata aqui não mais de um corpo dado, que é preciso carregar; mas de um processo em que as corporeidades são colocadas em devir. O corpo, no movimento dançado, atualiza a carne, em sua dor e em sua alegria e festa. Abre es- paço, inclusive para uma relação corpo-pensamento através do movimento, em que o sentido inventa pa- lavras, empurrando-as garganta afora. A voz, então, é um ato desse corpo em movimento, que forma fluxos de interiorização e exteriorização. É aí que se vislumbra a composição de um espaço público para o corpo, que não seu mero espetáculo ou sua imagética espetacular. É a afirmação do corpo, da voz e da vida pública. Mas é também a reinvenção da imagem do corpo, através da potencialização do movimento. Enfim, a dança abre em leque o corpo, tornando-se um campo de possibilidades para o exercício do corporar. Confere uma possibilidade de se criar uma voz possível através do movimento. Para além do espetáculo e da imagética contemporâneos, mas sem negar sua época (seu presente), o movimento do corpo-em-dança é uma modalidade para se experimentar a vida em sua potência de invenção e resistên- cia. REFERÊNCIAS 18 A noção de “vazio pleno” é de Lygia Clark. Nas palavras de Rolnik, refere-se à “experiência do corpo vibrátil nos momentos em que se processa o esgotamento de uma cartografia, quando está se operando a silenciosa incubação de uma nova reali- dade sensível, manifestação da plenitude da vida em sua potência de diferenciação.” (Rolnik, 2001, p. 319). 36 Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB – ISSN 2236-6644 - Blumenau, Vol. 17, Nº 1 , p. 19 - 38, 2012 AMAGASAKI, Akira. O corpo reinventado. Correio da UNESCO, ano 24, n.3, Rio de Janeiro, março/1996. pp.27-30. ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Tradução Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1993. BERGSON, H. O Pensamento e o Movente. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores). DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. 4. ed. Tradução Luiz R.S.Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2003. (Estudos, 35). _________. Espinosa: filosofia prática. Tradução Daniel Lins e Fabien P. Lins. São Paulo: Escuta, 2002. _________. Bergsonismo. Tradução Luiz B. L. 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