Harry Potter e a Pedra Filosofal (PDF)
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J.K. Rowling
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Este livro é a primeira aventura de Harry Potter, um jovem órfão que descobre que possui poderes mágicos e se vê envolvido em um mundo repleto de criaturas mágicas e desafios fantásticos. A história acompanha as primeiras experiências de Harry enquanto ele se adapta a uma nova vida e enfrenta os mistérios que o cercam.
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Para Jessica, que gosta de histórias, para Anne, que gostava também, e para Di, que foi quem ouviu esta primeiro. Conteúdo — CAPÍTULO UM — — CAPÍTULO DOIS — — CAPÍTULO TRÊS — — CAPÍTULO QUATRO — — CAPÍTULO CINCO — — CAPÍTULO SEIS — — CAPÍTULO SETE — — CAPÍTU...
Para Jessica, que gosta de histórias, para Anne, que gostava também, e para Di, que foi quem ouviu esta primeiro. Conteúdo — CAPÍTULO UM — — CAPÍTULO DOIS — — CAPÍTULO TRÊS — — CAPÍTULO QUATRO — — CAPÍTULO CINCO — — CAPÍTULO SEIS — — CAPÍTULO SETE — — CAPÍTULO OITO — — CAPÍTULO NOVE — — CAPÍTULO DEZ — — CAPÍTULO ONZE — — CAPÍTULO DOZE — — CAPÍTULO TREZE — — CAPÍTULO CATORZE — — CAPÍTULO QUINZE — — CAPÍTULO DEZESSEIS — — CAPÍTULO DEZESSETE — — CAPÍTULO UM — O menino que sobreviveu O Sr. e a Sra. Dursley, da rua dos Alfeneiros, no 4, se orgulhavam de dizer que eram perfeitamente normais, muito bem, obrigado. Eram as últimas pessoas no mundo que se esperaria que se metessem em alguma coisa estranha ou misteriosa, porque simplesmente não compactuavam com esse tipo de bobagem. O Sr. Dursley era diretor de uma firma chamada Grunnings, que fazia perfurações. Era um homem alto e corpulento quase sem pescoço, embora tivesse enormes bigodes. A Sra. Dursley era magra e loura e tinha um pescoço quase duas vezes mais comprido que o normal, o que era muito útil porque ela passava grande parte do tempo espichando-o por cima da cerca do jardim para espiar os vizinhos. Os Dursley tinham um filhinho chamado Dudley, o Duda, e em sua opinião não havia garoto melhor em nenhum lugar do mundo. Os Dursley tinham tudo que queriam, mas tinham também um segredo, e seu maior receio era que alguém o descobrisse. Achavam que não iriam aguentar se alguém descobrisse a existência dos Potter. A Sra. Potter era irmã da Sra. Dursley, mas não se viam havia muitos anos; na realidade a Sra. Dursley fingia que não tinha irmã, porque esta e o marido imprestável eram o que havia de menos parecido possível com os Dursley. Eles estremeciam só de pensar o que os vizinhos iriam dizer se os Potter aparecessem na rua. Os Dursley sabiam que os Potter tinham um filhinho, também, mas nunca o tinham visto. O garoto era mais uma razão para manter os Potter a distância; eles não queriam que Duda se misturasse com uma criança daquelas. Quando o Sr. e a Sra. Dursley acordaram na terça-feira monótona e cinzenta em que a nossa história começa, não havia nada no céu nublado lá fora sugerindo as coisas estranhas e misteriosas que não tardariam a acontecer por todo o país. O Sr. Dursley cantarolava ao escolher a gravata mais sem graça do mundo para ir trabalhar e a Sra. Dursley fofocava alegremente enquanto lutava para encaixar um Duda aos berros na cadeirinha alta. Nenhum deles reparou em uma coruja parda que passou, batendo as asas, pela janela. Às oito e meia, o Sr. Dursley apanhou a pasta, deu um beijinho no rosto da Sra. Dursley e tentou dar um beijo de despedida em Duda mas não conseguiu, porque na hora Duda estava tendo um acesso de raiva e atirava o cereal nas paredes. – Pestinha – disse rindo contrafeito o Sr. Dursley ao sair de casa. Entrou no carro e deu marcha à ré para sair do estacionamento do número quatro. Foi na esquina da rua que ele notou o primeiro indício de que algo estranho ocorria – um gato lia um mapa. Por um instante o Sr. Dursley não percebeu o que vira – em seguida virou rapidamente a cabeça para dar uma segunda olhada. Havia um gato de listras amarelas sentado na esquina da rua dos Alfeneiros, mas não havia nenhum mapa à vista. Em que estaria pensando naquela hora? Devia ter sido um efeito da luz. Ele piscou e arregalou os olhos para o gato. O gato o encarou. Enquanto virava a esquina e subia a rua, espiou o gato pelo espelho retrovisor. Ele agora estava lendo a placa que dizia rua dos Alfeneiros – não, estava olhando a placa: gatos não podiam ler mapas nem placas. O Sr. Dursley sacudiu a cabeça e tirou o gato do pensamento. Durante o caminho para a cidade ele não pensou em mais nada exceto no grande pedido de brocas que tinha esperanças de receber naquele dia. Mas ao sair da cidade, as brocas foram varridas de sua cabeça por outra coisa. Ao parar no costumeiro engarrafamento matinal, não pôde deixar de notar que havia uma quantidade de gente estranhamente vestida andando pelas ruas. Gente com capas largas. O Sr. Dursley não tolerava gente que andava com roupas ridículas – os trapos que se viam nos jovens! Imaginou que aquilo fosse uma nova moda idiota. Tamborilou os dedos no volante e seu olhar recaiu em um grupinho de excêntricos parados bem perto dele. Cochichavam excitados. O Sr. Dursley se irritou ao ver que alguns deles nem eram jovens; ora, aquele homem devia ser mais velho do que ele, e usava uma capa verde-esmeralda! Que petulância! Mas então ocorreu ao Sr. Dursley que se tratava provavelmente de alguma promoção boba – essas pessoas estavam obviamente arrecadando alguma coisa... é, devia ser isto! O tráfego avançou e alguns minutos depois o Sr. Dursley chegou ao estacionamento da Grunnings, o pensamento de volta às brocas. O Sr. Dursley sempre sentava de costas para a janela em seu escritório no nono andar. Se não o fizesse, talvez tivesse achado mais difícil se concentrar em brocas aquela manhã. Ele não viu as corujas que voavam velozes em plena luz do dia, embora as pessoas na rua as vissem; elas apontavam e se espantavam enquanto coruja atrás de coruja passava no alto. A maioria jamais vira uma coruja mesmo à noite. O Sr. Dursley, porém, teve uma manhã perfeitamente normal sem corujas. Gritou com cinco pessoas diferentes. Deu vários telefonemas importantes e gritou mais um pouco. Estava de excelente humor até a hora do almoço, quando pensou em esticar as pernas e atravessar a rua para comprar um pãozinho doce na padaria defronte. Esquecera completamente as pessoas de capas até passar por um grupo delas próximo à padaria. Olhou-as com raiva ao passar. Não sabia o porquê, mas elas o deixavam nervoso. Essas cochichavam agitadas, também, mas ele não viu nenhuma latinha de coleta. Foi ao passar por elas, na volta, levando uma grande rosca açucarada em um saco, que entreouviu algumas palavras do que diziam. –... Os Potter, é verdade, foi o que ouvi... –... é, o filho deles, Harry... O Sr. Dursley parou de repente. O medo invadiu-o. Virou a cabeça para olhar as pessoas que cochichavam como se quisesse dizer alguma coisa, mas pensou melhor. Atravessou a rua depressa, correu para o escritório, disse rispidamente à secretária que não o incomodasse, agarrou o telefone e quase terminara de discar o número de casa quando mudou de ideia. Pôs o fone no gancho e alisou os bigodes, pensando... não, estava agindo como um idiota. Potter não era um nome tão fora do comum assim. Tinha certeza de que havia muita gente chamada Potter com um filho chamado Harry. Pensando bem, nem sequer tinha certeza de que o sobrinho tivesse o nome de Harry. Jamais vira o menino. Talvez fosse Ernesto. Ou Eduardo. Não tinha sentido preocupar a Sra. Dursley, ela sempre ficava tão perturbada à simples menção da irmã. Não a culpava – se ele tivesse uma irmã como aquela... mas, mesmo assim, aquelas pessoas de capas... Achou bem mais difícil se concentrar nas brocas aquela tarde e, quando deixou o edifício às cinco horas, continuava tão preocupado que deu um encontrão em alguém parado ali à porta. – Desculpe – murmurou, quando o velhinho cambaleou e quase caiu. Levou alguns segundos até o Sr. Dursley perceber que o homem estava usando uma capa roxa. Não parecia nada aborrecido por ter sido quase jogado ao chão. Ao contrário, seu rosto se abriu em um largo sorriso e ele disse numa voz esganiçada que fez os passantes olharem: – Não precisa pedir desculpas, caro senhor, porque nada poderia me aborrecer hoje! Alegre-se, porque Você-Sabe-Quem finalmente foi-se embora! Até trouxas como o senhor deviam estar comemorando um dia tão feliz! E o velho abraçou o Sr. Dursley pela cintura e se afastou. O Sr. Dursley ficou pregado no chão. Fora abraçado por um completo estranho. E também achava que fora chamado de trouxa, o que quer que isso quisesse dizer. Estava abalado. Correu para o carro e partiu para casa, esperando que estivesse imaginando coisas, o que nunca esperara que fizesse, porque não aprovava a imaginação. Quando entrou no estacionamento do número quatro, a primeira coisa que viu – e isso não melhorou o seu estado de espírito – foi o gato listrado que notara aquela manhã. Agora ele estava sentado no muro do jardim. Tinha certeza de que era o mesmo; as marcas em volta dos olhos eram as mesmas. – Chispa! – disse o Sr. Dursley em voz alta. O gato não se mexeu. Apenas lançou-lhe um olhar severo. Será que isto era um comportamento normal para um gato?, pensou o Sr. Dursley. Continuava decidido a não comentar nada com a esposa. A Sra. Dursley tivera um dia normal e agradável. Contou-lhe durante o jantar os problemas da senhora do lado com a filha e ainda que Duda aprendera uma palavra nova (“Nunca”). O Sr. Dursley tentou agir normalmente. Depois que Duda foi se deitar, ele chegou à sala em tempo de ouvir o último noticiário noturno. “E, por último, os observadores de pássaros em toda parte registraram que as corujas do país se comportaram de forma muito estranha hoje. Embora elas normalmente cacem à noite e raramente apareçam à luz do dia, centenas desses pássaros foram vistos hoje voando em todas as direções desde o alvorecer. Os especialistas não sabem explicar por que as corujas de repente mudaram o seu padrão de sono.” O locutor se permitiu um sorriso. “Muito misterioso. E agora, com Jorge Mendes, o nosso boletim meteorológico. Vai haver mais tempestades de corujas hoje à noite, Jorge?” “Bom, Eduardo”, disse o meteorologista, “não sei lhe dizer, mas não foram só as corujas que se comportaram de modo estranho hoje. Ouvintes de todo o país têm telefonado para reclamar que em vez do aguaceiro que prometi para ontem, eles têm tido chuvas de estrelas! Talvez alguém ande festejando a noite das fogueiras uma semana mais cedo este ano! Mas posso prometer para hoje uma noite chuvosa.” O Sr. Dursley ficou paralisado na poltrona. Estrelas cadentes em todo o país? Corujas voando durante o dia? Gente misteriosa usando capas por todo lado? E um cochicho, um cochicho a respeito dos Potter... A Sra. Dursley entrou na sala trazendo duas xícaras de chá. Não adiantava. Teria que lhe dizer alguma coisa. Pigarreou nervoso. – Hum, hum, Petúnia, querida, você não tem tido notícias de sua irmã, ultimamente? Conforme esperava, a Sra. Dursley pareceu chocada e aborrecida. Afinal, normalmente fingiam que ela não tinha irmã... – Não – respondeu ela, seca. – Por quê? – Uma notícia engraçada – murmurou o Sr. Dursley. – Corujas... estrelas cadentes... e vi uma porção de gente de aparência estranha na cidade hoje... – E daí? – cortou a Sra. Dursley. – Bem, pensei... talvez... tivesse alguma ligação com... sabe... o pessoal dela. A Sra. Dursley bebericou o chá com os lábios contraídos. O Sr. Dursley ficou em dúvida se teria coragem de lhe contar que ouvira o nome “Potter”. Decidiu que não. Em vez disso, falou com a voz mais displicente que pôde: – O filho deles... teria mais ou menos a idade do Duda agora, não? – Suponho que sim – respondeu a Sra. Dursley, ainda seca. – Como é mesmo o nome dele? Ernesto, não é? – Harry. Um nome feio e vulgar, se quer saber minha opinião. – Ah, é – disse o Sr. Dursley, sentindo um aperto horrível no coração. – É, concordo com você. Não disse mais nenhuma palavra sobre o assunto a caminho do quarto onde foram se deitar. Enquanto a Sra. Dursley estava no banheiro, o Sr. Dursley foi devagarinho até a janela e espiou o jardim da casa. O gato continuava lá. Observava o começo da rua dos Alfeneiros como se esperasse alguma coisa. Estaria imaginando coisas? Será que tudo isso teria ligação com os Potter? Se tinha... se transpirasse que eram aparentados com um casal de... bem ele achava que não aguentaria. Os Dursley se deitaram. A Sra. Dursley adormeceu logo, mas o Sr. Dursley continuou acordado, pensando no que acontecera. Seu último consolo antes de adormecer foi pensar que mesmo que os Potter estivessem envolvidos, não havia razão para se aproximarem dele e da Sra. Dursley. Os Potter sabiam muito bem o que pensavam deles e de gente de sua laia... Não via como ele e Petúnia poderiam se envolver com nada que estivesse acontecendo. O Sr. Dursley bocejou e se virou. Isso não poderia afetá-los... Como estava enganado. O Sr. Dursley talvez estivesse mergulhando em um sono inquieto, mas o gato no muro lá fora não mostrava sinais de sono. Continuava sentado imóvel como uma estátua, os olhos fixos na esquina mais distante da rua dos Alfeneiros. E nem sequer estremeceu quando uma porta de carro bateu na rua seguinte, nem mesmo quando duas corujas mergulharam do alto. Na verdade, era quase meia-noite quando o gato se mexeu. Um homem apareceu na esquina que o gato estivera vigiando. Apareceu tão súbita e silenciosamente que se poderia pensar que tivesse saído do chão. O rabo do gato mexeu ligeiramente e seus olhos se estreitaram. Ninguém jamais vislumbrara nada parecido com este homem na rua dos Alfeneiros. Era alto, magro e muito velho, a julgar pelo prateado dos seus cabelos e de sua barba, suficientemente longos para prender no cinto. Usava vestes longas, uma capa púrpura que arrastava pelo chão e botas com saltos altos e fivelas. Seus olhos azuis eram claros, luminosos e cintilantes por trás dos óculos em meia-lua e o nariz muito comprido e torto, como se o tivesse quebrado pelo menos duas vezes. O nome dele era Alvo Dumbledore. Alvo Dumbledore não parecia ter consciência de que acabara de pisar numa rua onde tudo, desde o seu nome às suas botas era malvisto. Estava ocupado apalpando a capa, procurando alguma coisa. Mas parecia ter consciência de que estava sendo vigiado, porque ergueu a cabeça de repente para o gato, que continuava a fixá-lo da outra ponta da rua. Por algum motivo, a visão do gato pareceu diverti-lo. Deu uma risadinha e murmurou: “Eu devia ter imaginado.” Encontrou o que procurava no bolso interior da capa. Parecia um isqueiro de prata. Abriu-o, ergueu-o no ar e o acendeu. O lampião de rua mais próximo apagou-se com um estalido seco. Ele o acendeu de novo – o lampião seguinte piscou e apagou, doze vezes ele acionou o “apagueiro”, até que as únicas luzes acesas na rua toda eram dois pontinhos minúsculos ao longe – os olhos do gato que o vigiava. Se alguém espiasse pela janela agora, até a Sra. Dursley, de olhos de contas, não conseguiria ver nada que estava acontecendo na calçada. Dumbledore tornou a guardar o “apagueiro” na capa e saiu caminhando pela rua em direção ao número quatro, onde se sentou no muro ao lado do gato. Não olhou para o bicho, mas, passado algum tempo, dirigiu-se a ele. – Imaginei encontrar a senhora aqui, Profa. Minerva McGonagall. E virou-se para sorrir para o gato, mas este desaparecera. Em vez dele, viu-se sorrindo para uma mulher de aspecto severo que usava óculos de lestes quadradas exatamente do formato das marcas que o gato tinha em volta dos olhos. Ela, também, usava uma capa esmeralda. Trazia os cabelos negros presos num coque apertado. E parecia decididamente irritada. – Como soube que era eu? – perguntou. – Minha cara professora, nunca vi um gato se sentar tão duro. – O senhor estaria duro se tivesse passado o dia todo sentado em um muro de pedra – respondeu a Profa. Minerva. – O dia todo? Quando podia estar comemorando? Devo ter passado por mais de dez festas e banquetes a caminho daqui. A professora fungou aborrecida. – Ah, sim, vi que todos estão comemorando – disse impaciente. – Era de esperar que fossem um pouco mais cautelosos, mas não, até os trouxas notaram que alguma coisa estava acontecendo. Deu no telejornal. – Ela indicou com a cabeça a sala às escuras dos Dursley. – Eu ouvi... bandos de corujas... estrelas cadentes... Ora, eles não são completamente idiotas. Não podiam deixar de notar alguma coisa. Estrelas cadentes em Kent, aposto que foi coisa do Dédalo Diggle. Ele nunca teve muito juízo. – Você não pode culpá-los – ponderou Dumbledore educadamente. – Temos tido muito pouco o que comemorar nos últimos onze anos. – Sei disso – retrucou a professora mal-humorada. – Mas não é razão para perdermos a cabeça. As pessoas estão sendo completamente descuidadas, saem às ruas em plena luz do dia, sem nem ao menos vestir roupa de trouxa, e espalham boatos. De esguelha, lançou um olhar atento a Dumbledore, como se esperasse que ele dissesse alguma coisa, mas ele continuou calado, por isso ela recomeçou: – Ia ser uma graça se, no próprio dia em que Você-Sabe-Quem parece ter finalmente ido embora, os trouxas descobrissem a nossa existência. Suponho que ele realmente tenha ido embora, não é, Dumbledore? – Parece que não há dúvida. Temos muito o que agradecer. Aceita um sorvete de limão? – Um o quê? – Um sorvete de limão. É uma espécie de doce dos trouxas de que sempre gostei muito. – Não, obrigada – disse a Profa. Minerva com frieza, como se não achasse que o momento pedia sorvetes de limão. – Mesmo que Você-Sabe- Quem tenha ido embora. – Minha cara professora, com certeza uma pessoa sensata como a senhora pode chamá-lo pelo nome. Toda essa bobagem de Você-Sabe- Quem, há onze anos venho tentando convencer as pessoas a chamá-lo pelo nome que recebeu: Voldemort. – A professora franziu o rosto, mas Dumbledore, que estava separando dois sorvetes de limão, pareceu não reparar. – Tudo fica tão confuso quando todos não param de dizer “Você- Sabe-Quem”. Nunca vi nenhuma razão para ter medo de dizer o nome de Voldemort. – Sei que não vê – disse a professora parecendo meio exasperada, meio admirada. – Mas você é diferente. Todo o mundo sabe que é o único de quem Você-Sabe... ah, está bem, de quem Voldemort tem medo. – Isto é um elogio – disse Dumbledore calmamente. – Voldemort tinha poderes que nunca tive. – Só porque você é muito... bem... nobre para usá-los. – É uma sorte estar escuro. Nunca mais corei assim desde que Madame Pomfrey me disse que gostava dos meus abafadores de orelhas novos. A Profa. Minerva lançou um olhar severo a Dumbledore e disse: – As corujas não são nada comparadas aos boatos que correm. Sabe o que todos estão dizendo? Por que ele foi embora? Que foi que finalmente o deteve? Aparentemente a Profa. Minerva chegara ao ponto que estava ansiosa para discutir, a verdadeira razão pela qual estivera esperando o dia todo em cima de um muro frio e duro, porque nem como gato nem como mulher ela fixara antes um olhar tão penetrante em Dumbledore como agora. Era óbvio que seja o que fosse que “todos” estavam dizendo, ela não iria acreditar até que Dumbledore confirmasse ser verdade. Dumbledore, porém, estava escolhendo mais um sorvete de limão e não respondeu. – O que estão dizendo – continuou ela – é que a noite passada Voldemort apareceu em Godric’s Hollow. Foi procurar os Potter. O boato é que Lílian e Tiago Potter estão... estão... que estão... mortos. Dumbledore fez que sim com a cabeça. A Profa. Minerva perdeu o fôlego. – Lílian e Tiago... Não posso acreditar... Não quero acreditar... Ah, Alvo. Dumbledore estendeu a mão e deu-lhe um tapinha no ombro. – Eu sei... eu sei... – disse deprimido. A voz da Profa. Minerva tremeu ao prosseguir: – E não é só isso. Estão dizendo que ele tentou matar o filho dos Potter, Harry. Mas... não conseguiu. Não conseguiu matar o garotinho. Ninguém sabe o porquê nem como, mas estão dizendo que na hora que não pôde matar Harry Potter, por alguma razão, o poder de Voldemort desapareceu, e é por isso que ele foi embora. Dumbledore concordou com a cabeça, sério. – É... é verdade? – gaguejou a professora. – Depois de tudo o que ele fez... todas as pessoas que matou... não conseguiu matar um garotinho? É simplesmente espantoso... de tudo que poderia detê-lo... mas, por Deus, como foi que Harry sobreviveu? – Só podemos imaginar – disse Dumbledore. – Talvez nunca cheguemos a saber. A Profa. Minerva pegou um lenço de renda e secou com delicadeza os olhos por baixo das lentes dos óculos. Dumbledore deu uma grande fungada ao mesmo tempo que tirava o relógio de ouro do bolso e o examinava. Era um relógio muito estranho. Tinha doze ponteiros mas nenhum número; em vez deles, pequenos planetas giravam à volta. Mas devia fazer sentido para Dumbledore, porque ele o repôs no bolso e disse: – Hagrid está atrasado. A propósito, foi ele que lhe disse que eu estaria aqui, suponho. – Foi. E suponho que você não vá me dizer por que está aqui e não em outro lugar. – Vim trazer Harry para o tio e a tia. Eles são a única família que lhe resta. – Você não quer dizer, você não pode estar se referindo às pessoas que moram aqui?! – exclamou a Profa. Minerva, pulando de pé e apontando para o número quatro. – Dumbledore, você não pode. Estive observando a família o dia todo. Você não poderia encontrar duas pessoas menos parecidas conosco. E têm um filho, vi-o dando chutes na mãe até a rua, berrando porque queria balas. Harry Potter vir morar aqui! – É o melhor lugar para ele – disse Dumbledore com firmeza. – Os tios poderão lhe explicar tudo quando ele for mais velho, escrevi-lhes uma carta. – Uma carta? – repetiu a professora com a voz fraca, sentando-se novamente no muro. – Francamente, Dumbledore, você acha que pode explicar tudo isso em uma carta? Essas pessoas jamais vão entendê-lo! Ele vai ser famoso, uma lenda. Eu não me surpreenderia se o dia de hoje ficasse conhecido no futuro como o dia de Harry Potter. Vão escrever livros sobre Harry. Todas as crianças no nosso mundo vão conhecer o nome dele! – Exatamente – disse Dumbledore, olhando muito sério por cima dos óculos de meia-lua. – Isto seria o bastante para virar a cabeça de qualquer menino. Famoso antes mesmo de saber andar e falar! Famoso por alguma coisa que ele nem vai se lembrar! Você não vê que ele estará muito melhor se crescer longe de tudo isso até que tenha capacidade de compreender? A professora abriu a boca, mudou de ideia, engoliu em seco e então disse: – É, é, você está certo, é claro. Mas como é que o garoto vai chegar aqui, Dumbledore? – Ela olhou para a capa dele de repente como se lhe ocorresse que talvez escondesse Harry ali. – Hagrid vai trazê-lo. – Você acha que é sensato confiar a Hagrid uma tarefa importante como esta? – Eu confiaria a Hagrid minha vida – respondeu Dumbledore. – Não estou dizendo que ele não tenha o coração no lugar – concedeu a professora de má vontade –, mas você não pode fingir que ele é cuidadoso. Que tem uma tendência a... que foi isso? Um ronco discreto quebrara o silêncio da rua. Foi aumentando cada vez mais enquanto eles olhavam para cima e para baixo da rua à procura de um sinal de farol de carro; o ronco se transformou num trovão quando os dois olharam para o céu – e uma enorme motocicleta caiu do ar e parou na rua diante deles. Se a motocicleta era enorme, não era nada comparada ao homem que a montava de lado. Ele era quase duas vezes mais alto do que um homem normal e pelo menos cinco vezes mais largo. Parecia simplesmente grande demais para existir e tão selvagem – emaranhados de barba e cabelos negros longos e grossos escondiam a maior parte do seu rosto, as mãos tinham o tamanho de uma lata de lixo e os pés calçados com botas de couro pareciam filhotes de golfinhos. Em seus braços imensos e musculosos ele segurava um embrulho de cobertores. – Hagrid! – exclamou Dumbledore, parecendo aliviado. – Finalmente. E onde foi que arranjou a moto? – Pedi emprestada, Prof. Dumbledore – respondeu o gigante, desmontando cuidadosamente da moto ao falar. – O jovem Sirius me emprestou. Trouxe ele, professor. – Não teve nenhum problema? – Não, senhor. A casa ficou quase destruída, mas consegui tirá-lo inteiro antes que os trouxas invadissem o lugar. Ele dormiu quando estávamos sobrevoando Bristol. Dumbledore e a Profa. Minerva curvaram-se para o embrulho de cobertores. Dentro, apenas visível, havia um menino, que dormia a sono solto. Sob uma mecha de cabelos muito negros caída sobre a testa eles viram um corte curioso, tinha a forma de um raio. – Foi aí que...? – sussurrou a professora. – Foi – confirmou Dumbledore. – Ficará com a cicatriz para sempre. – Será que você não poderia dar um jeito, Dumbledore? – Mesmo que pudesse, eu não o faria. As cicatrizes podem vir a ser úteis. Tenho uma acima do joelho esquerdo que é um mapa perfeito do metrô de Londres. Bem, me dê ele aqui, Hagrid, é melhor acabarmos logo com isso. Dumbledore recebeu Harry nos braços e virou-se para a casa dos Dursley. – Será que eu podia... podia me despedir dele, professor? – perguntou Hagrid. Ele curvou a enorme cabeça descabelada para Harry e lhe deu o que deve ter sido um beijo muito áspero e peludo. Depois, sem aviso, Hagrid soltou um uivo como o de um cachorro ferido. – Psiu! – sibilou a Profa. Minerva. – Você vai acordar os trouxas! – Des-des-desculpe – soluçou Hagrid, puxando um enorme lenço sujo e escondendo a cara nele. – Mas nã-nã-não consigo suportar, Lílian e Tiago mortos, e o coitadinho do Harry ter de viver com os trouxas... – É, é, é muito triste, mas controle-se, Hagrid, ou vão nos descobrir – sussurrou a professora, dando uma palmadinha desajeitada no braço de Hagrid enquanto Dumbledore saltava a mureta de pedra e se dirigia à porta da frente. Depositou Harry devagarinho no batente, tirou uma carta da capa, meteu-a entre os cobertores do menino e, em seguida, voltou para a companhia dos dois. Durante um minuto inteiro os três ficaram parados olhando para o embrulhinho; os ombros de Hagrid sacudiram, os olhos da Profa. Minerva piscaram loucamente e a luz cintilante que sempre brilhava nos olhos de Dumbledore parecia ter-se extinguido. – Bem – disse Dumbledore finalmente –, acabou-se. Não temos mais nada a fazer aqui. Já podemos nos reunir aos outros para comemorar. – É – disse Hagrid com a voz muito abafada. – Vou devolver a moto de Sirius. Boa-noite, Profa. Minerva, Professor Dumbledore... Enxugando os olhos na manga da jaqueta, Hagrid montou na moto e acionou o motor com um pontapé; com um rugido ela levantou voo e desapareceu na noite. – Nos veremos em breve, espero, Profa. Minerva – falou Dumbledore, com um aceno da cabeça. A Profa. Minerva assoou o nariz em resposta. Dumbledore se virou e desceu a rua. Na esquina parou e puxou o “apagueiro”. Deu um clique e doze esferas de luz voltaram aos lampiões de modo que a rua dos Alfeneiros de repente iluminou-se com uma claridade laranja e ele divisou o gato listrado se esquivando pela outra ponta da rua. Mal dava para enxergar o embrulhinho de cobertores no batente do número quatro. – Boa sorte, Harry – murmurou ele. Girou nos calcanhares e, com um movimento da capa, desapareceu. Uma brisa arrepiou as cercas bem cuidadas da rua dos Alfeneiros, silenciosas e quietas sob o negror do céu, o último lugar do mundo em que alguém esperaria que acontecessem coisas espantosas. Harry Potter virou-se dentro dos cobertores sem acordar. Sua mãozinha agarrou a carta ao lado, mas ele continuou a dormir, sem saber que era especial, sem saber que era famoso, sem saber que iria acordar dentro de poucas horas com o grito da Sra. Dursley ao abrir a porta da frente para pôr as garrafas de leite do lado de fora, nem que passaria as próximas semanas levando cutucadas e beliscões do primo Duda... ele não podia saber que, neste mesmo instante, havia pessoas se reunindo em segredo em todo o país que erguiam os copos e diziam com vozes abafadas: – A Harry Potter: o menino que sobreviveu! — CAPÍTULO DOIS — O vidro que sumiu Quase dez anos haviam se passado desde o dia em que os Dursley acordaram e encontraram o sobrinho no batente da porta, mas a rua dos Alfeneiros não mudara praticamente nada. O sol nascia para os mesmos jardins cuidados e iluminava o número quatro de bronze à porta de entrada dos Dursley; e penetrava sorrateiro a sala de estar, que continuava quase igual ao que fora na noite em que o Sr. Dursley ouvira a funesta notícia sobre as corujas. Somente as fotografias sobre o console da lareira mostravam o tempo que já passara. Dez anos antes havia uma porção de fotografias de uma coisa que parecia uma grande bola de brincar na praia, usando diferentes chapéus coloridos – mas Duda Dursley não era mais bebê; e agora as fotografias mostravam um menino grande e louro na primeira bicicleta, no carrossel de uma feira, brincando com o computador do pai, recebendo um beijo e um abraço da mãe. A sala não continha nenhuma indicação de que havia outro menino na casa. No entanto Harry Potter continuava lá, no momento adormecido, mas não por muito tempo. Sua tia Petúnia acordara e foi sua voz aguda que produziu o primeiro ruído do dia. – Acorde! Levante-se! Agora! Harry acordou assustado. A tia bateu à porta outra vez. – Acorde! – gritou. Harry ouviu-a caminhar em direção à cozinha e em seguida uma frigideira bater no fogão. Virou-se de costas e tentou se lembrar do sonho em que estava. Era um sonho gostoso. Havia uma motocicleta. Tinha a estranha sensação que já vira esse sonho antes. A tia voltara à porta. – Você já se levantou? – perguntou. – Quase – respondeu Harry. – Bem, ande depressa, quero que você tome conta do bacon. E não se atreva a deixá-lo queimar. Quero tudo perfeito no aniversário de Duda. Harry gemeu. – Que foi que você disse? – perguntou a tia com rispidez. – Nada, nada... O aniversário de Duda – como podia ter esquecido? Harry levantou-se devagar e começou a procurar as meias. Encontrou-as debaixo da cama e depois de retirar uma aranha de um pé, calçou-as. Harry estava acostumado com aranhas, porque o armário sob a escada vivia cheio delas e era ali que ele dormia. Já vestido saiu para o corredor que levava à cozinha. A mesa quase desaparecera tantos eram os presentes de aniversário de Duda. Pelo que via, Duda ganhara o novo computador que queria, para não falar na segunda televisão e na bicicleta de corrida. Para o quê, exatamente, Duda queria uma bicicleta de corrida era um mistério para Harry, porque Duda era muito gordo e detestava fazer exercícios – a não ser, é claro, que envolvessem bater em alguém. O saco de pancadas preferido de Duda era Harry, mas nem sempre Duda conseguia pegá-lo. Harry não parecia, mas era muito rápido. Talvez fosse porque vivia num armário escuro, mas Harry sempre fora pequeno e muito magro para a idade. Parecia ainda menor e mais magro do que realmente era porque só lhe davam para vestir as roupas velhas de Duda e Duda era quatro vezes maior do que ele. Harry tinha um rosto magro, joelhos ossudos, cabelos negros e olhos muito verdes. Usava óculos redondos, remendados com fita adesiva, por causa das muitas vezes que Duda o socara no nariz. A única coisa que Harry gostava em sua aparência era uma cicatriz fininha na testa que tinha a forma de um raio. Existia desde que se entendia por gente e a primeira pergunta que se lembrava de ter feito à tia Petúnia era como a arranjara. – No desastre de carro em que seus pais morreram – respondera ela. – E não faça perguntas. Não faça perguntas – esta era a primeira regra para levar uma vida tranquila com os Dursley. Tio Válter entrou na cozinha quando Harry estava virando o bacon. – Penteie o cabelo! – mandou, à guisa de bom-dia. Mais ou menos uma vez por semana, tio Válter espiava por cima do jornal e gritava que Harry precisava cortar os cabelos. Harry deve ter feito mais cortes que o resto dos meninos de sua classe somados, mas não fazia diferença, seus cabelos simplesmente cresciam daquele jeito – para todo lado. Harry estava fritando os ovos na altura em que Duda chegou à cozinha com a mãe. Duda se parecia muito com o tio Válter. Tinha um rosto grande e rosado, pescoço curto, olhos azuis pequenos e aguados e cabelos louros muito espessos e assentados na cabeça enorme e densa. Tia Petúnia dizia com frequência que Duda parecia um anjinho – Harry dizia com frequência que Duda parecia um porco de peruca. Harry pôs os pratos de ovos com bacon na mesa, o que foi difícil porque não havia muito espaço. Entrementes, Duda contava os presentes. Ficou desapontado. – Trinta e seis – disse, erguendo os olhos para o pai e a mãe. – Dois a menos do que no ano passado. – Querido, você não contou o presente de tia Guida, está aqui debaixo deste grandão do papai e da mamãe, está vendo? – Está bem, então são trinta e sete – respondeu Duda ficando vermelho. Harry, percebendo que Duda estava preparando um enorme acesso de raiva, começou a engolir seu bacon o mais depressa possível, caso o primo virasse a mesa. Tia Petúnia obviamente também sentiu o perigo, porque na mesma hora disse: – E vamos comprar mais dois presentes para você quando sairmos hoje. Que tal, fofinho? Mais dois presentes. Está bem assim? Duda pensou um instante. Pareceu um esforço enorme. Finalmente respondeu hesitante: – Então vou ficar com trinta... trinta... – Trinta e nove, anjinho – disse tia Petúnia. – Ah. – Duda largou-se na cadeira e agarrou o pacote mais próximo. – Então, está bem. Tio Válter deu uma risadinha. – O baixinho quer tudo a que tem direito, igualzinho ao pai. É isso aí, garoto! – E arrepiou os cabelos de Duda com os dedos. Naquele instante o telefone tocou e tia Petúnia foi atendê-lo, enquanto Harry e tio Válter assistiam a Duda desembrulhar a bicicleta de corrida, a câmara de filmar, um aeromodelo com controle remoto, dezesseis jogos de computador e um gravador de vídeos. Estava rasgando a embalagem de um relógio de ouro quando tia Petúnia voltou do telefone parecendo ao mesmo tempo zangada e preocupada. – Más notícias, Válter. A Sra. Figg fraturou a perna. Não pode ficar com ele. – E indicou Harry com a cabeça. Duda boquiabriu-se de horror, mas o coração de Harry deu um salto. Todo ano, no aniversário de Duda, os pais dele o levavam para passar o dia com um amiguinho em parques de aventuras, lanchonetes ou no cinema. Todo ano deixavam Harry com a Sra. Figg, uma velha maluca que morava ali perto. Harry detestava o lugar. A casa inteira cheirava a repolho e a Sra. Figg lhe mostrava fotografias de todos os gatos que já tivera. – E agora? – perguntou tia Petúnia, olhando furiosa para Harry como se ele tivesse planejado tudo. Harry sabia que devia sentir pena da Sra. Figg que quebrara a perna, mas não era fácil quando lembrava que ia passar um ano sem ter que olhar para o Tobias, o Néris, Seu Patinhas e o Pompom outra vez. – Poderíamos ligar para a Guida – sugeriu tio Válter. – Não diga bobagem, Válter, ela detesta o menino. Com frequência, os Dursley falavam de Harry assim, como se ele não estivesse presente – ou melhor, como se ele fosse alguma coisa muito desprezível que não conseguisse entendê-los, como uma lesma. – E aquela sua amiga, como é mesmo o nome dela, Ivone? – Está passando férias em Majorca – respondeu Petúnia, com rispidez. – Vocês podiam me deixar aqui – arriscou Harry esperançoso (ele poderia assistir ao que quisesse na televisão para variar e, quem sabe, até dar uma voltinha no computador de Duda). Tia Petúnia parecia que tinha engolido um limão. – E quando voltarmos, encontrar a casa destruída? – rosnou. – Não vou explodir a casa – prometeu Harry, mas os tios não estavam mais escutando. – Talvez pudéssemos levá-lo ao zoológico – disse tia Petúnia lentamente – e deixá-lo no carro... – O carro é novo. Não vou deixá-lo sentado no carro sozinho... Duda começou a chorar alto. Na realidade não estava chorando, fazia anos que não chorava de verdade, mas sabia que se fizesse cara de choro e gritasse a mãe lhe daria o que quisesse. – Dudinha, querido, não chore, mamãe não vai deixar ele estragar o seu dia! – exclamou, abraçando-o. – Não... quero... que... ele... vá! – Duda berrou entre grandes soluços fingidos. – Ele sempre estraga tudo! – E lançou um riso maldoso por entre os braços da mãe. Naquele instante a campainha tocou. – Ah, meu Deus, são eles chegando! – disse tia Petúnia nervosa, e um minuto depois, o melhor amigo de Duda, Pedro Polkiss, entrou acompanhado da mãe. Pedro era um menino magricela, com cara de rato. Em geral era quem segurava para trás os braços dos garotos enquanto Duda batia neles. Na mesma hora Duda parou de fingir que estava chorando. Meia hora depois, Harry, que não conseguia acreditar em sua sorte, estava sentado no banco traseiro do carro dos Dursley, com Pedro e Duda, a caminho do jardim zoológico, pela primeira vez na vida. O tio e a tia não tinham conseguido pensar no que fazer com ele, mas antes de saírem, tio Válter puxara Harry para o lado. – Estou-lhe avisando – disse, aproximando a cara grande e vermelha de Harry. – Estou-lhe avisando, moleque, a primeira gracinha que fizer, a primeira, vai ficar preso naquele armário até o Natal. – Não vou fazer nada – disse Harry –, juro... Mas tio Válter não acreditou nele. Ninguém nunca acreditava. O problema era que sempre aconteciam coisas estranhas à volta de Harry e simplesmente não adiantava dizer aos Dursley que não era sua culpa. Uma vez, tia Petúnia, cansada de ver Harry voltar do barbeiro como se não tivesse estado lá, apanhara uma tesoura de cozinha e cortara o cabelo dele tão curto que o deixara quase careca, exceto por uma franja, que ela deixou “para esconder aquela cicatriz horrorosa”. Duda morrera de rir de Harry, que passou a noite acordado imaginando o que seria a escola no dia seguinte, onde já riam dele por causa das roupas folgadas e dos óculos emendados com fita adesiva. Na manhã seguinte, porém, quando se levantou, os cabelos estavam exatamente como eram antes de tia Petúnia cortá-los. Tinham-no deixado preso uma semana no armário por causa disto, apesar de sua tentativa de explicar que não saberia explicar como é que os cabelos tinham crescido tão depressa. Outra vez, tia Petúnia tentara obrigá-lo a vestir um macacão velho de Duda (marrom com pompons cor de laranja). Quanto mais tentava enfiá-lo pela cabeça dele, tanto menor o macacão ficava, até que finalmente parecia feito para um fantochinho de dedo, e com certeza não ia servir para Harry. Tia Petúnia concluiu que devia ter encolhido na lavagem e Harry, para seu grande alívio, não foi castigado. Por outro lado, ele se metera numa grande encrenca quando o encontraram no telhado da cozinha da escola. A turma de Duda o estava perseguindo, como sempre, e tanto para surpresa de Harry quanto dos outros, ele apareceu sentado na chaminé. Os Dursley receberam uma carta muito zangada da diretora de Harry, contando que Harry andara escalando os prédios da escola. Mas só o que tentara fazer (conforme gritou para tio Válter através da porta trancada do armário) fora saltar para trás das grandes latas de lixo à porta da cozinha. Harry supunha que o vento devia tê-lo apanhado na hora em que saltou. Mas hoje nada ia dar errado. Valia até a pena estar em companhia de Duda e Pedro para passar o dia em outro lugar que não fosse a escola, o armário, ou a sala com cheiro de repolho da Sra. Figg. Enquanto dirigia, tio Válter se queixava à tia Petúnia. Ele gostava de se queixar de tudo: das pessoas no trabalho, de Harry, do conselho, de Harry, o banco e Harry eram seus dois assuntos preferidos. Esta manhã eram as motocicletas. –... roncando pelas ruas como loucos, os arruaceiros – disse, quando uma moto emparelhou com eles. – Tive um sonho com uma motocicleta – falou Harry, lembrando-se de repente. – Ela voava. Tio Válter quase bateu no carro da frente. Virou-se para trás e gritou com Harry, seu rosto parecendo uma beterraba gigante e bigoduda: – MOTOCICLETAS NÃO VOAM! Duda e Pedro deram risadinhas. – Sei que não voam – respondeu Harry. – Foi só um sonho. Mas desejou que não tivesse dito nada. Se havia uma coisa que os Dursley detestavam mais do que as suas perguntas, era quando falava de coisas que faziam o que não deviam, não interessava se era sonho ou desenho animado – pareciam pensar que ele poderia arranjar ideias perigosas. Era um sábado muito ensolarado e o zoo estava cheio de famílias. Os Dursley compraram grandes sorvetes de chocolate para Duda e Pedro à entrada e, então, porque a mulher sorridente na carrocinha perguntara o que Harry ia querer antes que pudessem afastá-lo depressa dali, eles lhe compraram um picolé barato de limão. Não era ruim, Harry pensou, lambendo-o enquanto observavam um gorila que coçava a cabeça e se parecia demais com Duda, exceto pelos cabelos que não eram louros. Harry passou a melhor manhã que já tivera em muito tempo. Cuidou de andar um pouco afastado dos Dursley de modo que Duda e Pedro, que ali pela hora do almoço estavam começando a se chatear com os bichos, não recaíssem no seu passatempo favorito de bater no primo. Almoçaram no restaurante do zoo e quando Duda teve um acesso de raiva porque seu sorvetão não era bastante grande, tio Válter comprou-lhe outro e deixou Harry terminar o primeiro. Depois Harry achou que devia ter adivinhado que estava bom demais para durar muito tempo. Terminado o almoço, foram visitar o alojamento dos répteis. Era fresco e escuro ali, com quadrados iluminados ao longo das paredes. Por trás dos vidros, rastejavam e deslizavam em pedaços de pau e em pedras todos os tipos de cobras e lagartos. Duda e Pedro queriam ver as enormes cobras venenosas e as grossas pitones que esmagavam um homem. Duda logo encontrou a maior cobra que havia. Poderia dar duas voltas no carro de tio Válter e amassá-lo até reduzi-lo ao tamanho de uma lata de lixo – mas naquela hora ela não estava disposta a fazer nada. Na realidade, estava dormindo a sono solto. Duda parou, o nariz comprimido contra o vidro, observando as espirais marrons e reluzentes. – Faz ela se mexer – choramingou para o pai. Tio Válter bateu no vidro, mas a cobra não se mexeu. – Faz outra vez – mandou Duda. Tio Válter bateu no vidro com os nós dos dedos, mas a cobra continuou dormindo. – Que chato – queixou-se Duda. E saiu arrastando os pés. Harry veio se postar na frente do tanque e estudou a cobra com atenção. Não se admiraria se a própria cobra morresse de tédio – não tinha companhia a não ser aquela gente idiota que batucava no vidro, tentando incomodá-la o dia inteiro. Era pior do que ter um armário por quarto, onde a única visita era a tia Petúnia esmurrando a porta para acordá-lo, mas ao menos ele podia visitar o resto da casa. A cobra inesperadamente abriu os olhos, que pareciam contas. Devagarinho, muito devagarinho, levantou a cabeça até seus olhos chegarem ao nível dos de Harry. E piscou. Harry arregalou os olhos. E olhou depressa a toda volta para ver se havia alguém olhando. Não havia. E retribuiu o olhar da cobra, piscando também. A cobra acenou com a cabeça na direção de tio Válter e de Duda, depois levantou os olhos para o teto. Lançou um olhar a Harry que dizia com todas as letras: – Isso é o que me acontece o tempo todo. – Eu sei – murmurou Harry pelo vidro, embora não tivesse muita certeza se a cobra poderia ouvi-lo –, deve ser bem chato. A cobra concordou com um aceno de cabeça enfático. – Mas de onde é que você veio? – perguntou Harry. A cobra apontou com o rabo uma placa próxima ao vidro. Harry espiou. Boa Constrictor, Brasil. – Era bom lá? A jiboia apontou novamente a placa com o rabo e Harry leu: Este espécime nasceu em cativeiro. – Ah, entendo, então você nunca esteve no Brasil? A cobra sacudiu a cabeça, mas um grito ensurdecedor atrás de Harry fez os dois pularem: – DUDA! SR. DURSLEY! VENHAM VER ESSA COBRA! VOCÊS NÃO VÃO ACREDITAR NO QUE ESTÁ FAZENDO! Duda veio bamboleando até onde o amigo estava o mais depressa que pôde. – Cai fora – falou dando um soco nas costelas de Harry. Apanhado de surpresa, Harry caiu com força no chão de concreto. O que se passou em seguida aconteceu tão depressa que ninguém viu como foi: num segundo, Pedro e Duda estavam encostados no vidro, no segundo seguinte, estavam saltando para trás soltando uivos de terror. Harry sentou-se e parou de respirar: o vidro da frente do tanque da jiboia tinha sumido. A grande cobra se desenrolou depressa e escorregou pelo chão – as pessoas no alojamento dos répteis gritaram e começaram a correr para as saídas. Quando a cobra passou rápido por ele, Harry poderia jurar que uma voz baixa e sibilante tinha dito: “Brasil, aqui vou eu... Obrigada, amigo.” O zelador do alojamento dos répteis ficou em estado de choque. – Mas o vidro – ele não parava de repetir –, para onde foi o vidro? O diretor do zoo em pessoa preparou uma xícara de chá forte para tia Petúnia enquanto se desculpava mil vezes. Pedro e Duda só conseguiam balbuciar. Pelo que Harry vira, a cobra não fizera nada a não ser fingir abocanhar os calcanhares deles quando passou, mas quando chegaram finalmente ao carro do tio Válter, Duda estava contando que a cobra quase lhe arrancara a perna a dentadas, enquanto Pedro jurava que a cobra tentara apertá-lo até matar. Mas o pior de tudo, pelo menos para Harry, foi Pedro ter se acalmado o suficiente para perguntar: – Harry estava conversando com ela, não estava, Harry? Tio Válter esperou até Pedro estar longe da casa para brigar com Harry. Estava tão zangado que mal podia falar. Conseguiu apenas dizer: – Vá... armário... Harry... sem comida – antes de desmontar em uma cadeira e tia Petúnia ter que correr para lhe servir uma boa dose de conhaque. Muito mais tarde, deitado no seu armário, Harry desejou ter um relógio. Não sabia que horas eram e não tinha certeza se os Dursley já estariam dormindo. Até que estivessem, ele não poderia se arriscar a ir escondido até a cozinha buscar alguma coisa para comer. Vivia com os Dursley havia quase dez anos, dez infelizes anos, desde que se lembrava, desde que era bebê e seus pais tinham morrido naquele acidente de carro. Não conseguia se lembrar de ter estado no carro quando os pais morreram. Às vezes, quando forçava a memória durante longas horas em seu armário, lembrava-se de uma estranha visão: um lampejo ofuscante de luz verde e uma queimadura na testa. Isto, supunha ele, era o acidente embora não conseguisse lembrar de onde vinha toda aquela luz verde. Não conseguia lembrar nada dos pais. A tia e o tio nunca falavam neles e naturalmente tinham-no proibido de fazer perguntas. E não havia fotografias deles na casa. Quando era mais novo, Harry sonhara muitas vezes com um parente desconhecido que vinha levá-lo embora, mas isto nunca acontecera; os Dursley eram sua única família. Ainda assim, ele achava (ou talvez fosse só uma esperança) que estranhos na rua o conheciam. E eram estranhos muito estranhos. Um homenzinho de cartola roxa se curvara para ele uma vez quando estava fazendo compras com tia Petúnia e Duda. Depois de perguntar a Harry, furiosa, se ele conhecia o homem, tia Petúnia tinha empurrado os meninos depressa para fora da loja sem comprar nada. Uma velha amaluca da toda vestida de verde uma vez acenara alegremente para ele no ônibus. Um careca com um longo casaco púrpura chegara a apertar sua mão na rua um dia desses e em seguida se afastara sem dizer nada. A coisa mais estranha nessas pessoas era a maneira com que pareciam desaparecer no instante em que Harry tentava vê-los melhor. Na escola Harry não tinha ninguém. Todos sabiam que a turma de Duda odiava aquele estranho Harry Potter com suas roupas velhas e folgadas e os óculos remendados, e ninguém gostava de contrariar a turma do Duda. — CAPÍTULO TRÊS — As cartas de ninguém A fuga da jiboia brasileira rendeu a Harry o seu castigo mais longo. Na altura em que lhe permitiram sair do armário, as férias de verão já haviam começado e Duda já quebrara a nova filmadora, acidentara o aeromodelo e, na primeira vez que andara na bicicleta de corrida, derrubara a velha Sra. Figg quando ela atravessava a rua dos Alfeneiros de muletas. Harry ficou contente que as aulas tivessem acabado, mas não conseguia escapar da turma de Duda, que visitava a casa todo dia. Pedro, Dênis, Malcolm e Górdon eram todos grandes e burros, mas como Duda era o maior e o mais burro do bando, era o líder. Os demais ficavam bastante felizes de participar do esporte favorito de Duda: perseguir Harry. Por esta razão Harry passava a maior parte do tempo possível fora de casa, perambulando e pensando no fim das férias, no qual conseguia vislumbrar um raiozinho de esperança. Quando setembro chegasse ele iria para a escola secundária e, pela primeira vez na vida, não estaria em companhia de Duda. Duda tinha uma vaga na antiga escola de tio Válter, Smeltings. Pedro ia para lá também. Harry, por outro lado, ia para a escola secundária local. Duda achava muita graça nisso. – Eles metem a cabeça dos garotos no vaso sanitário no primeiro dia de escola – contou ele a Harry –, quer ir lá em cima praticar? – Não, obrigado – respondeu Harry. – O coitado do vaso nunca recebeu nada tão horrível quanto a sua cabeça, é capaz de passar mal. – E correu antes que Duda conseguisse entender o que dissera. Certo dia de julho, tia Petúnia levou Duda a Londres para comprar o uniforme da Smeltings e deixou Harry com a Sra. Figg. A Sra. Figg não estava tão ruim quanto de costume. Afinal, fraturara a perna porque tropeçara em um dos gatos e não parecia gostar tanto deles quanto antes. Deixou Harry assistir à televisão e lhe deu um pedaço de bolo de chocolate que pelo gosto parecia ter muitos anos. Naquela noite, Duda desfilou para a família reunida na sala de estar vestindo o uniforme novo da Smeltings. Os alunos da Smeltings usavam casaca marrom-avermelhada, calções cor de laranja e chapéus de palha. Carregavam também bengalas nodosas, que usavam para bater uns nos outros quando os professores não estavam olhando. Isto era considerado um bom treinamento para o futuro. Ao contemplar Duda nos calções laranja novos, tio Válter disse com a voz embargada que aquele era o momento de maior orgulho em sua vida. Tia Petúnia rompeu em lágrimas e disse que não podia acreditar que era o seu Dudinha, estava tão bonito e adulto. Harry não confiou no que poderia dizer. Achou que duas de suas costelas talvez já tivessem partido só com o esforço para não rir. Havia um cheiro horrível na cozinha na manhã seguinte quando Harry entrou para o café da manhã. Parecia vir de uma grande tina de metal dentro da pia. Ele se aproximou para espiar. A tina aparentemente estava cheia de trapos sujos que boiavam em água cinzenta. – O que é isso? – perguntou à tia Petúnia. Os lábios dela se contraíram como costumavam fazer quando ele se atrevia a fazer uma pergunta. – O seu uniforme novo de escola – respondeu. Harry espiou para dentro da tina outra vez. – Ah – comentou –, eu não sabia que tinha que ser tão molhado. – Não seja idiota – retorquiu tia Petúnia com rispidez. – Estou tingindo de cinzento umas roupas velhas de Duda para você. Vão ficar iguaizinhas às dos outros quando eu terminar. Harry tinha sérias dúvidas, mas achou melhor não discutir. Sentou-se à mesa e tentou pensar na aparência que teria no primeiro dia de aula – como se estivesse usando retalhos de pele de elefante velho, provavelmente. Duda e tio Válter entraram ambos com os narizes franzidos por causa do cheiro do novo uniforme de Harry. Tio Válter abriu o jornal como sempre fazia e Duda bateu na mesa com a bengala da Smeltings, que ele carregava para todo lado. Ouviram o clique da portinhola para cartas e o som da correspondência caindo no capacho da porta. – Apanhe o correio, Duda – disse tio Válter por trás do jornal. – Mande o Harry apanhar. – Apanhe o correio, Harry. – Mande o Duda apanhar. – Cutuque ele com a bengala da Smeltings, Duda. Harry se esquivou da bengala da Smeltings e foi apanhar o correio. Havia três coisas no capacho: um postal da irmã do tio Válter, Guida, que estava passando férias na ilha de Wight, um envelope pardo que parecia uma conta e – uma carta para Harry. Harry apanhou-a e ficou olhando, o coração vibrando como um elástico gigante. Ninguém, jamais, em toda a sua vida, lhe escrevera. Quem escreveria? Ele não tinha amigos, nem outros parentes – não era sócio da biblioteca, de modo que jamais recebera sequer os bilhetes grosseiros pedindo a devolução de livros. Contudo, ali estava, uma carta, endereçada tão claramente que não podia haver engano. Sr. H. Potter O Armário sob a Escada Rua dos Alfeneiros 4 Little Whinging Surrey O envelope era grosso e pesado, feito de pergaminho amarelado e endereçado com tinta verde-esmeralda. Não havia selo. Quando virou o envelope, com a mão trêmula, Harry viu um lacre de cera púrpura com um brasão; um leão, uma águia, um texugo e uma cobra circulando uma grande letra “H”. – Anda depressa, moleque! – gritou tio Válter da cozinha. – Está fazendo o quê, procurando cartas-bombas? – E riu da própria piada. Harry voltou à cozinha, ainda de olhos fixos na carta. Entregou a conta e o postal ao tio Válter, sentou-se e começou a abrir lentamente o envelope amarelo. Tio Válter rasgou o envelope da conta, deu um bufo de desdém e virou o postal. – Guida está doente – informou à tia Petúnia. – Comeu um marisco suspeito... – Pai! – exclamou Duda de repente. – Pai, Harry recebeu uma carta! Harry ia desdobrar a carta, escrita no mesmo pergaminho grosso que o envelope, quando tio Válter arrancou-a de sua mão. – É minha! – disse Harry, tentando recuperá-la. – Quem iria escrever para você? – zombou tio Válter, sacudindo a carta com uma das mãos para desdobrá-la e percorrendo-a com o olhar. Seu rosto passou de vermelho para verde mais rápido do que um sinal de tráfego. E não parou aí. Segundos depois ficou branco-acinzentado, cor de mingau de aveia velho. – P-P-Petúnia! – ofegou. Duda tentou agarrar a carta para lê-la, mas tio Válter segurou-a no alto fora do seu alcance. Tia Petúnia apanhou-a cheia de curiosidade e leu a primeira linha. Por um instante pareceu que ela talvez fosse desmaiar. Levou as duas mãos à garganta e produziu um ruído de engasgo. – Válter! Ah, meu Deus, Válter! Eles se encararam, parecendo ter esquecido que Harry e Duda continuavam na cozinha. Duda não estava acostumado a ser desprezado. Deu uma bengalada forte na cabeça do pai. – Quero ler esta carta – falou alto. – Quero lê-la – disse Harry, furioso –, porque é minha. – Saiam, os dois – ordenou com voz rouca tio Válter, enfiando a carta no envelope. Harry não se mexeu. – QUERO MINHA CARTA! – gritou. – Me deixa ver! – exigiu Duda. – FORA! – berrou tio Válter, e agarrando os dois, Harry e Duda, pelo cangote atirou-os no corredor e bateu a porta da cozinha. Harry e Duda na mesma hora tiveram uma briga furiosa, mas silenciosa, para saber quem ia escutar à fechadura; Duda ganhou, por isso Harry, os óculos pendurados em uma orelha, deitou-se de barriga no chão para escutar pela fresta entre a porta e o chão. – Válter – disse tia Petúnia com voz trêmula –, olhe só o endereço. Como é que eles poderiam saber onde ele dorme? Você acha que estão vigiando a casa? – Vigiando, espionando, talvez nos seguindo – murmurou tio Válter enlouquecido. – Mas o que vamos fazer, Válter? Vamos responder à carta? Dizer a eles que não queremos... Harry via os sapatos pretos lustrosos do tio Válter andando para cá e para lá na cozinha. – Não – disse ele, decidido. – Não, vamos ignorá-la. Se não receberem uma resposta... É, é o melhor... não vamos fazer nada... – Mas... – Não vou ter um deles em casa, Petúnia! Nós não juramos quando o recebemos que íamos acabar com aquela bobagem perigosa? Aquela noite, quando voltou do trabalho, tio Válter fez uma coisa que nunca fizera antes; visitou Harry no armário. – Cadê minha carta? – perguntou Harry, no instante em que tio Válter se espremeu pela porta. – Quem me escreveu? – Ninguém. Endereçaram a você por engano – disse tio Válter secamente. – Queimei a carta. – Não foi um engano – retrucou Harry com raiva –, tinha o endereço do meu armário. – CALADO! – gritou tio Válter e algumas aranhas caíram do teto. Ele inspirou algumas vezes e então fez força para produzir um sorriso que pareceu bem penoso. – Hum, sim, Harry, sobre este armário. Sua tia e eu estivemos pensando... você realmente está ficando grande demais para ele... achamos que seria bom se você se mudasse para o segundo quarto de Duda. – Por quê? – perguntou Harry. – Não faça perguntas – disse com rispidez o tio. – Leve essas coisas para cima agora. A casa dos Dursley tinha quatro quartos: um para tio Válter e tia Petúnia, um para hóspedes (em geral a irmã de tio Válter, Guida), um onde Duda dormia e um onde Duda guardava todos os brinquedos e pertences que não cabiam no primeiro quarto. Harry precisou de apenas uma viagem para mudar tudo o que tinha do armário para o quarto no andar de cima. Sentou- se na cama e deu uma olhada à sua volta. Quase tudo ali estava quebrado. A filmadora com apenas um mês de uso estava jogada em cima de um pequeno tanque com que certa vez Duda atropelara o cachorro do vizinho; no canto estava o primeiro televisor de Duda, no qual ele enfiara o pé quando seu programa favorito fora cancelado; havia uma grande gaiola de pássaros, antigamente habitada por um papagaio que Duda trocara na escola por uma espingarda de ar de verdade, e que estava guardada numa prateleira com a ponta dobrada porque Duda se sentara em cima dela. Outras prateleiras estavam cheias de livros. Eram as únicas coisas no quarto que pareciam nunca ter sido tocadas. Lá de baixo veio o barulho de Duda gritando com a mãe: – Eu não quero ele lá... eu preciso daquele quarto... mande ele sair. Harry suspirou e se esticou na cama. Ontem ele teria dado qualquer coisa para estar ali. Hoje, preferia estar no seu armário com aquela carta a ali em cima sem ela. Na manhã seguinte, no café, todos estavam muito quietos. Duda estava em estado de choque. Berrara, batera no pai com a bengala, vomitara de propósito, dera pontapés na mãe e atirara sua tartaruga pelo teto da estufa de plantas e nem assim conseguira o quarto de volta. Harry pensava no dia anterior àquela hora, desejando com amargura que tivesse aberto a carta no hall. Tio Válter e tia Petúnia se entreolhavam, ameaçadores. Quando o correio chegou, tio Válter, que parecia estar tentando ser agradável com Harry, fez Duda ir buscá-lo. Eles o ouviram bater nas coisas do corredor com a bengala da Smeltings. Então ele gritou: – Chegou outra! Sr. H. Potter, O Menor Quarto da Casa, Rua dos Alfeneiros 4... Com um grito sufocado tio Válter saltou da cadeira e saiu correndo pelo corredor, Harry logo atrás dele. Tio Válter teve que lutar e derrubar Duda no chão para lhe tirar a carta, o que foi dificultado por Harry, que agarrara o pescoço do tio Válter por trás. Depois de um minuto confuso de luta, em que todos levaram várias bengaladas, tio Válter se endireitou, ofegante, com a carta de Harry apertada na mão. – Vá para o seu armário, quero dizer, para o seu quarto – chiou para Harry. – Duda, saia, saia logo. Harry deu voltas e mais voltas no novo quarto. Alguém sabia que ele se mudara do armário e parecia saber que ele não recebera a primeira carta. Isto significava com certeza que ia tentar outra vez? E desta vez ele tomaria providências para que desse certo. Tinha um plano. O despertador consertado tocou às seis horas na manhã seguinte. Harry desligou-o depressa e se vestiu em silêncio. Não podia acordar os Dursley. Desceu as escadas sorrateiro sem acender nenhuma luz. Ia esperar pelo carteiro na esquina da Alfeneiros e receber primeiro as cartas endereçadas ao número quatro. Seu coração batia com força quando atravessou sem ruído o corredor escuro até a porta de entrada. – AAAAARRREE! Harry deu um salto no ar – pisara em alguma coisa grande e mole no capacho – uma coisa viva! As luzes se acenderam no primeiro andar e, para seu horror, Harry percebeu que a coisa grande e mole tinha a cara do tio. Tio Válter estava dormindo junto à porta de entrada em um saco de dormir para impedir que Harry fizesse exatamente o que estava tentando fazer. Gritou com Harry quase meia hora e depois lhe disse para ir preparar uma xícara de chá. Harry foi para a cozinha arrastando os pés, infeliz, e quando conseguiu voltar o correio tinha sido entregue, bem no colo de tio Válter. Harry viu três cartas endereçadas em tinta verde. – Quero... – começou, mas tio Válter estava rasgando as cartas em pedacinhos bem diante dos seus olhos. Tio Válter não foi trabalhar naquele dia. Ficou em casa e pregou a portinhola para cartas. – Entende – explicou à tia Petúnia por entre os lábios cheios de pregos –, se eles não puderem entregar então terão de desistir. – Não tenho muita certeza de que isto vai dar certo, Válter. – Ah, a cabeça dessa gente funciona de maneira estranha, Petúnia, eles não são como você e eu – disse tio Válter tentando bater um prego com um pedaço de bolo de frutas que tia Petúnia acabara de lhe trazer. Na sexta-feira chegaram nada menos de doze cartas para Harry. Como não passavam pela portinhola da correspondência tinham sido empurradas por baixo da porta, metidas pelos lados e algumas até forçadas pela janelinha do banheiro no térreo. Tio Válter ficou em casa de novo. Depois de queimar todas as cartas, apanhou martelo e pregos e fechou com tábuas as frestas em volta das portas da frente e dos fundos, de modo que ninguém pudesse sair. Cantarolou “Pé ante pé no campo de tulipas” enquanto trabalhava, e se assustava com qualquer ruído. No sábado as coisas começaram a fugir ao seu controle. Vinte e quatro cartas acabaram entrando em casa, enroladas e escondidas nas duas dúzias de ovos que o leiteiro, muito confuso, entregara à tia Petúnia pela janela da sala de estar. Enquanto tio Válter dava telefonemas furiosos para o correio e a leiteria tentando encontrar alguém a quem se queixar, tia Petúnia picava as cartas no processador de alimentos. – Mas quem é que quer falar tanto assim com você ? – Duda perguntou espantado a Harry. Na manhã do domingo, tio Válter sentou-se à mesa do café parecendo cansado e um tanto doente, mas feliz. – Não tem correio aos domingos – lembrou a todos, contente, passando geleia nos jornais –, nada de cartas idiotas hoje... Alguma coisa desceu chiando pela chaminé do fogão enquanto ele falava e bateu com força em sua nuca. No instante seguinte, trinta ou quarenta cartas saíram velozes da lareira como se fossem tiros. Os Dursley se abaixaram, mas Harry deu um salto no ar para apanhar uma... – FORA! FORA! Tio Válter agarrou Harry pela cintura e atirou-o no corredor. Depois que tia Petúnia e Duda tinham corrido para fora protegendo o rosto com os braços, tio Válter bateu a porta. Eles podiam ouvir as cartas disparando para dentro da cozinha, ricocheteando nas paredes e no chão. – Já chega – disse tio Válter, tentando falar com calma, mas, ao mesmo tempo, arrancando tufos de pelos dos bigodes. – Quero vocês aqui de volta em cinco minutos prontos para sair. Vamos viajar. Ponham apenas algumas roupas nas malas. Não quero discussão! Ele parecia tão perigoso com metade dos bigodes arrancados que ninguém se atreveu a discutir. Dez minutos depois eles tinham retirado as tábuas para passar nas portas e estavam no carro, correndo em direção à estrada. Duda fungava no banco traseiro; o pai tinha lhe dado um tapa na cabeça por atrasá-los tentando empacotar a televisão, o vídeo e o computador na mochila esportiva. Eles viajaram no carro. E viajaram. Nem tia Petúnia se atrevia a perguntar aonde iam. De vez em quando tio Válter fazia uma curva fechada e seguia na direção oposta por algum tempo. – Para despistá-los... despistá-los – resmungava sempre que fazia isso. Não pararam para comer nem beber o dia inteiro. Quando a noite caiu Duda estava uivando. Nunca tivera um dia tão ruim na vida. Estava com fome, sentia falta dos cinco programas de televisão a que queria assistir e nunca levara tanto tempo sem explodir um alienígena no computador. Tio Válter parou finalmente à porta de um hotel de aspecto sombrio na periferia de uma grande cidade. Duda e Harry dividiram um quarto com duas camas iguais e lençóis úmidos que cheiravam a mofo. Duda roncou, mas Harry ficou acordado, sentado no peitoril da janela, espiando as luzes dos carros que passavam enquanto pensava... Comeram cereal velho e torradas com tomates enlatados frios no café da manhã do dia seguinte. Tinham acabado de comer quando a proprietária do hotel aproximou-se da mesa. – Com licença, mas um dos senhores é o Sr. H. Potter? É que eu tenho umas cem dessas na recepção. E ergueu uma carta para eles poderem ler o endereço em tinta verde: Sr. H. Potter Quarto 17 Railview Hotel Cokeworth Harry tentou pegar a carta, mas tio Válter afastou sua mão. A mulher ficou olhando. – Eu recebo as cartas – disse tio Válter, levantando-se depressa e seguindo a mulher que se retirava do salão de refeições. – Não seria melhor simplesmente irmos para casa, querido? – tia Petúnia sugeriu timidamente horas depois, mas tio Válter não parecia ouvi-la. Exatamente o que andava procurando ninguém sabia. Ele os levou até o meio de uma floresta, desceu do carro, espiou à volta, sacudiu a cabeça, tornou a embarcar no carro e partiram outra vez. A mesma coisa aconteceu no meio de um campo arado, no meio de uma ponte pênsil e no alto de um edifício garagem. – Papai enlouqueceu, não foi? – Duda perguntou, cansado, à tia Petúnia no fim daquela tarde. Tio Válter estacionara no litoral, passara a chave no carro com todos dentro e desaparecera. Começou a chover. Grandes gotas batiam no teto do carro. Duda choramingou. – É segunda-feira – falou à mãe. – O Grande Humberto vai se apresentar hoje à noite. Quero estar em algum lugar que tenha televisão. Segunda-feira. Isto lembrou a Harry uma coisa. Se era segunda-feira – e em geral podia-se confiar que Duda soubesse os dias da semana, por causa da televisão – então o dia seguinte, terça-feira, era o décimo primeiro aniversário de Harry. Naturalmente seus aniversários não eram lá muito divertidos – no ano anterior, os Dursley tinham-lhe dado um cabide e um par de meias velhas do tio Válter. Ainda assim, não se fazia onze anos todos os dias. Tio Válter voltou sorrindo. Carregava um pacote comprido e fino e não respondeu à tia Petúnia quando ela perguntou o que comprara. – Encontrei o lugar perfeito! – falou. – Vamos! Saiam todos! Fazia muito frio do lado de fora do carro. Tio Válter apontou para o que parecia ser um grande rochedo no meio do mar. Encarrapitado no alto do rochedo havia o casebre mais miserável que se pode imaginar. Uma coisa era certa, ali não havia televisão. – Estão anunciando uma tempestade para hoje! – disse tio Válter alegre, batendo palmas. – E este senhor teve a bondade de concordar em nos emprestar seu barco! Um homem desdentado vinha descansadamente em direção a eles, e apontava com um sorriso muito maldoso para um barco a remos velho que subia e descia nas águas cinza-grafite lá embaixo. – Já comprei algumas rações para nós – disse tio Válter –, portanto, todos a bordo! Fazia muito frio no barco. Salpicos de água gelada do mar escorriam pelos pescoços deles e um vento cortante fustigava seus rostos. Depois do que pareceram horas eles chegaram ao rochedo, onde Tio Válter, escorregando, levou-os até a casa em ruínas. O interior era horrível; cheirava a algas marinhas, o vento assobiava pelas frestas nas paredes de tábuas e a lareira estava úmida e vazia. Havia apenas dois quartos. Afinal as rações de tio Válter eram uma embalagem de cereal para cada um e quatro bananas. Ele tentou acender a lareira, mas a embalagem de cereal apenas fumegou e carbonizou. – Aquelas cartas viriam a calhar agora, hein? – disse ele, animado. Estava de muito bom humor. Obviamente achava que ninguém teria chance de alcançá-lo ali, durante uma tempestade, para entregar cartas. Harry concordava intimamente, embora este pensamento não o animasse nem um pouco. Quando a noite caiu, a tempestade prometida desabou ao redor deles. A espuma das altas ondas chapinhava nas paredes do casebre e um vento ameaçador sacudia as janelas imundas. Tia Petúnia encontrou uns cobertores mofados no segundo quarto e preparou uma cama para Duda no sofá comido pelas traças. Ela e tio Válter foram se deitar na cama cheia de calombos ao lado e deixaram Harry procurar a parte mais macia do soalho e se enrolar no cobertor mais rasgado e ralo. A tempestade rugia cada vez com maior ferocidade à medida que a noite avançava. Harry não conseguia dormir. Tremia e revirava, tentando encontrar uma posição confortável, seu estômago roncando de fome. Os roncos de Duda eram abafados pela trovoada que começou por volta da meia-noite. O mostrador luminoso do relógio de Duda, que estava pendurado para fora do sofá em seu pulso gordo, informava a Harry que dentro de dez minutos ele completaria onze anos. Deitado, ele viu seu aniversário se aproximar, perguntando-se se os Dursley se lembrariam, perguntando-se onde estaria o remetente das cartas agora. Faltavam cinco minutos. Harry ouviu alguma coisa estalar lá fora. Desejou que o teto não caísse, embora quem sabe conseguisse se esquentar se isto acontecesse. Quatro minutos. Talvez a casa na rua dos Alfeneiros estivesse tão abarrotada de cartas que quando voltassem ele pudesse surrupiar uma. Três minutos. Seria o mar batendo tão forte na rocha? E (faltavam dois minutos) que barulho esquisito de trituração era aquele? Será que a rocha estava se desintegrando no mar? Mais um minuto e ele completaria onze anos. Trinta segundos... vinte... dez – nove – talvez acordasse Duda, só para aborrecê-lo – três – dois – um... BUM. O casebre todo estremeceu e Harry sentou-se reto, arregalando os olhos para a porta. Havia alguém lá fora, que batia, querendo entrar. — CAPÍTULO QUATRO — O guardião das chaves Bum. Bateram outra vez. Duda acordou assustado. – Onde está o canhão? – perguntou abobado. Ouviram alguma coisa cair atrás deles e tio Válter entrou derrapando pela sala. Trazia um rifle nas mãos – agora sabiam o que era aquele pacote fino e comprido que ele carregava. – Quem está aí? – gritou. – Olha que estou armado! Silêncio. E em seguida... TRAM! A porta levou uma pancada tão violenta que se soltou das dobradiças e, com um baque ensurdecedor, desabou no chão. Um homem gigantesco estava parado ao portal. Tinha o rosto completamente oculto por uma juba muito peluda e uma barba selvagem e desgrenhada, mas dava para se ver seus olhos, luzindo como besouros negros debaixo de todo aquele cabelo. O gigante espremeu-se para entrar no casebre, curvando-se de modo que a cabeça apenas roçou o teto. Abaixou-se, apanhou a porta e tornou a encaixá-la sem esforço no portal. O ruído da tempestade lá fora diminuiu um pouco. Ele se virou para encarar todos. – Não poderia preparar uma xícara de chá para nós, poderia? Não foi uma viagem fácil... E dirigiu-se ao sofá onde Duda estava paralisado de medo. – Chegue para lá, gordão – disse o estranho. Duda soltou um guincho e correu a se esconder atrás da mãe, que parara encolhida, aterrorizada, atrás de tio Válter. – Ah, e aqui está o Harry! – disse o gigante. Harry ergueu os olhos para a cara feroz e selvagem em sombras e viu que os olhos de besouro se enrugavam em um sorriso. – A última vez que o vi, você era um bebê – disse o gigante. – Você parece muito com o seu pai, mas tem os olhos da sua mãe. Tio Válter fez um som estranho e rascante. – Exijo que saia imediatamente! – disse. – O senhor invadiu minha casa! – Ah, cala a boca, Dursley, seu cara de passa – disse o gigante; esticou o braço para trás do sofá e arrancou a arma das mãos de tio Válter, vergou-a no meio como se ela fosse de borracha e atirou-a a um canto da sala. Tio Válter fez outro som esquisito, como um camundongo sendo pisado. – Em todo caso, Harry – disse o gigante, dando as costas para os Dursley –, feliz aniversário para você. Tenho uma coisa para você aqui; talvez tenha sentado nela sem querer, mas o gosto continua bom. De um bolso interno do casaco preto ele tirou uma caixa meio amassada. Harry abriu-a com os dedos trêmulos. Dentro havia um grande e pegajoso bolo de chocolate com a frase Feliz Aniversário escrita em glacê verde. Harry olhou para o gigante. Quis dizer obrigado, mas as palavras se perderam a caminho da boca, e em lugar disso o que disse foi: – Quem é você? O gigante deu uma risada abafada. – É verdade, não me apresentei. Rúbeo Hagrid, Guardião das Chaves e das Terras de Hogwarts. Estendeu uma mão enorme e sacudiu o braço inteiro de Harry. – E que tal o chá, hein? – perguntou esfregando as mãos. – Eu não diria não a uma pessoa mais forte, se é que você me entende. Seus olhos bateram na lareira vazia em que ficara o pacote carbonizado de cereal e ele soltou uma risadinha desdenhosa. Curvou-se para a lareira; não viram o que ele estava fazendo, mas quando se afastou um segundo depois, havia dentro dela um clarão ribombante. O fogo estrondoso encheu todo o casebre úmido com sua luz tremeluzente e Harry sentiu o calor envolvê-lo como se tivesse mergulhado em um banho quente. O gigante se recostou no sofá, que afundou um pouco sob o seu peso, e começou a tirar coisas de todo gênero dos bolsos do casaco: uma chaleira de cobre, uma embalagem amassada de salsichas, um espeto, um bule de chá, várias xícaras lascadas e uma garrafa de um líquido âmbar de que ele tomou um gole antes de começar a preparar o chá. Logo o casebre se encheu com o ruído e o cheiro de salsichas fritas. Ninguém disse nada enquanto o gigante trabalhava, mas assim que ele empurrou as primeiras salsichas gordas e suculentas, ligeiramente queimadas, do espeto, Duda se mexeu. Tio Válter disse com rispidez: – Não toque em nada que ele lhe der, Duda. O gigante deu uma risadinha ameaçadora. – Esse pudim de banha do seu filho não precisa engordar mais, Dursley, não se preocupe. E passou as salsichas para Harry, que estava tão faminto e nunca provara nada tão maravilhoso, mas ainda assim não conseguia tirar os olhos do gigante. Finalmente, como ninguém parecia disposto a explicar nada, ele disse: – Me desculpe, mas continuo sem saber realmente quem você é. O gigante tomou um grande gole de chá e limpou a boca com as costas da mão. – Me chame de Rúbeo, é como todos me chamam. E como lhe disse, sou o guardião das chaves de Hogwarts, você sabe tudo sobre Hogwarts, é claro. – Ah, não – disse Harry. Hagrid pareceu chocado. – Sinto muito – apressou-se Harry a dizer. – Sente muito? – vociferou Hagrid, virando-se para encarar os Dursley, que tinham recuado para as sombras. – Eles é que deviam sentir muito! Eu sabia que você não estava recebendo as cartas, mas nunca pensei que nem ao menos sabia da existência de Hogwarts, para apelar! Você nunca se perguntou onde foi que seus pais aprenderam tudo? – Tudo o quê? – perguntou Harry. – TUDO O QUÊ? – berrou Hagrid. – Ora, espere aí um segundo! Ele se levantara de um salto. Na raiva parecia encher o casebre todo. Os Dursley se encolhiam contra a parede. – Vocês vão querer me dizer – rosnou para os Dursley – que este menino, este menino!, não sabe nada, de NADA? Harry achou que a coisa estava indo longe demais. Afinal tinha frequentado a escola e suas notas não eram ruins. – Eu sei alguma coisa – falou. – Sei, sabe, matemática e outras coisas. Mas Hagrid dispensou-o com um abano de mão e disse: – Do nosso mundo, quero dizer. Seu mundo. Meu mundo. O mundo dos seus pais. – Que mundo? Hagrid parecia prestes a explodir. – DURSLEY! – urrou ele. Tio Válter, que ficara muito pálido, murmurou alguma coisa ininteligível. Hagrid olhou alucinado para Harry. – Mas você deve saber quem foram sua mãe e seu pai – disse. – Quero dizer, eles são famosos. Você é famoso. – Quê? Meu pai e minha mãe eram famosos? – Você não sabe... você não sabe... – Hagrid correu os dedos pelos cabelos, fixando em Harry um olhar perplexo. “Você não sabe quem é?”, perguntou finalmente. Tio Válter de repente encontrou a voz. – Pare! – ordenou. – Pare agora mesmo! Eu o proíbo de contar qualquer coisa ao menino! Um homem mais corajoso do que Válter Dursley teria se intimidado com o olhar furioso que Hagrid lhe deu; quando Hagrid falou, cada sílaba tremia de raiva. – Você nunca contou? Nunca contou o que Dumbledore deixou escrito naquela carta para ele? Eu estava lá! Eu vi Dumbledore deixar a carta, Dursley! E você escondeu dele todos esses anos? – Escondeu o que de mim? – perguntou Harry, ansioso. – PARE! EU O PROÍBO! – gritou tio Válter em pânico. Tia Petúnia deixou escapar um grito sufocado de horror. – Ah, vão tomar banho, vocês dois – disse Hagrid. – Harry, você é um bruxo. O casebre mergulhou em silêncio. Ouviam-se apenas o mar e o assobio do vento. – Eu sou o quê ? – ofegou Harry – Um bruxo, é claro – repetiu Hagrid, recostando-se no sofá, que gemeu e afundou ainda mais –, e um bruxo de primeira, eu diria, depois que receber um pequeno treino. Com uma mãe e um pai como os seus, o que mais você poderia ser? E acho que já está na hora de ler a sua carta. Harry estendeu a mão finalmente para receber o envelope meio amarelo, endereçado em tinta verde para Sr. H. Potter, O Soalho, Casebre-sobre-o- Rochedo, O Mar. Ele puxou a carta e leu: ESCOLA DE MAGIA E BRUXARIA DE HOGWARTS Diretor: Alvo Dumbledore (Ordem de Merlim, Primeira Classe, Grande Feiticeiro, Bruxo Chefe, Cacique Supremo, Confederação Internacional de Bruxos) Prezado Sr. Potter, Temos o prazer de informar que V. Sa. tem uma vaga na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Estamos anexando uma lista dos livros e equipamentos necessários. O ano letivo começa em 1o de setembro. Aguardamos sua coruja até 31 de julho, no mais tardar. Atenciosamente, Minerva McGonagall Diretora Substituta As perguntas explodiam na cabeça de Harry como fogos de artifício, e ele não conseguia decidir o que perguntar primeiro. Passados alguns minutos, gaguejou: – O que querem dizer com “estão aguardando a minha coruja”? – Gárgulas galopantes! Isto me lembra uma coisa – disse Hagrid, batendo a mão na testa com força suficiente para derrubar um cavalo, e de outro bolso interno do casaco tirou uma coruja, uma coruja de verdade, viva, meio arrepiada, uma longa pena e um rolo de pergaminho. Com a língua entre os dentes, ele rabiscou um bilhete que Harry pôde ler de cabeça para baixo: “Prezado Sr. Dumbledore, Entreguei a carta a Harry. Vou levá-lo amanhã para comprar o material. O tempo está horrível. Espero que o senhor esteja bem. Hagrid.” Hagrid enrolou o pergaminho, entregou-o à coruja, que o prendeu no bico, depois ele foi até a porta e lançou a ave na tempestade. Quando voltou, sentou-se como se aquilo fosse tão normal quanto pegar o telefone. Harry percebeu que sua boca se abrira e fechou-a rapidamente. – Onde é que eu estava? – disse Hagrid, mas, naquele momento, tio Válter, ainda cor de cera, mas parecendo muito furioso, adiantou-se até a luz da lareira. – Ele não vai – falou. Hagrid resmungou. – Eu gostaria de ver um grande trouxa como você impedi-lo – respondeu. – Um o quê? – perguntou Harry, interessado. – Um trouxa – disse Hagrid –, é como chamamos gente que não é mágica como nós. E você teve o azar de ser criado na família dos maiores trouxas que já vi na vida. – Juramos quando o aceitamos que poríamos um fim nessa bobagem – disse tio Válter –, juramos que erradicaríamos isso nele. Bruxo, francamente! – Você sabia? – perguntou Harry. – Você sabia que sou um... bruxo? – Sabia! – guinchou tia Petúnia de repente. – Sabia! Claro que sabíamos! Como poderia não ser, a maldita da minha irmã sendo o que era? Ah, ela recebeu uma carta igual a essa e desapareceu, foi para aquela... aquela escola... e voltava para casa nas férias com os bolsos cheios de ovas de sapo, transformando xícaras em ratos. Eu era a única que a via como ela era... um aborto da natureza! Mas para minha mãe e meu pai, ah não, era Lílian isso e Lílian aquilo, tinham orgulho de ter uma bruxa na família! Ela parou para suspirar profundamente e aí continuou seu discurso. Parecia que estava querendo dizer aquilo havia anos. – Então ela conheceu Potter na escola e eles saíram de casa, casaram e tiveram você, e é claro que eu sabia que você ia ser igual, esquisito, anormal, e então ela vai e me faz o favor de se explodir e nos deixar entalados com você! Harry ficara muito branco. Assim que encontrou a voz, disse: – Se explodir? Você me disse que eles morreram num acidente de carro! – ACIDENTE DE CARRO! – rugiu Hagrid, erguendo-se com tanta raiva que os Dursley voltaram correndo para o canto da sala. – Como é que um acidente de carro poderia matar Lílian e Tiago Potter? Isto é um absurdo! Um escândalo! E Harry Potter não conhecer a própria história, quando qualquer garoto no nosso mundo conhece o nome dele! – Mas por quê? O que aconteceu? – perguntou Harry, ansioso. A raiva desapareceu do rosto de Hagrid. Ele pareceu repentinamente aflito. – Eu nunca esperei isso – disse numa voz contida e preocupada. – Eu não fazia ideia do quanto você desconhecia, quando Dumbledore me disse que eu poderia ter problemas para encontrá-lo. Ah, Harry, não sei se sou a pessoa certa para lhe contar, mas alguém tem de contar, você não pode viajar para Hogwarts sem saber. Ele lançou um olhar feio aos Dursley. – Bom, é melhor você saber o que eu puder lhe contar, mas não posso lhe contar tudo, é um grande mistério, algumas partes... Ele se sentou, fitou o fogo durante alguns segundos e então falou: – Começa, eu acho, com... com uma pessoa chamada, mas é incrível você não saber o nome dele, todo o mundo no nosso mundo sabe... – Quem? – Bom... não gosto de dizer o nome dele se puder evitar. Ninguém gosta. – Por que não? – Gárgulas vorazes, Harry, as pessoas ainda estão apavoradas. Droga, como é difícil. Olha, havia um bruxo que virou... mau. Tão mau quanto alguém pode virar. Pior. Pior do que o pior. O nome dele era... Hagrid engoliu em seco, mas não conseguiu dizer nada. – E se você escrevesse? – sugeriu Harry. – Não, não sei soletrar o nome dele. Está bem, Voldemort. – Hagrid estremeceu. – Não me faça repetir. Em todo o caso, esse... esse bruxo, faz uns vinte anos agora, começou a procurar seguidores. E conseguiu, alguns por medo, outros porque queriam ter um pouco do poder dele, sim, porque ele estava ficando poderoso. Dias funestos, Harry, ninguém sabia em quem confiar, ninguém se atrevia a ficar amigo de bruxas ou bruxos desconhecidos... Coisas horríveis aconteciam. Ele estava tomando o poder. É claro que algumas pessoas se opuseram a ele, e ele as matou. Terrível. Um dos únicos lugares seguros que restaram foi Hogwarts. Acho que Dumbledore era o único de quem Você-Sabe-Quem tinha medo. Não ousou se apoderar da escola, não no começo, pelo menos. “Ora, sua mãe e seu pai eram os melhores bruxos que eu já conheci. Primeiros alunos em Hogwarts no seu tempo! Suponho que o mistério era por que Você-Sabe-Quem nunca tentou convencer os dois a se aliar a ele antes... provavelmente sabia que eram muito chegados a Dumbledore para querer alguma coisa com o lado das Trevas. “Talvez ele achasse que podia convencê-los... talvez quisesse tirar os dois do caminho. Só o que sabemos é que ele apareceu na vila em que vocês estavam morando, num dia das bruxas, faz dez anos. Na época você só tinha um ano. Ele foi à sua casa e... e...” Hagrid puxou depressa um lenço muito sujo e manchado e assoou o nariz, fazendo o barulho de uma buzina de nevoeiro. – Desculpe – disse. – Mas é muito triste, conheci sua mãe e seu pai e não podia existir gente melhor, em todo o caso... “Você-Sabe-Quem matou os dois. E então, e esse é o verdadeiro mistério da coisa, ele tentou matar você. Queria fazer o serviço completo, acho, ou então tinha começado a gostar de matar. Mas não conseguiu. Você nunca se perguntou como arranjou essa marca na testa? Isso não foi um corte normal. Isso é o que se ganha quando um feitiço poderoso e maligno atinge a gente; destruiu os seus pais e até a sua casa, mas não fez efeito em você, e é por isso que você é famoso, Harry. Ninguém nunca sobrevivia depois que ele decidia matá-lo, ninguém a não ser você, e ele já havia matado alguns dos melhores bruxos da época, os McKinnon, os Bone, os Prewett, e você era apenas um bebê, e sobreviveu.” Algo muito doloroso passou pela cabeça de Harry. Quando a história de Hagrid ia terminando, ele viu de novo um lampejo ofuscante de luz verde, com mais clareza do que se lembrava antes – e se lembrou de mais uma coisa, pela primeira vez na vida – uma risada alta, fria e cruel. Hagrid o observava com tristeza. – Eu mesmo o retirei da casa destruída, por ordem de Dumbledore. Trouxe você para essa gente... – Um monte de baboseiras antigas – disse tio Válter. Harry se assustou, quase esquecera que os Dursley estavam ali. Tio Válter, sem dúvida, tinha recuperado a coragem. Olhava ameaçador para Hagrid e tinha os punhos fechados. – Agora, ouça aqui, moleque – vociferou –, aceito que você seja meio estranho, provavelmente nada que uma boa surra não pudesse ter curado, e quanto aos seus pais, bem, eles eram excêntricos, não há como negar, e o mundo está melhor sem eles, receberam o que mereciam por se meter com essa gente dada a bruxarias, foi o que previ, sempre soube que iam acabar mal. Mas naquele instante, Hagrid ergueu-se de um salto do sofá e puxou um guarda-chuva cor-de-rosa e arrebentado de dentro do casaco. Apontou-o como uma espada para tio Válter, e disse: – Estou lhe avisando, Dursley, estou lhe avisando, nem mais uma palavra... Ameaçado de ser furado pela ponta de um guarda-chuva por um gigante barbudo, a coragem de tio Válter fraquejou outra vez; ele se achatou contra a parede e ficou em silêncio. – Assim está melhor – disse Hagrid, arquejando e tornando a se sentar no sofá, que desta vez afundou de vez até o chão. Harry, nesse meio tempo, continuava a ter perguntas a fazer, centenas delas. – Mas o que aconteceu ao Vol... desculpe... quero dizer, Você-Sabe- Quem? – Boa pergunta, Harry. Desapareceu. Sumiu. Na mesma noite em que tentou matar você. O que faz você ainda mais famoso. É o maior mistério, entende... ele estava ficando cada dia mais poderoso, por que foi embora? “Tem quem diga que ele morreu. Besteira, na minha opinião. Não sei se ainda tinha humanidade suficiente para morrer. Tem quem diga que ainda está lá fora esperando, ou coisa parecida, mas não acredito. Gente que estava do lado dele voltou para o nosso. Uns pareciam que estavam saindo de uma espécie de transe. Acho que não teriam feito isso se ele fosse voltar. “A maioria de nós acha que ele ainda anda por aí, mas perdeu os poderes. Está fraco demais para continuar. Porque alguma coisa em você acabou com ele, Harry. Aconteceu alguma coisa, naquela noite, com que ele não estava contando, eu não sei o que foi, ninguém sabe, mas alguma coisa em você o aleijou, para valer.” Hagrid fitou Harry com calor e respeito iluminando seus olhos, mas Harry, em vez de se sentir contente e orgulhoso, teve a certeza de que tinha havido um terrível engano. Bruxo? Ele? Como era possível? Passara a vida dominado por Duda e infernizado pela tia Petúnia e pelo tio Válter; se era realmente um bruxo, por que eles não tinham se transformado em sapos toda vez que tentaram prendê-lo no armário? Se uma vez derrotara o maior feiticeiro do mundo, como é que Duda sempre pudera chutá-lo para cá e para lá como se fosse uma bola de futebol? – Rúbeo – disse calmo –, acho que você deve ter cometido um engano. Acho que não posso ser um bruxo. Para sua surpresa, Hagrid deu uma risadinha abafada. – Não é bruxo, hein? Nunca fez nada acontecer quando estava apavorado ou zangado? Harry olhou para o fogo. Pensando bem... cada coisa estranha que deixara os seus tios furiosos tinha acontecido quando ele, Harry, estava perturbado ou com raiva... perseguido pela turma de Duda, pusera-se de repente fora do seu alcance... receoso de ir para a escola com aquele corte ridículo, conseguira fazer os cabelos crescerem de novo... e da última vez que Duda batera nele, não fora à forra sem perceber que estava fazendo isto? Não mandara uma cobra atacá-lo? Harry olhou para Hagrid, sorrindo, e viu que ele ria abertamente para ele. – Viu? – disse Hagrid. – Harry Potter não é bruxo? Espere, você vai ser famoso em Hogwarts. Mas tio Válter não ia ceder sem brigar. – Eu já não disse que ele não vai? – sibilou. – Ele vai para a escola secundária local e vai me agradecer por isso. Li aquelas cartas e dizem que ele precisa de um monte de lixo... livros de feitiços, varinhas mágicas e... – Se ele quiser ir, um trouxão como você não vai poder impedir – resmungou Hagrid, raivoso. – Impedir o filho de Lílian e Tiago Potter de ir para Hogwarts! Você enlouqueceu. Ele está inscrito desde que nasceu. Vai frequentar a melhor escola de bruxos e bruxedos do mundo. Sete anos lá e ele nem vai se reconhecer. Vai estudar com garotos iguais a ele, para variar, e vai estudar com o maior mestre que Hogwarts já teve, Alvo Dumbled... – NÃO VOU PAGAR A NENHUM VELHO BIRUTA E PATETA PARA ENSINÁ-LO A FAZER MÁGICAS! – gritou tio Válter. Mas ele finalmente fora longe demais. Hagrid agarrou o guarda-chuva e girou-o por cima da cabeça. – NUNCA – trovejou – INSULTE... ALVO... DUMBLEDORE... NA... MINHA FRENTE! E girou o guarda-chuva no ar baixando-o até apontar para Duda – houve um lampejo de luz violeta, o estalo de uma bombinha, um grito agudo e, no segundo seguinte, Duda estava dançando no mesmo lugar com as mãos apertando a barriga banhuda, guinchando de dor. Quando Duda virou de costas, Harry viu um rabo de porco enroscado saindo de um buraco nas calças dele. Tio Válter urrou. Puxando tia Petúnia e Duda para o quarto, lançou um último olhar aterrorizado a Hagrid e bateu a porta ao sair. Hagrid olhou para o guarda-chuva e coçou a barba. – Não devia ter perdido as estribeiras – disse arrependido –, mas em todo o caso saiu errado. Queria transformá-lo em porco, mas acho que ele já parecia tanto com um que não pude fazer muita coisa. E olhou de esguelha para Harry, por baixo das sobrancelhas peludas. – Fico agradecido se não contar isso para ninguém em Hogwarts – falou. – Não, hum, tenho permissão para fazer mágicas, rigorosamente falando. Permitiram que eu fizesse alguma coisa para seguir você e entregar as cartas e coisas assim, uma das razões por que eu queria tanto este trabalho. – Por que você não pode fazer mágicas? – perguntou Harry. – Ah, bom... eu estive em Hogwarts, mas... hum... fui expulso, para falar a verdade. No terceiro ano. Eles partiram a minha varinha ao meio e tudo o mais. Mas Dumbledore me deixou ficar como guarda-caça. Grande sujeito o Dumbledore. – Por que você foi expulso? – Já está ficando tarde e temos muito o que fazer amanhã – disse Hagrid em voz alta. – Temos que ir à cidade, comprar os seus livros e etcétera. Ele tirou o grosso casaco preto e atirou-o a Harry. – Pode ficar com ele. Não se assuste se ele se mexer um pouco, acho que ainda tenho uns ratos do campo em um dos bolsos. — CAPÍTULO CINCO — O Beco Diagonal Harry acordou cedo na manhã seguinte. Embora soubesse que já era dia, continuou com os olhos bem fechados. “Foi um sonho”, disse a si mesmo com firmeza. “Sonhei que um gigante chamado Rúbeo Hagrid veio me dizer que eu ia para uma escola de magia. Quando abrir os olhos estarei em casa no meu armário.” De repente ouviu um ruído alto de batidas. “É a tia Petúnia batendo na porta”, pensou Harry, desanimando. Mas, ainda assim, não abriu os olhos. Tinha sido um sonho tão bom. Bum. Bum. Bum. – Está bem – resmungou Harry. – Já estou levantando. Sentou-se e o pesado casaco de Hagrid escorregou de seu corpo. O casebre estava inundado de sol, a tempestade passara, o próprio Hagrid estava dormindo no sofá desmontado e havia uma coruja batendo com a garra na janela, trazendo um jornal no bico. Harry ergueu-se de um pulo, sentia-se feliz como se houvesse um grande balão crescendo dentro dele. Foi direto à janela e abriu-a com um puxão. A coruja entrou voando e deixou cair o jornal em cima de Hagrid, que nem acordou. A coruja então voou pelo chão e começou a atacar o casaco do gigante Hagrid. – Não faça isso. Harry tentou espantar a coruja, mas ela o ameaçou com o bico e continuou a atacar ferozmente o casaco. – Rúbeo! – chamou Harry em voz alta. – Tem uma coruja... – Pague a ela – resmungou Hagrid dentro do sofá. – Quê? – Ela quer receber o pagamento pela entrega do jornal. Procure nos bolsos. O casaco de Hagrid parecia ser feito só de bolsos – molhos de chaves, fichas de metal, rolinhos de barbante, balas de hortelã, saquinhos de chá... e, finalmente, Harry puxou um punhado de moedas estranhas. – Dê a ela cinco nuques – disse Hagrid, sonolento. – Nuques? – As moedinhas de bronze. Harry contou cinco moedinhas de bronze e a coruja esticou a perna para ele enfiar o dinheiro numa carteirinha de couro que trazia presa. Em seguida saiu voando pela janela aberta. Hagrid bocejou alto, sentou-se, espreguiçou-se. – É melhor nos despacharmos, Harry, temos muito o que fazer hoje, temos que ir a Londres comprar todo o seu material escolar. Harry revirava as moedas mágicas para examiná-las. Acabara de pensar em uma coisa que o fez se sentir como se o balão da felicidade que havia dentro dele tivesse furado. – Hum... Hagrid? – Hum? – respondeu Rúbeo, calçando as enormes botas. – Não tenho dinheiro nenhum, e você ouviu tio Válter à noite passada, ele não vai pagar para eu aprender magia. – Não se preocupe com isso – disse Hagrid, coçando a cabeça enquanto se levantava. – Você acha que seus pais não lhe deixaram nada? – Mas se a casa foi destruída... – Eles não guardavam o ouro que tinham em casa, garoto! Não, nossa primeira parada vai ser em Gringotes. O banco dos bruxos. Coma uma salsicha, elas não são ruins frias, e eu não deixaria de comer uma fatia do seu bolo de aniversário. – Bruxos têm bancos? – Só este. Gringotes. É administrado por duendes. Harry deixou cair o pedaço de salsicha que tinha na mão. – Duendes? – É, é por isso que só um louco tentaria roubar o banco, é o que lhe digo. Nunca se meta com duendes, Harry. Gringotes é o lugar mais seguro do mundo para qualquer coisa que você queira guardar bem, com exceção de Hogwarts, talvez. Aliás, preciso mesmo ir a Gringotes. Para Dumbledore. Negócios de Hogwarts. – Hagrid se endireitou, orgulhoso. – Ele sempre me manda tratar de assuntos que acha importantes. Buscar você, pegar coisas em Gringotes, sabe que pode confiar em mim, entende? Apanhou tudo? Vamos, então. Harry seguiu Hagrid em direção ao rochedo. O céu estava bem claro agora e o mar cintilava ao sol. O barco que tio Válter alugara continuava lá, com muita água no fundo depois da tempestade. – Como foi que você chegou aqui? – perguntou Harry, procurando um segundo barco. – Voando – respondeu Hagrid. – Voando? – É... mas vamos voltar nisso aí. Não tenho permissão de usar mágica depois de apanhar você. Eles se acomodaram no barco, Harry ainda de olhos arregalados para Hagrid, tentando imaginá-lo voando. – Mas parece um desperdício remar – disse Hagrid, lançando a Harry um dos seus olhares de esguelha. – Se eu quisesse... hum... apressar um pouco as coisas, você se importaria de não dizer nada em Hogwarts? – Claro que não – falou Harry, ansioso para ver mais mágicas. Hagrid puxou outra vez o guarda-chuva cor-de-rosa, deu duas pancadinhas no lado do barco e eles dispararam em direção ao continente. – Por que só um louco tentaria roubar Gringotes? – perguntou Harry. – Feitiços... encantamentos – disse Hagrid desdobrando o seu jornal. – Dizem que há dragões guardando os cofres de segurança. E depois é preciso conhecer o caminho. Gringotes fica embaixo de Londres, centenas de quilômetros abaixo,