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03 - Peter Berger Thomas Luckmann - A construção social da realidade_ tratado de sociologia do conhecimento (2003 (1985), Vozes) - libgen.li-1-34.pdf

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AConstrução Social 65 da·Realidade e ter L. Berger /,;~. EDITORA mas ~uckmann ~-' VOZES /\BPDEA /\B /\B AB...

AConstrução Social 65 da·Realidade e ter L. Berger /,;~. EDITORA mas ~uckmann ~-' VOZES /\BPDEA /\B /\B AB Associação Brasileira para a Proteção dos Direitos Editoriais e Autorais RESPEITE o AUTOR NAO FAÇA CóPIA FICHA CATALOGRAFICA (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ) Berger, Peter L. B435c A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento lporl Peter L. Berger lei Thomas Luckmann; tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis, Vozes, 1985. 248p. 21cm (Antropologia, 5). Bibliografia. 1. Sociologia do conhecimento. I. Luckmann, Thomas. II. Titulo. III. Série. o CDD - 301.01 73-0221 CDU - 301 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE Tratado de Sociologia do Conhecimento PETER L. BERGER Professor de Sociologia na Rutgers University THOMAS LUCKMANN Professor de Sociologia na Universidade de Frankfurt Traduião de Floriano de Souza Fernandes 23ª Edição "'EDITORA Y VOZES Petrópolis 2003 © 1966, by Peter L. Berger e Thomas Luckmann Título do original inglês: THE SOCIAL CONSTRUCTION OF REALITY Editado por: Doubleday & Company, lnc. Direitos de publicação em língua portuguesa no Brasil: Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou · quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. ISBN 85.326.0598-2 Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. Prefácio 0 PRESENTE VOLUME PRETENDE SER UM TRATADO TEÓRICO SISTE- mático de sociologia do conhecimento. Não tem, portanto, a in- tenção de oferecer uma vista geral histórica do desenvolvimento desta disciplina nem de empenhar-se na exegese das várias formas de tais ou quais extensões da teoria sociológica ou mesmo mostrar. como é possível chegar-se a uma síntese de várias dessas for- mas e exte·nsões. Tampouco há aqui qualquer intuito polêmic.:o. Os comentários críticos sobre outras posições teóricas foram introduzidos (não no texto, mas nas Notas) somente onde possam servir para esclarecer a presente argumentação. O núcleo do raciocínio encontra-se nas secções li e Ili ( cA Sociedade como Realidade Oojetiva> e ), contendo a primeira nossa compreensão fun- damental dos problemas da sociologia do conhec.:imento e a segunda aplicando esta compreensão ao nível da consciência subjetiva, construindo desta maneira uma ponte teórica para os problemas da psicologia social. A secção 1 contém aquilo que poderia ser melhor descrito como prolegômenos filosóficos ao núcleo do raciocínio, em termos de an;ílise fenomenológica da realidade da vida cotidiana («Fundamentos do Conhecimento na Vida Cotidiana>). O leitor interessado somente na argumentação sociológica propriamente dita poderia ser tentado a saltar esta parte, mas deve ser avisado de que certos conceitos-chaves empregados durante todo o raciocínio são definidos na secção 1. Embora nosso interesse não seja histórico, sentimo-nos na obrigação de explicar por que e em que sentido nossa concepção da sociolog1a do conhecimento diferencia-se do que até aqui tem sido geralmente compreendido como constituindo essa dis- ciplina. Desincumbimo-nos desta tarefa na Introdução. Na parte final fazemos algumas observações com o caráter de çonclusões para indicar o que consideramos serem os do presente 5 empreendimento para a teoria sociológica em geral e para certas áreas da pesquisa empírica. A lógica de nosso raciocínio torna inevitável certo número de repetições. Assim, alguns problemas são examinados entre parênteses fenomenológicos na secção 1, tomados novamente na secção II sem esses parênteses e com interesse em sua gênese empírica, e depois retomados ainda uma vez na secção III ao nível da consciência subjetiva. Esforçamo-nos por tornar este livro tão legível quanto possível, mas sem violar sua lógica interna, e esperamos que o leitor compreenderá as razões dessas repetições, que não podiam ser evitadas. Ibn ul'Arabi, o grande místico islâmico, exclama em um de seus poemas: «Livrai-nos, Alá, do mar de nomes!». Temos fre- qüentemente repetido esta exclamação em nossas conferências sobre a teoria sociológica. Conseqüentemente, decidimos eliminar todos os nomes de nosso afüal raciocínio. Este pode ser lido agora como uma apresentação contínua de nossa posição pessoal, sem a constante inclusão de observações tais como «Durkheim diz isto», «Weber diz aquilo», «concordamos aqui com Durkheim mas não com Weber», «parece-nos que Durkheim foi mal com- preendido neste ponto», e assim por diante. E' evidente em cada página que nossa posição não surgiu ex nihilo, mas dese- jamos que seja julgada por seus próprios méritos e não em função de seus aspectos exegéticos ou sintetizantes. Colocamos por conseguinte todas as referências nas Notas, assim como (em- bora sempre resumidamente) quaisquer discussões que temos com as fontes de que somos devedores. Isto obrigou a um aparato de notas bastante grande. Não quisemos render homenagem aos rituais da Wissenschaftlichkeit, mas preferimos nos manter fiéis às exigências da gratidão histórica. O projeto do qual este livro é a realização foi pela primeira vez maquinado no verão de 1962, no curso de algumas conversas folgadas ao pé (e às vezes no alto) dos Alpes da Austria Ocidental. O primeiro plano para o livro foi traçado no início de 1963. De começo tinha-se em vista um empreendimento que incluía um outro sociólogo e dois filósofos. Os outros partici- pantes, por várias razões biográficas, foram obrigados a se re- tirarem da participação ativa no projeto, mas desejamos agra- decer com grande apreço os contínuos comentários críticos de Hansfried Kellner (atualmente na Universidade de Frankfurt) e Stanley Pullberg (atualmente na Ecole Pratique des Hautes Etudes). Em várias partes deste tratado ficará clara a dívida que temos com o falecido Alfred Schutz. Gostaríamos, porém, de reconhecer aqui a influência do ensino e das obras de Schutz em nosso pensamento. Nossa compreensão de Weber deve muito aos en- sinamentos de Carl Mayer (Oraduate Faculty, New School for Social Research), assim como a compreensão de Durkheim e de 6 sua escola aproveitou imensamente com as interpretações ~ Albert Salomon (também da Graduate Faculty). Luckmann, re- cordando-se de muitas proveitosas conversas durante um pe- ríodo de ensino conjunto no Hobart College e em outras oca- siões, deseja expressar sua admiração pelo pensamento de Fried- rich Tenbl'uck (atualmente na Universidade de Frankfurt). Berger gostaria de agradecer a Kurt Wolff (Brandeis Univer- sity) e Anton Zijderveld (Universidade de Leiden) por seu cons- tante interesse crítico no progresso das idéias incorporadas a esta obra. E' costume em projetos desta espécie agradecer as várias con- tribuições impalpáveis das esposas,· filhos e outros colaborado- res privados de situação legal mais duvidosa. Embora ao me- nos para transgredir este costume estivemos tentados a dedicar este livro a um certo /odler de Brand, Vorarlberg. Entretanto, queremos agradecer a Brigitte Berger (Hunter College) e Benita Luckmann (Universidade de Freiburg), não por quaisquer de- sempenhos, cientificamente sem importãncia, de funções privadas, mas por suas observações críticas como cientistas sociais e por sua inflexível recusa a serem facilmente requisitadas. PETER L. BERGER Oraduate Facu/ty New School for Social Research THOMAS LUCKMANN Universidade de Frankfurt 7 Sumário Prefácio 5 INTRODUÇÃO: O PROBLEMA DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO, 11 l. OS FUNDAMENTOS DO CONHECIMENTO NA VIDA COTIDIANA, 35 1. A realidade da vida cotidiana, 35 2. A interação social na vida cotidiana, 46 3. A linguagem e o conhecimento na vida cotidiana, 53 II. A SOCIEDADE COMO REALIDADE OBJETIVA, 69 l. Institucionalização, 69 a) Organismo e atividade, 69 b) As origens da institucionalização, 77 c) Sedimentação e tradição, 95 d) Papéis, 101 e) Extensão e modos de institucionalização, 110 2. Legitimação, 126 a) As origens dos universos simbólicos, 126 b) Os mecanismos conceituais da manutenção do universo, 142 c) A organização social para a manutenção do universo, 157 III. A SOCIEDADE COMO REALIDADE SUBJETIVA, 173 1. A interiorização da realidade, 173 a) A socialização primária, 173 b) A socialização secundária, 184 c) A conservação e a transformação da realidade subjetiva, 195 2. A interiorização e a estrutura social, 216 3. Teorias sobre a identidade, 228 4. Organismo e identidade, 236 CONCLUSÃO: A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO E A TEORIA SOCIOLóGICA, 242 Introdução O Problema da Sociologia do Conhecimento As AFIRMAÇÕES FUNDAMENTAIS DO RACIOCiNIO DESTE livro acham-se implícitas no título e no subtítulo e con- sistem em declarar que a realidade é construída social- mente e que a sociologia do conhecimento deve analisar o processo em que este fato ocorre. Os termos essen- ciais nestas afirmações são "realidade" e "conhecimento", termos não apenas correntes na linguagem diária mas que têm atrás de si uma longa história de investigação filo- sófica. Não precisamos entrar aqui na discussão das mi- núcias semânticas nem do uso cotidiano ou do uso filo- sófico desses termos. Para a nossa finalidade será su- ficiente definir "realidade" como uma qualidade perten- cente a fenômenos que reconhecemos terem um ser in- dependente de nossa própria volição (não podemos "desejar que não existam"), e definir "conhecimento" como a certeza de que os fenômenos são reais e possuem características específicas. E' neste sentido (declarada- mente simplista) que estes termos têm importância tanto para o homem da rua quanto para o filósofo. O homem da rua habita um mundo que é "real" para ele, embora em graus diferentes, e "conhece", com graus variáveis de certeza, que este mundo possui tais ou quais caracte- rísticas. O filósofo naturalmente levantará questões re- lativas ao status último tanto desta "realidade" quanto ,deste "conhecimento". Que é real? Como se ,conhece? Estas são algumas das mais antigas perguntas não so- 11 mente da pesquisa filosófica propriamente dita mas do pensamento humano enquanto tal. Precisamente por esta razão a intromissão do sociólogo neste venerável terri- tório intelectual poderá provavelmente chocar o homem da rua e mesmo ainda mais provavelmente enfurecer o fi- lósofo. E' por conseguinte importante que esclareçamos desde o início o sentido em que usamos estes termos no contexto da sociologia, e que imediatamente repudie- mos qualquer pretensão da sociologia a dar resposta a estas antigas preocupações filosóficas. Se quiséssemos ser meticulosos na argumentação a seguir exposta deveríamos pôr entre aspas os dois men- cionados termos todas as vezes que os empregamos, mas isto seria estilisticamente deselegante. Falar em aspas, porém, pode dar um indício da maneira peculiar em que estes termos aparecem em um contexto sociológico. Po- der-se-ia dizer que a compreensão sociológica da "rea- lidade" e do "conhecimento" situa-se de certa maneira à meia distância entre a do homem da rua e a do filósofo. O homem da rua habitualmente não se preocupa com o que é "real" para ele e com o que "conhece", a não ser que esbarre com alguma espécie de problema. Dá como certa sua "realidade" e seu "conhecimento". O so- ciólogo não pode fazer o mesmo, quanto mais não seja por causa do conhecimento sistemático do fato de que os homens da rua tomam como certas diferentes "realida- des", quando se passa de uma sociedade a outra. O so- ciólogo é forçado pela própria lógica de sua disciplina a perguntar, quanto mais não seja, se a diferença entre as duas "realidades" não pode ser compreendida com relação às várias diferenças entre as duas sociedades. O filósofo, por outro lado, é profissionalmente obrigado a não considerar nada como verdadeiro e a obter a má- xima clareza com respeito ao status último daquilo que o homem da rua acredita ser a "realidade" e o "conhe- cimento". Noutras palavras, o filósofo é levado a decidir onde as aspas são adequadas e onde podem ser segura- mente omitidas, isto é, a estabelecer a distinção entre afirmativas válidas e inválidas relativas ao mundo. O so- 12 ciólogo, possivelmente, não pode fazer isso. Logicamente, quando não estilísticamente, está crivado de aspas. Por exemplo, o homem da rua pode acreditar que possui "liberdade da vontade", sendo por conseguinte "responsável" por suas ações, ao mesmo tempo em que nega esta "liberdade" e esta "responsabilidade" às crian- ças e aos lunáticos. O filósofo, seja por que métodos for, tem de indagar do status ontológico e epistemológico destas concepções. O homem é livre? Que é a respon- sabilidade? Onde estão os limites da responsabilidade? Como se pode conhecer estas coisas? E assim por diante. Não é necessário dizer que o sociólogo não tem condi- ções para dar respostas a estas perguntas. O que pode e deve fazer, contudo, é perguntar por que a noção de "liberdade" chegou a ser suposta como certa em uma sociedade e não em outra, como sua "realidade" é man- · tida em uma sociedade e como, de modo ainda mais interessante, esta "realidade" pode mais de uma vez ser perdida por um indivíduo ou uma coletividade inteira. O interesse sociológico nas questões da "realidade" e do "conhecimento" justifica-se assim inicialmente pelo fato de sua relatividade social. O que é "real" para um monge tibetano pode não ser "real" para um homem de negócios americano. O "conhecimento" do criminoso é diferente do "conhecimento" do criminalista. Segue-se que aglomerações específicas da "realidade" e do "conhe- cimento" referem-se a contextos sociais específicos e que estas relações terão de ser incluídas numa correta aná- lise sociológica desses contextos. A necessidade da "so- ciologia do conhecimento" está assim dada já nas dife- renças observáveis entre as sociedades em termos daquih1 que é admitido como "conhecimento" nelas. Além disso, porém, uma disciplina que se chama a si mesma por esse nome terá de ocupar-se dos modos gerais pelos quais as "realidades" são admitidas como "conhecidas" nas sociedades humanas. Em outras palavras, uma "sociolo- gia do conhecimento" terá de tratar não somente da mul- tiplicidade· empírica do "conhecimento" nas sociedades humanas, mas também dos processos pelos quais qualquer 13 corpo de "conhecimento" chega a ser socialmente estabe- lecido como "realidade". Nosso ponto de vista, por conseguinte, é que a socio- logia do conhecimento deve ocupar-se com tudo aquilo que passa por "conhecimento" em uma sociedade, inde- pendentemente da validade ou invalidade última (por quaisquer critérios) desse "conhecimento". E na medida em que todo "conhecimento" humano desenvolve-se, transmite-se e mantém-se em situações sociais, a socio- logia do conhecimento deve procurar compreender o processo pelo qual isto se realiza, de tal maneira que uma "realidade" admitida como certa solidifica-se para o homem da rua. Em outras palavras, defendemos o ponto de vista que a sociologia do conhecimento diz respeito à análise da construção social da realidade. Esta compreensão do verdadeiro campo da sociologia do conhecimento difere do que geralmente se entende por esta disciplina desde que pela primeira vez foi cha- mada por este nome há cerca de quarenta anos atrás. Por conseguinte, antes de começarmos nossa presente argumentação, será útil examinar resumidamente o de- senvolvimento anterior da disciplina e explicar de que maneira, e por que motivos, sentimos a necessidade de nos afastarmos dele. O termo "sociologia do conhecimento" (Wissenssozio- logie) foi forjado por Max Scheler na década de 1920 na Alemanha, e Scheler era um filósofo. Estes três fa- tos são muito importantes para a compreensão da gê- nese e do ulterior desenvolvimento da nova disciplina. A sociologia do conhecimento teve origem em uma par- ticular situação da história intelectual alemã e em de- terminado contexto filosófico. Embora a nova disciplina fosse posteriormente introduzida no adequado contexto sociológico, especialmente no mundo de língua inglesa, continuou a ser marcada pelos problemas da particular situação intelectual de onde surgiu. Como resultado, a Cf. Max Scheler, Die Wissensformen und die Oesellschaft (Berna, Fran- cke, 1960). Este volume de ensaios, publicado pela primeira vez em 1925, contém a formulação básica da sociologia do conhecimento num ensaio Intitulado "Probleme einer Sozlologle des Wlssens", que foi originalmente publicado um ano antes. 14 sociologia do conhecimento permaneceu no estado de objeto marginal de estudo entre os sociólogos em geral, que não participavam dos particulares problemas que preocupavam os pensadores alemães na década de 1920. Isto foi especialmente verdade no que diz respeito aos sociólogos americanos, que de modo geral consideravam a disciplina como uma especialidade periférica, de sa- bor caracteristicamente europeu. Mais importante, con- tudo, foi o fato da permanente ligação da sociologia do conhecimento com sua original constelação de problemas ter constituído uma fraqueza teórica, mesmo nos lugares em que houve interesse pela disciplina. Isto é, a socio- logia do conhecimento foi considerada por seus prota- gonistas e em geral pelo público sociológico mais ou menos indiferente como uma espécie de glosa sociológica sobre a história das idéias. O resultado foi uma conside- rável miopia com relação à significação teórica poten- cial da sociologia do conhecimento. Houve diferentes definições da natureza e do âmbit9 da sociologia do conhecimento. Na verdade, é possível dizer-se que a história dessa subdisciplina tem sido até agora a história de suas várias definições. Entretanto, hâ acordo geral em que a sociologia do conhecimento trata das relações entre o pensamento humano e o con- texto social dentro do qual surge. Pode dizer-se assim que a sociologia do conhecimento constitui o foco so- ciológico de um problema muito mais geral, o da deter- minação existencial (Seinsgebundenheit) do pensamento enquanto tal. Embora neste caso a atenção se concentre sobre o fator social, as dificuldades teóricas são seme- lhantes às que surgiram quando outros fatores (tais como os históricos, os psicológicos ou os biológicos) foram propostos com o valor de determinantes do pensamento humano. Em todos esses casos o problema geral tem sido estabelecer a extensão em que o pensamento reflete os fatores determinantes propostos ou é independente deles. E' provável que a proeminência do problemsi geral na recente filosofia alemã tenha suas raízes na vasta acu- 15 mulação de erudição histórica que foi um dos maiores frutos intelectuais do século XIX na Alemanha. De um modo sem precedente em qualquer outro período da his- tória intelectual, o passado, com sua assombrosa varie- dade de formas de pensamento, foi "tornado presente" ao espírito contemporâneo pelos esforços da cultura his- tórica científica. E' difícil disputar o direito da cultura alemã ao primeiro lugar neste empreendimento. Não deve- ria, por conseguinte, surpreender-nos que o problema teó- rico instituído pelo mencionado empreendimento tenha si- do sentido mais agudamente na Alemanha. Pode-se dizer que este problema é o da vertigem da relatividade. A di- mensão epistemológica do problema é óbvia. No nível em- pírico conduziu à preocupação de investigar o mais cui- dadosamente possível as relações concretas entre o pen- samento e suas situações históricas. Se esta interpretação é correta, a sociologia do conhecimento tomou a si um problema originariamente colocado pela erudição histó- rica, numa focalização mais estreita, sem dúvida, mas essencialmente com o interesse nas mesmas questões. Nem o problema geral nem sua focalização mais es- treita são novos. A consciência dos fundamentos sociais dos valores e das concepções do mundo pode ser já en- contrada na Antiguidade. Pelo menos a partir do Ilumi- nismo esta consciência cristalizou-se, tornando-se um dos principais temas do moderno pensamento ocidental. Assim, é possível justificar convenientemente muitas "genealo- gias" do problema central da sociologia do conhecimen- to. Pode mesmo dizer-se que o problema está contido in nuce na famosa frase de Pascal de acordo com a qual aquilo que é verdade de um lado dos Pirineus é erro do outro lado. No entanto os antecedentes inte- lectuais imediatos da sociologia do conhecimento são três criações do pensamento alemão do século XIX, o pensa- mento marxista, o nietzscheano e o historicista. Cf. Wilhelm Wlndelhand e Heinz Heimsoeth, Lehrbuch der Oeschichte der Philosophie (Tüblngen, Mohr, 1950), pp. 605ss. Cf. Albert Salomon, ln Praise of Enllghtenment (New York, Merldian Books, 1963); Hans Barth, Wahrheit und ldeo/ogle (Zurich, Manesse, 1945); Werner Stark, The Sociology of Knowledge (Chicago, Free Press of Olen- coe, 1958), pp. 46ss; Kurt Lenk (ed.), Jdeologie (Neuwied/Rhein, Luchterhand, 1961), pp. 13ss. Pensées, v. 294. 16 A sociologia do conhecimento tem sua raiz na propo- sição de Marx que declara ser a consciência do homem determinada por seu ser social. Sem dúvida tem havido muitos debates para se saber ao certo que espécie de determinação Marx tinha em mente. Pode-se dizer, com certeza, que muito da grande "luta com Marx" que ca- racterizou não somente os começos da sociologia do co- nhecimento mas a "idade clássica" da sociologia em geral (particularmente tal como é manifestada nas obras de Weber, Durkheim e Pareto) foi realmente uma luta con- tra uma defeituosa interpretação de Marx pelos marxistas modernos. Esta proposição ganha plausibilidade quando refletimos no fato de que foi somente em 1932 que os importantíssimos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844 foram redescobertos e somente depois da Se- gunda Guerra Mundial a plena implicação dessa redesco- berta poderia ser esgotada na pesquisa sobre Marx. Co- mo quer que seja, a sociologia do conhecimen~o herdou de Marx não somente a mais exata formulação de seu problema central mas também alguns de seus conceitos chaves, entre os quais deveriam ser mencionados parti- cularmente os conceitos de "ideologia" (idéias que ser- vem de armas para interesses sociais) e "falsa consciên- cia" (pensamento alienado do ser social real do pen- sador). A sociologia do conhecimento foi particularmente fas- cinada pelos dois conceitos gêmeos, estabelecidos por Marx, de "infra-estrutura e superestrutura" ( Unterbau, Ueberbau). Foi neste ponto principalmente que a con- trovérsia se tornou violenta a respeito da correta inter- pretação do próprio pensamento de Marx. O marxismo posterior teve a tendência a identificar a "infra-estrutura" com a estrutura econômica tout court, da qual se supu- nha que a "superestrutura" era um "reflexo" direto (assim por exemplo, Lenin). E' agora de todo claro que isto representa incorretamente o pensamento de Marx, pois o caráter essencialmente mecanicista, em vez Cf. Karl Marx, Die FrUhschriften (Stuttgart, Krõner, 1953)'. Os Manus- critos Económicos e Filosóficos de 1844, encontram-se nas pp: 225ss. 17 de dialético, desta espec1e de determinismo econômico torna-o suspeito. O que interessava a Marx é que o pen- samento humano funda-se na atividade humana ("traba- lho" no sentido mais amplo da palavra) e nas relações sociais produzidas por esta atividade. O melhor modo de compreender as expressões "infra-estrutura" e "superes- trutura" é considerá-Ias respectivamente como atividade humana e mundo produzido por esta atividade. De qual- quer modo, o esquema fundamental "infra-estrutura/super- estrutura" foi admitido em várias formas pela sociologia do conhecimento, a começar por Scheler, sempre com- preendendo-se que existe alguma espécie de relação entre o pensamento e uma realidade "subjacente", distinta do pensamento. A fascinação desse esquema prevaleceu ape- sar do fato de grande parte da sociologia do conheci- mento ter sido explicitamente formulada em oposição ao marxismo e de terem sido tomadas diferentes posições nesse campo com relação à natureza do correlaciona- mento entre os dois componentes do esquema. As idéias de Nietzsche continuaram menos explicita- mente na sociologia do conhecimento, mas participam muito de seus fundamentos intelectuais gerais e da "at- mosfera" em que surgiu. O anti-idealismo de Nietzsche, apesar das diferenças no conteúdo não dessemelhante ao de Marx na forma, acrescentou novas perspectivas sobre o pensamento humano como instrumento na luta pela so- brevivência e pelo poder. Nietzsche desenvolveu sua pró- pria teoria da "falsa consciência" em suas análises da significação social do engano e do auto-engano e da Sobre o esquema de Marx Unlerbau/Ueberbau, cl. Karl Kautsky, "Verhãltnis von Unterbau und Ueberbau", em lring Fetscher (ed.), Der Marxismus (Munich, Piper, 1962), pp. 160ss; Antonio Labrlola, "Die Ver- mittlung zwischen Basls und Ueberbau", ibid., pp. 167ss; Jean-Yves Calvez, La pensée de Karl Marx (Paris, Editions du Seuil, 1956), pp. 424ss. A mais importante reformulação do problema feita no século XX é a de Oyorgy Lukács, em sua Geschichte und Klassenbewusstsein (Berlim 1923), hoje mais facilmente acesslvel na tradução francesa, Histoire et conscience de classe (Paris, Editions de Minuit, 1960). A interpretação de Luk;\cs do conceito de dialética de Marx é tanto mais notável quanto antecedeu de quase uma década a redescoberta dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844. As obras mais importantes de Nietzsche para a sociologia do conheci- mento são A Genealogia da Moral e A Vontade de Poder. Para discussões secundárias, cf. Walter A. Kaufmann, Nietzsche (New York, Meridian Books, 1956); Karl Lõwith, From Hegel to Nietzsche (tradução inglesa - New York, Holt, Rinehart and Winston, 1964). 18 ilusão como condição necessana da vida. A concepção nietzscheana do "ressentimento" como fator causal de certos tipos de pensamento humano foi retomada direta- mente por Scheler. De modo mais geral, contudo, pode dizer-se que a sociologia do conhecimento representa uma aplicação específica daquilo que Nietzsche chamava ade- quadamente a "arte da desconfiança". O historicismo, expresso especialmente na obra de Wilhelm Dilthey, precedeu imediatamente a sociologia do conhecimento. O tema dominante aqui era o esmagador sentido da relatividade de todas as perspectivas sobre os acontecimentos humanos, isto é, da inevitável historici- dade do pensamento humano. A insistência com que o historicismo afirmava que nenhuma situação histórica po- deria ser entendida exceto em seus próprios termos pres- tava-se a ser facilmente traduzida na acentuação da si- tuação social do pensamento. Certos conceitos historicis- tas, tais como "determinação situacional" (Standortsge- bundenheit) e "sede na vida" (Sitz im Leben) poderiam ser diretamente traduzidos como se referindo à "localiza- ção social" do pensamento. Em termos mais gerais, a herança historicista da sociologia do conhecimento pre- dispôs esta última a tomar intenso interesse pela his- tória e a empregar um método essencialmente histórico, fato, diga-se de passagem, que contribuiu também para a marginalização dessa disciplina no ambiente da sociolo- gia americana. O interesse de Scheler pela sociologia do conheci- mento e pelas questões sociológicas em geral foi essen- cialmente um episódio passageiro em sua carreira filo- sófica. Seu objetivo final era o estabelecimento de uma Uma das primeiras e mais Interessantes aplicações do pensamento de Nietzsche à sociologia do conhecimento encontra-se em Bewusstseln ais Verhlingnis de Alfred Seldel (Bonn, Cohen, 1927). Seldel, que foi aluno de Weber, procurou combinar Nietzsche e Freud com uma radical critica sociológica da consciência. Uma das mais sugestivas discussões da relação entre historicismo e sociologia é a de Cario em Dai/o storlclsmo alia sociologia (Florença 1940). Também cf. H. Stuart Hughes, Consclousness and Society (New York, Knopf, 1958), pp. 183ss. A mais Importante obra de Wllhelm Dllthey para nossas presentes considerações é Der Aufbau der geschlchtllchen Welt ln den Oelsteswissenschaften (Stuttgart, Teubner, 1958). '" Para um excelente estudo da concepção de Scheler sobre l sociologia do conhecimento, cf. Hans-Joachlm Lleber, Wlssen und Oesellschaft (TO- blngen, Nlemeyer, 1952), pp. 55ss. 'Veja-se, também, Stark, op. clt., passlm. 19 antropologia filosófica que transcendesse a relatividade dos pontos de vista específicos histórica e sotialmente localizados. A sociologia do conhecimento deveria servir de instrumento para alcançar este propósito, tendo por principal fihalidade esclarecer e afastar as dificuldades levantadas pelo relativismo, de modo que a verdadeira tarefa filosófica pudesse ir adiante. A sociologia do co- nhecimento de Scheler é, em sentido muito real, ancilla philosophiae, e de uma filosofia muito específica, além do mais. Ajustando-se a esta orientação, a sociologia do conhe- cimento de Scheler é essencialmente um método negativo. Scheler afirmava que a relação entre "fatores ideais" (ldea/faktoren) e "fatores reais" (Realfaktoren), termos que lembram claramente o esquema marxista "infra/super- estrutura", era meramente uma relação regula tiva. Isto é, os "fatores reais" regulam as condições nas quais certos "fatores ideais" pode.m aparecer na história, mas não po- dem afetar o conteúdo destes últimos. Em outras pala- vras, a sociedade determina a presença (Dasein) mas não a natureza (Sosein) das idéias. A sociologia do conhecimento, portanto, é o procedimento pelo qual deve ser estudada a seleção sócio-histórica dos conteúdos ideativos, ficando compreendido que estes conteúdos en- quanto tais são independentes da causalidade sócio-histó- rica e por conseguinte inacessíveis à análise sociológica. Se é possível descrever pitorescamente o método de Scheler, poderia dizer-se que consiste em lançar um pe- daço de pão de bom tamanho molhado em leite ao dragão a relatividade, mas somente com o fim de poder melhor penetrar no castelo da certeza ontológica. Neste quadro intencionalmente (e inevitavelmente) modesto, Scheler analisou com abundantes detalhes a ma- neira em que o conhecimento humano é ordenado pela sociedade. Acentuou que o conhecimento humano é dado na sociedade como um a priori à experiência individual, fornecendo a esta sua ordem de significação. Esta ordem, embora relativa a uma particular situação sócio-histórica, aparece ao indivíduo como o modo natural de conceber 20 o mundo. Scheler chamou a isto a "relativa e natural concepção do mundo" (relativnatür/iche Weltanschauung) de uma sociedade, conceito que pode ainda ser conside- rado central na sociologia do conhecimento. Seguindo-se à "invenção" por Scheler da sociologia do conhecimento houve na Alemanha um largo debate a respeito da validade, âmbito e aplicabilidade da nova disciplina. 11 Deste debate emergiu uma formulação que marcou a transposição da sociologia do conhecimento para um contexto mais estreitamente sociológico. Foi nessa mesma formulação que a sociologia do conheci- mento chegou ao mundo de língua inglesa. Trata-se da formulação de Karl Mannheim. 12 Pode-se afirmar com segurança que quando os sociólogos hoje em dia pen- sam na sociologia do conhecimento, pró ou contra, em geral o fazem nos termos da formulação de Mannheim. Na sociologia americana este fato é facilmente inteligível se refletirmos em que a totalidade da obra de Mannheim virtualmente se tornou acessJvel em inglês (uma parte desta obra na verdade foi escrita em inglês, durante o período em que Mannheim esteve ensinando na Ingla- terra depois do advento do nazismo na Alemanha ou foi publicada em traduções inglesas revistas), ao passo que a obra de Scheler sobre a sociologia do conhecimento permaneceu até hoje sem tradução. Deixando de lado o fator "difusão", a obra de Mannheim é menos carregada u Para o desenvolvimento geral da sociologia alemã durante este periodo, cf. Raymond Aron, La soclologle allemande contemporaine (Paris, Presses Universitaires de France, 1950). Como Importante contribuição deste pe- riodo concernente à sociologia do conhecimento, cf. Siegfried Landshut, Krltik der Soziologle (Munlch 1929); Hans Freyer, Sozlologie ais Wlrklich- keltswissenschaft (Leipzig 1930); Ernst Orünwald, Das Problem der SoZlf?logle des Wissens (Viena 1934); Alexander von Scheltlng, Max Webers W1ssen- schaft.dehre (Tliblngen 1934). Esta última obra, ainda o mais Importante estudo da metodologia de Weber, deve ser entendida levando-se em conta o debate sobre sociologia do ~onheclmento, então concentrado nas formu- lações de Scheler e Mannh·eim. 12 Karl Mannhelm, Jdeology and Utopia (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1936); Essays on lhe Sociology of Knowledge (New York, Oxford \Jniversity Press, 1952); Essays on Soclology and Social Psychology (New York, Oxford Unlverslty Press, 1953); Essays on the Soctotogy of Culture (New York, Oxford University Press, 1956). Um compêndio dos mais Im- portantes escritos de Mannheim sobre a sociologia do conhecimento, com- pilado por Kurt Wolff, tendo uma útil introdução, é Wissenssozlologle de Karl Mannheim (Neuwied/Rhein, Luchterhand, 1964). Para estudos secun- dários da concepção de Mannhelm sobre a sociologia do conhecimento, cl. Jacques J. Maquet, Soclologle de la connalssance (Louvain, Nauwelaerts, 1949); Aron, op. cit.; Robert K. Merton, Social Theory and Sbcial Structure (Chicago, Free Press oi Olencoe, 1957), pp. 489ss; Stark, 0p. clt.; Lleber, op. cit. 21 de "bagagem" filosófica que a de Scheler. Isto é espe- cialmente verdade no que se refere aos últimos escritos de Mannheim e pode ser visto se compararmos a tradução inglesa de sua principal obra, "Ideologia e Utopid', com o original alemão. Mannheim tornou~se assim uma figura mais "compatível" para os sociólogos, mesmo para aqueles que criticavam o seu modo de ver ou não se interessavam por ele. A compreensão que Mannheim tinha da sociologia do conhecimento era muito mais extensa que a de Scheler, possivelmente porque o confronto com o marxismo tinha maior destaque em seu trabalho. A sociedade era vista determinando não somente a aparência mas também o conteúdo da ideação humana, com exceção da matemá- tica e pelo menos de algumas partes das ciências na- turais. A sociologia do conhecimento tornou-se assim um método positivo para o estudo de quase todas as facetas do pensamento humano. E' muito significativo o fato de Mannheim preocu- par-se principalmente com o fenômeno da ideologia. Es- tabelece a distinção entre os conceitos particular, total e geral de ideologia - a ideologia constituindo somente um segmento do pensamento do adversário; a ideologia constituindo a totalidade do pensamento do adversário, (semelhante à "falsa consciência" de Marx); e (aqui, se- gundo pensou Mannheim, indo além de Marx) a ideo- logia caracterizando não somente o pensamento de um adversário mas também o do próprio pensador. Com o conceito geral de ideologia alcança-se o nível da socio- logia do conhecimento, a compreensão de que não há pensamento humano (apenas com as exceções antes men- cionadas) que seja imune às influências ideologizantes de seu contexto social. Mediante esta expansão da teoria da ideologia Mannheim procura separar seu problema central do contexto do uso político e tratá-lo como pro- blema geral da epistemologia e da sociologia histórica. Embora Mannheim não partilhasse das ambições on- tológicas de Scheler, também ele sentia-se pouco à von · tade com o pan-ideologismo que seu pensamento parecia 22 conduzi-lo. Cunhou o termo "relacionismo" (por oposição a "relativismo") para designar a perspectiva epistemo- lógica de sua sociologia do conhecimento, não uma ca- pitulação do pensamento diante das relatividades socio- históricas, mas o sóbrio reconhecimento de que o conheci- mento tem sempre de ser conhecimento a partir de uma certa posição. A influência de Dilthey é provavelmente de grande importância neste ponto do pensamento de Man- nheim, o problema do marxismo é resolvido com os ins- trumentos do historicismo. Seja como for, Mannheim acre- ditava que as influências ideologizantes, embora não pu- dessem ser completamente erradicadas, podiam ser miti- gadas pela análise sistemática do maior número possível de posições variáveis socialmente fundadas. Em outras palavras, o objeto do pensamento torna-se progressiva- mente mais claro com esta acumulação de diferentes pers- pectivas a ele referentes. Nisso deve consistir a tarefa da sociologia do conhecimento, que se torna assim uma importante ajuda na procura de qualquer entendimento correto dos acontecimentos humanos. Mannheim acreditava que os diferentes grupos sociais variam enormemente em sua capacidade de transcender deste modo sua própria estreita posição. Depositava a maior esperança na "inteligência socialmente descompro- metida" (Freischwebende lntelligenz, termo derivado de Alfred Weber), uma espécie de estrato intersticial que acreditava estar relativamente livre de interesses de classe. Mannheim acentuou também o poder do pensamento "utópico", que (tal como a ideologia) produz uma ima- gem destorcida de realidade social, mas que (ao contrá- rio da ideologia) tem o dinamismo necessário para trans- formar essa realidade na imagem que dela faz. Não é preciso dizer que as observações acima de mo- do algum fazem justiça nem à concepção de Scheler nem à de Mannheim com relação à sociologia do conhe- cimento. Não é esta nossa intenção. Indicamos unica- mente. alguns aspectos decisivos das duas concepções, que foram convenientemente chamadas, respectivamente, as concepções "moderada" e "radical" da sociologia do 23 conhecimento. 11 O fato notável é que o subseqüente de- senvolvimento da sociologia do conhecimento consistiu em grande parte em críticas e modificações dessas duas concepções. Conforme já tivemos ocasião de indicar, a formulação, feita por Mannheim, da sociologia do conhe- cimento continuou a estabelecer os termos de referência para essa disciplina de maneira definitiva, particularmente na sociologia de língua inglesa. O mais importante sociólogo americano que prestou seriamente atenção à sociologia do conhecimento foi Robert Merton. '" A análise da disciplina, que abrange dois capítulos de sua obra principal, serviu de útil in- trodução a este campo de estudos para aqueles sociólogos americanos que se interessaram por ele. Merton cons- truiu um paradigma para a sociologia do conhecimento, expondo os temas mais importantes desta disciplina em forma condensada e coerente. Esta construção é interes- sante porque procura integrar a abordagem da sociolo- gia do conhecimento com a da teoria funcional estrutural. Merton aplica seus próprios conceitos de funções "mani- festas" e "latentes" à esfera da ideação, fazendo distinção entre funções conscientes, intencionais das idéias e funções inconscientes, não-intencionais. Embora Merton se con- centrasse na obra de Mannheim, que é para ele o soció- logo do conhecimento por excelência, acentuou a impor- tância da escola de Durkheim e dos trabalhos de Pitirim Sorokin. E' interessante notar que Merton ao que parece deixou de ver a importância para a sociologia do conhe- cimento de certas importantes extensões da psicologia social americana, tais como a teoria dos grupos de re- ferência, que discute em um local diferente da mesma obra. Talcott Parsons fez também comentários sobre a so- ciologia do conhecimento. "" Seus comentários, porém, li- 11 Esta caracterização das duas formulações originais da disciplina foi feita por Lieber, op. cit. CI. Merton, op. cit., pp. 439ss. ,. Cf. Talcott Parsons, "An Approach to the Sociology of Knowiedge", Transactions of the Fourth World Congress of Socio/ogy (Louvain, in- ternatlonal so·ctolo~lcal Associatlon, 1959), Voi. IV, pp. 25ss; "Culture and the Social S_ystem', em Parsons e coi. (eds.), Theories of Society (New York, Free Press, 1961), Voi. li, pp. 963ss 24 mitam-se principalmente à crítica de Mannheim e não procuram a integração da disciplina no próprio sistema teórico de Parsons. Neste último, sem dúvida, o "proble- ma do papel das idéias" é analisado extensamente mas num sistema de referência muito diferente do empregado pela sociologia do conhecimento de Scheler ou de Man- nheim. ,. Podemos, portanto, tomar a liberdade de dizer que nem Merton nem Parsons deram qualquer passo de- cisivo além da sociologia do conhecimento tal como foi formulada por Mannheim. O mesmo pode dizer-se de outros críticos. Mencionando apenas o mais eloqüente, C. Wright Mills tralou da sociologia do conhecimento em seus primeiros trabalhos, mas de maneira expositiva e sem fazer qualquer contribuição para o desenvolvimento teórico positivamente sem contribuir para o desenvolvi- mento teórico do assunto. u V m interessante esforço para integrar a sociologia do conhecimento com o enfoque neopositivista da sociolo- gia em geral é o de Theodor Geiger, que teve grande influência sobre a sociologia escandinava, depois que emi- grou da Alemanha. '" Geiger voltou a um conceito mais estreito da ideologia, como sendo o pensamento social- mente destorcido e sustentou a possibilidade de superar a ideologia pela cuidadosa observação dos cânones cien- tíficos de procedimento. O enfoque neopositivista da aná- lise ideológica foi, mais recentemente, continuado na so- ciologia de língua alemã na obra de Ernst Topitsch, que acentuou as raízes ideológicas de várias posições filo- sóficas. 1 Mas na medida em que a análise sociológica das ideologias constitui uma parte importante da socio- logia do conhecimento, conforme foi definida por Man- nheim, tem havido muito interesse nela tanto na socio- ,. Cf. Talcott Parsons, The Social System (Otencoe, 111, Free Press, 11151 ) , pp. 326ss. " Cf. C. Wrlght Mltts, Power, Politlcs and People (New York, Ballantine Rooks, 1963), pp. 453ss. Cf. Theodor Geiger, ldeologie und Wahrheit (Stuttgart, Humboldt, 1953); Arbelten zur Soziologie (Neuwied/Rhein, Luchterhand. 1962), pp. 412ss. 11 Cf. Ernst Topitsch, Vom Ursprung und Ende der Metaphysik (Viena, Sprfnger, 1958); Soziatphilosophle zwischen ldeologle und Wissenschaft (Neu- wled/Rhein, Luchtt>rhand, 1961 ). Uma Influência Importante sobre Topltsch é a esco:a do positivismo legal de Kelsen. Para as implicações desta última no que diz respeito à sociologia do conhecimento, cf. Hans Kêtsen, Aufsiitze zur ldNJlogiekritik (Neuwled/Rhein, Luchterhand, 1964). 25 logia européia quanto na americana, desde a Segunda Guerra Mundial." Provavelmente a mais extensa tentativa de ir além de Mannheim na construção de uma ampla sociologia do conhecimento é a de Werner Stark, outro erudito conti- nental emigrado, que ensinou na Inglaterra e nos Esta- dos Unidos. " Stark vai mais longe, deixando para trás a focalização feita por Mannheim do problema da ideo- logia. A tarefa da sociologia do conhecimento não con- siste em desmascarar ou revelar as distorções socialmente produzidas, mas no estudo sistemático das condições so- ciais do conhecimento enquanto tal. Dito de maneira simples, o problema central é a sociologia da verdade, não a sociologia do erro. Apesar de seu enfoque carac- terístico, Stark provavelmente está mais perto de Scheler que de Mannheim na compreensão da relação entre as idéias e seu contexto social. Por outro lado, é evidente que não tentamos dar um adequado panorama histórico da história da sociologia do conhecimento. Além disso, ignoramos até aqui certos desenvolvimentos que poderiam teoricamente ter impor- tância para a sociologia do conhecimento mas não foram considerados como tais por seus próprios protagonistas. Em outras palavras, limitamo-nos aos desenvolvimentos que, por assim dizer, navegaram sob a bandeira da "so- ciologia do conhecimento" (considerando a teoria da ideologia como parte desta última). Isto tornou claro um fato. A parte o interesse epistemológico de alguns sociólogos do conhecimento, o foco empírico da atenção situou-se quase exclusivamente na esfera das idéias, ou seja do pensamento teórico. Isto é verdade com relação a Stark, que colocou como subtítulo de sua obra princi- pal sobre a sociologia do conhecimento a expressão "En- saio para Servir de Auxílio à Compreensão mais pro- funda da História das Idéias". Em outras palavras, o in- teresse da sociologia do conhecimento foi constituído " Cf. Daniel Bell, The End of ldeology (New York, Free Press of Olencoe, 1960); Kurt Lenk (ed.), ldeolog/e; Norman Birnbaum (ed.), The Sociologlcal Studi of ldeology (Oxford, Blackwell, 1962). " Cf. Stark, op. cit. 26 pelas questões epistemológicas em nível teórico, e pelai1 questões da história intelectual em nível empírico. Desejamos acentuar que não temos reservas de qual- quer espécie quanto à validade e importância desses dois conjuntos de questões. Consideramos, porém, infeliz que esta particular constelação tenha dominado até agora a sociologia do conhecimento. Nosso ponto de vista é que, como resultado, a plena significação teórica da socio- logia do conhecimento ficou obscurecida. Incluir as questões epistemológicas concernentes à va- lidade do conhecimento sociológico na sociologia do co- nhecimento é de certo modo o mesmo que procurar em- purrar um ônibus em que estamos viajando. Sem dúvida a sociologia do conhecimento, como todas as disciplinas empíricas que acumulam indícios referentes à relatividade e determinação do pensamento humano, conduz a ques- tões epistemológicas a respeito da própria sociologia, assim como de qualquer outro corpo científico de conhe- cimento. Conforme observamos anteriormente, neste ponto a sociologia do conhecimento desempenha um papel se- melhante ao da história, da psicologia e da biologia, para mencionar somente as três disciplinas empíricas mais importantes que causaram dificuldade à epistemologia. A estrutura lógica dessa dificuldade é fundamentalmente a mesma em todos os casos, a saber: como posso ter certeza, digamos, de minha análise sociológica dos cos- tumes da classe média americana em vista do fato de que as categorias por mim usadas para esta análise são condicionadas por formas de pensamento historicamente relativas, e mais que eu próprio e tudo quanto penso sou determinado por meus genes e por minha inata hostilidade aos meus semelhantes, e além do mais, para rematar tudo isso, eu próprio sou um membro da classe média americana? Está longe de nós o desejo de repelir estas questões. Tudo quanto desejaríamos afirmar aqui é que estas ques- tões não são por si mesmas parte da disciplina empírica da sociologia. Pertencem propriamente à metodologia das ciências sociais, empreendimento que pertence à fi- 27 losofia e é por definição diferente da sociologia, que na verdade é objeto de suas indagações. A sociologia do conhecimento, juntamente com outros criadores de difi- cul

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