SEBENTA DC - Direito Constitucional 2022/23 PDF
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2022
Francisco de Jesus
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This document is a study notes on Constitutional Law, specifically covering the Theory of the State, Constitutionalism, and the Portuguese Constitution (including historical context and legal frameworks). It was compiled for the 2022/23 academic year.
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DIREITO CONSTITUCIONAL Francisco de Jesus PROF. LUÍS HELENO TERRINHA | 2022/23 ÍNDICE 1. TEORIA GERAL DO ESTADO...................................................................................................................... 4 1.1. Enquadramento histórico....................
DIREITO CONSTITUCIONAL Francisco de Jesus PROF. LUÍS HELENO TERRINHA | 2022/23 ÍNDICE 1. TEORIA GERAL DO ESTADO...................................................................................................................... 4 1.1. Enquadramento histórico................................................................................................................ 4 1.2. Conceito de Estado.......................................................................................................................... 5 1.3. Formas de Estado............................................................................................................................. 8 1.4. Fins e Funções do Estado................................................................................................................. 9 1.5. Organização do Poder Político do Estado..................................................................................... 9 1.6. Limites ao Poder do Estado........................................................................................................... 11 1.7 Regimes políticos............................................................................................................................. 12 1.8. Sistemas de Governo..................................................................................................................... 13 1.9. Sistemas Eleitorais e Sistemas de Partidos................................................................................... 13 2. CONSTITUCIONALISMO......................................................................................................................... 15 2.1. A ideia de Constitucionalismo...................................................................................................... 15 2.2. O Direito Constitucional como disciplina.................................................................................... 16 2.3. O Constitucionalismo Inglês.......................................................................................................... 17 2.4. O Constitucionalismo Norte-americano...................................................................................... 19 2.5. O Constitucionalismo Francês...................................................................................................... 21 2.6. O Constitucionalismo Alemão...................................................................................................... 23 2.7. O Constitucionalismo Português................................................................................................... 28 2.7.1. A Constituição de 1822............................................................................................................................. 28 2.7.2. A Carta Constitucional de 1826............................................................................................................... 30 2.7.3. A Constituição de 1838............................................................................................................................. 31 2.7.4. A Constituição Republicana de 1911..................................................................................................... 32 2.7.5. A Constituição de 1933............................................................................................................................. 33 2.7.6. A Constituição de 1976............................................................................................................................. 35 3. TEORIA DA CONSTITUIÇÃO................................................................................................................... 35 3.1. Conceito e Classificação de Constituições................................................................................ 35 3.1.1. Constituição como ordem jurídica fundamental do Estado............................................................... 36 3.1.2. Constituição em sentido material, formal e instrumental..................................................................... 36 3.1.3. Constituições concisas e prolixas............................................................................................................ 37 2 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 3.1.4. Constituições estatuárias e programáticas............................................................................................ 37 3.1.5. Constituições rígidas e flexíveis................................................................................................................ 37 3.1.6. Constituições outorgadas, pactícias e democráticas......................................................................... 38 3.1.7. Constituição normativa, nominal e semântica..................................................................................... 38 3.2. Poder Constituinte e Vicissitudes Constitucionais....................................................................... 39 3.3. Funções da Constituição............................................................................................................... 41 3.4. O Sistema Normativo da Constituição......................................................................................... 42 3.5. Interpretação Constitucional........................................................................................................ 45 Esta sebenta foi feita, sobre muitas lágrimas, com apoio nos manuais “Lições de Direito Constitucional, Volume I”, do Professor José Melo Alexandrino, e “Curso de Direito Constitucional, Tomo II”, do Professor Carlos Blanco de Morais. Um beijinho especial ao Rafael Guerra porque quando me faltaram as forças copiei da sebenta dele. E um especial beijinho ao Chumbo Académico, que tarda, mas não falha. Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 3 1. TEORIA GERAL DO ESTADO 1.1. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO Até ao Séc. XVI, não se pode tecnicamente falar de Estado, mas sim de “tipos históricos” de Estados anteriores ao Estado Moderno. - Estado Oriental § Estados de grande dimensão; § Origem divina do poder – teocracia; § Sociedade hierarquizada e desigualitária; § Garantias dos indivíduos diminutas. - Estado Grego § Estados de reduzidas dimensões (Cidades-Estado); § Religião como fundamento da comunidade; § Tinha com base o princípio da igualdade cívica; § Entendia a liberdade apenas no âmbito da participação política (vida da polis) e não no plano individual. § Diversidade nas formas de Governo; § Estabeleceu as coordenadas da democracia moderna. - Estado Romano § Organização hierárquica e escalonada do poder, de base aristocrática; § Não vigora um princípio de igualdade cívica; § Desenvolve-se a ideia de poder política; § Poder Político estruturado sobre a cidadania romana e sobre o município; § Reconhece os direitos do cidadão romano e atribui progressivamente direitos aos estrangeiros; § Separa o poder público do poder privado; § Coordena entre o poder central e o poder regional (províncias e municípios); § Na última fase, surge a ordem de valores cristã. - Estado Medieval (é impróprio falar de Estado neste período) § Ausência de um poder central unificado; § Poder limitado pela teologia, pela moralidade e pela política; § Identifica-se o bem comum como finalidade do Poder Político; § Distingue-se Rei de Tirano; admite-se o direito de resistência; § Aflora a soberania do povo; Ao desagregar-se o sistema medieval, dá-se lugar à transição para o Estado Moderno, que possui as seguintes características básicas: § Corresponde a uma Nação – comunidade ligada por laços culturais e históricos; § Progressiva secularização – separação entre a comunidade política e a esfera religiosa; § A afirmação da soberania como poder supremo e aparentemente ilimitado. 1.ª manifestação de Estado Moderno: Estado Absoluto § Distinguem-se duas fases: Fase Patrimonial: o Estado é um bem que integra o património do príncipe. O Poder Real é justificado como tendo origem divina. 4 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW Fase do Estado de Polícia (séc. XVIII): o Monarca já não é dono do Estado, mas tem direito a intervir em todos os domínios com vista o interesse público. O poder é justificado pela razão. § Estado acima do Direito, intervencionista. § Concentração dos poderes no monarca. Com as Revoluções francesa e americana, inaugura-se a época do Estado Constitucional, em sentido amplo (Estado que é limitado pela Constituição) 2.ª Manifestação de Estado Moderno (Constitucional): Estado Liberal de Direito - Estado limitado pela Constituição e pelo Direito; - Estado não intervencionista; - Existe separação de poderes. O Estado liberal de Direito é interrompido na Europa pelo Estado Anti-liberal, na modalidade do poder totalitário (Alemanha Nazi ou URSS sob Estaline) ou nas formas que assumiram o poder autoritário (fascismo de Mussolini, por exemplo). Após esta pausa, sucede ao Estado Anti-liberal o Estado Social e Democrático de Direito. - Social porque está empenhado no bem-estar e na justiça social; - Democrático, uma vez que o constitucionalismo incorporou a democracia; - de Direito, uma vez que é limitado pelo Direito. 1.2. CONCEITO DE ESTADO ESTADO – Um povo fixado num determinado território que institui, por vontade própria, dentro desse território, um poder político relativamente autónomo. ESTADO Teoria dos 3 elementos Poder do Estado de Jellinek Povo Território Político 1. POVO – o conjunto de cidadãos do Estado - Entram-se ligados ao Estado através de um vínculo de cidadania ou nacionalidade – povo enquanto conceito jurídico. - É diferente de: § População – conjunto de pessoas que residem no território do Estado § Nação – coletividade identificada pela comunhão de laços culturais/espirituais e histórico-geográficos entre os seus membros. - Cidadania – situação jurídica passiva da qual decorrem outros direitos (contraste com a situação jurídica dos estrangeiros ou apátridas). § Diplomas relevantes: Lei n.º 37/81, de 10 de Novembro (Lei da Nacionalidade de 1981) e Art. 26.º, n.º 1 CRP. § Não se exclui a possibilidade de alguém ter mais de uma cidadania – pluricidadania – ou não ter nenhuma – apartidia. § Existem dois critérios tradicionais para a atribuição da cidadania: Ius sanguinis: vínculo determinado pela filiação. Ius soli: vínculo determinado pelo local de nascimento. Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 5 § São considerados dois tipos de cidadania: Cidadania Originária – atribuída por lei (mero efeito da lei, concurso da vontade ou com verificação de outros requisitos), decorre do nascimento ou ato/facto que se reporte ao nascimento, produz efeitos desde o nascimento e garante a plenitude de direitos (Lei da Nacionalidade Art. 1º) Cidadania Não Originária – resulta da manifestação da vontade (LN Arts. 2.º e 3.º), adoção (LN Art. 5.º) ou maturação (LN Art. 6.º). É suscetível de oposição e não garante a plenitude de direitos (a capacidade eleitoral ativa para Presidente da República, por exemplo, é reservada para “portugueses de origem”). 2. TERRITÓRIO – Estado como fenómeno espacial - Território terrestre: solo e subsolo corresponde à superfície da crosta terrestre demarcada pelas fronteiras. - Território aéreo: espaço aéreo compreendido entre as verticais traçadas a partir das fronteiras terrestres e do limite do mar territorial. - Território marítimo: corresponde ao “mar territorial” que tem a largura de 12 milhas náuticas. § NOTA: Há zonas que não integram o território estatal, mas o Estado exerce soberania plena: Zona Contígua – até às 24 milhas náuticas. O Estado exerce poderes necessários à prevenção e repressão de violação a normas aduaneiras, fiscais, de imigração ou sanitárias. Zona Económica Exclusiva (ZEE) – até às 200 milhas náuticas. O Estado exerce poderes relativos aos recursos naturais, ao aproveitamento económico, à investigação científica, mas demais Estados gozam de liberdade de navegação e sobrevoo. - Relevância do Território § É um dado definidor da nação; Elemento aglutinador do Povo. § Pressupõe o exercício de determinados poderes. 3. PODER POLÍTICO – Faculdade exercida por um povo de, por autoridade própria, instituir órgãos que exerçam o senhorio de um território e nele criem e imponham normas jurídicas, dispondo dos meios necessários de coação. § “por autoridade própria” – assembleia constituinte, originária § capacidade para definir órgãos de poder/governo § capacidade para estabelecer normas jurídicas § possibilidade para recorrer ao uso da força – monopólio do uso da força pelo Estado. - O PODER POLÍTICO E A SOBERANIA § Há uma aproximação tendencial do poder político à soberania na medida em que o Estado soberano se apresenta com a comunidade política cujo poder político reveste a forma de soberania. § SOBERANIA – Faculdade do Estado de se poder livremente organizar no plano jurídico, na liberdade de tomar decisões obrigatórias para os cidadãos e para outros 6 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW entes públicos e privados e na capacidade de representar internacionalmente os interesses externos, num quadro de igualdade formal com outros Estados. § Assim, distinguem-se 3 dimensões de soberania: Soberania constitucional – o povo institui e define originariamente a sua ordem jurídica fundamental – a constituição. Soberania interna – em respeito pelos limites fixados pela constituição e lei, governados devem obediência a governantes. Soberania externa – independência e igualdade jurídica dos Estados no plano do Direito internacional. § Para efeitos de Direito Internacional, um Estado é soberano quando tem: Direito de celebrar tratados internacionais (ius tractuum) Direito de receber e enviar representantes diplomáticos (ius legationis) Direito de fazer a guerra (ius belli) Direito de participação em organizações internacionais. Protegidos Soberanos Vassalos Exíguos ESTADOS Semi-soberanos Confederados Membros de uma União Real Não Soberanos Estados Federados (ex. Texas) § Estados não soberanos Estados membros de uma União Real Estados federados – membros de um Estado Federal § Estados semi-soberanos Estados protegidos – tem personalidade internacional, mas só pode exercer os seus direitos através de outro Estado, que o protege. Estados vassalos – tem personalidade internacional, mas está ligado por certas obrigações (vínculo feudal) a um Estado suserano, que tem de autorizar o exercício de uma competência internacional. Estados exíguos – por diminuta extensão do território ou escassez de populações, não está em condições de exercer plenamente a soberania. Estados confederados – por ser membro de uma confederação, tem uma soberania internacional limitada. - OUTRAS COMUNIDADES POLÍTICAS TERRITORIAIS § Ao nível supraestadual, temos o exemplo da União Europeia. § Ao nível intraestadual, exercem poder político não soberano as regiões políticas e as autarquias locais. Regiões Políticas (em Portugal, Regiões Autónomas) – fenómeno de descentralização política, em que parcelas do poder político são devolvidas a essas entidades, falando-se de autonomia política. Autarquias Locais – fenómeno de descentralização administrativa, falando-se de autonomia local e de poder local. Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 7 - FRAGMENTAÇÃO DO PODER POLÍTICO DO ESTADO § Internacionalização: certos assuntos deixaram de ser do domínio dos Estados para serem atribuições da comunidade internacional. § Globalização: a existência de questões cuja resolução só pode ser encarada à escala mundial deixa o Estado numa situação de impotência. § Integração europeia: os Estados membros da União Europeia transferiram parcelas da sua soberania para a União Europeia (Art. 7.º, n.º 6 CRP) § Neofeudalização interna: há outros centros de poder que rivalizam e disputam com o Estado parcelas de poder político (exemplo: regiões autónomas). 1.3. FORMAS DE ESTADO FORMA DE ESTADO – Modelo inerente ao tipo de relações estabelecidas entre o poder político e o território. Centralizado Simples ou Unitário Descentralizado Regional ESTADO União Real Composto ou Complexo Estado Federal ESTADO UNITÁRIO (ou Estado Simples) – há apenas um poder político dotado de autoridade constituinte em todo o território (poder soberano e que se exprime na existência de uma só constituição). Pode ser: - Centralizado – monopólio das decisões por parte do poder político central; recusa o pluralismo de poderes políticos (ex: Angola, na prática) - Descentralizado – existem outras pessoas coletivas públicas territoriais para além do Estado (regiões administrativas, municípios, entre outros). - Regional – há uma descentralização política (e não só administrativa), com atribuição de poderes governativos e legislativos a certas pessoas coletivas públicas territoriais por via da Constituição e dos respetivos estatutos político-administrativos (exemplo: regiões autónomas). ESTADO COMPOSTO (ou Estado complexo) – há vários poderes políticos dotados de autoridade constituinte no território (poderes em diferentes níveis territoriais, que se exprimem na existência de várias constituições). Pode ser: - União Real – dois ou mais Estados que, sem perderem a sua autonomia, adotam uma constituição comum, prevendo a existência de um ou mais órgãos comuns. Verifica-se um fenómeno de fusão. - Estado Federal – de raiz republicana, pressupõe uma igualdade entre os Estados Federados. Pode ser perfeito ou imperfeito. § Pressupõe uma dualidade ou sobreposição de constituições, de estruturas estaduais e de ordens jurídicas (a Constituição de cada Estado VS a Constituição Federal). § Os Estados federados intervêm na formação da vontade política federal e na revisão da Constituição Federal. § Apenas o Estado Federal dispõe de soberania no plano internacional. 8 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 1.4. FINS E FUNÇÕES DO ESTADO FINS DO ESTADO – para que existe o Estado? Garantia de segurança (Hobbes) e garantia da vida, liberdade e prosperidade (Locke) – contra o meio ambiente, contra outras pessoas (resolução de conflitos e manutenção da paz social), contra instabilidade e arbítrio (normas jurídicas). Manutenção da justiça através do Direito. Realização do bem-estar social (condições materiais de acesso a bens e serviços essenciais). Sustentabilidade e condições de vida no planeta. FUNÇÕES DO ESTADO – através de que atividades estaduais são esses fins realizados? Função Política Primárias Função Legislativa FUNÇÕES DO ESTADO Função Jurisdicional Secundárias Função Administrativa FUNÇÕES PRIMÁRIAS - Função Política – prática de atos que respeitem, de modo direto e imediato, ao poder político e às relações deste com os outros poderes do Estado. - Função Legislativa – atividade permanente e de caráter público de definição de princípios e elaboração de preceitos com eficácia externa, tipicamente de caráter regulador da vida coletiva e, portanto, com vocação primacial de incidência direta e imediata nos cidadãos. FUNÇÕES SECUNDÁRIAS - Função Jurisdicional – resolução de “questões de Direito” relativas a conflitos de interesse público e privado, com vista à reintegração da paz jurídica. - Função Administrativa – execução das leis e satisfação de necessidades coletivas que, por virtude de prévia opção política, se entende que incumbe ao Estado prosseguir. 1.5. ORGANIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO DO ESTADO Coloca-se a questão: Como pode o Estado atuar e existir como unidade, sendo que não possui uma vontade física? O Estado pode ser concebido como uma pessoa coletiva jurídica de base associativa. - Pessoa de base associativa uma vez que é uma congregação de um conjunto de pessoas para prosseguirem fins não lucrativos de interesse comum. - Pessoa jurídica uma vez que é titular de certos direitos e deveres. Este facto permite considerar o Estado um esquema de imputação, uma vez que estes direitos/deveres lhe são imputados. É necessário que o Estado esteja dotado de órgãos que atuem em representação do povo. Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 9 ÓRGÃOS DO ESTADO – Um órgão é um centro institucionalizado de poderes funcionais que exprime a vontade funcional imputável à pessoa coletiva. Têm uma determinada competência. COMPETÊNCIA – conjunto de poderes funcionais que a lei confere a determinado órgão para o desempenho de uma função. A competência é sempre o resultado da norma jurídica que a estipula. - A propósito disto, há que notar a diferença entre os órgãos do Estado (ou as pessoas coletivas públicas no geral) e as pessoas individuais. Para as primeiras vigora o princípio da competência, no sentido que só podem praticar os atos que a lei autorizar, ao contrário das segundas, para as quais vigora o princípio da liberdade, no sentido em que podem fazer tudo o que não for proibido. - A competência é imprescritível e irrenunciável, só podendo ser delegada noutro órgão se a norma autorizar. Estes poderes funcionais (competências) são exercidos materialmente por uma pessoa ou grupo de pessoas: o(s) titular(es). TITULARES – pessoas físicas que, em cada instante, emprestam a sua vontade ao órgão para que ele se possa exprimir. - Não confundir com AGENTES – pessoas singulares que se limitam a colaborar no processo de formação da vontade, a preparar ou a dar execução às decisões tomadas, mas que não exprimem a vontade coletiva. IMPUTAÇÃO – conceito que exprime a relação que se estabelece entre a vontade devidamente/regularmente manifestada pelos titulares, a vontade do órgão e, por isso, da pessoa coletiva Estado. Podemos classificar os órgãos do Estado consoante diferentes critérios: - Quanto ao número de titulares: § Órgão Singular – só um titular (ex: Presidente da República) § Órgão Colegial – uma pluralidade de titulares De tipo Colégio (ex: Conselho de Ministros) De tipo Assembleia (ex: câmaras parlamentares) - Quanto à previsão constitucional: § Órgão Constitucional – previsto na constituição Órgão de soberania (ex: PR, AR, Governo e tribunais) Órgão de direção política Outros § Órgão não Constitucional - Quanto à estrutura: § Órgão Simples – órgãos unitários (todos os órgãos singulares são simples) § Órgão Complexo – compreende outros órgãos no seu seio (ex: Governo → PM) - Quanto à obrigatoriedade de existência: § Existência Obrigatória § Existência Facultativa (ex: Vice-Primeiro-Ministro) - Quanto às funções desempenhadas: § Órgãos Deliberativos (tomam decisões) ou Consultivos (estudam, aconselham ou emitem pareceres sobre os atos dos órgãos deliberativos) § Órgãos Primários (decidem) ou auxiliares (coadjuvam outros a decidir) § Órgãos políticos, legislativos, jurisdicionais ou administrativos 10 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW SEPARAÇÃO DE PODERES Pode significar tanto a separação de funções (plano horizontal) como a separação de órgãos (plano vertical). Administração Central (Estado) Executivo Legislativo Judicial (fenómeno de (governo) (parlamento) (tribunais) Municípios descentralização) Plano Vertical (nenhum deles está subordinado a outro) Plano Horizontal Freguesias A preocupação central que justifica a separação de poderes é evitar concentração de poderes e absolutismos, limitando o poder do Estado. A separação de poderes não implica necessariamente ausência de interdependência e de interferências recíprocas. REPRESENTAÇÃO POLÍTICA A representação política é a representação do povo, enquanto modo de tornar o povo presente no exercício do poder. A representação política implica que os governantes representem toda a coletividade e não apenas quem os designou. Não há representação política sem eleição. MODOS DE DESIGNAÇÃO DOS TITULARES DE ÓRGÃOS Os órgãos podem ter os seus titulares designados de várias formas: Herança/Sucessão Hereditária – ocorre em regimes monárquicos Inerência – quando alguém ocupa um cargo e, por isso, ocupa outro (ex: o presidente do Governo dos Açores é, por inerência, pertencente ao Conselho Geral Cooptação – vários titulares do órgão que designam outros para o mesmo órgão (ex: juízes do Tribunal Constitucional que são designados por outros) Nomeação – um titular de um órgão nomeia um titular de outro órgão (ex: o PR nomeia o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas) Eleição – a nomeação resulta da expressão dos votos 1.6. LIMITES AO PODER DO ESTADO ius cogens Constituição Limitações Jurídicas Direito Internacional DUE Limitações ao Poder do Lei Ordinária Estado Moral Pluralismo de Organização Política Limitações Não Jurídicas Opinião Pública Meios de Comunicação Social Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 11 LIMITAÇÕES JURÍDICAS Normas de “ius cogens” – conjunto de normas imperativas de Direito Internacional às quais não é possível qualquer derrogação. Constituição – parâmetro jurídico superior do ordenamento. O DIP e os Direitos Humanos – regulam as relações com outros estados e a relação do Estado com as pessoas que estejam sob a sua jurisdição. - Possuem mecanismos de responsabilização internacional (ex: Tribunal Internacional de Justiça). Direito da União Europeia (Art. 8.º, n.º 4 CRP) Lei Ordinária 1.7 REGIMES POLÍTICOS REGIME POLÍTICO – relação entre o poder político e a comunidade (relacionamento institucional entre governantes e governados, participação de governados no exercício do poder, fundamentos de legitimidade do poder soberano. Classificação dos regimes políticos segundo Aristóteles - Monarquia – poder de um só (versão degenerada – “corrompida”: Tirania) - Aristocracia – poder de poucos (v.g.: Oligarquia) - República – poder de muitos (v.g.: Democracia/Demagogia) Classificação dos regimes políticos segundo Montesquieu: - República – tanto pode ser democrática ou aristocrática (poder do povo, tem como princípio a virtude) - Monarquia (só um governa, tem como princípio a honra) - Despotismo (o poder pertence ao tirano, tem como princípio o medo) Tipologia dos Regimes Políticos - Critérios Relevantes à Classificação: § Existência ou não de filosofia/ideologia de Estado vs um pluralismo ideológico § Limites ao poder político, designadamente o respeito ou sacrifício de direitos fundamentais § Formas democráticas ou autocráticas de designação dos governantes e formas de controlo do poder político. - Regimes democráticos – ausência de ideologia de Estado, forte limitação do poder político (separação de poderes, respeito por direitos fundamentais), cidadãos participam na designação e controlo dos governantes. § Democracia Representativa – caracterizada pela abertura, pelo pluralismo, pela defesa de instituições fortes e pela centralidade dos partidos. § Democracia Limitada – caracterizada por um pluralismo limitado, por instituições limitadas e por uma atrofia dos partidos políticos (ex: Macau) § Democracia degenerada – fenómeno mais recente de desvitalização dos valores da democracia (caracterizada pelo imediatismo, pela paranoia, pelo confronto permanente e pela desconsideração dos partidos). 12 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW - Regimes não democráticos § Regimes autoritários – o Estado tem uma ideologia ou impede o pluralismo ideológico, poder político não é efetivamente limitado por separação de poderes e direitos fundamentais, liberdade de participação política. § Regimes totalitários – ideologia de Estado abrangente, recurso ao terror, fusão entre o individual e o coletivo (no sentido de construção de um “homem novo”, implicando todas as dimensões da vida humana) com instrumentalização e aniquilação da pessoa humana. 1.8. SISTEMAS DE GOVERNO SISTEMA DE GOVERNO – relacionamento institucional entre os diferentes órgãos do poder político. Tipologia dos sistemas de governo em regimes democráticos: - Sistema PARLAMENTAR (ex: Reino Unido) § Governo formado através do Parlamento § Governo depende da confiança do Parlamento § O Chefe de Estado tem uma posição mais simbólica § Chefe de Estado ≠ Chefe de Governo § Governo é solidário em relação ao seu programa e às deliberações tomadas em Conselho. - Sistema PRESIDENCIALISTA (ex: Estados Unidos) § Chefe de Estado é eleito por sufrágio universal e normalmente direto. § Chefe de Estado = Chefe de Governo § Separação Rigorosa entre Chefe de Estado e parlamento, sem relações de responsabilidade política (fala-se em “casamento sem divórcio”) - Sistema SEMIPRESIDENCIALISTA (ex: Portugal) § Possui componentes parlamentares e possui componentes presidencialistas. § Componentes parlamentares: Governo formado em função dos resultados das eleições parlamentares Governo depende de confiança parlamentar Existe dualidade no executivo – Chefe de Estado ≠ Chefe de Governo § Componentes presidencialistas: Chefe de Estado eleito por sufrágio universal Governo politicamente responsável perante o Chefe de Estado (e o parlamento) Chefe de Estado com poderes significativos 1.9. SISTEMAS ELEITORAIS E SISTEMAS DE PARTIDOS SISTEMA ELEITORAL – conjunto de regras que definem a forma de expressão da vontade eleitoral, particularmente as que respeitam à delimitação das circunscrições eleitorais e à definição do modo de escrutínio. CIRCUNSCRIÇÕES ELEITORAIS (ou círculos eleitorais) – parcelas do território do Estado no seio das quais são apurados os mandatos. Podemos ter: - Circunscrição Única/nacional (ex: eleições PR ou Parlamento Europeu) - Circunscrições Múltiplas (ex: eleições AR) Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 13 Tipos de sufrágio: - Sufrágio uninominal – quando, em cada círculo, é eleito apenas um representante. - Sufrágio plurinominal – quando, em cada círculo, são eleitos vários representantes. - Sufrágio indireto – os cidadãos elegem representantes que, por sua vez, designam titulares de um órgão. - Sufrágio direto – os cidadãos elegem diretamente os titulares. MODOS DE ESCRUTÍNIO – formas de apuramento dos mandatos a partir dos votos expressos pelos eleitores. - Sistema Maioritário – eleito o candidato ou lista de candidatos que obtiverem maior número de voto. § Podemos distinguir entre: Sistema Maioritário a uma volta – eleito o candidato mais votado. Sistema Maioritário a duas voltas – eleito o candidato que obtiver a maioria absoluta dos votos. Se isso não se verificar, repetem-se as eleições numa segunda volta com os dois candidatos mais votados. § Vantagens: simplicidade, estabilidade governativa, maior proximidade entre eleitos e eleitores. § Desvantagem: sub-representação dos partidos mais votados. - Sistema de Representação Proporcional – a representação de cada partido deve ser proporcional ao número de votos que lhe couberam na eleição (implica sufrágio plurinominal) § Vantagem: representação mais fiel das várias correntes políticas na sociedade. § Desvantagens: pulverização partidária, potencial instabilidade governativa, reforço da importância das máquinas partidárias, afastamento entre eleitos e eleitores. SISTEMA DE PARTIDOS PARTIDO POLÍTICO – agrupamento duradouro de cidadãos organizado tendo em vista participar no funcionamento das instituições e formar e exprimir organizadamente a vontade popular para o efeito acedendo ou influenciando diretamente o exercício do poder político. - Fins dos partidos políticos: a participação no funcionamento das instituições do poder político e a representação política da comunidade. - Funções dos partidos políticos: função representativa, função de seleção de pessoal político e função de definição de posições políticas. Tipologia de sistemas de Partidos: - Sistema Sem Partidos (ex: Arábia Saudita) - Sistema de Partido Único (ex: China, Portugal durante Est. Novo) Regimes Não Democráticos - Sistema de Partido Hegemónico (ex. Angola ? ) § há mais do que um partido, mas é o principal partido o único a ter acesso efetivo, exercício e controlo do poder. - Sistema Bipartidário § Bipartidismo perfeito – em que os 2 maiores partidos obtêm cerca de 90% dos votos (ex: Estados Unidos) § Bipartidismo imperfeito – os 2 maiores partidos obtêm entre 75% e 80% dos votos, o que confere a outro(s) um papel no equilibro do sistema. § Mediante outros fatores, pode falar-se de Bipartidismo condicionado. 14 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW - Sistema Multipartidário § Multipartidarismo perfeito – 3 ou mais partidos com um peso eleitoral aproximado. § Multipartidarismo imperfeito/de partido dominante – quando 1 dos partidos alcança pelo menos 35% dos votos. § Multipartidarismo condicionado – quando outros fatores limitam a influência dos partidos. Os sistemas eleitorais influenciam os sistemas de partidos. - Relação entre sufrágio maioritário e bipartidarismo. - Relação entre representação proporcional e multipartidarismo. - Existe uma tendência para que um sistema maioritário a duas voltas leve a coligações pré-eleitorais. - Existe uma tendência para que uma representação proporcional leve a coligações pós- eleitorais. - O sistema de representação maioritária acentua a importância individual do deputado e a sua responsabilização perante o eleitor. - Representação proporcional acentua a importância das máquinas partidárias e diminui a relação entre deputado e eleitor. 2. CONSTITUCIONALISMO 2.1. A IDEIA DE CONSTITUCIONALISMO CONSTITUCIONALISMO – movimento político, cultural e filosófico que põe em causa a ordem absolutista. Começa no final do séc. XVIII (com antecedentes noutros períodos históricos: Idade Média, séc. XVII). O constitucionalismo ideologicamente quer a limitação de poder para fins garantísticos (para garantir os direitos dos cidadãos face aos abusos do poder). - Podemos dividir o constitucionalismo em dois momentos. § Constitucionalismo antigo/pré-moderno (antes do séc. XVIII) – havia Constituições apenas em sentido institucional (regras sobre a legitimação do poder) como apenas organiza o poder, e não o limita, não há consequências jurídicas da sua violação – poderá só haver consequências a nível político. § Constitucionalismo moderno – nascimento das Constituições em sentido formal (limitação do poder) e material (confere direitos contra o Estado). Início da separação de poder (contra a concentração de poder nos monarcas) e separação entre o órgão e o titular – o Estado passa a ser uma pessoa coletiva (todo o poder vem do Direito, na medida em que as instituições são criações jurídicas); soberania popular. Contrato social (Hobbes, Locke, Rousseau). § Blanco de Morais evidenciou as características diferenciais do Constitucionalismo moderno em face do modelo da Constituição Antiga: A Constituição deixa de ser enformada por normas desagregadas, intuídas ou pressupostas, e passa a ser constituída por normas decididas, escritas, solenes e dotadas de supremacia política e jurídica sobre a lei ordinária, e os demais atos que a contrariem são ilegítimos. As normas constitucionais não se limitam a reger aspetos parcelares da organização do Estado, mas a disciplinar em detalhe o estatuto dos órgãos de poder político e a declarar o direito das pessoas. Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 15 A garantia da Constituição deixa de depender de vicissitudes políticas ou da natureza das relações de força, para passar gradualmente a ser defendida pelos tribunais, operando como uma verdadeira lei. No seu texto “What is Constitutionalisation?”, Martin Loughlin dá-nos outra perspetiva destas definições. Assim, Loughlin define CONSTITUCIONALISMO como a teoria política de que um governo era definido, limitado, e que tinha os seus poderes enumerados por um dado documento, uma Constituição, baseada num contrato – podemos então dizer que se tratava também de uma teoria baseada em teorias de teor contratualista – e que neste documento se denominavam também os Direitos fundamentais do povo regido por essa Constituição. - Neste sentido, a Constituição, no seu sentido pré-moderno, considerava o estado como uma entidade orgânica, como se a Nação fosse um corpo, e que se o corpo tinha uma constituição, o corpo participava também na vida política. Seria como se a Constituição exprimisse a sua saúde e força, evoluindo com o aumento do bem-estar desse corpo. Ora, assim sendo, a Constituição neste sentido exprimia uma forma política de ser, o que fazia com que não fosse possível que a Constituição neste contexto pré-moderno fornecesse o alicerce de suporte à autoridade do Governo, ou seja, à legitimidade do seu poder. - Por outro lado, a constituição, enquanto conceito moderno, pode ser definida como o contrato formal na forma de um documento escrito com o objetivo de estabelecer as principais instituições do governo, denominar e delimitar os seus poderes e especificar as normas que regulam as suas relações. Nota: O constitucionalismo não deve ser confundido com o fenómeno de CONSTITUCIO- NALIZAÇÃO, definido como a tentativa de subjugar toda a ação do governo e todo o exercício do poder político ao previsto na Constituição. 2.2. O DIREITO CONSTITUCIONAL COMO DISCIPLINA OBJETO DE ESTUDO DO DIREITO CONSTITUCIONAL Qual é o objeto de estudo do Direito Constitucional? Apesar de existirem diversas divergências doutrinárias quanto ao objeto de estudo do Direito Constitucional, podemos reduzir o seu objeto de estudo a três pontos chave: - As normas que regulam o poder político do Estado; - As normas que definem os direitos fundamentais das pessoas perante o Estado, sejam eles direitos de liberdade ou direitos sociais; - As normas que definem a garantia do cumprimento da Constituição. NOTA: Não confundir o Direito Constitucional enquanto setor da ordem jurídica – o conjunto de normas constitucionais em vigor – e o Direito Constitucional enquanto setor da Ciência do Direito – a disciplina científica que estuda as matérias reguladas por essas normas. AS CARACTERÍSTICAS DO DIREITO CONSTITUCIONAL Supremacia: as normas do Direito Constitucional são lex superior, ou seja, são leis que estão no topo da hierarquia das leis, independentemente dos problemas e entrelaçamentos que possam haver com outro tipo de fontes. Estadualidade: a centralidade do Estado, relevante para o DC em quatro vertentes: objeto da disciplina, produtor e destinatário das normas constitucionais, principal garante da realização da Constituição. 16 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW Complexidade: está presente em diversos aspetos: nas funções da Constituição, na variedade e pluridimensionalidade das normas, na referência aos valores morais, na articulação com a lei e em geral nas implicações ao nível da argumentação jurídica e da aplicação/realização. Incompletude: as normas de DC traçam geralmente apenas as normas fundamentais, deixando grandes espaços por decidir. Abertura: sendo o DC uma ordem incompleta, está de certo modo aberta aos valores (abertura axiológica), às estruturas políticas, económicas, sociais e culturais (abertura estrutural), mas também a outras normas e interpretações (abertura normativa) e ao futuro (abertura temporal). Permanência: verifica-se uma considerável estabilidade no DC, e até uma uniformidade das principais normas do DC. 2.3. O CONSTITUCIONALISMO INGLÊS Há, segundo Pierangelo Schiera, uma superioridade do constitucionalismo inglês: - Chega primeiro (antes do século XIV) - Abre um caminho indestrutível para o constitucionalismo oriental - Os elementos em que se baseia – tradição, pragmatismo, revolução e reforma - Os principais agentes a que recorre – rei, parlamento e a supremacia da lei. - O fim que tem em vista – a expansão da liberdade. Pressupondo um tempo longo, a doutrina divide 3 períodos históricos do constitucionalismo britânico, à luz do critério do órgão preponderante: - Período monárquico – até ao século XVII - Período aristocrático – da Glorious Revolution de 1688 até 1832 (ano do Reform Act) - Período democrático – desde 1832 até ao presente. Segundo Gomes Canotilho, podemos resumir as marcas do constitucionalismo britânico da seguinte forma: - A liberdade radicou-se como a liberdade pessoal de todos os ingleses e como a segurança da pessoa e dos bens de que se é proprietário (como resultava do art. 39.º da Magna Carta) - A garantia destes impôs a criação de um processo justo regulado por lei (due process of law) - As leis reguladoras da liberdade são dinamicamente reveladas e interpretadas pelos juízes, cimentando o sistema de common law. - Especialmente no século XVII, ganha estatuto constitucional a ideia de representação e soberania parlamentar, indispensável à estruturação de um governo moderado. - Por fim, a ideia de que o poder se deve exercer através da lei – princípio básico da rule of law. Marcas da constituição britânica – tradicionalmente a constituição britânica é apresentada como uma constituição histórica, não escrita e em grande medida consuetudinária. - Histórica, uma vez que repousa na tradição e num tempo longo, onde ocorrem sucessivas transformações, conseguindo preservar a imagem do governo misto (com a sobreposição institucional de elementos: monárquico, aristocrático e democrático). - Não escrita, uma vez que não existe o documento escrito Constituição (unwritten constitution). - Consuetudinária, havendo uma prevalência do costume como fonte do Direito constitucional. Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 17 No entanto, a referida prevalência do costume foi decididamente afastada pela proliferação de leis constitucionais escritas – statute law – das últimas décadas, para além das clássicas, das quais podemos destacar: - A Magna Carta de 1215 (incorporada no Statute Roll em 1297) – preparou o terreno para o Parlamento inglês, limitando os poderes dos monarcas de Inglaterra, impedindo o exercício do poder absoluto. Serviu de equilíbrio entre o poder real, o poder aristocrático e o poder eclesiástico, consagrando, entre outros, a liberdade da Igreja Católica, o princípio democrático na criação de impostos, o princípio da intervenção judicial e a liberdade de emigração. - A Petição de Direito (Petition of Right) (1628) – Criada num período de grandes agitações, permitiu novos acertos no Direito, incluindo mais uma limitação do poder régio, consistindo, essencialmente, na reafirmação dos direitos a favor dos súbditos, expressos na Magna Carta. - A Lei do Habeas Corpus (1679) – Nova afirmação de direitos humanos, desta vez sobre a forma de direitos processuais penais, conferindo aos detidos o direito de conhecerem as causas da sua detenção e poderem ser libertados, mais tarde, sob certas condições. - A Bill of Rights (1689) – Nascida na sequência da Glorious Revolution de 1688, consagrou um novo rol de direitos fundamentais, conservando aqueles outorgados anteriormente e acrescentando-lhes outros, como a soberania do Parlamento face ao Rei. - O Act of Settlement (1701) – reformulou as regras de sucessão hereditária ao trono britânico com a intervenção do parlamento. Podemos então classificar o Constitucionalismo britânico, segundo: - A matriz dominante, sendo ela a da Constituição mista, expressa na soberania do parlamento, na Rule of Law e na relevância das constituições constitucionais. - A forma de Estado, considerando o Reino Unido como um Estado Unitário Regionalizado, uma vez que ocorrem fenómenos de descentralização tanto administrativa como politicamente (devolution) como por exemplo a criação dos parlamentos regionais na Escócia, no País de Gales e na Irlanda do Norte. - O regime político, uma democracia parlamentar (uma das mais antigas e consolidadas democracias no mundo). - O sistema de governo, um sistema parlamentar de gabinete, sendo importante referir o seguinte: § Os principais órgãos que compõem este sistema de governo são o Monarca, o Governo (dentro dele o Gabinete, o Primeiro-Ministro e o Ministério), um Parlamento bicamaral – composto pela Câmara dos Comuns (House of Commons, com 650 deputados) e pela Câmara dos Lordes (House of Lords, com um número variável de membros), e o Supremo Tribunal do Reino Unido. § Quanto à forma de designação desses órgãos: Rei – designado por sucessão hereditária House of Lords – geralmente nomeação (sendo que existe um grupo de Lordes hereditariamente eleitos) House of Commons – eleitos por sufrágio universal Primeiro-Ministro – por convenção constitucional, é o líder do partido mais votado na eleição para a House of Commons. § A Coroa é o símbolo nacional, apesar do Rei não dispor de poderes efetivos, salvo um poder arbitral residual na escolha do Primeiro-ministro. - Os direitos e liberdades, apesar de haver um conjunto de textos relevantes, como o Human Rights Act de 1998, a proteção fundamental continua a advir do costume e do 18 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW common law. Porém, por falta de uma Constituição em sentido formal, não há direitos fundamentais em sentido estrito no Reino Unido. - O sistema eleitoral, maioritário uninominal a uma volta para a House of Commons, sendo que é eleito um deputado em cada um dos 650 círculos. - O sistema de partidos, um sistema bipartidário, consequência do sistema eleitoral. - A fiscalização da constitucionalização, que não existe em sentido estrito, apesar da doutrina ter observado a emergência de uma forma fraca de fiscalização de common law. 2.4. O CONSTITUCIONALISMO NORTE-AMERICANO Os colonos debatiam desde o início da década iniciada em 1760 os limites ao poder político um pouco como sucedia em Inglaterra, começando por criticar a concentração de poderes no Rei, o que se tornava um risco às suas liberdades. Estas assentavam nos seus direitos individuais e nas antigas Cartas da Coroa (charters) que lhes concediam direitos e regras especiais. No entanto, a Revolução Americana (1774-1789) que gerou o processo constituinte que originou o constitucionalismo norte-americano. - Esta revolução começou por ser um ato de protesto contra das colónias contra a Grã- Bretanha, por causa da lei do papel selado de 1765. Os colonos argumentavam que a Grã-Bretanha não poderia decidir em parlamento aumentar as taxas sobre os produtos das colónias sem que estas estivessem lá representadas – no taxation without representation. - As colónias, entre a guerra destas com Inglaterra (que durou entre 1775 e 1782), convocam dois Congressos – reuniões com os representantes – e, a 4 de Julho de 1776, o II Congresso vota a Declaração da Independência, que apela aos direitos naturais, ao Povo e à Liberdade. - No ano seguinte é criada uma confederação entre os Estados independentes. - São elaboradas, em 1786, as constituições escritas das colónias, através da convocação de “constitutional conventions”. Assim, pode dizer-se que a noção de Poder Constituinte nasce na América do Norte. - Perante a fraqueza da confederação, resulta a aprovação da Constituição federal de 1787, na Convenção de Filadélfia. Após a conclusão da ratificação da Constituição, em Julho de 1788, esta entra em vigor no ano seguinte. - O pensamento constitucional norte-americano centrou-se no pensamento republicano, inspirado na Républica Romana da antiguidade clássica. Assim, a conceção republicana de governo contestava a hereditariedade como fundamento do poder político. - Viriato Soromenho-Marques distingue 3 grandes momentos na Revolução Americana: § O momento anticolonial – marcado pela tradição de autogoverno e pela ideia de que na América “the law is the king”. § O momento republicano – marcado pela Declaração da Independência e pela rápida adoção de constituições republicanas por parte dos novos Estados. § O momento federal – marcado pela aprovação dos Artigos da Confederação e pela adoção e ratificação da Constituição federal de 1787. Segundo Gomes Canotilho, a matriz norte-americana do constitucionalismo fica marcada pela vontade de afirmar os direitos que vinham da tradição britânica e da Glorious Revolution. Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 19 No entanto, apesar de reclamar os direitos do constitucionalismo inglês, a Revolução posiciona-se contra um princípio do Constitucionalismo inglês, o da soberania do parlamento, já que consideram que acima da lei do Parlamento deve haver uma lei superior. Consideram então que é ao povo que deve caber o exercício de poder constituinte. No exercício do poder, o povo decide num texto escrito, como lei superior, as regras que vão organizar e limitar o poder político, que assim fica delimitado e disciplinado pela Constituição. Do facto de que a Constituição é a lei superior decorrem outros dois: qualquer outra lei que a contradiga não é válida, e os tribunais devem defender a Constituição, emergindo a fiscalização da constitucionalidade das leis. A Constituição norte-americana é uma constituição escrita, rígida, sintética e enriquecida pelo costume e pela jurisprudência. - É uma constituição em sentido formal, uma vez que é um texto escrito que se distingue das demais leis pela sua forma, força e intencionalidade. - É rígida, uma vez que só pode ser alterada por um processo especial, que exige ⅔ dos votos do Congresso e a ratificação por parte de ¾ dos estados, além de que existem certas matérias que não são passíveis de revisão. - É sintética, uma vez que só tem 7 artigos, ainda que se tenha adaptado através dos Aditamentos (amendments) mas também através de uma ampla modelação jurisdicional. Esta constituição apresenta-se como uma lei fundamental decretada pelo povo, sendo por isso uma “Constituição superior” que se contrapõe à lei ordinária. Na sua versão original, salvo algumas cláusulas dispersas, a Constituição não previa direitos individuais, mas em Setembro de 1789, são aprovados os primeiros 10 Aditamentos à Constituição (também conhecidos por Bill of Rights), que procederam à constitucionalização dos direitos do Homem, fazendo com que estes passassem a ser garantias jurídicas invocáveis contra a federação. Podemos então classificar o Constitucionalismo norte americano, segundo: - A matriz dominante, sendo a matriz moderada ou lockeana – reconhecimento de valores anteriores ao Estado, governo das leis e não dos Homens, direitos fundamentais como limites de poder do Estado, divisão e equilíbrio de poderes, controlo da constitucionalidade das leis. - A forma de Estado, um Estado Federal – havendo uma dupla estrutura do poder político (o Estado federal e os estados federados) e uma sobreposição de constituições. O federalismo norte-americano é um federalismo perfeito (originário) - O regime político, uma democracia constitucional. - O sistema de governo presidencial, sendo importante referir: § Os principais órgãos são o Presidente, um Parlamento bicameral (Congresso), composto pela Câmara dos Representantes (com 435 membros, representam a população) e pelo Senado (com 100 senadores, representam os estados federados) e o Supremo Tribunal. § Quanto à forma de designação desses órgãos: Presidente – sufrágio universal formalmente indireto, mandato de 4 anos, podendo ser reeleito 1 vez. House of Representatives – sufrágio direto, mandato de 2 anos Senate – sufrágio direto, por 6 anos, sendo que é renovado em ⅓ de 2 em 2 anos. Supremo Tribunal – nomeados vitaliciamente pelo Presidente, obtido o consentimento do Senado. 20 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW - A separação de poderes, o poder executivo foi entregue ao Presidente, o poder legislativo ao Congresso e o poder judicial aos tribunais. - Nem o Presidente pode dissolver o Congresso nem o Congresso pode demitir o Presidente (fala-se de um “casamento sem divórcio”). No entanto foi previsto todo um sistema de freios e contrapesos (checks and balances), que se revela: no veto presidencial das leis (superável por uma maioria de ⅔); na possibilidade do impeachment, na existência de comissões de inquéritos, entre outros. - O sistema eleitoral – na eleição presidencial é maioritário plurinominal a uma volta (o partido que tiver mais votos num determinado círculo fica com todos os lugares em disputa nesse círculo) O si– na eleição para as duas câmaras do Congresso é maioritário uninominal a uma volta. - O sistema de partidos, sendo que estamos perante um bipartidismo perfeito. - O controlo da constitucionalidade, pode dizer-se que existe um sistema de fiscalização concreta e difusa (judicial review) da constitucionalidade. 2.5. O CONSTITUCIONALISMO FRANCÊS O constitucionalismo francês começa com a Revolução Francesa, que se assinalaria a 14 de julho de 1789, com a Tomada da Bastilha, simbolizando a passagem do Estado Moderno ao Estado Contemporâneo, ocorrendo, pelo menos superficialmente, uma rutura total da ordem política estabelecida. Segundo Gomes Canotilho, este constitucionalismo visava fazer um corte com o passado – o “antigo regime” – procurando uma nova ordem social e política. A Revolução proclamou os direitos naturais do Homem como direitos individuais, e a nova ordem política baseava-se no contrato social artificial assente nas vontades individuais. Por fim, reivindicava o poder de fazer a constituição (poder constituinte) como um poder originário pertencente à nação. Abade Sièyes considerava, fiel às teses de Rousseau sobre o contrato social, que o povo seria o titular da soberania, mas exercê-la-ia através de representantes, que exprimiriam a vontade geral. Dessa vontade, originaria um poder supremo de organização política, o poder constituinte. - Num primeiro pensamento sobre o poder constituinte, Sièyes considerava que o referido poder seria uma realidade permanente e ilimitada. Neste sentido, a nação não poderia submeter-se a uma Constituição, já que isto impediria o seu direito de exercer a vontade geral em liberdade. Assim, reconhecendo o direito natural como fonte de valores constitucionais de ordem superior, o poder constituinte deveria poder ser exercido pelo povo a todo o tempo, o que significaria a alteração permanente das regras da Constituição. - Num segundo momento, após analisar os insucessos de diversas experiências constitucionais, Sièyes sustentava a necessidade de conferir maior permanência à constituição. Traços da Constituição francesa (transversais às mais de 14) - O caso francês é diferente do caso norte-americano, em que a constituição é lei fundamental superior. Na França, a Constituição continuou a ser essencialmente vista como um parâmetro político de regulação da organização do Estado. Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 21 - A Constituição, tal como o constitucionalismo, viveu na França numa situação de contínua instabilidade nos seus fundamentos e referências, com ruturas cíclicas e sucessivas. - Tendo em conta a ideia da lei como expressão da vontade geral, não foi até hoje reconhecido o poder dos tribunais de procederem à fiscalização da constitucionalidade das leis. Legados do Constitucionalismo francês - A lei como expressão da vontade geral - Soberania nacional – a vontade geral exprime-se em contínuo; não há separação entre poder constituinte e constituído. - Constituição em sentido material (art. 16.º DDHC) – garantia de direitos e separação de poderes. Podemos classificar o Constitucionalismo Francês, segundo: - A matriz dominante, sendo que confluem 2: a rousseauniana (na ideia da lei como expressão da vontade geral e na soberania popular) e a do constitucionalismo liberal, a que se junta uma componente bonapartista (visível no perfil do Presidente da República) - A forma de Estado, um Estado Unitário Descentralizado - O regime político, a democracia constitucional. - O sistema de governo, semipresidencial, sendo que podemos ainda dizer o seguinte: § Os principais órgãos do sistema são: o Presidente da República, o Governo, um Parlamento Bicameral, composto pela Assembleia Nacional (com 577 deputados) e pelo Senado (com 348 senadores) e ainda um Conselho Constitucional, que exerce funções de controlo da constitucionalidade § Quanto à forma de designação desses órgãos, temos: Presidente da República: eleito por sufrágio universal por um mandato de 5 anos, podendo ser reeleito uma vez. Assembleia Nacional (principal câmara do Parlamento): eleita por sufrágio universal para uma legislatura de 5 anos. Senado (representa as unidades territoriais): eleito por sufrágio indireto, por seis anos, com renovação parcial a três anos. Conselho Constitucional – salvo as inerências, designados ⅓ pelo PR, pelo Presidente da Assembleia Nacional e pelo Presidente do Senado. § O eixo da vida política é o Presidente, já que é dele que na prática o governo depende, apesar de formalmente apenas ser responsável perante a Assembleia Nacional. O presidente: Preside ao Conselho de Ministros (art. 9.º da Constituição) Nomeia o Primeiro-Ministro e pode, por convenção constitucional, solicitar a sua demissão. Pode dissolver livremente a Assembleia Nacional Pode pedir ao Conselho Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis. Por outro lado, cabe ao Governo determinar e conduzir a política da Nação (Art. 20.º da Constituição), sendo que o Primeiro-Ministro deve dirigir a ação deste (Art. 21.º da Constituição). § Quanto aos direitos fundamentais, a Constituição francesa não dispõe de um catálogo destes, valendo ainda na França a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, complementada pelo preâmbulo da Constituição de 1946 e pelos direitos e deveres na Carta Ambiental de 2004. O Conselho Constitucional foi reconhecendo a relevância jurídica destes documentos. 22 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW § Quanto ao sistema eleitoral, a eleição para a Assembleia Nacional, e para o Presidente da República é o sistema maioritário uninominal a duas voltas. § Quanto ao sistema de partidos, até 2017 existiu um sistema multipartidário, com tendência à formação de dois blocos (um à esquerda e um à direita). § Quanto à fiscalização da constitucionalidade, existe na França, a cargo do Conselho Constitucional. 2.6. O CONSTITUCIONALISMO ALEMÃO Características da Constituição Alemã (atual) - Escrita: Lei Fundamental da República Federal da Alemanha - Rígida (em especial: cláusulas pétreas) - Constituição em sentido formal - Inicialmente, a Lei Fundamental de Bona de 1949 (Grundgesetz) foi feita para ser uma constituição provisória até à reunificação. Mas manteve-se. Características do Constitucionalismo Alemão. Segundo Jorge Miranda, as três constituições alemãs (1871, 1919, 1949) têm em comum: - Federalismo desigual. Representação diferente dos Estados consoante a sua dimensão – federalismo imperfeito. - Dualidade no executivo. Poder executivo, pelo menos formalmente, distribuído entre Chanceler e Chefe de Estado (claramente menos na vigência da Lei Fundamental de 1949) Contexto Histórico - Sacro Império Romano-Germânico § Origem no séc. XIX – desenvolve-se mais tarde, ao longo dos séculos, como meio de arbitragem entre Estados alemães, para preservar a paz entre eles. O Imperador é eleito por um conjunto restrito de eleitores (os príncipes eleitores). Gradualmente, torna-se só o imperador austríaco a ser eleito. § Com as invasões napoleónicas, os Estados alemães são obrigados a tomar partido por França ou Áustria e Prússia. § Em 1806, perante derrota dos Estados alemães, o SIRG é dissolvido. O Imperador Franz II abdica e declara a dissolução. - Em 1815, depois da queda de Napoleão, no Congresso de Viena, o número de Estado é reduzido a 39, que se associam numa confederação. § A Confederação Alemã visa a defesa interna (contra revoluções) e externa (contra invasões) dos seus Estados. § E exige aos seus Estados que adotem uma constituição – num termo muito vago que tanto poderia designar uma “constituição antiga” institucional, como uma constituição moderna. - O domínio das monarquias dualistas e de cartas constitucionais. Os Reis e príncipes alemães sabem que, para preservarem o seu poder, têm de realizar reformas, mesmo que graduais. § Ideia de soberania popular é vista como perigosa e subversiva; a revolução francesa é vista como causa de grande instabilidade e guerra. Assim, uma revolução na Alemanha tem de ser prevenida. § Desenvolvem-se monarquias dualistas, ao modelo da Carta Constitucional francesa de 1814 (e, em menor medida e mais tarde, da sua revisão na Constituição pactuada de 1830). Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 23 Uma monarquia dualista/limitada concilia a legitimidade monárquica e democrática. Ou seja, na prática, é quando, por exemplo, um monarca autolimita o seu poder, através do ato de outorgar uma constituição (neste caso, uma carta constitucional) § Nas monarquias dualistas, existem dois tipos de constituição: cartas constitucionais (dádiva unilateral do monarca ao seu povo) e constituições pactícias (pacto entre o monarca e o povo). São uma “generosidade” concedida por graça ao povo, para prover ao seu bem-estar – num contínuo com despotismo esclarecido. § É o Monarca que se autolimita no seu poder e reconhece direitos aos seus súbditos. No entanto: Formalmente, é o titular do poder legislativo; os parlamentos participam no seu exercício, mas a lei pode ser vetada e precisa sempre da sanção real (é visto como, pelo menos, colegislador) Em todas as matérias não tratadas na constituição, conserva os mesmos poderes. (notem: princípio monárquico – é o monarca que é soberano e o titular do poder político; é a legitimidade tradicional que legitima esse poder). Carta constitucionais alemãs são tratadas como documentos políticos, não de limitação jurídica efetiva do poder. As cartas constitucionais alemãs não fundam o poder político, apenas o disciplinam. Desenvolvimento de um princípio de reserva de lei – apenas regulação e limitação de liberdades e propriedade privada são matérias que devem ser tratadas por lei parlamentar: em tudo o resto, o monarca e o governo liderado pelo seu Chanceler pode governar por decreto regulamentar (sem qualquer lei). - Convenção de Frankfurt. Muitos jovens de toda a Alemanha tinham combatido nas guerras napoleónicas. § Espírito de união e afirmam ter lutado pelo seu Estado, mas pela liberdade e pela Alemanha enquanto tal. Sonham com a sua unificação política, num Estado liberal. § Os Estados alemães reprimem o liberalismo e o nacionalismo alemão. Proíbem associações de estudantes, impõem censura e reprimem associações, manifestações e reunião de defensores da unificação e do liberalismo (Decretos de Carlsbad – 1819) § Em 1848, protestos e manifestações em nome do liberalismo e da unificação nacional. Delegados de toda a Alemanha reúnem-se na Igreja de S. Paulo (Pailskirche) de Frankfurt, como Assembleia Nacional, e reivindicam a legitimidade para fazer uma constituição para a Alemanha. § Cria-se uma constituição liberal, com o Rei da Prússia como Imperador. § A Constituição da Igreja de S. Paulo fracassa e nunca será entrará em vigor. Por não haver qualquer experiência prévia de federalismo monárquico. Por ser inviável para os dois maiores Estados: - A Áustria é um Estado multinacional e não pode participar sem abdicar dos seus territórios não germanófonos. - O Rei da Prússia rejeita o convite para ser Imperador da Alemanha. Porque nunca o faria sem o consentimento dos príncipes soberanos alemães... e nunca aceitaria uma coroa dada por uma assembleia com pretensões de democraticidade. 24 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW - Unificação alemã § A Prússia mantém interesse na unificação dos Estados alemães, desde que fosse a Prússia e não a Áustria a liderar a Alemanha. § Promove a Confederação da Alemanha do Norte (1867), com políticas económicas comuns e união aduaneira. § Em 1870/71, Bismarck (PM prussiano) provoca declaração de guerra de França, sabendo que os Estados alemães vão acudir em sua defesa (até os Estados do Sul, historicamente mais liberais e mais próximos da Áustria). § Os Estados alemães têm uma vitória rápida e proclama-se o Império Alemão em 1871 – no Palácio de Versalhes. Guilherme I aceita o trono. - Constituição Imperial de 1871 § Monarquia dualista (Coexistência da legitimidade democrática e monárquica, com preeminência da segunda) § Estado federal § Não tem catálogo de direitos fundamentais – que se entende serem uma matéria para a soberania dos Estados federados. § Sistema de governo de chanceler, ou seja: O Imperador nomeia e demite, de sua livre vontade, um chefe de governo (chanceler), e pode demitir o parlamento. Chanceler apenas depende da confiança do Imperador, não do parlamento. Dualidade no executivo: o Imperador e o Chanceler partilham o poder executivo – e o Imperador exerce-o, efetivamente, até ao final da I Guerra Mundial. § Clara hegemonia prussiana: O Imperador é o Rei da Prússia (o maior dos Estados) Maior representação no Conselho Federal (câmara do parlamento onde os estados estavam representados) Na prática, o Chanceler tende a ser o Primeiro-Ministro prussiano (Bismark por ex.) Confusão entre Interesses do Império e interesses da Prússia (muitos Estados descontentes com isso). - A Constituição de Weimar (1919) § Imediatamente depois do fim da I Guerra Mundial, na sequência da revolução de novembro (1918-1919), o Imperador Guilherme II abdica. § Devido à grande instabilidade em Berlim, reúne-se uma assembleia constituinte na cidade de Weimar. § Características desta Constituição Federalismo desigual República Federal Presidente diretamente eleito. É um “Ersatzkaiser” – um “sucedâneo de Imperador” – e há dualidade no executivo (Presidente e Chanceler) § O Presidente é considerado o “defensor da Constituição” – cabe-lhe exercer poderes para garantir que os órgãos do poder político funcionam de modo estável e em obediência à Constituição. As suas funções são: - Nomear o Chanceler. - Pode dissolver o Parlamento - Tem poder de voto Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 25 - Pode decretar medidas de emergência para restabelecer segurança e a lei, se necessário suspendendo direitos fundamentais. Maior relevo do Parlamento (Reichstag) com o intuito de tornar a Alemanha mais democrática. Governo, presidido pelo Chanceler, é politicamente responsável perante o Parlamento e o Presidente. § Primeira Constituição a consagrar direitos económicos, sociais e culturais. Obriga o Estado a desenvolver políticas sociais na saúde, segurança social, educação, entre outros. - A tomada de poder (1933) § Presidente Hindenburg nomeia Hitler como Chanceler – o partido nacional-socialista (NSDAP) tinha sido o mais votado nas eleições. § Incêndio do Reichstag – Hindenburg declara estado de exceção. Suspendem-se direitos fundamentais como propriedade, liberdades de associação, de expressão e de reunião, e a liberdade em geral. § Lei da Habilitação (Ermächtigungsgesetz) – Governo pode legislar sobre as matérias que quiser, mesmo contrariando a Constituição. § Em julho, todos os restantes partidos são proibidos e o NSDAP concorre às eleições federais sozinho – ganha todos os assentos parlamentares. § Em 1934 Hitler concentra em si mesmo as funções de Presidente e de Chanceler. Abolição dos Estados federados (torna-se Estado Unitário); o Governo passa a ter poder para criar direito constitucional § Rapidamente acaba a separação dos poderes, a independência dos tribunais, da vinculação do Estado a direitos fundamentais; NSDAP domina todo o aparelho de Estado, todas as organizações da sociedade civil. - Totalitarismo nacional-socialista § Povo definido em termos étnicos/raciais – arianos formam a Herrenrasse (raça- mestre); perseguição dos judeus alemães através das Leis de Nuremberga (1935). Mais tarde dá-se o seu genocídio. § Negação total do valor intrínseco do indivíduo. Não existem direitos fundamentais. Não-arianos perseguidos, mortos. Pessoas portadoras de deficiência “eutanasiadas”. § Absorção de todo o Estado (e da sociedade) pelo partido nazi. § Poder concentrado e hierarquizado, partindo da pessoa do Líder Supremo (Führer), que corporiza o poder da nação, tem poder absoluto e ilimitado, e ao qual todo o povo deve a sua lealdade. § Antiliberal, anticomunista, antidemocrático. § A nação alemã deve conquistar mais “espaço vital” para crescer. - Após a II Guerra Mundial: a Lei Fundamental de Bona § A Alemanha é dividida entre República Democrática Alemã (ditadura socialista) e República Federal da Alemanha (reunificação só em 1990). A RFA adota uma nova constituição – a Lei Fundamental de Bona (Grundgesetz) – em 1949, que teve de passar pelo crivo dos aliados. Sistema muito exigente de direitos fundamentais, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana, os quais vinculam todas as entidades públicas e poderes do Estado. Estado federal (de novo, com representação desigual dos Estados no Conselho Federal) 26 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW Sistema de governo parlamentar racionalizado (moção de censura construtiva e investidura parlamentar do Chanceler, que lidera o Governo Federal). Governo responde politicamente perante o Bundestag. Tribunal Constitucional com competência para declarar a inconstitu- cionalidade, com força obrigatória geral, de leis; e para receber “recursos de amparo” – proteção direta de cidadãos cujos direitos fundamentais tenham sido violados. - Na Grundgesetz estava estabelecido que esta estaria em vigência até à unificação da Alemanha, e que, à posteriori, teria de ser constituída uma nova constituição. § No entanto, após a queda do muro de Berlim, e a reunificação da Alemanha, não se elaborou a Constituição e a Lei Fundamental estendeu-se a todo o território, mantendo-se como documento máximo. Grandes legados do Constitucionalismo Alemão - Desenvolvimento da ideia de Estado de Direito (Rechtsstaat) que hoje serve de modelo a muitos países (incluindo Portugal) § Tem origem na Alemanha, no início do séc. XIX: a burguesia tem poucas possibilidades de influência efetiva no exercício do poder político (parlamentos são apenas colegisladores nas monarquias dualistas e os monarcas impõem-se em tudo o que não estiver sujeito a reserva de lei) § Portanto, pelo menos, desenvolve-se a exigência de que os cidadãos possam organizar minimamente a sua vida – em particular, vida económica – com leis claras, de aplicação previsível, que limitem a administração pública. § Ou seja: o princípio da legalidade tem fins garantísticos, de proteção do indivíduo. § (Principal autor – início do séc. XIX – Robert von Mohl) - Estado social de direito – É na Alemanha que se começa a ultrapassar o paradigma do Estado mínimo. § Bismarck já tinha iniciado a sua Sozialpolitik (assistência social, idade de reforma obrigatória, sistema de saúde baseado em seguros) mas eram direitos consagrados na lei. § Constituição de Weimar é a primeira a consagrar direitos sociais e culturais enquanto direitos fundamentais: assistência social, direito ao trabalho, cuidados de saúde, apoios à maternidade e aos idosos, escolaridade obrigatória, escolas gratuitas, apoio do Estado à ciência e artes... - Influência do princípio da dignidade da pessoa humana, e da sua compreensão doutrinária, no constitucionalismo de muitos Estados § Art. 1.º da Grundgesetz (1) A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público. (2) O povo alemão reconhece, por isto, os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo § Reconhecimento do caráter único, irrepetível, insubstituível, intrinsecamente valioso de todo o indivíduo, cuja autodeterminação nas suas escolhas e projetos de vida tem de ser respeitada, e que não pode ser degradado. § Günter Dürig: “fórmula do objeto” – a dignidade será violada quando o homem for convertido num mero objeto ou meio para conseguir um fim (é utilizada na jurisprudência do nosso TC). § Art. 1.º CRP: “Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana”. Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 27 § Acórdão do TC português n.º 951/96: “a nossa Lei Fundamental assenta na dignidade da pessoa humana, que é o fundamento de todo o ordenamento jurídico, base do próprio Estado”. - Doutrina e jurisprudência constitucional no pós-Guerra em matéria de direitos fundamentais § Sofisticação teórica crescente durante a vigência da Lei Fundamental de 1949; métodos e teorias relativos à restrição de direitos fundamentais e das normas que os consagram. Ex.: Alexy, Dürig, Häberle, Böckenförde... § Aperfeiçoamento de princípios como o da proporcionalidade, como decorrência do princípio do Estado de Direito. § O Tribunal Constitucional Federal é uma instituição altamente respeitada na Alemanha e a sua jurisprudência é seguida e estudada com atenção em muitos países. Podemos Classificar a Alemanha dizendo o seguinte: - O seu regime político é uma democracia representativa. - Forma de Governo: República (o Chefe de Estado é designado indiretamente pelo próprio parlamento) - Forma de Estado: Estado Federal (com representação desigual) – Estados Federados (16 Länder) enviam representantes ao Bundesrat cujo número é proporcional à população do estado federado; os delegados ao Bundesrat são designados pelos governos dos Estados federados. - Sistema de Governo: Parlamentar – Chefe de Estado simbólico (Presidente Federal); Governo Federal responde politicamente perante o Bundestag; moção de censura construtiva, aprovada por maioria absoluta; Parlamento bicamaral: Bundestag (representa o povo alemão como um todo) e Bundesrat (representa os Estados Federados) - Sistema eleitoral: os delegados ao Bundesrat são designados indiretamente pelos governos de cada Land; nas eleições ao Bundestag cada cidadão tem 2 votos (sistema misto): um voto para o seu círculo eleitoral uninominal em que partidos têm o seu candidato único, e um segundo que elege em termos proporcionais a lista partidária. - Sistema partidário: multipartidário. 2.7. O CONSTITUCIONALISMO PORTUGUÊS 2.7.1. A CONSTITUIÇÃO DE 1822 Portugal encontrava-se sobre o regime de Monarquia Absoluta. No entanto, o Rei D. João IV encontrava-se no Brasil. O Reino de Portugal encontrava-se sobre um protetorado britânico dirigido por William Beresford. Depois de conspirações fracassadas, deflagrou em 1820 uma revolução contra o absolutismo e contra o protetorado, liderada pelo “Sinédrio”. - Desta revolução resultou uma Junta Provisional do Governo Supremo do Reino que determinou a eleição de Cortes Extraordinárias Constituintes por voto censitário. - Assim nasceu o constitucionalismo moderno português. 28 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW Antes de deliberar-se a Constituição de 1822, D. João IV foi forçado a jurar o decreto que continha as bases da nova Lei Fundamental e que orientou a atividade das Cortes Constituintes. - Tratou-se de uma forma democrática representativa de exercício do poder constituinte, que se desdobrou em 2 momentos: o juramento das bases e a aprovação final do documento pelas Cortes. Foi a Constituição espanhola de Cádis, texto liberal e democrático-radical, que inspirou a Constituição portuguesa de 1822. Esta Constituição adotou um texto com compromissos entre o tradicionalismo – presente na subsistência da monarquia e na relação com a Igreja Católica – e entre as correntes liberais e democratas-radicais, que predominavam na modulação do poder. A Constituição consagrava um regime monárquico representativo, que se baseava num modelo de tripartição e separação de poderes (art. 30.º). - O Rei, designado por sucessão hereditária, era politicamente irresponsável, titular do poder Executivo e dispunha de veto suspensivo sobre as leis aprovadas pelas Cortes. A fonte da sua autoridade residia na soberania nacional (art. 121.º) - O Parlamento, designado por Cortes, era unicameral e eleito bienalmente, por voto censitário (quem votava tinha de ter bens provenientes de atividades económicas) e capacitário (não tinham capacidade eleitoral ativa: as mulheres, os analfabetos, criados, vadios, entre outros) § Estas Cortes reuniam-se durante 3 meses por ano e integravam representantes do Brasil e de outros territórios ultramarinos. § Eram titulares do poder legislativo e diversas competências políticas relevantes – designavam um tutor para um rei menor, nomeavam o Regente, aprovavam tratados de defesa, lançavam impostos, autorizavam empréstimos). - O poder jurisdicional estava entregue aos Tribunais e cabia ao Rei nomear os magistrados. - Neste sistema político, a instituição dominante eram as Cortes, e o Monarca tinha um papel diminuído. Esta Constituição manteve o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. No Brasil existia uma delegação do executivo atribuída a uma regência. Em termos de direitos fundamentais, registava-se uma influência da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Existiam diversos deveres e uma predominância de garantias (inviolabilidade de domicílio, sigilo de correspondência, abolição de penas cruéis, entre outros) sobre direitos e liberdades. Para além disso, consagrava-se a liberdade de culto a estrangeiros, a liberdade de expressão (ainda que fosse permitida a censura eclesiástica), direito de eleger procuradores às Cortes, liberdade de ensino e igualdade perante a lei. Constituição de tipo utilitário. Cabia às Cortes a fiscalização da constitucionalidade das leis (I do art. 102.º). Esta Constituição não vigorou praticamente, em virtude da revolta da “Vila Francada” de 1823. D. João IV acabou por ser forçado a dissolver as Cortes e a revogar a Constituição, tendo sido nomeada uma Junta Preparatória para elaborar uma carta constitucional. No entanto, após nova revolta legitimista – a “Abrilada” em 1824, a Junta Preparatória de Palmela é dissolvida, retornando às leis tradicionais do Reino, enquanto o Brasil se separava de Portugal. Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW 29 2.7.2. A CARTA CONSTITUCIONAL DE 1826 Contextualização histórica - Morre D. João IV, e D. Pedro foi aclamado Rei de Portugal, tendo optado por abdicar do trono em favor da sua filha, sob condição desta contrair casamento com o seu tio, Infante D. Miguel, líder da corrente absolutista, ficando até lá ele como Regente do Reino. - Para selar o compromisso político, D. Pedro outorgou uma Constituição aos portugueses. A Carta espelhava um efetivo equilíbrio entre o tradicionalismo e o liberalismo. Forma de exercício do Poder Constituinte: outorga - OUTORGA – Manifestação Constituinte autocrática e unilateral do monarca, própria dos regimes dualistas. - O Rei aceita autolimitar o seu poder absoluto, decretando uma Constituição e doando-a aos súbditos. - Por ser outorgada, tem a designação de Carta Constitucional. As fontes cognitivas desta foram a Carta brasileira de 1824, a Carta francesa de 1813 e o constitucionalismo britânico. A Carta consagrava um regime monárquico de tipo dualista e um sistema político marcado pelo poder moderador do Rei. - Tendo a Constituição sido outorgada, o regime de alteração constitucional envolveu maior protagonismo da Câmara de Deputados, potencializando uma dualidade de legitimidades: a monárquica e a democrática. O Monarca enquanto um dos ramos do legislativo também reforça esta matriz dualista. - O Rei detinha o “poder moderador”, que o situava como instância “reguladora”, acima das restantes instituições, reforçando o seu protagonismo como órgão dominante. § Este poder permitia ao Rei, no contexto da Carta (art. 74.º): Quanto ao Executivo, nomear e demitir os ministros. Quanto ao Legislativo, nomear pares, sancionar ou vetar leis e dissolver a Câmara dos Deputados, quando o exigisse a “salvação do Estado”. Quanto ao jurisdicional, suspender magistrados e conceder perdões e amnistias. - O Rei era igualmente, chefe do Executivo. O poder legislativo era exercido pelas Cortes, com uma estrutura bicamaral, integradas por uma Câmara de Pares (nomeados pelo monarca, sem número fixo) e por uma Câmara de Deputados (eleitos por voto indireto, censitário e capacitário, por um mandato de 4 anos). O poder judicial era qualificado como um poder independente, sendo composto por juízes e jurados. Em termos de direitos fundamentais, a Carta era uma constituição utilitária. Haveria um maior equilíbrio na Carta entre direitos e garantias, por contraposição à Constituição de 1822. Como novidades relativas à esfera dos direitos, destaca-se a liberdade religiosa para todos e a limitação da censura eclesiástica. Em termos de garantias, destaca-se o princípio da legalidade penal. No plano social preveniu-se a gratuitidade da instrução primária e a criação de um sistema de socorros públicos. As revisões constitucionais operam através de atos adicionais deliberados pelas Cortes e sancionados pelo Rei. A fiscalização da constitucionalidade das leis era exercida através das Cortes e do Monarca. Quanto à vigência da Carta, temos a dizer: - Primeira vigência: Julho 1826 – Maio 1828 - O Regente D. Miguel proclamou-se Rei pelos “Estados do Reino”, que aboliram a Carta Constitucional. 30 Francisco de Jesus Direito Constitucional NOVA SCHOOL OF LAW - Segunda Vigência: 1834 – 1836 - Depois da Morte de D. Pedro, que, entretanto, tinha abdicado da coroa do Brasil e sido entronado Rei de Portugal, uma revolução de democratas-radicais dirigida por Marechal Saldanha pretendeu repor em vigência a Constituição de 1822. - Terceira vigência: 1842 – 1910 - Em vigor até à revolução republicana de 1910 que derrubou a monarquia. Foi a Constituição de maior longevidade. 2.7.3. A CONSTITUIÇÃO DE 1838 Contextualização histórica - Entre 1834 e 1835, o Governo é sistematicamente obstruído pelos radicais-democratas de Manuel da Silva Passos. § Isto gera fortes tensões entre as fações liberais que ganharam a guerra civil. - Devido à instabilidade política, a Rainha dissolve em 1836 a Câmara dos Deputados, e segue-se um golpe militar, conhecido como “Revolução Setembrista”. - Os revolucionários governam em ditadura, com a direção de Passos Manuel, e repõem a Constituição de 1822, sendo que a sua vigência é meramente simbólica, já que a maioria das leis em vigor concretizava disposições da Carta Constitucional. - É convocada nova Assembleia Constituinte, no mesmo ano, para refazer outra Constituição que pretendia ser um compromisso entre cartistas e vintistas. Forma de exercício do poder constituinte - Forma pactícia de exercício do poder constituinte, na medida em que a aprovação da Constituição resultava de uma concertação entre 2 tipos de legitimidade: democrática- representativa, vinda das Cortes Constituintes que redigiram o texto, e a monárquica, que