A República Revisitada PDF

Summary

This book, A República Revisitada, examines the construction and consolidation of the Brazilian republican project from 1889 to 1891. It analyzes the historical context of the period and focuses on the political and social dynamics shaping the early years of the Republic. This well-researched book offers a deep dive into this crucial stage of Brazilian history.

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O MOMENTO OLIGÁRQUICO: A CONSTRUÇÃO INSTITUCIONAL DA REPÚBLICA (1889-1891)1 CHRISTIAN EDWARD CYRIL LYNCH Nenhuma das constituições brasileiras foi cercada de tantas expectativas quanto aquela que primeiro serviu de marco legal à República. Quando, no...

O MOMENTO OLIGÁRQUICO: A CONSTRUÇÃO INSTITUCIONAL DA REPÚBLICA (1889-1891)1 CHRISTIAN EDWARD CYRIL LYNCH Nenhuma das constituições brasileiras foi cercada de tantas expectativas quanto aquela que primeiro serviu de marco legal à República. Quando, no fim do Império, os republicanos democratas volviam os olhos para a vizinha Argentina, ficavam extasiados com o seu crescimento econômico e o atribuíam ao seu modelo constitucional, elaborado à imagem e semelhança dos Estados Unidos. Para eles, a Constituição do Império continha um vício de origem: o fato de ter sido outorgada por Pedro I depois da dissolução da Constituinte. Agora seria diferente. Derrocada a monarquia unitária que supostamente entravava o progresso e adotada a república federativa, legitimada por uma Constituição elaborada pelos representantes do povo, o país seria refundado. A Constituição de 24 de fevereiro de 1891 preparava o país para uma era de democracia, grandeza e prosperidade, que nos associava definitivamente ao movimento do continente. O principal autor do anteprojeto constitucional enviado pelo Governo Provisório àquela assembleia havia sido Rui Barbosa, o mais legítimo dos liberais brasileiros, jurisconsulto prodigioso. No entanto, o exercício do poder da Primeira República foi marcado pelo autoritarismo que lhe imprimiram as forças que a instauraram – o Exército e a aristocracia rural: primeiro, na forma de um militarismo positivista; depois, pelo conservadorismo oligárquico. Estabilizado depois de 1898, o regime se acomodou como um arranjo das oligarquias estaduais coordenado pelo Presidente da República – a Política dos Governadores – cujo objetivo era a estabilização do sistema à custa do pluralismo político, garantindo maiorias congressuais dóceis ao Presidente em troca de seu respeito às oligarquias que dominavam as situações estaduais. Antes mesmo da República, já havia quem destacasse sua vocação oligárquica. Era o caso de Joaquim Nabuco. Para ele, o republicanismo, como uma campanha orquestrada pelas elites insatisfeitas com o reformismo social monárquico para instaurar o regime oligárquico, era assim analisado: “Ninguém, mais do que eu, reconhece o que há de patriótico e elevado na concepção republicana do Estado, mas não posso me iludir no caso presente: o atual movimento republicano é um puro efeito de causas acumuladas que nada têm de republicanas; é uma contra-revolução social”2. Para Nabuco, uma república brasileira não poderia produzir efeitos democráticos ou republicanos para além das aparências constitucionais. Num país que acabava de sair da escravidão, hierárquico, analfabeto e rural, a república democrática era uma quimera: bastava observar o que se passava em todas as repúblicas ibero-americanas, que oscilavam entre a anarquia e a oligarquia. O bom governo em sociedades atrasadas exigia uma instância suprema de poder político descolada das facções oligárquicas, capaz de garantir o pluralismo e o bem comum. Entregue o poder diretamente às elites, estas se construiriam em oligarquias, que dominariam a nova república e a ela imprimiriam sua direção conservadora e autoritária. Porque “as oligarquias republicanas, em toda a América, têm demonstrado ser um terrível impedimento à aparição política e social do povo”, Nabuco declarava estar “com o povo defendendo a Monarquia, porque não há na República lugar para os analfabetos, para os pequenos, para os pobres”3. Por isso, ele desenganava os republicanos de boa-fé: “Em países do nosso tipo, sob a forma republicana, nunca um partido cairá do poder senão pela revolução. Só do campo da guerra civil, das barricadas das cidades, poderão surgir novas situações políticas. O voto não vale nada”4. O vaticínio de Nabuco se revelou profético: pouco mais de um ano depois de promulgada a Constituição, às voltas com o arbítrio da ditadura florianista e os efeitos do primeiro estado de sítio, flagrantemente inconstitucional, o senador Amaro Cavalcanti reclamava “a Constituição como lei viva, não como letra morta”5. Aquela não era a república com que haviam sonhado. Já as oligarquias republicanas favorecidas pela ditadura florianista aderiam decididamente ao regime autoritário; da tribuna, antigos republicanos históricos, como Campos Sales, renunciavam ao antigo radicalismo para se declararem conservadores e defensores do princípio da autoridade: Por minha parte, também direi que esta não é a República que eu sonhava; mas, com uma diferença: nunca me passou pelo espírito a fantasia de ver a República com que sonhava, perfeitamente organizada dentro de tão pouco tempo depois da destruição da Monarquia. Não é esta a república que eu sonhava, mas, é este seguramente o caminho por onde se há de chegar a fazê-la; é através dessas dificuldades, dessas agitações, de todas essas comoções, que nós havemos de chegar ao regime definitivo da forma republicana em nosso País. Mas, para isso [...], o meio principal, senão o único, é dar força a esta entidade que representa uma sentinela ao lado da República – o governo do País. Pela minha parte, declaro que presto apoio absoluto e incondicional a este governo, ao qual não pedi e não pedirei outra coisa senão que tenha coragem, resolução e energia para manter a ordem e a paz públicas, e para garantir a estabilidade das instituições republicanas6. De fato, desde pelo menos a Revolta da Armada, a Constituição ficou prisioneira de uma interpretação conservadora que propositadamente deixava fluidos os limites de seus comandos fundamentais para que fossem aplicados conforme a conveniência do situacionismo oligárquico. Afora as inúmeras tentativas de golpe contra o establishment, houve três insurreições armadas nos primeiros vinte anos do regime, só na capital federal – as revoltas da Armada (1893), a da Vacina (1904) e da Chibata (1910). Em praticamente todos os estados, quando não se resolvia pela fraude, a violência da luta política se manifestava em conflitos entre milícias privadas ou privatizadas, bombardeios navais às capitais (como em Salvador, em 1911, e Manaus, em 1912) em massacres de autoridades com a conivência das forças federais (como no Mato Grosso, em 1906). Rebeliões de caráter místico-monárquico, como Canudos (1897) e o Contestado (1914), eram dizimadas em campanhas de guerra, com saldo de milhares de mortos. Longe de a situação se estabilizar no decorrer dos anos, concedidos sempre por um Legislativo de obedientes clientes, o estado de sítio e a intervenção federal se tornaram expedientes ordinários empregados pelo Presidente da República com a anuência do Congresso Nacional para superar a resistência dos opositores do establishment oligárquico e preservar o situacionismo. Durante a Primeira República, o estado de sítio seria decretado onze vezes: vigorou na capital do País durante 17 % de todo o período. Entre 1889 e 1930, por sua vez, o Governo Federal interviria oficial ou oficiosamente pelo menos quinze vezes nos estados da federação. O que dera errado? A interpretação longamente hegemônica, produzida depois de 1930 pelos revolucionários vitoriosos, reiterou a versão dos fatos produzida por Rui Barbosa, segundo a qual o projeto republicano originário teria um propósito verdadeiramente liberal democrático, frustrado, entretanto, pela interpretação conservadora que lhe conferiram as elites políticas por intermédio de políticos como Campos Sales e Pinheiro Machado. O intento deste texto é, ao contrário, demonstrar que, a despeito da clivagem entre liberais e conservadores, ambas as correntes não partilhavam de uma concepção republicana mais ou menos aristocrática. Para tanto, me limitarei, neste capítulo, a descrever o vetor autoritário e oligárquico pelo qual o governo provisório encaminhou a organização do novo regime, bem como a reiteração, na Constituinte, de uma visão aristocrática da vida republicana. 1. O GOVERNO PROVISÓRIO: OS DECRETOS NORTEADORES, O ANTEPROJETO CONSTITUCIONAL E A MODELAGEM DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Vitorioso o golpe militar que instaurou a República, foi editado, para institucionalizá-la provisoriamente, o Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889. Ele foi precedido de uma proclamação do Governo Provisório que tentava justificar como produto da “perfeita comunhão de sentimentos” entre o povo, o Exército e a Marinha o golpe que depusera a dinastia e extinguira a monarquia. Embora timbrasse em apresentar o novo governo como agente “da paz, da liberdade, da fraternidade e da ordem”, a proclamação mandava fechar o Congresso Nacional. A ditadura era introduzida, porém, a título de implantar um governo mais liberal e democrático que o anterior, promessa contida já na designação do novo regime de governo, no referido Decreto nº 1, como “república federativa” (art. 1º). As antigas províncias, por suas vezes, passavam à condição de estados, para formar, em seu conjunto, os Estados Unidos do Brasil (art. 2º). Esses estados eram qualificados como detentores de “legítima soberania” (art. 3º), expressão que, como veremos, oporia republicanos ultrafederalistas e liberais unionistas no Congresso Constituinte. Os três artigos seguintes instituíram legalmente o “Governo Provisório da República” e previram regras para que, em caso de reação monarquista, ele pudesse intervir militarmente nos estados. O art. 7º previa que a República deveria ser confirmada pelo “pronunciamento definitivo do voto da Nação livremente expressado pelo sufrágio universal”, ideia logo deixada de lado. Depois do Decreto nº 1, outros decretos também foram editados versando sobre matéria constitucional – como o de n. 6, que confirmou o sufrágio universal masculino como novo critério de eleição dos futuros representantes políticos, em substituição ao voto censitário. Na prática, a ampliação da esfera pública foi praticamente nula, porque não revogava a proibição do voto do analfabeto que, introduzido na esteira da reação aristocrática contra a autonomia da Coroa, fora a responsável em 1881 pela redução abissal da participação eleitoral. O Decreto nº 7 mandou fechar as assembleias legislativas estaduais e fixou as competências dos governadores, tarefa típica das constituições federais. A forma colegiada de atuação dos integrantes do novo governo, seguindo as práticas parlamentaristas da monarquia, manifestava principalmente a desconfiança recíproca no interior da própria coligação civil e militar que patrocinara o golpe de Estado. A coalizão reunira elementos que, por uma questão de oportunidade, haviam se juntado para ajudar a derrubar a monarquia unitária, mas que pouco tinham a ver entre si. O governo reunia generais como Deodoro e Floriano, inclinados à ditadura pura e simples; militares e civis positivistas, como Benjamin Botelho e Demétrio Ribeiro, propensos a uma democracia autoritária; aristocratas rurais pretensamente radicais, mas de vocação conservadora, como Campos Sales e Francisco Glicério, que aspiravam a uma república oligárquica como a Argentina, e jornalistas até então liberais, como Aristides Lobo e Quintino Bocaiúva, que logo passariam para o campo conservador. Monarquista até a véspera do golpe militar, Rui Barbosa compensou o fato de não ser militar nem republicano histórico graças à ciclópica cultura jurídica e administrativa, com o que manteve a ascendência sobre Deodoro e manobrou para que a ditadura fosse, dentro do possível, um breve interregno para a organização democrática e liberal da nova República. Sua conduta liberal e absorvente causou crises que resultaram na retirada de colegas e na eterna antipatia de outros, como o conservador Campos Sales. Ministro da Justiça e irmão de Alberto, Campos Sales seria o grande artífice do conservadorismo oligárquico da Primeira República e, como tal, adversário político de Rui, campeão da causa perdida do liberalismo urbano7. No seio do Governo Provisório já começava a larvar, pois, a tensão entre o conservadorismo latente do Ministro da Justiça e o liberalismo ostensivo do Ministro da Fazenda, que encarnariam os dois polos ideológicos antagônicos em que se dividiria a interpretação constitucional do novo regime. Naquele momento, todavia, uns e outros precisavam da recíproca colaboração para atingir objetivos comuns. O primeiro deles, que era garantir o novo regime contra a reação monárquica, foi alcançado por uma legislação draconiana contra a liberdade de expressão, pelo empastelamento de jornais e pela edição de um regulamento eleitoral que impediria, pela intervenção do governo, a eleição de monarquistas para a Constituinte8. O segundo objetivo comum foi impor o modelo institucional norte- americano contra o grupo positivista, convocando uma comissão para elaborar o projeto constitucional comprometida com o arquétipo institucional norte-americano. Assim, o Decreto nº 29, de 3.12.1889, nomeou uma comissão de cinco juristas – Saldanha Marinho, Américo Brasiliense, Santos Werneck, Rangel Pestana e Magalhães de Castro –, a maior parte dos quais vinculados à grande propriedade rural. O anteprojeto foi revisto por Rui Barbosa em 25 dias a pedido de todos os ministros para que, em conjunto, pudessem solidariamente impô-lo a Deodoro, que continuava a pensar conforme os cânones político-institucionais da monarquia que derrubara, pressionando pela possibilidade de dissolução da Câmara dos Deputados por um Chefe de Estado irresponsável e a organização de um Judiciário unitário9. Vencido Deodoro, o anteprojeto foi promulgado pelo Decreto nº 510 como Constituição Provisória da República, a 22 de junho de 1890. A Constituição Provisória era uma tentativa consciente dos atores republicanos de romper a autonomia do Estado sobre a sociedade e a hegemonia da moldura intelectual francesa para lhe sobrepor a norte-americana; na prática, isso foi feito substituindo-se o unitarismo pelo federalismo (art. 1º), o parlamentarismo pelo presidencialismo (art. 39), a dualidade entre justiça administrativa e justiça comum por um judiciário uno e autônomo (art. 54), o tribunal de cassação por um supremo tribunal soberano (art. 55) e o poder moderador do chefe do Estado pelo controle jurisdicional da constitucionalidade (art. 58, § 1º, alíneas a e b). Na confecção desse anteprojeto, a atuação de Rui Barbosa foi fundamental. Ele fez umas poucas alterações no modelo constitucional estadunidense, tendo em vista, basicamente, a evolução política daquele país desde 1787. Com receio da deficiente educação do povo, ele também adotou a eleição indireta para presidente e senadores; para evitar que as eleições presidenciais fossem tumultuárias, fixou uma duração mais longa, de seis anos, para o mandato presidencial. Receoso de que o Presidente manipulasse o Supremo Tribunal, fixou seu número de integrantes na Constituição; temendo o excesso de federalismo, fortaleceu a União, concedendo-lhe o poder de emitir moeda, a propriedade das terras devolutas e a competência para legislar sobre direito civil, penal e processual. Com o propósito firme de transplantar fielmente as instituições anglo-americanas, com um olho na Constituição da Argentina, Rui se valeu de toda a sua expertise em direito público para reescrever o anteprojeto da comissão dos cinco, modificando-o para além de seu estilo ao enxertar novas normas, consagrar novas instituições e aprimorar a redação de quase todas as outras10. Ele melhorou os dispositivos referentes à intervenção federal, para permitir que os poderes judiciários e legislativos dos estados pudessem requisitá-la, e ao estado de sítio, frisando a necessidade de que o Congresso Nacional fiscalizasse os atos do governo. Quanto ao controle normativo da constitucionalidade, foi ele quem o enxertou no capítulo do Poder Judiciário, quase todo reescrito. Ficaram também por sua conta a inviolabilidade parlamentar e a ampliação da declaração de direitos, evitando que ela fosse inferior à da Constituição de 182411. A adoção do presidencialismo merece uma análise mais circunstanciada, por constituir uma aparente contradição com a campanha parlamentarista movida pela oposição liberal desde pelo menos 1862, e radicalizada desde 1868/1871, que justamente combatia o “poder pessoal”. Ao consagrar as doutrinas da separação dos poderes e dos freios e contrapesos, o arcabouço horizontal do projeto republicano ficava parecido com o da Constituição do Império, cuja primeira interpretação, no Primeiro Reinado e na Regência, respaldara o poder pessoal de Pedro I e do Regente Feijó – muito superior àquele exercido por Pedro II no quadro de um sistema parlamentar dualista; e que tanto havia sido criticado por Rui. A existência de um poder pessoal do chefe do Executivo, ao menos teoricamente, não era um problema para os conservadores agrários, que apreciavam um chefe de Estado forte, enérgico, capaz de manter a ordem social contra as reivindicações dos setores alijados. A rejeição do regime monárquico pelos senhores rurais havia radicado menos no caráter pessoal do governo, por eles apreciado, do que no fato de sentirem, desde o início do processo da abolição, em 1871, que aquele poder não vinha sendo empregado em seu benefício, ou seja, da ordem social, mas contra eles, desorganizando o trabalho da lavoura e subvertendo a hierarquia social. Daí o apoio dado então à campanha parlamentarista. Com a queda da monarquia e o advento de um presidente eleito, as coisas mudavam de figura. Como explicava Campos Sales, a vantagem de substituir a monarquia parlamentar pela república presidencial estava na conjugação de um governo forte e pessoal, de um lado, com sua responsabilidade direta frente aos representantes do latifúndio reunidos no Congresso, de outro. Ou seja, para ele, a república presidencial era a garantia de governo forte a serviço do establishment oligárquico12. Este não era o caso de Rui, liberal apaixonado pelo parlamentarismo que sucumbira ao presidencialismo por pura rigidez doutrinária. Embora acreditasse que, dado o histórico latino- americano, o sistema presidencial pudesse converter-se num veículo do arbítrio do Chefe do Estado, mas não vendo, por outro lado, o precedente anglo-americano de uma república federativa que comportasse a fórmula parlamentarista, Rui resistiu à tentação do hibridismo, para se render ao sistema presidencial13. Para ele, a elaboração constitucional exigia ortodoxia na transposição das instituições estrangeiras para o ambiente nacional. Além de envolverem contemporizações com o atraso político, as fórmulas híbridas aumentavam a imprevisibilidade do experimento e, com ela, o risco de um governo arbitrário. Daí que a boa Constituição não era a que correspondia ao estado sociocultural do povo, mas a que servia de bitola ou corretor ortopédico para aprumar o crescimento irregular do organismo social num caminho diverso daquele da liberdade. Se os valores morais da justiça eram universais e eternos, como ele acreditava, e encontravam nas instituições anglo- americanas sua mais acabada expressão, os povos atrasados precisavam urgentemente importá-las e praticá-las, para terem condições políticas de acelerar seu desenvolvimento. A ferramenta essencial para a adequada inoculação institucional do germe da liberdade num ambiente que lhe era hostil, como o brasileiro, era o direito constitucional comparado. O relativismo cultural, a história ou a intuição sociológica tinham pouca ou nenhuma relevância. Por esse motivo, Joaquim Nabuco o acusaria de ser não “um organizador, um criador de instituições, mas um copista de gênio”, “o jurista constitucional” do regime republicano14. A esperança de Rui era a de que as derivas autoritárias do governo presidencialista ou do Congresso fossem coibidas pelo Judiciário, cujo poder, por isso mesmo, tratara de fortalecer. Fixada sua competência para declarar a nulidade dos atos e leis incompatíveis com a Constituição e de julgar os conflitos entre os estados, e entre estes e a União Federal, o Supremo Tribunal Federal deveria exercer o papel “de um poder neutral, arbitral, terminal, que afaste os contendores, restabelecendo o domínio da Constituição”15. Entretanto, não era nova nem privativa dos republicanos a noção, corrente na época, de que o equivalente do Poder Moderador do monarca nas repúblicas presidenciais e federativas era uma Suprema Corte dotada de poderes para declarar a inconstitucionalidade das leis e dos atos normativos. Já em 1841, por exemplo, o liberal histórico Teófilo Otoni aludira a um “supremo Poder Moderador” que, detido pela Suprema Corte, teria o poder de declarar a inconstitucionalidade das normas nos Estados Unidos16; vinte anos depois, ele voltou a defender a tese de que o Judiciário brasileiro tinha ou deveria ter a mesma função17. Em 1870, foi a vez de Tavares Bastos definir o Judiciário norte- americano como “o grande Poder Moderador da sociedade, preservando a arca da aliança de agressões, ou venham do governo federal ou dos governos particulares”18. Por fim, a crer-se no depoimento do republicano Salvador de Mendonça, o próprio Imperador Dom Pedro II teria cogitado em 1889 criar um tribunal semelhante à Suprema Corte norte-americana para lhe transferir as competências do Poder Moderador19. Também não era nova a ideia de fortalecimento do Poder Judiciário. Pregando contra a justiça administrativa imperial, em 1869 Nabuco de Araújo e outros liberais haviam insistido que os juízes eram os únicos árbitros adequados das contendas individuais e mesmo eleitorais20. Tavares Bastos defendera em 1875 a entrega da magistratura de primeira instância às províncias ou, provendo os cargos por concurso, promover os magistrados por um processo que, envolvendo o Judiciário e o Legislativo, excluísse o Executivo21. Ao apresentar seu ministério em 1882, também o liberal Marquês de Paranaguá frisara a necessidade de emancipar o Judiciário da dependência do Executivo, de molde a inspirar a confiança dos partidos em sua neutralidade política22. O mesmo faria o primeiro-ministro liberal Lafaiete Rodrigues Pereira no ano seguinte, ao lembrar aos deputados que o Judiciário deveria ser fortalecido por conta da “idoneidade intelectual e moral do magistrado e sua perfeita independência pessoal”23. Em 1886 já estava no ar a possibilidade de se atribuir ao Supremo Tribunal de Justiça a verificação dos poderes dos parlamentares eleitos24. Por fim, em 1888, aquele tribunal já protestava contra a ingerência do Poder Executivo, em nome da igualdade entre os poderes políticos consagrada na Carta de 1824. Quando veio a República, portanto, estava mais do que pavimentado o caminho que levaria à substituição do Poder Moderador, de cunho estrutural, exercido pelo Imperador, por um controle normativo, exercido pelo Poder Judiciário. O papel do Supremo Tribunal Federal, que deveria exercer aquele controle em última instância e havia sido desenhado por Rui no anteprojeto, foi comentado doutrinariamente quatro meses depois, na exposição de motivos do Decreto nº 848, de 11.10.1890, que organizou a Justiça Federal. Neste ponto, Rui Barbosa e Campos Sales, editor do decreto, estavam de acordo em reproduzir na nova república o arcabouço judiciário norte-americano, com um sistema de dualidade da justiça – federal e estadual – em cuja cúspide houvesse um tribunal encarregado de preservar a integridade do ordenamento constitucional para salvaguardar os direitos fundamentais. A americanização do direito público brasileiro foi completada pelo art. 387 do mesmo decreto 848: dali por diante as doutrinas e os precedentes do direito norte-americano passavam à condição de fonte subsidiária oficial do direito público brasileiro. No Congresso Constituinte, haveria quem se apercebesse da envergadura dessas mudanças, como o deputado Gonçalves Chaves, que foi direto ao ponto: “O tribunal supremo é investido de um caráter eminentemente político, que dele faz o grande pilar da Constituição, uma espécie de Poder Moderador, destinado a manter o equilíbrio de todos os poderes da federação”25. E repetiria, noutra ocasião: “É o Poder Moderador da República”26. Era assim que a república substituía uma forma estrutural e política de controle constitucional por outra, de natureza jurisdicional e normativa. De fato, da leitura dos primeiros textos ou discursos produzidos pelos dois responsáveis pela jurisdição constitucional no Brasil – Campos Sales e Rui Barbosa –, percebe-se o relativo consenso que os unia acerca de sua natureza e de seus limites. Ambos destacavam, em primeiro lugar, o papel central que, munido daquela atribuição, passava o Poder Judiciário a exercer no quadro dos poderes políticos brasileiros. Ambos os descreviam, nesta qualidade, como uma espécie de novo e verdadeiro poder moderador da República, que vinha a substituir o outro, equivocado, e que se desviara no exercício de suas competências. Em 1890, na qualidade de ministro da Justiça, Sales destacava “o papel de alta preponderância” que Judiciário haveria de desempenhar no novo regime27. De sua parte, em 1892, Rui Barbosa também destacava a que, no novo regime, o Judiciário deveria exercer o papel “de um poder neutral, arbitral, terminal, que afaste os contendores, restabelecendo o domínio da Constituição”28. Os dois ministros também estavam de acordo a respeito do papel de defesa da constitucionalidade contra os excessos das maiorias, que o Judiciário federal estava agora chamado a exercer. Campos Sales destacava a dimensão antimajoritária da jurisdição constitucional: “A função do liberalismo no passado [...] foi opor um limite ao poder violento dos reis; o dever do liberalismo na época atual é opor um limite ao poder ilimitado dos parlamentos”29. Rui não destoava: para ele, a democracia americana, que os pais da república brasileira vinham emular, era “a realização política desse ideal das democracias limitadas pela liberdade, do número limitado pela lei, do indivíduo escudado contra a multidão, das minorias protegidas contra as maiorias”30. Entretanto, do relativo consenso em torno da jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal, não se deve inferir que Rui Barbosa e Campos Sales não tivessem concepções diferentes sobre o papel daquela Corte, decorrentes de seus diferentes projetos da república. Rui Barbosa destacava principalmente o papel do Supremo como guardião do Estado de Direito, isto é, dos direitos fundamentais dos cidadãos, contra os excessos do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Já para Campos Sales, a principal função do novo Poder Judiciário era a de manter o equilíbrio federativo, entendido como defesa das extensas prerrogativas dos estados contra as eventuais investidas da União. “Nunca houve em política o que mais me apavorasse o espírito do que a centralização do poder”, confessava Campos Sales31. A instauração de um sistema federativo centrífugo havia sido desde os tempos da propaganda republicana o supremo objetivo de Campos Sales (maior mesmo do que a própria mudança de regime, de monárquico para republicano); uma vez consagrado na Constituição, cumpria agora investir o Supremo Tribunal da missão de preservar aquele modelo, que preservava a autonomia das oligarquias estaduais, contra qualquer futura investida dos unionistas: Não é a diversidade de legislação, como erradamente pensam os nobres representantes, que tem criado a necessidade de colocar uma autoridade forte, mas isenta de interesses, entre as duas soberanias paralelas – a do Estado e a da União –, para evitar ou resolver os conflitos entre elas, obrigando cada uma a manter-se dentro das linhas que limitam o seu domínio. Compreenderam os americanos, no momento em que fundavam a sua pátria, que para vigiar a marcha e a conduta destes dois governos, desenvolvendo a sua ação paralela e exercendo as suas funções, lado a lado, em frente um do outro, para evitar conflitos e perturbações da ordem social, política e econômica, e recíprocas invasões, quer dos Estados entre si, quer entre estes e a União, compreenderam, repito, que era necessário colocar de permeio um tribunal, precisamente para evitar que as contendas suscitadas fossem resolvidas, não à luz do direito federal, mas pelo espírito parcial ou pela força prepotente de uma das soberanias32. 2. OS DEBATES DO CONGRESSO CONSTITUINTE: REPUBLICANOS ULTRAFEDERALISTAS CONTRA LIBERAIS UNIONISTAS Enquanto providenciava a confecção do anteprojeto constitucional, o quadro político tornava-se muito delicado para o Governo Provisório. O câmbio baixava, a inflação subia e, com ela, o custo de vida, o que agravava sobremaneira o descontentamento geral. Como o governo precisava de dinheiro para cooptar os chefes políticos reticentes à República e aumentar sua base de apoio, ele teve de criar novos cargos, conceder aumentos a todo o funcionalismo, de aumentar as linhas de crédito para que os bancos emprestassem aos fazendeiros e aos empresários. A origem da República em um golpe militar criara um ambiente de desconfiança junto aos credores internacionais e, uma vez que não havia dinheiro suficiente para fazer frente a todos esses novos compromissos, a saída encontrada por Rui foi a de emitir papel-moeda. O resultado foi a famosa crise do Encilhamento, que agravou a crise financeira já em vigor. Somada às guerras civis dos anos subsequentes, exigindo o crescente endividamento, e a baixa dos preços do café, a crise financeira e econômica levaria o País à beira da insolvência33. Para piorar, o regime republicano era impopular no Rio de Janeiro, onde o grosso do povo continuava monarquista34 e agiam livremente muitos destacados políticos da monarquia, como Joaquim Nabuco, Ouro Preto, João Alfredo, Lafaiete, que pela imprensa combatiam o autoritarismo, a censura, o descalabro financeiro e o empastelamento de jornais pelo governo ou com apoio governamental. O medo do Governo Provisório de uma reação do povo ou de seus desafetos quando da abertura do Congresso levou seus integrantes a deliberarem medidas que podassem os poderes, a composição, o tempo e até mesmo o lugar onde os constituintes deveriam se reunir, de modo a garantir que eles se limitassem a chancelar o anteprojeto que lhes seria enviado. O objetivo das medidas era o de cumprir formalmente o ritual democrático do poder constituinte, esvaziando-o, porém, de qualquer efetividade, para não correr o risco de surpresas desagradáveis ou de oferecer palanque e tribuna aos seus adversários. Antecipavam, assim, o espírito que prevaleceria na interpretação dos dispositivos democráticos e liberais da Constituição durante toda a Primeira República: esvaziar no conteúdo o que se consagrava na forma. Campos Sales, Ministro da Justiça, sugeriu suspender a convocação da assembleia, achando “mais simples e seguro” que o governo a outorgasse. Defendia assim o procedimento de Pedro I, que ele recriminara poucos meses antes, quando fazia a propaganda republicana35. Tentando manter as aparências, o governo resolveu convocar não uma assembleia, mas um congresso, com a adoção adicional de medidas que limitassem de antemão o seu “poder constituinte”: já divididos em futuros senadores e deputados e já se deparando com a dualidade de justiça como fato quase consumado, o governo pensava que os constituintes tenderiam a se acomodar com o anteprojeto. O governo também temia que o povo carioca hostilizasse os constituintes republicanos, ou os pressionasse, ou promovesse reuniões e comícios públicos, tendo por isso cogitado transferir a sede do congresso do centro do Rio para Petrópolis36. Por fim, sempre preocupado com as aparências, o governo resolveu que, para conseguir a desmobilização cívica, bastava deslocar a sede do congresso para Paço de São Cristóvão, que estaria suficientemente longe do centro da cidade para desestimular a afluência do carioca. Por fim, o Ministro do Interior, Cesário Alvim, sugeriu a adoção de uma legislação eleitoral que permitisse ao governo eleger os seus candidatos, pela indicação de fiscais próprios junto às mesas eleitorais. A proposta de uma “constituinte constituída” foi adotada por maioria, sob protestos do próprio Ministro da Instrução, Benjamin Constant Botelho, que o julgava “imoralíssimo”37. Também ficou mais ou menos decidido que o Congresso deveria dispor de pouco tempo para deliberar sobre o projeto: três meses. De fato, dois meses depois de aberto o Congresso, os estados-membros da federação foram autorizados a convocar eleições para as respectivas constituintes, o que foi feito, evidentemente, para apressar os constituintes federais a encerrarem logo os debates e promulgar o anteprojeto. As precauções tomadas pelo Governo Provisório conseguiram alijar do Congresso todos os inimigos declarados do regime, o que não impediu que, na assembleia, muitos deputados se revelassem parlamentaristas, unitaristas ou monarquistas. Do mesmo modo, afastaram o povo dos debates constituintes. Reunidos os deputados, muitos deles, como o baiano César Zama, protestaram contra as cautelas antidemocráticas tomadas pelo governo: Sinto, Sr. Presidente, a minha alma partida quando olho para essas galerias e não vejo o elemento que deveria nos cercar, o elemento popular, ao qual devemos doutrinar desta tribuna. Quereis fazer a república e afastai o povo dos lugares em que pode e deve aprender o que é uma democracia38! O deputado Pedro Américo também faria um comentário sobre as galerias vazias acima do plenário: “Há quem diga que o Congresso reúne-se longe da cidade para evitar as assuadas populares”39. Diversa era, porém, a orientação de constituintes como Justiniano de Serpa, para quem o governo provisório agira muito bem: No Brasil, como em toda parte, qualquer que seja o sistema preferido, quem governa não é a maioria da Nação, é a classe superior da sociedade, é uma porção mais adiantada, e, conseguintemente, mais forte da comunhão nacional40. Por fim, o deputado Retumba exprimia sua opinião nada lisonjeira do povo brasileiro, pouco afeito ao trabalho e à disciplina por ter sido “composto de diversas raças, oriundas do índio bravio, porém selvagem e traiçoeiro, do preto africano, imbecil e indolente, de nossos primeiros colonizadores, os portugueses, compostos em sua maior parte de galés!”41. No fundo, a orientação do Governo Provisório refletia, com pouca variação, a mesma visão aristocrática da sociedade brasileira que os fazendeiros do sudeste haviam exposto no Congresso Agrícola de 1878. Daí a limitadíssima ampliação promovida da base do sistema representativo, que se contentou em instaurar por decreto a reforma que já constava do programa liberal do Visconde de Ouro Preto: tornar eleitores “todos os cidadãos brasileiros, no gozo dos seus direitos civis e políticos, que souberem ler e escrever” – sem garantir, porém, nem o sigilo do voto, nem a instrução primária, que constavam do programa monárquico42. Uma vez que a taxa de analfabetismo era de 83 % (1890), os chefes republicanos contemplavam ampliar o sistema para, no máximo, 8,5 % da população, índice inferior àquele dos Estados Unidos, da França ou da Inglaterra à época, e que, na prática, nem de longe seria alcançado no meio século seguinte entre nós. Embora diversos deputados tenham tentado o voto feminino, ainda que com restrições referentes ao seu estado civil e à sua capacidade intelectual, a maioria entendeu que torná-la eleitora corromperia a “fonte preciosa de moralidade e de sociabilidade que a família mais diretamente representa”. Os mesmos positivistas que queriam que o analfabeto e o mendigo votassem se opunham ao voto feminino, que fomentaria “uma democracia anárquica, revolucionária, metafísica e irrefletida”43. O resultado foi que a novíssima república brasileira era, em fins do século dezenove, a de menor participação política. Não por acaso, para um deputado dos que em vão se esforçara por ampliar o sufrágio, a república lhe parecia “o governo de um eleitorado limitado, aristocrático; é uma mentira convencional”44. Seja como for, os debates do Congresso Constituinte de 1890 reproduziram a divisão do campo político republicano que já havia dentro do próprio Governo Provisório. Ainda que não institucionalizada em partidos, a divisão entre liberais unionistas e republicanos ultrafederalistas – em breve, conservadores – ficou patente no debate sobre a natureza e os limites do Estado federativo. Para além da questão teórica atinente às relações que deveriam manter estados e a União Federal, o grosso do embate travou-se no terreno da competência legislativa e tributária, bem como no da organização judiciária. Na ocasião, os republicanos históricos gaúchos e paulistas defenderam um ultrafederalismo que expandia a competência dos estados para além dos limites estabelecidos pelo anteprojeto de Rui. Nestes pontos, o Ministro da Justiça não hesitou em abandonar o colega da Fazenda para se reunir aos seus companheiros da lavoura. Campos Sales e seus colegas, como Bernardino de Campos e o próprio Prudente de Morais, presidente do Congresso, invocavam a doutrina da soberania dual, que consagrava a igual soberania dos estados e da União em seus respectivos âmbitos de competência – doutrina que, segundo eles, ainda norteava o federalismo estadunidense. “Não conheço publicista moderno que não diga, que não afirme, em frente do direito público americano, ser incontroverso o princípio que reconhece uma dualidade soberana no Estado federativo”, avançava Sales. “Nele aparecem dois governos, ambos soberanos, funcionando, paralelamente, um ao lado do outro – o governo do Estado e o governo da União; aquele soberano, como este, nos limites da sua competência, visto que a recíproca independência exclui qualquer hipótese de subordinação”. Uma vez que havia dualidade de soberanias, era preciso que houvesse dualidade de judiciários: “ou isso, ou a negação do regime”45. A bancada gaúcha, liderada por Júlio de Castilhos, recorria às concepções descentralizadoras de Augusto Comte, para quem todas as nações estavam destinadas a se desagregar para formarem pequenas pátrias. A instauração da federação republicana equivalia a inverter as relações entre províncias e governo geral vigentes durante o unitarismo monárquico, de modo que o antigo predomínio da União deveria ceder ao predomínio dos estados. Castilhos chegava a defender que a União vivesse das transferências tributárias dos estados. Opositores das bancadas gaúcha e paulista, os liberais (geralmente pernambucanos e baianos) frisavam a necessária precedência da União no novo quadro federativo e a necessidade de dotá-la de uma capacidade de arrecadação tributária que bastasse para o seu sustento. Era natural que assim fosse: os representantes dos menores estados sabiam que o objetivo da federação era enfraquecer a União para favorecer os estados maiores, que eram os grandes exportadores; eles reteriam suas receitas e ainda dominariam o cenário nacional. Uma vez que os menores viviam das transferências de receita da União, estava claro que eles perderiam na reforma tributária proposta, ficando relegados, no novo regime, a uma posição bastante secundária. Assim, Epitácio Pessoa já lamentava: “Os estados grandes disputarão entre si a gestão dos negócios públicos e os estados pequenos... hão de ser sempre esmagados pela enorme superioridade com que aos outros dotou a Constituição do País”46. A essas objeções respondia Campos Sales que fortalecer a União seria negar o sentido da obra federativa, que fora a causa da república; nesse caso, seria São Paulo obrigado a sustentar os outros estados, o que não tinha cabimento47. No seu argumento, defender a União era um modo disfarçado de ser unitário e monarquista. Mesmo assim, os unionistas não deram folga aos ultrafederalistas. Inspirado na figura de Hamilton e atacando o “apetite desordenado e doentio de federalismo” das bancadas paulista e gaúcha, Rui entendia que o maior legado da monarquia havia sido justamente a unidade da pátria, ou seja, a União, ao passo que, ao contrário do que afirmavam os republicanos paulistas, havia nos Estados Unidos um nítido movimento pelo fortalecimento do poder central48. Calcado em Jellinek e Laband, o jurista e deputado Amaro Cavalcanti refutava a teoria da soberania dos estados: “Em uma federação não há estados soberanos, estes têm e exercem a autonomia de poderes, que lhes são reservados nos limites da Constituição. O soberano único é o povo, a nação”49. Para o deputado Ubaldino do Amaral, a existência autônoma da União era fundamental para a federação; por isso, lamentava que a maioria dos deputados se empenhasse exclusivamente em defender seus estados, quando a União estava ali sem advogado. E concluía tristemente: “Cada um de nós ama a terra em que nasceu, o estado de que é filho; vai-se formando [...] a concepção de pátria, mas ainda não está formada”50. O magistrado e deputado José Higino Duarte Pereira, por seu turno, argumentava que os Estados Unidos haviam se desenvolvido no ambiente do autogoverno, ao passo que o Brasil desde sempre se habituara “a ver no governo uma providência sublunar incumbida de pensar por eles e de fazê-los felizes”51. Concordando em princípio com a moldura constitucional norte-americana, os deputados Amaro Cavalcanti, Anfilófio de Carvalho, Ubaldino do Amaral e José Higino Duarte Pereira, futuros ministros do Supremo Tribunal Federal, defendiam também a unidade do direito substantivo e processual, bem como a unidade do Poder Judiciário, que não fora contemplada no anteprojeto. Quanto ao primeiro tópico, o pernambucano José Higino reclamava que os ultrafederalistas queriam “uma confederação de republiquetas”, ao passo que, acerca do segundo tema, declarava solene: “O direito uno, produto da nossa história, é um dos mais fortes vínculos da nossa união nacional, e considero o rompimento desse vínculo um crime de lesa-patriotismo”52. Como Higino, Anfilófio desmoralizava a teoria da soberania dual como “condenada na teoria e universalmente repelida na prática. O que estamos constituindo é um governo de federação, e esta ocupa lugar intermediário e de transição entre a confederação e o Estado simples ou unitário”. Para ele, a dualidade judiciária abandonaria “de todo a interpretação das leis a tantos juízes e tribunais diferentes, sem nenhuma ligação hierárquica entre si, sem a essencial subordinação a um centro comum, que tenha a seu cargo dirimir os conflitos”. Anfilófio, por sua vez, era um magistrado que se formara e fizera carreira no Império; talvez por isso partilhasse visivelmente dos pressupostos institucionais dos estadistas saquaremas, como São Vicente e Uruguai: também para ele, sem uma instituição central moderadora que interligasse todas as jurisdições, “as paixões locais, as rivalidades políticas, a luta dos interesses, os sentimentos e os costumes dos estados federados reagiriam contra a Justiça, e a unidade da lei desapareceria diante das interpretações contraditórias da jurisprudência”. Anfilófio pensava o Supremo Tribunal Federal de forma análoga à que Uruguai pensava o Conselho de Estado. A existência daquela corte, porém, não consolava o deputado que, à maneira daqueles estadistas, previa profético o problema que a federação traria e que pelos 40 anos seguintes seria apontado por Rui Barbosa, Alberto Torres, Oliveira Viana e tantos outros: Estes juízes (estaduais) vão ser, antes de tudo, agentes eleitorais, empreiteiros de eleições, instrumentos dos governos e dos partidos locais, no meio da luta intensa provocada por tantos cargos de eleição popular em cada Estado. Bem sabemos o que tem sido a política entre nós até agora, meus senhores, e bem podemos antever o que terá ela de ser em cada estado, alargada como vai ser a sua esfera de ação, de ação local, sobretudo, com os nossos costumes, com os nossos defeitos e vícios de educação política. Para a magistratura não haverá uma carreira; suas esperanças, suas aspirações serão limitadas pelos horizontes de cada estado. Para Anfilófio, a reforma haveria de ser origem, causa permanente de uma situação de verdadeira anarquia na administração da justiça... como consequência de um tal estado de coisas, virá fatalmente a invasão da justiça federal nos domínios da justiça local. Esta reforma, este híbrido sistema de organização judiciária, além dos males que há de trazer ao País, anarquizando a justiça, será um fermento de desorganização política, um agente de dissolução do governo federativo, que temos em vista constituir. E como tal tribunal (o Supremo) há de ser constituído pelo arbítrio do presidente da República, para ele só serão nomeados indivíduos tirados dos estados maiores e mais populosos. Singular federação!53" Esses argumentos não demoveram os republicanos ultrafederalistas, futuros conservadores. Se a centralização era a tutela do político sobre o econômico, da União sobre os estados, do governo sobre a sociedade, o federalismo deveria importar na inversão de todas essas hierarquias, submetendo o político ao econômico, a União aos estados e o governo à sociedade – ou seja, fundar um Estado mínimo. Assim explicava o deputado gaúcho Ramiro Barcelos: “Nós fundamos a república para fazer tabula rasa de todos os excessos da monarquia... O Estado não deve ser fazendeiro, não deve ser dono de casa. O Estado deve vender as propriedades nacionais... O Estado não é negociante, não é plantador de café”54. Conceitos como federalismo, liberdade pública e liberdade econômica eram tomados como sinônimos. Ao argumento de que a reforma tributária, que atribuía aos estados os impostos de exportação, favorecia os estados do sul em detrimento dos do norte, o paulista Bernardino de Campos respondia que o êxito de São Paulo se devia exclusivamente ao árduo trabalho de seu povo; caso desejassem gozar dos mesmos benefícios, os demais estados deveriam seguir o exemplo paulista e trabalhar duro55. Ramiro Barcelos ainda ameaçava com o separatismo, caso a maioria do Congresso não ampliasse a competência dos estados: “Se o Congresso não tiver o máximo de cuidado em colocar na Constituição as medidas descentralizadoras de que precisamos, a agitação federalista, que já vem dos tempos da monarquia, há de continuar no seio da república e há de levar talvez o Brasil ao esfacelamento”56. Ao fim e ao cabo, os ultrafederalistas tiveram vitórias significativas ao estabelecer a eleição direta para Presidente da República e senadores; a redução do mandato presidencial para quatro anos e a ampliação da competência tributária e processual dos estados. Conseguiram, em especial, a transferência das terras devolutas para o domínio estadual, inviabilizando um projeto federal de reforma agrária que as destinasse ao assentamento dos imigrantes e ex-escravos57. Inconformado com as alterações, Rui Barbosa passaria longos anos vergastando contra o “prurido lamentável, desastroso” que desfigurara na Constituinte seu anteprojeto, em prejuízo da soberania nacional58. Rui exagerava – na realidade, conforme os desejos do Governo Provisório, o anteprojeto havia sido pouquíssimo alterado. Curiosamente, o estado de sítio, a intervenção federal e o controle de constitucionalidade, que constituíram os temas nucleares, mais discutidos e polêmicos da República, passaram pela Constituinte sem terem sido sequer objeto de discussão. Esse fato desencadearia enormes dificuldades nos anos vindouros pela absoluta falta de consenso em torno do funcionamento daquelas instituições, e que atravessariam praticamente todo o período da Primeira República. Correlato a esses fatos, atravessando os debates constituintes, estava o horror à cidade do Rio de Janeiro, metrópole que era o símbolo mesmo da centralização monárquica, das “massas urbanas”, onde os republicanos sempre tiveram muita dificuldade em penetrar. Daí que defendessem agora a remoção da capital para um ponto mais remoto do País. Se, durante o Império, os defensores da mudança, como José Bonifácio, argumentavam com a necessidade de favorecer a maior integração do território nacional, para expandir o Estado pelo território e uniformizar a administração, os futuros conservadores da República já a defendiam, por suas vezes, tendo em vista o excesso de gente e o caráter debochado e amoral da população carioca. Para Tomás Delfino, era preciso transferir a capital para evitar “o perigo da desordem urbana”, ao passo que Virgílio Damásio se referia ao carioca como “a lia social”, também referida às vezes como as “fezes sociais”. A ignorância, a falta de espírito cívico, a ociosidade e a marginalidade das massas presentes no Rio constituíam “uma arma, uma alavanca poderosíssima nas mãos de agitadores”59. Também para Pedro Américo era “absolutamente necessário suprimir-se o quanto antes a maléfica influência desta terrível cidade, tão saturada de elementos nocivos à vida moral da nação”60. Foram deputados como estes que conseguiriam incluir na Constituição a previsão de transferência da capital federal para o planalto central, fato que, como se sabe, ocorreria muitas décadas depois e, em parte, devido aos mesmos argumentos. 3. O DENOMINADOR COMUM ENTRE LIBERAIS E CONSERVADORES: OS LIMITES OLIGÁRQUICOS DA REPÚBLICA Como se percebe, o âmbito da república defendida pelo republicanismo hegemônico no início da década de 1890 era bastante acanhado: um espaço público restrito aos proprietários de terras, aos profissionais liberais e aos altos funcionários do Estado. Promulgada a nova Constituição, o cenário não sofreu variação. Era como explicava um senador governista, portanto conservador, em aparte a um adversário político, que reclamava um regime mais plural: “A República não é a que o nobre senador quer que seja – uma democracia pura. Nós temos uma democracia autoritária, copiada da americana. O nobre senador é radical e eu sou conservador”61. Maior clareza, impossível. É certo que, logo na primeira década do regime, o campo político já se dividia nitidamente entre liberais e conservadores. Aqueles se identificavam com o oposicionismo, tanto quanto os segundos se identificavam com o situacionismo. Nada mais natural que a dicotomia se refletisse ideologicamente em duas propostas diferentes de república, decorrentes de duas formas distintas de interpretar a prática institucional a ser exercida a partir do texto constitucional – que, por sua vez, remontava a diferentes modos de se interpretar a prática constitucional norte-americana. Ao descrevê-la, o chefe dos liberais, Rui Barbosa, se reportava àquelas interpretações estadunidenses posteriores à guerra civil, marcadas pelo crescente fortalecimento dos poderes da União em face dos estados. De fato, no Governo Provisório (1889-1891), Rui buscara conscientemente desempenhar, na república brasileira nascente, o papel de defensor político e econômico da União que Alexander Hamilton exercera nos primórdios da república norte-americana. Por isso, ele e os demais liberais apoiaram projetos que visavam a regulamentar o instituto da intervenção federal, a fim de que a União pudesse arbitrar as querelas oligárquicas intraestaduais, assim como uma interpretação restritiva do estado de sítio, visando a torná-lo menos frequente e menos danoso às garantias constitucionais. Com efeito, principal redator da Constituição, Rui sem dúvida tivera em mente um regime mais aberto e plural, isto é, moralizado e democrático, do que aquele que veio efetivamente a triunfar, monopolístico e fraudulento, por obra da ala conservadora. Para ele, o direito era o fundamento da ordem legítima, que limitava a esfera política em benefício da liberdade individual. Essa concepção das relações entre o direito e a política se refletia no respeito quase religioso às formalidades jurídicas, na supressão do poder pessoal e discricionário, na defesa da divisão dos poderes políticos e na valorização do Poder Judiciário. A defesa da lei como imperativo ético de liberdade, necessária para que o bem – o direito – prevaleça sobre o mal – a violência da política –, levou Rui a também elaborar, por contraste, um tipo ideal do mau governo, em que a imoralidade, associada à injustiça, à opressão e ao desprezo do direito, resultava num governo arbitrário, patrimonial e militarista. Vinte anos depois, quando se organizaram em partido, os liberais deixaram em programa e em manifesto registrado o seu empenho: para que “a nossa Constituição e as nossas leis recebam a interpretação que mais restrinja os abusos do poder, mais favoreça a liberdade civil e política, no indivíduo e na associação, mais estimule a vida local nos municípios, mais assegure a autonomia constitucional nos estados”62. Não poderiam agradar a Rui, portanto, os caracteres mais visíveis da corrente conservadora, cujo representante por excelência era Campos Sales. No Senado, Sales refutava a interpretação conferida por Rui às práticas institucionais norte-americanas, defendendo em seu lugar as doutrinas já anacrônicas que haviam prevalecido antes da guerra civil. Ele falava como Jefferson ao defender “a soberania dos estados” dominados pela oligarquia agrária, protestando contra a invasão indevida da União em esferas de atribuição que não lhe competiam. Se a centralização monárquica fora a tutela do político sobre o econômico, da União sobre os estados, do governo sobre a sociedade, o ultrafederalismo defendido por eles significava o oposto de tudo isso: submeter o político ao econômico, a União aos estados e o governo à sociedade63. Eram doutrinas que conferiam independência quase absoluta aos estados-membros, e que, mais próprias a uma confederação que a uma federação, haviam mesmo servido para que os estados escravocratas e agrários do sul tentassem o separatismo – a principal das quais era a doutrina da soberania dos estados. Uma vez consolidados no poder, os radicais tornados conservadores se contentaram em reconhecer a natureza oligárquica do regime, alegando, ou que todos os governos, mesmo os democráticos, eram oligárquicos, como queriam Ostrogorski e Michels, ou que o povo brasileiro ainda não tinha condições de dispensar o governo de suas elites, incumbidas de garantir a ordem, condição do progresso contra seus “anárquicos” opositores. Essa defesa do establishment oligárquico os levava a advogar uma prática institucional contrária àquela proposta por seus adversários, e que era a que efetivamente prevalecia. Quando se organizaram partidariamente, os conservadores compreensivelmente deixaram consignado que seu principal objetivo era o de manter o status quo, por meio da “defesa da Constituição de 24 de fevereiro de 1891, reconhecida como prematura e inoportuna qualquer revisão dos seus textos, cuja fiel execução basta para assegurar à República a realização de todas as suas aspirações de ordem, de progresso, de liberdade e de justiça”64. Eles se opunham também às propostas liberais de regulamentação da intervenção federal e de cerceamento do estado de sítio, que garantiam, respectivamente, as situações estaduais contra a alternância no poder e, ao governo federal, que lhes servia de guardião, os adequados instrumentos de repressão aos excluídos que se tornassem insurretos65. A despeito de suas divergências, todavia, liberais e conservadores estavam de acordo num ponto: enquanto valor, a liberdade estava acima da igualdade; por conseguinte, o liberalismo, entendido agora no sentido amplo, era mais importante do que a democracia. Ou seja, a despeito do dissenso acerca da negatividade ou positividade da ordem oligárquica – isto é, das fraudes e depurações eleitorais que, segundo os liberais, falseavam o sistema representativo republicano –, um consenso atravessava o espectro político: aquele atinente à necessidade de se produzirem governos de excelência, qualidade elitista por excelência, que só poderia ser assegurada pela circunscrição da participação política relevante àqueles dotados de ilustração. A democracia que os republicanos brasileiros tinham em mente não era aquela dos radicais franceses, dos progressistas estadunidenses ou dos novos liberais britânicos; ainda era aquela de Stuart Mill e Lastarria – cuja Política Positiva, magnum opus da oligarquização chilena, servira de “catecismo” aos constituintes republicanos brasileiros66. Era uma democracia teorizada pelos liberais da geração anterior, em tudo igual à oligarquia, salvo o censo pecuniário. Por isso, nenhum dos principais republicanos brasileiros, depois de 1891, propugnou pela ampliação do eleitorado ou demonstrou simpatia pelos discursos progressistas dos países centrais. O próprio Rui jamais advogou a ampliação do sufrágio antes de 1919: todo o seu combate político foi, até então, movido pelo desejo de ver efetivamente praticado o sistema representativo consagrado pela Constituição de 1891, sistema este corrompido pela fraude e pela compressão dos governos conservadores. O que lhe parecia necessário, portanto, não era que mais gente votasse, mas que a vontade de quem formalmente já votava ganhasse o mundo da vida para além do texto da lei – era isso que, para Rui, significava combater as oligarquias. Por isso mesmo, sempre que o regime se viu ameaçado de fora por forças que ameaçaram destruí-lo, falassem ou não em nome da democracia, Rui se disse conservador e votou pelo sítio proposto pelo governo: Tenho no espírito o culto instintivo e fervoroso da ordem. Na subversão das leis normais, abomino os elementos que operam e os fenômenos que a acompanham: a insegurança, a vulgaridade, a grosseria, a fermentação das paixões cínicas e violentas. A minha natureza, é e sempre foi essencialmente conservadora. Advogando a liberdade, sempre a encarei como o primeiro elemento da organização, evolução e conservação nas sociedades humanas. Nunca admiti as revoluções, senão como atos sociais de legítima defesa; isto é, reações conservadoras da lei contra as desordens do despotismo, não menos fatais que as outras, porque, nas fermentações servis da inércia resignada à tirania, e apodrecida no cativeiro, a anarquia não é violenta, mas cancera no organismo social as fontes de vida, acabando por miná-la de incomparáveis desordens67. A concepção aristocrática de governo compartilhada pelas elites políticas brasileiras da Primeira República refletia-se nos autores políticos dos países centrais cuja autoridade eles invocavam em seus escritos públicos e privados: Spencer, Renan, Taine, Le Bon, Faguet, Leroy-Beaulieu, Guyot. Ministro da Fazenda, Rui concitava o operariado a não dar ouvidos àqueles “que pretendam desencadear-vos sobre a sociedade como um oceano agitado e tempestuoso; confiai antes naqueles que souberem dirigir a vossa atividade pela educação da vossa inteligência”68. Cinco anos depois, ao apresentar o judiciário estadunidense como modelo de resistência a ilegalidades e abusos do Executivo, ele citava como exemplo a nulificação, pela Suprema Corte, das leis editadas por pressão dos progressistas – como a do imposto de renda, qualificada pelo autor de Cartas de Inglaterra como um “artifício socialista”69. Seus maiores elogios eram dirigidos exatamente aos juízes que os progressistas reputavam os mais reacionários do tribunal: Stephen Field e David Brewer 70. O spenceriano Campos Sales, por seu turno, em sua primeira temporada europeia como senador (1892/1893), frequentara os cursos de economia política ministrados por Leroy-Beaulieu e Yves Guyot. Relatando o aprendizado em Cartas da Europa, Sales amaldiçoava o “socialismo de Estado”, por ele equiparado à “revolução comunista” que, “apoiada sobre o coletivismo, que é a sua base fundamental, ela aspira à desorganização social, pela destruição total de todos os princípios de moral, de direito, de ordem e de justiça”71. Eleito Presidente da República, decidido a “dar à política um caráter nacional, conforme a índole essencialmente conservadora das classes preponderantes do país”72, Campos Sales escolheu para a pasta da Fazenda um notório spenceriano, Joaquim Murtinho; ao chegar a Paris para negociar a dívida, ele obteve de Guyot entusiástico apoio ao seu plano de saneamento financeiro. Palmas mereceram, em particular, as intenções de privatizar as estradas de ferro construídas pelo governo imperial: “A personalidade do Sr. Yves Guyot é das mais simpáticas em França. Inimigo acérrimo do socialismo [...], o notável publicista, discípulo de Spencer, entende muito bem ser impossível combater o socialismo sem propagar os princípios do individualismo”73. A Constituição ficou assim prisioneira de uma interpretação conservadora que propositadamente deixava fluidos os limites de seus comandos fundamentais para que fossem aplicados conforme a conveniência do situacionismo oligárquico. O consectário lógico dessa impotência liberal em efetivar a ordem constitucional foi o crescente número daqueles que sucessivamente, frustrados pelas falsas esperanças alimentadas pelo regime, passaram a reivindicar a reforma da Constituição, na expectativa de converter a República numa realidade. Novamente frustrados, acabariam por desistir do próprio regime, crendo que somente sua derrocada pelas armas e sua substituição por outro regime poderia resgatar o País. Em 1918, a sensação de fracasso do regime já era difusa, podendo o seu advento ser descrito por Lima Barreto de modo particularmente arguto: Uma rematada tolice que foi a tal república. No fundo, o que se deu em 15 de novembro foi a queda do partido liberal e a subida do conservador, sobretudo da parte mais retrógrada dele, os escravocratas de quatro costados. Isso de Benjamin Constant, Lopes Trovão, Silva Jardim foi uma isca que os matreiros ‘bois de coice’, ‘rapa cocos’ e outros de igual jaez se serviram, para ‘forrar’ a opinião da força e se apossarem do poder. Toda a administração republicana tem sido um constante objetivo de enriquecer a antiga nobreza agrícola e conservadora, por meio de tarifas, auxílios à lavoura, imigração paga, etc74. REFERÊNCIAS ABRANCHES, Dunshee de. Atas e atos do Governo Provisório. Introdução de Octaciano Nogueira. Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1998. AMADO, Gilberto. Presença na Política. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1958. BARBOSA, Rui. 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WITTER, João Sebastião (org.). Ideias políticas de Francisco Glicério. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1981. FONTES PRIMÁRIAS ANAIS da Câmara dos Deputados. ANAIS do Congresso Constituinte. ANAIS do Senado Federal. ARQUIVOS da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ). 1 Este capítulo foi publicado originalmente, sob formato de um artigo, na Revista História Constitucional, Oviedo, v. 12, 2011. 2 NABUCO, Joaquim. “Artigos de Joaquim Nabuco (última fase) no jornal O País (seção ‘Campo neutro’)”. In: GOUVÊA, F. C. Joaquim Nabuco entre a Monarquia e a República. Recife: Massangana, 1989, p. 384. 3 ANAIS da Câmara dos Deputados, sessão de 7 de junho de 1889. 4 NABUCO, Joaquim. A abolição e a república. Recife: UFPE, 1999, p. 72. 5 ANAIS do Senado Federal, sessão de 17 de maio de 1892. 6 Ibidem, sessão de 1º de junho de 1892. 7 Para Sales, Rui era “a negação formal de todas as qualidades de homem de governo”. Empenhado sempre em obras “da desordem e da destruição”, Rui era um “revolucionário de sangue. Onde aparece uma conspiração, ou uma revolta, lá está ele. Assim tem sido sempre” (DEBES, Célio. Campos Sales: perfil de um estadista. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1978. v. 2, p. 591-593). Rui também não gostava de Sales. Quando as atas do governo provisório vieram a lume, em 1901, sua primeira reação foi a de contestar a veracidade dos documentos, e a segunda, a de acusar o secretário de Deodoro, Fonseca Hermes, de estar mancomunado com Sales e Cesário Alvim para exaltar os atos e diminuir as dos outros ministros – principalmente as dele, Rui (MAGALHÃES JR., Raimundo. Rui, o homem e o mito. 2. ed., corrigida e aumentada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 1965. p. 150-152). A má vontade recíproca comprova a durabilidade da animadversão, pessoal e ideológica. 8 ABRANCHES, Dunshee de. Atas e atos do Governo Provisório. Introdução de Octaciano Nogueira. Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1998. p. 124, 236, 249. 9 SENNA, Ernesto. Deodoro: subsídios para a História. Notas de um repórter. Brasília: UnB, 1981, pp. 3-8. MONTEIRO, Tobias. Como se fez a Constituição da República. In: BARBOSA, Rui. A Constituição de 1891. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1946. p. 371-374. (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 17, 1890, t. 1.) 10 CARNEIRO, Levi. Dois arautos da democracia: Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1954. 11 CALMON, Pedro. Prefácio. In: BARBOSA, Rui. A Constituição de 1891. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1946. 12 SALES, Manuel Ferraz de Campos. Da propaganda à presidência. São Paulo: [s.n.], 1908, p. 215. 13 BARBOSA, Rui. Escritos e discursos seletos. Seleção, organização e notas de Virgínia Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Nova Aguilar: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1960, p. 352. 14 ARQUIVOS da Fundação Joaquim Nabuco. 15 In: DELGADO, Luiz. Rui Barbosa: tentativa de compreensão e síntese. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945, p. 141. 16 OTONI, Teófilo. Discursos Parlamentares. Brasília: Câmara dos Deputados, 1979, p. 140. 17 Idem, ibidem, p. 158. 18 TAVARES BASTOS, Aureliano. A Província. Brasília: Senado Federal, 1997, p. 151. 19 MENDONÇA, Carlos Sussekind. Salvador de Mendonça: democrata do Império e da Republica. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1960. 20 NABUCO DE ARAUJO, José Tomás. O Centro Liberal. Brasília: Senado Federal, 1979, p. 104. 21 TAVARES BASTOS, Aureliano. Considerações gerais sobre a constituição da magistratura. In: Os Males do Presente e as Esperanças do Futuro. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 241. 22 ANAIS da Câmara dos Deputados, sessão de 3 de junho de 1882. 23 Ibidem, sessão de 24 de maio de 1883. 24 NABUCO, Joaquim. Campanhas de Imprensa (1884-1887). São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949, p. 164. 25 ANAIS do Congresso Constituinte, sessão de 6 de janeiro de 1891. 26 WITTER, João Sebastião (org.). Ideias políticas de Francisco Glicério. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1981, p. 76. 27 Idem. Discursos. Volume II: na República. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1902, p. 14. 28 DELGADO, Luiz. Rui Barbosa: tentativa de compreensão e síntese. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945, p. 141. 29 SALES, Exposição de motivos, op. cit., p. 14. 30 BARBOSA, Os Atos Inconstitucionais do Congresso e do Executivo, op. cit., p. 42. 31 SALES, Manuel Ferraz de Campos. Discursos. Volume II: na República. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1902, p. 58. 32 Idem, ibidem, p. 31. 33 SCHULZ, John. A crise financeira da abolição (1875-1901). Tradução de Afonso Nunes Lopes. São Paulo: Edusp, 1996. 34 GOMES, Flávio. Negros e política. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005. CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 35 DEBES, Célio. Campos Salles, perfil de um estadista. São Paulo: Instituto Histórico de São Paulo, 1977, p. 291. Tomo 1. 36 ABRANCHES, Dunshee de. Atas e atos do Governo Provisório. Introdução de Octaciano Nogueira. Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1998, p. 124. 37 Idem, ibidem, p. 236. 38 ANAIS do Congresso Constituinte, sessão de 30 de dezembro de 1890. 39 Ibidem, sessão de 27 de dezembro de 1891. 40 Ibidem, sessão de 31 de dezembro de 1890. 41 Ibidem, sessão de 16 de janeiro de 1890. 42 In: BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 647. 43 In: ROURE, Agenor. A Constituinte Republicana. Volume II. Brasília: Senado Federal, 1979, pp. 281-282. 44 ANAIS do Congresso Constituinte, sessão de 27 de janeiro de 1891. 45 Ibidem, sessão de 7 de janeiro de 1890. 46 Ibidem, sessão de 29 de janeiro de 1891. 47 Ibidem, sessão de 17 de dezembro de 1890. 48 Ibidem, sessão de 16 de dezembro de 1890. 49 Ibidem, sessão de 13 de dezembro de 1891. 50 Ibidem, sessão de 19 de dezembro de 1890. 51 Ibidem, sessão de 18 de dezembro de 1890. 52 Ibidem, sessão de 17 de fevereiro de 1891. 53 Ibidem, sessão de 2 de janeiro de 1890. 54 Ibidem, sessão de 16 de dezembro de 1890. 55 In: MOTA FILHO, Cândido. Uma grande vida: Bernardino de Campos. São Paulo: Edição de “Política”, 1931, p. 78. 56 ANAIS do Congresso Constituinte, sessão de 16 de dezembro de 1890. 57 Na Fala do Trono de 1889, referiu-se o Imperador, diante do Parlamento, à necessidade de “conceder ao governo o direito de desapropriar, por utilidade pública, os terrenos marginais das estradas de ferro, que não são aproveitados pelos proprietários e podem servir para núcleos coloniais” (JAVARI, barão de. Império Brasileiro: falas do trono, desde o ano de 1823 até o ano de 1889. Prefácio de Pedro Calmon. Rio de Janeiro: Itatiaia, 1993, p. 511). 58 BARBOSA, Rui. Correspondência. Coligida, revista e anotada por Homero Pires. São Paulo: Saraiva, 1932. p. 48-51. 59 ANAIS do Congresso Constituinte, sessão de 15 de dezembro de 1890. 60 Ibidem, sessão de 27 de janeiro de 1891. 61 ANAIS do Senado Federal, sessão de 16 de agosto de 1904. 62 In: CHACON, Vamireh. História dos Partidos Brasileiros: discurso e práxis dos seus programas. 2. ed., revista e aumentada. Brasília: UnB, 1985, p. 280. 63 Assim declarava no Congresso Constituinte o deputado gaúcho Ramiro Barcelos: “Dentro do regime republicano, a questão que há de prevalecer será a questão econômica. Porque os Estados precisam de desenvolvimento, de autonomia. Porque a república se formou para conquistar a federação”. Três dias depois, ele complementava: “Nós fundamos a república para fazer tabula rasa de todos os excessos da monarquia... O Estado não deve ser fazendeiro, não deve ser dono de casa. O Estado deve vender as propriedades nacionais... O Estado não é negociante, não é plantador de café” (ANAIS do Congresso Constituinte, sessão de 16 de dezembro de 1890). 64 In: CHACON, Vamireh. História dos Partidos Brasileiros: discurso e práxis dos seus programas. 2. ed., revista e aumentada. Brasília: UnB, 1985, p. 275. 65 ANAIS do Senado Federal, sessão de 9 de julho de 1894. 66 MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição Brasileira de 1891. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1918, p. 394. 67 ANAIS do Senado Federal, sessão de 16 de novembro de 1904. 68 BARBOSA, Rui. A Constituição de 1891. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1946, pp. 365-368. 69 BARBOSA, Rui. Os Atos Inconstitucionais do Congresso e do Executivo. Trabalhos Jurídicos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1962, p. 133-144. 70 RODRIGUES, Leda Boechat. A Corte Suprema e o direito constitucional norte-americano. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992, p. 63-64. O movimento progressista chegaria à Suprema Corte em 1902 com o juiz Oliver Wendell Holmes. Defendendo uma jurisprudência sociológica, baseada numa hermenêutica constitucional histórico-evolutiva, Holmes debochava da obra daquele que seus colegas conservadores viam como autoridade máxima para perseverarem no manejo de uma hermenêutica individualista e privatista. Ao dissentir da decisão da maioria que julgava inconstitucional uma lei trabalhista do estado de Nova York, Holmes lembrava que a constituição estadunidense não consagrava a “Estática Social do Sr. Herbert Spencer”. Noutro lugar, lembrava que “nenhuma proposição concreta é evidente por si mesma, não importa o quão preparados estejamos para aceitá-la - nem mesmo a do Sr. Herbert Spencer” (HOLMES, Oliver Wendell. O Caminho do Direito. In: MORRIS, Clarence (org.). Os Grandes Filósofos do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 431). 71 In: SALES, JR. A. C. de. O Idealismo Republicano de Campos Sales. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zélio Valverde, 1944, p. 102 e 105. 72 SALES, Manuel Ferraz de Campos. Da Propaganda à Presidência. Brasília: UnB, 1983, p. 117. 73 MONTEIRO, Tobias. O Presidente Campos Sales na Europa. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993, p. 72-73. Do mesmo modo, o prestígio de Leroy-Beaulieu era tamanho que Lima Barreto o incluía entre as referências obrigatórias dos “financeiros” da República (BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Os Bruzundangas: sátira. São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 40). Da onipresença de Leroy- Beaulieu se lembraria também um velho conservador, 50 anos depois, que em suas memórias aludiria agora desdenhosamente à sua obra como “compêndio da República Velha” (AMADO, Gilberto. Presença na Política. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1958, p. 47). 74 LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Coisas do Reino do Jambon. São Paulo: Brasiliense, 1953, p. 110.

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