O Estudo das Falsas Memórias: Reflexão Histórica PDF

Summary

This article reviews the historical study of false memories. It starts by discussing early studies from the 19th century and progresses to more recent work, highlighting the cognitive approaches and theories developed over time, from the 20th-century to today. It features a general survey of psychology with focus on memory and discusses the scientific and social implications in today's context.

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Trends in Psychology / Temas em Psicologia DOI: 10.9788/TP2018.4-03Pt ISSN 2358-1883 (edição online) Artigo O Estudo das Falsas Memórias: Re...

Trends in Psychology / Temas em Psicologia DOI: 10.9788/TP2018.4-03Pt ISSN 2358-1883 (edição online) Artigo O Estudo das Falsas Memórias: Reflexão Histórica Helena Mendes Oliveira*, 1 Orcid.org/0000-0003-0644-5302 Pedro B. Albuquerque1 Orcid.org/0000-0002-5874-4497 Magda Saraiva2 Orcid.org/0000-0002-9936-7632 ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 1 Escola de Psicologia, Universidade do Minho, Braga, Portugal 2 Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS-IUL), Lisboa, Portugal Resumo Este trabalho consiste numa revisão teórica com o objetivo de enquadrar historicamente o modo como as falsas memórias têm sido estudadas. Embora a maior parte dos estudos sobre falsas memórias tenha sido realizada a partir da última década do século XX, os primeiros datam do final do século XIX. Assim, e com o objetivo de assinalar os grandes marcos históricos na investigação das falsas memórias, come- çam por apresentar-se os estudos pioneiros realizados ainda no século XIX, bem como as pesquisas realizadas sobre o efeito das perguntas nos relatos de crianças e adultos. Posteriormente, apresentam-se as primeiras pesquisas realizadas com o objetivo específico de estudar o efeito de perguntas sugestivas no aparecimento de falsas memórias, seguidas dos estudos que recorreram a uma abordagem naturalista tendo-se tornado decisivos para a compreensão deste fenômeno. Já na segunda metade do século XX, ganha peso uma abordagem mais cognitivista no estudo deste fenômeno, e surgem os paradigmas da desinformação e DRM, que serão também discutidos. Ao longo do texto, reflete-se também sobre os mecanismos que foram considerados como estando na base do aparecimento das falsas memórias, bem como sobre as implicações científicas e sociais deste fenómeno. Palavras-chave: Memória, falsas memórias, erros de memória, distorção. The Study of False Memories: Historical Reflection Abstract This work consists of a theoretical review with the aim of historically framing the way false memories have been studied. Although most of the studies on false memories have been developed since the last ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– * Endereço para correspondência: Universidade do Minho, Escola de Psicologia, Campus de Gualtar, 4710- 057 Braga, Portugal. Fone: +351 253 604612. E-mail: [email protected], pedro.b.albuquerque@psi. uminho.pt e [email protected] Apoio financeiro: Este estudo foi realizado no Centro de Investigação em Psicologia (UID/PSI/01662/2013), Universidade do Minho, e foi financeiramente suportado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, através de fundos nacionais, e co-financiado pelo FEDER, através do COMPETE2020, no âmbito do acordo Portugal 2020 (POCI-01-0145-FEDER-007653). Trends Psychol., Ribeirão Preto, vol. 26, nº 4, p. 1763-1773 - Dezembro/2018 1764 Oliveira, H. M., Albuquerque, P. B., Saraiva, M. decade of the 20th century, the earliest is dated from the late 19th century. With the aim of pointing out the great historical milestones in the research of false memories, the pioneering studies carried out in the 19th century, as well as the researches on the effect of the questions on the reports of children and adults, are presented. Subsequently, we present the first researches carried out with the specific objective of studying the effect of suggestive questions on the production of false memories, followed by those who used a naturalistic approach and become decisive for the understanding of this phenomenon. In the second half of the 20th century, a more cognitive approach takes place, and the paradigms of misinfor- mation and DRM arise, which will also be discussed. Throughout the manuscript, it is also reflected on the mechanisms that were considered to be the basis of the production of the false memories, as well as on the scientific and social implications of this phenomenon. Keywords: Memory, false memories, memory errors, distortion. El Estudio de Memorias Falsas: Reflexión Histórica Resumen Este trabajo consiste en una revisión teórica con el objetivo de encuadrar históricamente la forma en que las falsas memorias han sido estudiadas. Aunque la mayoría de los estudios sobre falsas memorias se han realizado a partir de la última década del siglo XX, los primeros datan del final del siglo XIX. Con el objetivo de señalar los grandes hitos históricos en la investigación de las falsas memorias, comienzan por presentarse los estudios pioneros realizados aún en el siglo XIX, así como las investigaciones reali- zadas sobre el efecto de las preguntas en los informes de niños y adultos. Posteriormente, se presentan las investigaciones realizadas con el objetivo específico de estudiar el efecto de preguntas sugestivas en las falsas memorias, seguidas de los estudios que recurrieron a un abordaje naturalista y se tornaran de- cisivos para la comprensión de este fenómeno. En la segunda mitad del siglo XX, gana peso un enfoque más cognitivista en el estudio de este fenómeno y surgen los paradigmas de la desinformación y DRM. Durante el texto, se refleja también sobre los mecanismos que se consideraron como la base de la apa- rición de las falsas memorias, así como sobre las implicaciones científicas y sociales de este fenómeno. Palabras clave: Memoria, memoria falsa, errores de memoria, distorsión. Quando proferimos frases como “recordo- semelhante a uma câmera de vídeo que permite -me perfeitamente”, “parece que ainda a estou a gravar os acontecimentos e, mais tarde, revê-los ver” ou “lembro-me como se fosse hoje”, a pro- tal e qual como ocorreram. babilidade de estarmos a ser traídos pela nossa Curiosamente, a ideia de que a memória é memória é elevada. Apesar de haver uma crença falível é aceite e divulgada de forma espontânea generalizada de que através da nossa memória e frequente pela maioria das pessoas. Expressões podemos, de forma precisa e com alguma facili- como “esqueci-me completamente”, “nunca dade, aceder ao registro de fatos e acontecimen- mais me lembrei” ou “não consigo recordar-me tos experienciados no passado, essa crença é, no disso”, são utilizadas por todos nós em várias mínimo, exagerada. Se é verdade que a memória situações. Ou seja, se por um lado, em alguns nos permite, na maioria das situações, aceder, de casos, assumimos a memória como um sistema forma funcional, a informação sobre o passado, falível, por outro, agimos como se nela pudésse- também não é menos verdade que esses regis- mos confiar cegamente. Não deixando de ser um tros raramente são uma cópia fiel da realidade paradoxo, a verdade é que estes dois pressupos- que anteriormente vivenciamos. Assim, quando tos refletem bem aquilo que é a história do estu- falamos de memória devemos assumir que esta do da memória em geral, e das falsas memórias é, por natureza, reconstrutiva, e não um sistema em particular. Trends Psychol., Ribeirão Preto, vol. 26, nº 4, p. 1763-1773 - Dezembro/2018 O Estudo das Falsas Memórias: Reflexão Histórica. 1765 As falsas memórias se referem ao fato de re- diger & Gallo, 2004; Roediger & McDermott, cordarmos acontecimentos ou informações que 2000; Ruíz-Vargas, 1991; Schacter, 1995), Eb- não aconteceram, que não experienciámos ou binghaus (1885/1964) conduziu uma série de que não ocorreram tal e qual o relatamos. Embo- experimentos que o levaram à formulação da ra o estudo das falsas memórias tenha sido des- curva do esquecimento. Apenas nove anos mais curado durante vários anos, existem atualmen- tarde, Kirkpatrick (1894) realizou aquele que é te diversas pesquisas neste âmbito. Devido ao também considerado o primeiro estudo labora- grande impacto que os resultados destes estudos torial sobre falsas memórias (e.g., Gallo, 2006; tiveram no meio acadêmico e também na socie- Roediger, Watson, McDermott, & Gallo, 2001). dade, somos frequentemente confrontados com Neste estudo, Kirkpatrick (1894) fez as primei- uma grande diversidade de definições e paradig- ras demonstrações experimentais de recordação mas para o seu estudo. Neste sentido, este artigo falsa de palavras associadas a itens previamente tem como objetivo enquadrar historicamente o apresentados: estudo das falsas memórias. Para tal, serão abor- Houve alguns casos incidentais de evoca- dadas os marcos históricos de grande relevância ções falsas. Cerca de uma semana antes.. no estudo das falsas memórias.. eu tinha pronunciado aos alunos dez pa- lavras comuns. Muitas destas foram evo- Os Primeiros Passos no Estudo das cadas e colocadas nas listas como se delas Falsas Memórias – Século XIX fizessem parte. Mais uma vez, parece que quando palavras como “rolo”, “dedal” e Ao longo de mais de um século, o grande “faca” foram pronunciadas, muitos alunos objetivo da pesquisa da memória humana foi o pensaram em “fio”, “agulha” e “garfo”, que estudo das suas potencialidades (recordação e são tão frequentemente associadas com elas. reconhecimento corretos), sendo que os erros O resultado foi que muitas dessas palavras detetados no processo mnemônico eram consi- foram evocadas como pertencendo à lista. derados como resultado de problemas/falhas no Esta é uma excelente ilustração de como procedimento experimental (Roediger, 1996). coisas sugeridas a uma pessoa durante uma Por outro lado, o estudo dos erros da memória experiência podem ser reportadas honesta- esteve sobretudo centrado nos erros de omissão mente por essa pessoa como parte dessa ex- (i.e., esquecimento), e não tanto nos erros de periência. (pp. 608-609) comissão (i.e., recordação distorcida de aconte- Apesar desta proximidade temporal, os ru- cimentos ou de situações que nunca ocorreram; mos que a pesquisa destes dois tipos de erros Brainerd & Reyna, 2005; Roediger & McDer- (i.e., omissão e comissão) tomaram foram bas- mott, 2000). Embora estes dois tipos de erros tante diferenciados. Durante muitas décadas, a estejam relacionados, foram sendo perspetiva- denominada “tradição de Ebbinghaus” fez es- dos diferenciadamente, quer pela população em cola, e a maioria dos estudos realizados visaram geral, quer pela comunidade científica. Se a ex- a compreensão dos mecanismos subjacentes à periência de esquecimento é familiar à maioria recordação e ao reconhecimento corretos, bem das pessoas, a assunção de que uma determinada como o evitamento dos erros (de omissão) asso- memória pode ser falsa é um processo encarado ciados a essas tarefas (Bruce & Winograd, 1998; com relutância e aceite apenas perante evidên- Gallo, 2006). cias irrefutáveis (e.g., fotografias). No entanto, Não obstante, desde os finais do século os primeiros estudos experimentais, tanto dos er- XIX, podem encontrar-se alguns trabalhos so- ros de omissão como dos de comissão, não dis- bre falsas memórias, ainda que com o objetivo tam entre si em mais do que uma década. de compreender o funcionamento normativo da Assim, em 1885, naquele que é referencia- memória. Em 1900, Binet, após ter apresentado do por muitos autores como sendo o primeiro um conjunto de objetos a crianças, introduziu in- estudo experimental em memória (e.g., Roe- formação enganosa sob a forma de questões nas Trends Psychol., Ribeirão Preto, vol. 26, nº 4, p. 1763-1773 - Dezembro/2018 1766 Oliveira, H. M., Albuquerque, P. B., Saraiva, M. quais sugeria, por exemplo, a existência de obje- Os resultados revelaram que os participan- tos que não haviam sido apresentados. Com os tes sujeitos ao método narrativo recordavam resultados deste procedimento, Binet concluiu a informação erradamente em 25% dos casos, que as questões sugestivas tinham como efeito enquanto que para os participantes sujeitos ao o aparecimento de distorções de memória (e.g., método interrogativo 50% cometiam erros na re- recordação de objetos sugeridos nas perguntas). cordação do acontecimento. A partir deste e de outros estudos sobre a auto- Com estas experiências, Stern (1910) con- -sugestão, Binet propôs a distinção entre falsas cluiu que é possível criar erros de memória com memórias que derivam da auto-sugestão e falsas recurso a perguntas sugestivas. Estas conclusões memórias resultantes da sugestão (externa). A alertaram para a importância do questionamento sua formação em Direito e o consequente con- feito, nomeadamente a crianças, quando se pre- tato com o mundo da justiça permitiram a Binet tende recordar informação. Isto pode ser espe- observar o efeito das perguntas nos relatos feitos cialmente crítico quando se pretende averiguar por adultos, mas sobretudo por crianças, desde os fatos reais, como acontece em contexto poli- logo identificadas como sendo mais suscetíveis cial e forense. ao efeito da sugestão externa, fato que viria a ser corroborado por estudos realizados mais Bartlett e a Abordagem Naturalista de um século depois (e.g., Brainerd & Reyna, – Década de 30 do Século XX 2005). Binet (1900) constatou, ainda, não haver qualquer relação entre a convicção de uma tes- Em 1932, Bartlett publicou Remembering: temunha e a precisão da informação recordada, A Study in Experimental Social Psychology, um fato evidenciado, também, por vários estu- onde apresentou várias experiências que de- dos mais recentes (e.g., Wells & Lindsay, 1985; monstraram a existência de distorções de me- Wells & Olson, 2003). mória. Conhecedor do trabalho de Ebbinghaus, Bartlett tornou-se também seu crítico. Apesar de A Influência da Sugestão – reconhecer as vantagens do seu método, desig- Primeira Década do Século XX nadamente no que dizia respeito à capacidade de avaliar de forma objetiva as respostas dos par- Stern (1910) mostrou a possibilidade de ticipantes, Bartlett considerava que os materiais as crianças confundirem acontecimentos reais usados por Ebbinghaus (1885/1964) eram dis- com acontecimentos imaginados com o recurso tantes da realidade e desprovidos de significado, a encenações realizadas em contexto de sala de não permitindo, assim, avaliar o efeito dos co- aula, seguidas de perguntas sugestivas. Os seus nhecimentos anteriores nos resultados das tare- estudos tinham como objetivo compreender a fas de memória que os participantes realizavam. forma como as sugestões feitas por adultos po- Deste modo, mantendo a objetividade do méto- diam produzir distorções de memória em crian- do, propôs-se estudar a memória recorrendo a ças (cf. Neufeld, Brust, & Stein, 2010; Roediger materiais complexos e ricos em significado, ma- & McDermott, 2000; Schacter, 1995). Para tal, teriais que pudessem espelhar situações cotidia- Stern encenou um acontecimento na sua sala de nas dos participantes (Brainerd & Reyna, 2005; aulas. A aula era interrompida pela entrada de Ruíz-Vargas, 1991). um homem na sala que se dirigia a Stern. En- Na sua experiência mais conhecida, Bartlett quanto conversava com o professor, o homem (1932/1997) apresentou aos participantes uma retirava um livro da mesa e abandonava a sala. versão de um conto índio norte-americano, in- Uma semana depois, os alunos eram convidados titulado A Guerra dos Fantasmas. Para além de a recordar o acontecimento. Alguns participan- se tratar de uma narrativa e, como tal, material tes recordavam o acontecimento seguindo o mé- complexo e rico em significado, aquela história todo narrativo, enquanto outros eram sujeitos a tinha outras particularidades que foram determi- um conjunto de questões. nantes na escolha de Bartlett: provinha de uma Trends Psychol., Ribeirão Preto, vol. 26, nº 4, p. 1763-1773 - Dezembro/2018 O Estudo das Falsas Memórias: Reflexão Histórica. 1767 cultura estranha aos participantes (estudantes de ao longo do tempo (Bartlett, 1932/1997; Brai- Cambridge); continha personagens pouco fami- nerd & Reyna, 2005). liares, fazendo apelo, nomeadamente, a entida- Com base nestes resultados, Bartlett des sobrenaturais; e possuía uma estrutura nar- (1932/1997) concluiu que a recordação é um rativa aberta. Para Bartlett, estas características processo reconstrutivo, guiado por esquemas or- seriam capazes de potenciar o aparecimento de ganizadores gerais preexistentes. Isto é, Bartlett resultados que outro tipo de material (como as verificou que no seu estudo, apesar de o guião sílabas sem sentido usadas por Ebbinghaus) não geral da história ser mantido, os participantes desencadeava, pelo fato de permitirem aos par- tendiam a omitir detalhes que não fossem con- ticipantes alguma margem de liberdade na inter- gruentes com os seus esquemas preexistentes e pretação da história (Brainerd & Reyna, 2005). a preencher as lacunas, criadas por efeito do es- Aos participantes era pedido que lessem a histó- quecimento, com informação familiar (i.e., pre- ria (o que ocorria duas vezes). Passados quinze existente nos seus esquemas mentais). Quando minutos, os participantes realizavam uma tarefa o material apresentado não era congruente com de recordação livre, por escrito. Esta tarefa de esses esquemas mentais, os estímulos eram rein- recordação repetia-se ao fim de algumas horas, terpretados em função daqueles. Esse processo dias, semanas, meses, ou mesmo anos, consoan- resultava numa versão esquematizada e distor- te as conveniências dos participantes e do pró- cida da versão original da história que, uma vez prio pesquisador, não havendo grande preocupa- contada, tendia a ser repetida (Roediger & Mc- ção da sua parte em estandardizar os intervalos Dermott, 2000; Ruíz-Vargas, 1991). de retenção (Bartlett, 1932/1997). Estas experiências serviram para distinguir Esta “liberdade experimental” está espelha- os conceitos de memória reprodutiva e memória da, também, na forma como os resultados das reconstrutiva. A memória reprodutiva foi defi- experiências foram expostos: Bartlett apresenta nida como dizendo respeito às situações em que excertos de determinados protocolos de resposta ocorre uma reprodução precisa e fiel da informa- de uma forma descritiva e sem qualquer tenta- ção armazenada na memória, enquanto a memó- tiva de sistematização ou quantificação. Bartlett ria reconstrutiva se refere àqueles casos em que, observou que, em alguns casos, os participantes no processo de recordação, é integrada informa- omitiam detalhes, enquanto noutros os acrescen- ção nova, dando origem a erros de diversos tipos tavam, sendo que, neste último caso, a informa- (Bartlett, 1932/1997). ção nova era informação familiar ao participante Mais tarde, outros autores (e.g., Roediger & (i.e., congruente com os seus esquemas men- McDermott, 1995) defenderam que a memória é, tais). Relativamente às distorções reportadas por por natureza, reconstrutiva. De acordo com Roe- Bartlett, estas variavam em magnitude, isto é, diger e McDermott (1995), qualquer recordação desde simples alterações de linguagem sem mo- é uma construção, e a sua maior ou menor preci- dificação do significado, passando por normali- são poderá depender do material a recordar (e.g., zações (e.g., substituir uma atividade descrita na da sua natureza, da sua complexidade, ou das história por uma mais familiar), inferências (e.g., modalidades sensoriais envolvidas), mas essa retirar ilações a partir da informação apresenta- será sempre uma diferença de cariz quantitativo, da), até casos de pura adição, ou seja, casos em e não qualitativo. Segundo Surprenant e Neath que os participantes relatavam fatos inteiramente (2009), o princípio da reconstrução é um dos novos, mas consistentes com a história original. sete princípios do funcionamento da memória. Bartlett verificou também a existência de uma Para estes autores, o princípio da reconstrução elevada congruência entre a recordação inicial e aplica-se aos vários sistemas de memória, e é in- as subsequentes, no sentido em que a versão da dependente do tipo de tarefa mnêmico, da escala história contada da primeira vez, com todos os temporal, do tipo de materiais/estímulos, e até erros de omissão e comissão, tendia a manter-se do tipo de processamento. Trends Psychol., Ribeirão Preto, vol. 26, nº 4, p. 1763-1773 - Dezembro/2018 1768 Oliveira, H. M., Albuquerque, P. B., Saraiva, M. Apesar da importância que é atualmente tia em apresentar uma lista de 200 palavras e, atribuída aos estudos de Bartlett, estes não ti- de seguida, pedir aos participantes que classi- veram, na época em que foram publicados, um ficassem cada uma das palavras como nova ou grande impacto, por não se ajustarem ao para- velha. Isto é, sempre que a palavra ainda não digma dominante, ainda muito influenciado por tinha sido apresentada (no decurso da apresen- Ebbinghaus, quer no que dizia respeito ao mé- tação desta lista de 200 palavras), o participante todo, quer ao próprio tema em estudo. Por um devia identificá-la como nova. Por outro lado, se lado, o cariz naturalista da sua abordagem não se a palavra já tivesse sido apresentada no decurso coadunava com a tradição de estudos laborato- deste procedimento, o participante deveria iden- riais, e, por outro, as preocupações teóricas dos tificá-la como velha. O autor verificou que, após pesquisadores se situavam em torno da memória a apresentação de um determinado número de enquanto sistema capaz de permitir a codifica- palavras, os participantes tendiam a reconhecer ção, armazenamento e recuperação de elevadas como velhas, palavras que, sendo novas, se rela- quantidades de informação e não das suas possí- cionavam com as palavras já apresentadas. Un- veis falhas ou limitações (Schacter, 1995). derwood defendeu, então, que os falsos alarmes surgiam a partir de uma resposta associativa A Importância da Associação implícita, que ocorria durante a fase de estudo – Anos 50 e 60 do Século XX (apresentação) das palavras associadas. Ou seja, à medida que determinadas palavras iam sendo Também os trabalhos publicados por Deese apresentadas, outras palavras relacionadas iam em 1959 permaneceram praticamente ignorados sendo ativadas mentalmente e codificadas como até à década de 1990. Deese (1959a, 1959b) de- se de palavras apresentadas se tratassem. Desta senvolveu um procedimento análogo ao utiliza- forma, quando estas palavras eram apresentadas do por Ebbinghaus (1885/1964). O procedimen- na lista, estas eram classificadas como velhas to consistia em apresentar listas de palavras às (Underwood, 1965). quais os participantes deviam prestar o máximo Já no final da década de 60 do século XX, de atenção possível, pois posteriormente, ser- Neisser (1967) publica a obra Cognitive Psycho- -lhes-ia solicitado que as recordassem. No en- logy e reacende o interesse pelas noções de es- tanto, e ao contrário de Ebbinghaus, Deese teve quema e memória reconstrutiva, defendidas por como principal objetivo o estudo das intrusões, Bartlett (1932/1997). Segundo Neisser, recordar ou seja, a recordação de palavras não apresenta- não seria exclusivamente um processo de recu- das nas listas, e não apenas da recordação cor- peração de um traço de memória armazenado, reta. Os resultados dos seus estudos revelaram mas antes um processo reconstrutivo em que as que os participantes tendiam a evocar palavras pessoas usam informação e esquemas preexis- que não constavam da lista apresentada. Essas tentes para dar significado a fragmentos de me- palavras estavam frequentemente fortemente as- mória que restam da memória original. Parale- sociadas às palavras que constituíam a lista apre- lamente à publicação desta obra, outros autores sentada. Na sequência dos seus resultados, De- começaram a estudar a ocorrência de erros na ese (1959b) propôs a noção de associação, em retenção da informação, com material em prosa alternativa à noção de esquema anteriormente (e.g., Bransford & Franks, 1971; Cofer, 1973), avançada por Bartlett, como explicação para os inspirados pelos trabalhos de Bartlett. erros produzidos em tarefas de recordação. Cinco anos após os estudos de Deese, e Estudos de Loftus e o Cunho recorrendo também a um procedimento base- do Termo Falsas Memórias ado na apresentação de listas de palavras, Un- derwood (1965) replicou os seus resultados, Na década de 1970, vários estudos desen- mas, desta vez, em tarefas de reconhecimento. volvidos por Elizabeth Loftus e colaboradores O procedimento de Underwood (1965) consis- constituíram um marco incontornável na história Trends Psychol., Ribeirão Preto, vol. 26, nº 4, p. 1763-1773 - Dezembro/2018 O Estudo das Falsas Memórias: Reflexão Histórica. 1769 do estudo das falsas memórias. Nas suas expe- confrontadas com casos de “Síndrome das Fal- riências, Loftus e colaboradores tinham como sas Memórias”2. principal objetivo estudar o testemunho ocular. Síndrome das Falsas Memórias é o termo Para tal, desenvolveram o paradigma da desin- utilizado para designar casos em que, na sequên- formação ou informação enganosa, segundo o cia de um processo terapêutico, um paciente “re- qual é possível distorcer a memória para infor- corda” memórias de abuso sexual do qual supos- mação e acontecimentos, através da introdução tamente foi vítima durante a infância, memórias de informação falsa (Loftus & Palmer, 1974). essas que se prova serem falsas. Muitos destes O procedimento experimental deste para- casos terão surgido nos Estados Unidos na se- digma consiste em apresentar imagens/vídeos quência de processos terapêuticos desenvolvidos de um acidente de viação (fase de codificação). ao abrigo de modelo designado por “Terapia de De seguida, o pesquisador coloca um conjunto Memórias Recuperadas”3. Os defensores des- de questões acerca do acidente aos participantes, te modelo terapêutico afirmavam ser possível, sendo que algumas destas questões incluem in- através de técnicas como a hipnose, a regressão formação enganosa/falsa. Por fim, é pedido aos ou a imaginação, recuperar memórias, sobretu- participantes que recordem o máximo possível do memórias de abuso sexual ocorrido durante a de informação apresentada inicialmente, tan- infância. Estas memórias, entretanto reprimidas, to através de uma tarefa de evocação, como de seriam responsáveis por muitos dos problemas uma tarefa de reconhecimento. Os resultados re- surgidos já durante a vida adulta, como a depres- velaram que os participantes tendem a aceitar a são ou o alcoolismo (Kaplan & Manicavasagar, informação falsa que é introduzida pelo pesqui- 2001; Pinto, Pureza, & Feijó, 2010). sador nas questões, como sendo verdadeira. Es- Este fenômeno havia já sido descrito por tes experimentos revelaram que é possível, em Freud, cerca de cem anos antes. Na sua teoria contexto laboratorial, distorcer memórias para da sedução infantil, Freud defendeu que a causa situações testemunhadas e codificadas pelos das psiconeuroses dos seus pacientes adultos re- participantes (e.g., Loftus, 1975; Loftus & Pal- sidia na ocorrência de experiências traumáticas mer, 1974; Loftus & Zanni, 1975). O termo fal- de sedução e abuso sexual infantil, experiências sa memória foi usado por Loftus no Encontro da que os pacientes relatavam durante as sessões Sociedade de Psicologia Americana, em 1992, de psicanálise. Mais tarde, o próprio Freud veio subordinado ao tema “Memórias Reprimidas”1, afirmar que muitos dos relatos dos pacientes precisamente com aquele significado. Neste eram falsos (para uma análise histórica da teoria encontro, Loftus apresentou alguns estudos, e referência relevantes, ver Macmillan, 1997). segundo os quais seria possível implantar me- O efeito de algumas das técnicas usadas mórias para fatos não ocorridos, e questionou a na terapia das memórias recuperadas não possibilidade de algumas das memórias de abu- constituíram, portanto, uma novidade, pois já em sos sexuais na infância poderem ser implantadas 1900, Binet, tinha descrito o poder da sugestão por sugestão e, como tal, configurarem o estatu- na alteração de memórias em crianças, mas estes to de falsas memórias (Pezdek & Lam, 2007). casos aumentaram fortemente o interesse pelo Este tema teve uma grande relevância e visibili- assunto, tendo disparado o número de estudos dade nesses anos. No entanto, para explicar esse dedicados à sua compreensão (e.g., Conway, interesse pelas falsas memórias, há que ter em Collins, Gathercole, & Anderson, 1996; conta outros aspetos que ultrapassam os limites Goldstein, 1997; Heaps & Nash, 1999; Hyman da pesquisa científica. Precisamente em 1992, & Billings, 1998; Hyman, Husband, & Billings, constituiu-se nos Estados Unidos uma organiza- 1995; Hyman & Pentland, 1996; Larsen & ção destinada a apoiar famílias que haviam sido 2 Tradução de False Memory Syndrome. 1 Tradução de Remembering Repressed Abuse. 3 Tradução de Recovered memory therapy. Trends Psychol., Ribeirão Preto, vol. 26, nº 4, p. 1763-1773 - Dezembro/2018 1770 Oliveira, H. M., Albuquerque, P. B., Saraiva, M. Conway, 1997; Loftus, 1993, 1997; Paddock organizada em uma rede semântica e o proces- & Terranova, 2001; Pezdek, Finger, & Hodge, samento de uma informação conduz à ativação 1997; Pezdek & Hinz, 2002; Pezdek & Hodge, de outras informações que lhe estão associadas 1999; Poole, Lindsay, Memon, & Bull, 1995). (Meade, Watson, Balota, & Roediger, 2007; Roediger, Balota, & Watson, 2001). Deese-Roediger-McDermott A popularidade deste paradigma ficará a e a Afirmação das Falsas dever-se, não apenas à simplicidade da sua apli- Memórias como Área de Estudo cação (apresentação de listas de palavras), nem somente à robustez dos efeitos encontrados em Em 1995 é publicado o artigo “Creating diversas condições experimentais, mas, sobre- False Memories: Remembering Words Not Pre- tudo à consciência de que as falsas memórias sented in Lists” por Roediger e McDermott. Nes- podem ocorrer mesmo em tarefas aparentemente te artigo, Roediger e McDermott (1995) apre- muito simples, usando materiais pouco comple- sentaram os resultados da replicação do estudo xos, como listas de palavras (Gallo, 2010). realizado por Deese (1959b), mas, desta vez, ao contrário do que havia acontecido com o estudo Conclusão original, o impacto na comunidade científica foi muito grande. Seguindo o mesmo procedimento Embora o foco principal das pesquisas acer- e chegando a conclusões semelhantes, este para- ca da memória esteja na identificação das suas digma de estudo das falsas memórias ficou co- potencialidades e capacidades, nomeadamente nhecido como DRM (Deese-Roediger-McDer- através do estudo e análise da recordação ou re- mott), como reconhecimento dos seus autores. conhecimento correto de informação, a produção A disparidade de reações perante resultados de erros e distorções da memória não foram des- semelhantes, que distam em mais de 30 anos, po- curados. Apesar de inicialmente os estudos sobre derá ter tido muito mais a ver com o ambiente e os erros ou distorções de memória se centrarem os interesses científicos que caracterizaram cada no esquecimento, mais tarde a atenção mudou-se um dos momentos da publicação dos artigos para os chamados erros de comissão (i.e., falsas do que com as características dos trabalhos em memórias). Com o surgimento de vários estudos causa. No final da década de 1950, os erros de no âmbito das falsas memórias, surgiram tam- memória eram vistos como percalços que ocor- bém diversos paradigmas experimentais, tais riam durante as experiências de memória, e com como o paradigma DRM ou o paradigma da de- os quais os pesquisadores tinham de lidar. Trin- sinformação. Neste âmbito, vários paradigmas ta anos mais tarde, esses mesmos erros haviam têm servido de base ao estudo das falsas me- atingido um estatuto próprio na pesquisa cientí- mórias (cf. Oliveira & Albuquerque, 2015). Do fica no domínio da memória, ocupando mesmo mesmo modo que os estudos de Deese (1959b) um lugar de destaque (Roediger, 1996). O fato foram precursores da utilização de listas de pa- é que, à publicação do artigo de Roediger e Mc- lavras na produção de falsas memórias, também Dermott (1995), se sucederam os estudos em que a utilização de material mais complexo, como as o procedimento originalmente desenvolvido por perguntas sugestivas utilizadas por Binet (1900), Deese (1959b) foi usado para estudar as falsas ou as histórias usadas por Bartlett (1932/1997), memórias. tiveram seguidores, dando origem à criação e ao Este paradigma distingue-se de outros (e.g., desenvolvimento de outros paradigmas de que paradigma da desinformação ou informação en- são exemplos o paradigma da desinformação ganosa), por considerar que as falsas memórias (Loftus & Palmer, 1974) ou o paradigma da nar- são produzidas internamente, por efeito de as- rativa falsa (Loftus & Pickrell, 1995). sociação (Mazzoni, 2002) e não por fenômenos Atualmente, o conceito de falsa memória externos ao participante (e.g., introdução de in- não é consensual, pois pesquisadores que re- formação sugestiva). Ou seja, a memória está correm a diferentes paradigmas de estudo deste Trends Psychol., Ribeirão Preto, vol. 26, nº 4, p. 1763-1773 - Dezembro/2018 O Estudo das Falsas Memórias: Reflexão Histórica. 1771 fenômeno definem-na diferencialmente. Apesar munho ocular como uma fonte para a tomada de da controvérsia que a aplicação deste termo ge- decisões. Se, na maioria das situações, a ocor- rou (e continua a gerar), o seu uso vulgarizou-se, rência de uma falsa memória pode ser inócua, há sendo atualmente utilizado de forma praticamen- casos em que ela pode revestir-se de uma impor- te indiscriminada para designar efeitos que, du- tância extrema. rante várias décadas, foram designados de erros, Neste sentido, e pelos motivos mencio- ilusões ou distorções de memória. Presentemen- nados, é muito importante que o fenômeno da te, o termo falsas memórias é usado para carac- produção de falsas memórias seja tido em conta terizar, quer a recordação de acontecimentos que durante o exercício da prática do psicólogo. nunca ocorreram, quer a recordação distorcida de acontecimentos, isto é, de uma forma dife- Referências rente da informação originalmente processada (DePrince, Allard, Oh, & Freyd, 2004; Pezdek Bartlett, F. C. (1997). Remembering: A study in ex- & Lam, 2007; Roediger & McDermott, 1995). perimental and social psychology. Cambridge, MA: Cambridge University Press. (Original Os resultados e conclusões dos estudos ex- publicado em 1932) perimentais sobre falsas memórias depressa ti- veram repercussão na sociedade em geral, uma Binet, A. (1900). La suggestibilité [On suggestibil- vez que tornou evidente que todos os indivíduos ity]. Paris: Schleicher Frères. estão sujeitos a este tipo de erro, o que pode ter Brainerd, C. J., & Reyna, V. F. (2005). 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Este artigo está distribuído nos termos da Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0 (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/), que permite o uso, distribuição e reprodução sem restrições em qualquer meio, desde que você dê crédito apropriado ao(s) autor(es) original(ais) e à fonte, fornecer um link para a licença Creative Commons e indicar se as alterações foram feitas. Trends Psychol., Ribeirão Preto, vol. 26, nº 4, p. 1763-1773 - Dezembro/2018

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