Friedrich Nietzsche: Ecce Homo (PDF)
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Friedrich Wilhelm Nietzsche
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This document is a biography of the famous philosopher Friedrich Nietzsche. It details his life, ideas, and major works. It includes a chronological overview of key events and insights into writing style and influences.
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DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra...
DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros, disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.Info ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível. SUMÁRIO Sumário cronológico da vida de Nietzsche Prólogo Por que sou tão sábio Por que sou tão inteligente Por que escrevo tão bons livros O nascimento da tragédia As extemporâneas Humano, demasiado humano Aurora A gaia ciência Assim falou Zaratustra Além do bem e do mal Genealogia da moral Crepúsculo dos ídolos O caso Wagner Por que sou um destino Notas (com variantes do texto) Apêndice: Uma carta Posfácio Glossário de nomes de pessoas Sobre o autor e o tradutor SUMÁRIO CRONOLÓGICO DA VIDA DE NIETZSCHE 1844 15 de outubro: Friedrich Wilhelm Nietzsche nasce em Röcken, na Saxônia. Seu pai, Karl Ludwig Nie- tzsche, é o pastor do lugar. Tanto ele como a esposa, Franziska, são filhos de pastores luteranos. 1846 10 de julho: nasce a irmã Elisabeth. 1848 Em fevereiro, nasce o irmão Joseph, que viveria somente dois anos. Preocupação do pai com os acontecimentos políticos (revolução de 1848). Grave doença dele. 1849 Em julho, morte do pai aos 36 anos; segundo o diagnóstico da época, por “amolecimento do cérebro”. 1850 A família — o garoto, a mãe, a irmã, a avó paterna e duas tias — muda-se para Naumburg, na Turíngia. 1851 Começa a freqüentar uma escola preparatória para o ginásio. A mãe lhe dá um piano. Primeiras aulas de música. 1854 Entra para o ginásio de Naumburg. Primeiros ensaios com a poesia. Paixão pela música. Fortemente impressionado pelo Messias de Haendel. 1856 Poemas e composições musicais. Tem licença da escola durante o verão, devido a dores de cabeça e dores nos olhos. 1858 É admitido na Escola de Pforta, um prestigioso internato de educação clássica. Precisa usar óculos de lentes grossas, para miopia. Primeiro escrito autobiográfico: “Da minha vida”. 1860 Forma, com dois amigos, uma sociedade literária e musical, a “Germânia”, para estimular as produções individuais. Leituras escolares: Homero, Lívio, Cícero. 1861 Confirmação na fé protestante. Primeiros desentendimentos com a mãe acerca da religião. Trava conhecimento com a música de Wagner. Mas Schumann é o compositor favorito, e Hoelderlin o poeta. Leituras: Homero, Tucídides, Virgílio, Salústio. 1862 Março: apresenta à “Germânia” uma dissertação sobre “Fado e história” [Fatum und Geschichte], que já prenuncia os temas e as inquietações de seu pensamento adulto. Leituras: Emerson, Maquiavel, Horácio. 1863 Fim da “Germânia”: somente ele ainda produzia trabalhos. Preocupações sobre a escolha da profissão. Leituras dos líricos gregos. 1864 Trabalho escolar sobre Sófocles, Édipo rei. Dissertação final sobre Teógnis. Matricula-se na Universidade de Bonn como estudante de teologia. 1865 Decide não mais compor. Visita Colônia. Sérios desentendimentos com a mãe; abandona a teologia. Resolve se transferir para Leipzig e estudar filologia clássica com Ritschl. Descoberta de Schopenhauer. Continua a compor. 1866 Conferência sobre Teógnis na Sociedade Filológica. Seu mestre Ritschl afirma jamais ter lido algo semelhante de um aluno. Lê a História do materialismo, de F. A. Lange. Amizade com Erwin Rohde. 1867 Primeira publicação, numa revista de filologia. Pensa em escrever uma história crítica da literatura grega. Sua pesquisa sobre as fontes de Diógenes Laércio é premiada. “Agora caem-me os antolhos, e vejo que durante muito tempo vivi em estado de inocência estilística. O imperativo categórico, ‘deves e tens que escrever’, me despertou” (carta ao amigo Carl von Gersdorff, 6/4/67). Em outubro, começa a cumprir um ano de serviço militar. 1868 Trabalhos filológicos publicados. Estudos de Demócrito e Kant. Em março, acidente ao montar cavalo, com séria ferida no peito. Crescente interesse pela filosofia: “Falando mitologicamente, vejo a filologia como um aborto da deusa filosofia” (ao amigo Paul Deussen, outubro de 1868). Novembro: conhece Richard Wagner. 1869 Por recomendação de Ritschl, é chamado para a cadeira de filologia clássica da Universidade da Basiléia, na Suíça. A Universidade de Leipzig concede-lhe o doutorado, sem tese nem exames. Em maio, primeira visita a Richard e Cosima Wagner, em Tribschen, perto de Lucerna. Fim de maio: aula inaugural na Basiléia, sobre “Homero e a filologia clássica”. Conhece o historiador Jacob Burckhardt, também professor na Universidade. “Ciência, arte e filosofia crescem tão juntas em mim, que um dia parirei centauros” (a Erwin Rohde, abril de 1870). 1870 Palestras sobre “O drama musical grego” e “Sócrates e a tragédia”. Amizade com o teólogo Franz Overbeck, recém-chegado à Basiléia. Em agosto, tem licença para participar da guerra franco-prussiana, como enfermeiro. Adoece gravemente e volta à Basiléia. Passa o Natal com os Wagner. 1871 Candidata-se — sem sucesso — à cadeira de filosofia da Universidade. Sofre da saúde; obtém férias para se tratar. Escreve O nascimento da tragédia. Visita Wagner freqüentemente em Tribschen. 1872 Publicação de O nascimento da tragédia [a partir] do espírito da música (janeiro). Palestras “Sobre o futuro de nossas instituições de ensino”. Preleções sobre os filósofos pré-platônicos. Controvérsia em torno do Nascimento da tragédia: reação negativa do mundo acadêmico; Rohde e Wagner defendem Nietzsche em artigos. Em abril: os Wagner deixam a Suíça, vão para Bayreuth. Durante três anos Nietzsche visitou-os — foi seu hóspede — 23 vezes. “Pois o que seríamos nós, se não o tivéssemos, e o que seria eu, por exemplo, senão... um ser nascido morto!” (carta a Wagner, 20/5/73). Maio: vai a Bayreuth para a solenidade da pedra fundamental do teatro; conhece Malwida von Meysenbug. Escreve o primeiro dos “Cinco prefácios a cinco livros não escritos”, intitulado “Sobre o pathos da verdade”. 1873 Escreve e publica a primeira das Considerações extemporâneas, “David Strauss, o crente e o escritor”. Sofre de cefaléias e problemas com a visão. A partir deste ano estará sempre doente. Março: anotações sobre “a filosofia na época trágica dos gregos”. Leitura de tratados de química e física. Junho: proibido de ler e escrever por ordem médica (olhos), dita o ensaio “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. Outubro-dezembro: segunda Extemporânea, “Utilidade e desvantagem da história para a vida”. Conhece Paul Rée. Publicação do livro de Overbeck Sobre a cristicidade [Christlichkeit] de nossa teologia atual. 1874 A segunda Extemporânea é publicada. Compõe um Hino à amizade. Revisa as composições da juventude. “Para mim será sempre extraordinário como se manifesta na música a imutabilidade do caráter: o que o menino nela expressa é tão claramente a linguagem da essência de sua natureza, que também o homem nada deseja ver mudado...” (a Malwida von Meysenbug, 2/1/75). Redação e publicação da terceira Extemporânea, “Schopenhauer como educador”. A irmã passa longas temporadas com ele. 1875 “Agora gostaria, falando confidencialmente, de ter em breve uma boa mulher...” (a Malwida, 25/10/75). Em novembro, o jovem músico Heinrich Koeselitz procura-o na Basiléia, dizendo ser seu admirador (ele ficaria conhecido pelo pseudônimo artístico que Nietzsche lhe deu mais tarde, Peter Gast). Redação da quarta Extemporânea, “Richard Wagner em Bayreuth”. Crise de saúde no final do ano: passa semanas prostrado. 1876 Tem licença prolongada da Universidade, para cuidar da saúde. Propõe casamento a uma certa Mathilde Trampedach, em Genebra, e é recusado. A quarta Extemporânea é publicada, por injunção de Peter Gast. Em agosto, o primeiro dos festivais de Bayreuth. Nietzsche assiste apenas a uma parte; retorna à Basiléia. Afastamento de Wagner. Em outubro, vai para Sorrento, Itália, com Paul Rée, Malwida von Meysenbug e outro amigo. Durante seis meses, formam uma “família” de pensadores. Durante este ano e o seguinte, anotações que se transformariam em Humano, demasiado humano. Em Sorrento, último encontro com Wagner. “Cada vez mais olho para os filósofos gregos como modelos para o modo de vida a ser alcançado” (a Gersdorff, 26/5/76). 1877 Volta para a Basiléia no outono e retoma as aulas. A irmã torna a cuidar de sua casa; também Peter Gast mora com ele e lhe serve de secretário. Publicação do livro de Rée A origem dos sentimentos morais. 1878 Peter Gast muda-se para Veneza. Em maio, publicação de Humano, demasiado humano. “Nele exteriorizei minhas mais íntimas impressões sobre os homens e as coisas, e pela primeira vez tracei os contornos do meu próprio pensamento” (a Wagner, ao enviar-lhe o volume). O livro é mal recebido pelos Wagner: atribuem o seu “novo modo de pensar” à influência do judeu Paul Rée. Wagner publica um ataque a Nietzsche, sem mencionar seu nome. Mas para Jacob Burckhardt trata-se de “um livro soberano”. 1879 Publica “Opiniões e sentenças variadas”, continuação de Humano, demasiado humano. O estado de saúde piora ainda mais. Abandona a Universidade, passa a receber uma pensão anual. Em junho, deixa definitivamente a Basiléia, após dez anos como professor. Viverá os dez anos seguintes como filósofo errante. Parte inicialmente para St. Moritz, onde escreve “O andarilho e sua sombra”. Passa o inverno com a mãe e a irmã em Naumburg. Durante esse ano, esteve incapacitado por 118 dias. 1880 “Minha existência é um fardo terrível: há muito teria me livrado dele, se não fizesse os mais esclarecedores experimentos, no campo moral-espiritual, precisamente nesse estado de sofrimento e quase absoluta renúncia” (ao médico Otto Eisler, início de 80). Publica “O andarilho e sua sombra”, segunda continuação de Humano, demasiado humano. Visita Peter Gast em Veneza; dita para ele muitos dos aforismos que formariam Aurora. Lê Stifter e Stendhal. “Vivo como se os séculos nada fossem, e persigo meus pensamentos, sem me preocupar com o dia ou com os jornais” (a Overbeck, novembro de 80). 1881 Publica Aurora em junho. O título é de Gast, da citação indiana que sugeriu como epígrafe: “Há tantas auroras que não brilharam ainda” (Rig Veda). Vai à localidade de Sils-Maria, na Alta Engadina, Suíça. Desce para o sul no inverno: Gênova. A partir de então, passará quase sempre o verão nas montanhas, em Sils Maria, e o inverno junto ao mar, na Riviera francesa e italiana. Primeiros sinais de Zaratustra: “Em meu horizonte surgiram pensamentos como jamais vi semelhantes [...] Tenho que viver alguns anos ainda! [...] As intensidades do meu sentir fazem-me rir e tremer [...] Em minhas andanças [...] chorava muito, não lágrimas sentimentais, mas lágrimas de júbilo; cantava e falava absurdos, pleno de uma nova visão que possuo adiante de todos os homens” (a Peter Gast, 14/8/81). “Nelas [nas próprias obras] há algo que sempre ofende o meu pudor: são reflexos de um ser sofredor, imperfeito, que mal dispõe dos órgãos mais necessários — eu com freqüência me vejo como o rabisco que um poder desconhecido traça no papel, experimentando uma nova pena” (também a Gast, fim de agosto de 81). 1882 A gaia ciência publicado em agosto. Em abril, vai para a Sicília, depois para Roma, onde Paul Rée apresenta- lhe Lou Salomé. Nietzsche se apaixona, quer fazer dela sua discípula e companheira; propõe-lhe casamento, é recusado. Ele e Rée rivalizam no amor a Salomé, que só deseja amizade. Viajam juntos: forma-se um “ménage à trois platônico” (expressão de R. J. Hollingdale). A irmã de Nietzsche intervém, com intrigas e falso moralismo. Ele age mal para com Salomé e Rée, é por eles abandonado, briga seriamente com a mãe e a irmã. Ao final do episódio, em novembro, está física e emocionalmente exausto, à beira do suicídio. Sobre o seu sofrimento: “Se não invento a alquimia de transformar esta imundície em ouro, estou perdido” (a Overbeck, 25/12/82). 1883 Fevereiro: escreve a primeira parte de Assim falou Zaratustra. Richard Wagner morre em Veneza, aos 69 anos. “Wagner foi, de longe, o homem mais pleno que conheci” (a Overbeck, 22/2/83). Escreve a segunda parte do Zaratustra no verão; publica as duas. “Cada palavra do meu Zaratustra é um sarcasmo triunfal e mais que um sarcasmo sobre os ideais desta época” (à irmã, fim de agosto de 83). “O curioso perigo deste verão é para mim — para não fugir à palavra feia — a loucura” (a Gast, 26/8/83). 1884 Janeiro: Zaratustra, terceira parte. “Quero levar a humanidade a resoluções que decidirão sobre todo o futuro humano, e pode acontecer que um dia milênios inteiros façam em meu nome seus votos mais elevados” (a Malwida von Meysenbug, de Veneza, 21/5/84). Em agosto, recebe a visita de Heinrich von Stein em Sils-Maria. Visita Gottfried Keller em Zurique (para ele, o maior escritor vivo de língua alemã). 1885 Zaratustra, quarta parte — impressa em pequena edição privada. Em maio: a irmã se casa, para seu desgosto, com um líder anti-semita, Bernhard Förster. Os dois viajam para a América do Sul no início de 1886, para fundar uma colônia alemã (ariana) no Paraguai. 1886 Escreve, e publica às próprias custas, a sua obra central: Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro (agosto). Escreve prefácios para novas edições das obras anteriores; “são talvez a melhor prosa que escrevi até agora” (a Overbeck, 14/11/86). Planeja uma summa philosophica que se chamaria A vontade de poder. “No momento falta-me in puncto musicae uma estética, quero dizer: eu tenho um ‘gosto’, mas nenhum motivo, nenhuma lógica, nenhum imperativo para esse gosto. Mesmo psicologicamente verificado, o problema ‘por que me agrada sua música’ parece-me por ora insolúvel. Você mesmo tornou-se-me com isso um enigma, e — curioso! — após alguma reflexão achei problema semelhante com relação à minha própria produção (o ‘Zaratustra’)” (a Peter Gast, 19/11/86). 1887 A genealogia da moral escrito em julho e publicado em novembro. Ouve pela primeira vez a abertura de Tristão e Isolda, de Wagner. “Você conhece Dostoiévski? Com exceção de Stendhal, não conheço ninguém que me tenha produzido tal prazer e tal surpresa: um psicólogo com o qual ‘me entendo’” (a Gast, 13/2/87). “Minha saúde...: há algum profundo entrave psicológico, cuja sede e origem não sou capaz de apontar... — sem qualquer exagero, faz agora um ano em que não houve um dia em que eu me sentisse bem disposto e contente de corpo e de espírito. Essa permanente depressão (dia e também noite) é pior que as crises violentas e tão dolorosas a que estou sujeito com tamanha freqüência” (a Overbeck, 30/6/87). “A contradição de minha existência está em que tudo o que eu, como filósofo radical, necessito de modo radical — estar livre de profissão, de mulher e filhos, de amigos, da sociedade, da pátria, da fé, estar livre quase de amor e ódio — é também o que sinto como outras tantas privações, pois felizmente sou um ser vivo, e não um aparelho de abstrações” (à irmã, julho de 87). “... conheço suficientemente os homens para saber como terá mudado o juízo sobre mim daqui a cinqüenta anos, e em que glória e veneração o nome de teu filho brilhará então, graças às mesmas coisas pelas quais fui até agora maltratado e insultado” (à mãe, 18/10/87). 1888 Início da repercussão: em Copenhague, o judeu dinamarquês Georg Brandes faz conferência sobre ele. Na Suíça aparece o primeiro ensaio sobre o conjunto de sua obra. Zaratustra é traduzido para o francês. Escreve e publica O caso Wagner; abandona o projeto de A vontade de poder; planeja uma Tresvaloração de todos os valores; escreve O crepúsculo dos ídolos, O Anticristo e Ecce homo; conclui os Ditirambos de Dionísio; prepara Nietzsche contra Wagner, reunindo trechos de obras anteriores. “Receio ser músico demais para não ser romântico. Sem música, a vida para mim seria um erro” (a Georg Brandes, 27/3/88). No início do ano está em Nice; vai para Turim em abril; última estada em Sils-Maria (junho-setembro); volta para Turim. Manifestações de euforia nas obras e nas cartas. Procura tradutores para seus livros. Correspondência com Strindberg. Sobre este, a Peter Gast: “Interessante como concordamos inteiramente acerca da mulher...”. Última carta à mãe: “Na verdade, teu velho filho é agora um sujeito famoso... Tenho naturezas seletas entre meus admiradores...” (21/12/88). 1889 3 de janeiro: colapso (Zusammenbruch, effondrement) na piazza Carlo Alberto. Nos dias seguintes escreve cartas e bilhetes insensatos a amigos e conhecidos, assinando “Dionísio” ou “O Crucificado”. Overbeck vai a Turim para buscá-lo: “Enxerguei Nietzsche em um canto do sofá... com aparência bastante arruinada; correu até mim e me abraçou fortemente ao me reconhecer, e rompeu em lágrimas; então afundou no sofá em convulsões, e o choque também não me permitiu permanecer em pé” (carta a Gast, 15/1/89). Leva-o para a Basiléia (10 de janeiro), onde é examinado na “clínica de nervos” da Universidade. O diagnóstico é paralisia progressiva de origem sifilítica. A infecção teria ocorrido numa visita a um bordel, quando estudante. (A medicina da época não nos permite, atualmente, ter certeza absoluta quanto ao diagnóstico. Há um alto grau de probabilidade, sobretudo porque a história de seus tormentos, de 1871 até a derrocada final, condiz com o que se sabe da doença. O que não exclui a possibilidade da ação conjunta de outras doenças.) A mãe chega à Basiléia, leva-o para Iena (17 de janeiro), onde é internado na clínica psiquiátrica da Universidade. O dr. Binswanger confirma o caráter irreversível da doença. O crepúsculo dos ídolos é publicado em janeiro; Nietzsche contra Wagner aparece em edição limitada. Os amigos resolvem adiar a publicação de Ecce homo (que só aconteceria em 1908). Em junho, o cunhado suicida-se no Paraguai, devido ao fracasso de sua empresa colonial. 1890 Julius Langbehn, um charlatão místico, conquista a confiança de frau Nietzsche e promete curá-lo. Exige a tutela legal sobre o doente. Papel deplorável de Peter Gast, que também acredita nele. Overbeck intervém e afasta Langbehn. Em maio, Nietzsche passa a viver sob os cuidados da mãe, em Naumburg, na casa de sua infância (volta aos cuidados da mãe). Demência progressiva, os amigos que o visitam referem-se à “ausência do espírito”, à “apatia”. Toca piano quase diariamente. 1893 A irmã retorna do Paraguai. Cresce a literatura sobre Nietzsche. Durante a década, são publicados cerca de quarenta livros sobre ele. Também suas obras vendem cada vez mais. São planejadas edições das obras completas. 1894 A irmã funda um Arquivo Nietzsche, na casa onde moram. 1895 Publicação de O Anticristo e Nietzsche contra Wagner A irmã obtém da mãe, de maneira pouco escrupulosa, os direitos sobre toda a obra (incluindo as milhares de páginas de anotações e rascunhos). Começa a publicar sua biografia do irmão, em vários volumes; nela falsifica cartas, fazendo-o parecer mais próximo dela e de suas convicções anti-semitas. Em Nietzsche, prossegue a dissolução do espírito: Overbeck o visita e não é mais reconhecido. 1896 A irmã transfere o arquivo para Weimar, onde vieram Goethe e Schiller. 1897 Abril: morte da mãe. A irmã leva Nietzsche para Weimar; aloja-o numa grande vila, juntamente com o arquivo. 1900 Morte de Nietzsche, em 25 de agosto. Como causa imediata, uma infecção pulmonar. É sepultado três dias depois em Röcken, o lugarejo natal. Na cerimônia do enterro, Peter Gast diz: “Sagrado seja teu nome para todas as gerações vindouras”. Nota: Para fazer este sumário, foram utilizadas algumas coletâneas de cartas, a biografia de Curt Paul Janz (edição de bolso, 3 volumes, dtv, Munique, 1981) e a Nietzsche-Chronik de Karl Schlechta (Carl Hanser, Munique, 1975) — pcs. PRÓLOGO 1. Prevendo que dentro em pouco devo dirigir-me à humanidade com a mais séria exigência que jamais lhe foi colocada, parece-me indispensável dizer quem sou. Na verdade já se deveria sabê-lo, pois não deixei de “dar testemunho” de mim. Mas a desproporção entre a grandeza de minha tarefa e a pequenez de meus contemporâneos manifestou-se no fato de que não me ouviram, sequer me viram. Vivo de meu próprio crédito; seria um mero preconceito, que eu viva?... Basta-me falar com qualquer “homem culto” que venha à Alta Engadina no verão para convencer-me de que não vivo... Nessas circunstâncias existe um dever, contra o qual no fundo rebelam-se os meus hábitos, e mais ainda o orgulho de meus instintos, que é dizer: Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal. Sobretudo não me coufundam! 2. Não sou, por exemplo, nenhum bicho-papão, nenhum monstro moral — sou até mesmo uma natureza oposta à espécie de homem que até agora se venerou como virtuosa. Cá entre nós, parece-me que justamente isso forma parte de meu orgulho. Sou um discípulo do filósofo Dionísio, preferiria antes ser um sátiro a ser um santo. Mas leia-se este escrito. Talvez eu o tenha conseguido, talvez não tenha ele outro sentido senão expressar essa oposição de maneira feliz e afável. A última coisa que eu prometeria seria “melhorar” a humanidade. Eu não construo novos ídolos; os velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para “ideais”) — isto sim é meu ofício. A realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal... O “mundo verdadeiro” e o “mundo aparente” — leia-se: o mundo forjado e a realidade... A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através dela a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos — a ponto de adorar os valores inversos aos únicos que lhe garantiriam o florescimento, o futuro, o elevado direito ao futuro. 3. — Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar das alturas, um a r forte. É preciso ser feito para ele, senão há o perigo nada pequeno de se resfriar. O gelo está próximo, a solidão é monstruosa — mas quão tranqüilas banham-se as coisas na luz! Com que liberdade se respira! Quantas coisas sente-se abaixo de si! — filosofia, tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes — a busca de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até agora baniu. Uma longa experiência, trazida por tais andanças pelo proibido, ensinou-me a considerar de modo bem diferente do desejável as razões pelas quais até agora se moralizou e se idealizou: a história oculta dos filósofos, a psicologia de seus grandes nomes surgiu-me às claras. Quanta verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito? Cada vez mais tornou- se isto para mim a verdadeira medida de valor. Erro (— a crença no ideal —) não é cegueira, erro é covardia... Cada conquista, cada passo adiante no conhecimento é conseqüência da coragem, da dureza consigo, da limpeza consigo... Eu não refuto os ideais, apenas ponho luvas diante deles... Nitimur in vetitum:* com este signo vencerá um dia minha filosofia, pois até agora proibiu-se sempre, em princípio, somente a verdade. — 4. Entre minhas obras ocupa o meu Zaratustra um lugar à parte. Com ele fiz à humanidade o maior presente que até agora lhe foi feito. Esse livro, com uma voz de atravessar milênios, é não apenas o livro mais elevado que existe, autêntico livro do ar das alturas — o inteiro fato homem acha-se a uma imensa distância abaixo dele —, é também o mais profundo, o nascido da mais oculta riqueza da verdade, poço inesgotável onde balde nenhum desce sem que volte repleto de ouro e bondade. Aqui não fala nenhum “profeta”, nenhum daqueles horrendos híbridos de doença e vontade de poder chamados fundadores de religiões. É preciso antes de tudo ouvir corretamente o som que sai desta boca, este som alciônico, para não se fazer deplorável injustiça ao sentido de sua sabedoria. “As palavras mais silenciosas são as que trazem a tempestade, pensamentos que vêm com pés de pomba dirigem o mundo —”1 Os figos caem das árvores, são bons e doces: e ao caírem rasga-se sua pele rubra. Um vento do norte sou para os figos maduros. Assim, como figos vos caem esses ensinamentos, meus amigos: bebei seu sumo e sua doce polpa! É outono em torno e puro céu e tarde. Aí não fala um fanático, aí não se “prega”, aí não se exige fé: é de uma infinita plenitude de luz e profundeza de felicidade que vêm gota por gota, palavra por palavra — uma delicada lentidão é a cadência dessas falas. Tais coisas alcançam apenas os mais seletos; ser ouvinte é aqui um privilégio sem igual; não é dado a todos ter ouvidos para Zaratustra... Com tudo isso, não será Zaratustra um sedutor?... Mas o que diz ele mesmo, ao retornar pela primeira vez à sua solidão? Precisamente o oposto do que diria em tal caso qualquer “sábio”, “santo”, “salvador do mundo” ou outro décadent...2 Ele não apenas fala diferente, ele é também diferente... Agora prossigo só, meus discípulos! E vós também, ide embora, sós! Assim o quero. Afastai-vos de mim e defendei-vos contra Zaratustra! Melhor: envergonhai-vos dele! Talvez ele vos tenha enganado. O homem do conhecimento deve poder não somente amar seus inimigos, como também odiar seus amigos. Retribui-se mal a um mestre, continuando-se sempre apenas aluno. E por que não quereis arrancar louros da minha coroa? Vós me venerais; mas e se um dia vossa veneração desmoronar? Guardai-vos de que não vos esmague uma estátua! Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra! Sois os meus crentes, mas que importam todos os crentes! Ainda não vos havíeis procurado: então me encontrastes. Assim fazem todos os crentes; por isso valem tão pouco todas as crenças. Agora ordeno que me percais e vos encontreis; e somente quando me tiverdes todos renegado retornarei a vós...3 Friedrich Nietzsche * “Lançamo-nos ao proibido” (Ovídio). (N. T.) Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não só a videira doura, caiu-me na vida um raio de sol: olhei para trás, olhei para a frente, jamais vi tantas e tão boas coisas de uma só vez. Não foi em vão que enterrei hoje o meu quadragésimo quarto ano, era-me lícito sepultá-lo — o que nele era vida está salvo, é imortal. O primeiro livro da Tresvaloração de todos os valores ,4 as Canções de Zaratustra, o Crepúsculo dos ídolos, meu ensaio de filosofar com o martelo — tudo dádivas desse ano, aliás de seu último trimestre! Como não deveria ser grato à minha vida inteira? — E assim me conto minha vida. POR QUE SOU TÃO SÁBIO 1. A fortuna de minha existência, sua singularidade talvez, está em sua fatalidade: diria, em forma de enigma, que como meu pai já morri, e como minha mãe ainda vivo e envelheço. Essa dupla ascendência, como que do mais elevado e do mais rasteiro degrau da vida, a um tempo décadent e começo — isso explica, se é que algo explica, tal neutralidade, tal ausência de partidarismo em relação ao problema global da vida, que acaso me distingue. Para os sinais de ascensão e declínio tenho um sentido mais fino do que homem algum jamais teve, nisto sou o mestre par excellence — conheço ambos, sou ambos. — Meu pai morreu com trinta e seis anos: ele era suave, amável e mórbido, como um ser destinado a simplesmente passar — antes uma bondosa lembrança da vida do que a vida mesma. No mesmo ano em que sua vida cedia, também a minha declinava: aos trinta e seis anos atingi o ponto mais baixo de minha vitalidade — ainda vivia, sem no entanto enxergar três passos adiante. Então — era o ano de 1879 — abandonei minha cátedra na Basiléia, vivi o verão como uma sombra em St. Moritz e o inverno seguinte, o mais pobre em sol de minha vida, sendo sombra em Naumburg. Esse foi meu nadir: “O andarilho e sua sombra” nasceu durante ele. Indubitavelmente, eu entendia de sombras então... No outro inverno, meu primeiro inverno genovês, aquela dulcificação e espiritualização quase inseparável de uma extrema pobreza em sangue e músculo produziu Aurora. A perfeita luz e alegria, mesmo exuberância do espírito, que a referida obra reflete, harmoniza-se em mim não só com a mais profunda fraqueza fisiológica, mas até mesmo com um excesso da sensação de dor. Em meio ao martírio que traz consigo uma incessante dor de cabeça de três dias, acompanhada de penosa expectoração — possuía eu uma clareza de dialético par excellence e pensava inteiramente, com sangue-frio, coisas para as quais em condições mais sãs não sou ousado, refinado e frio o bastante. Meus leitores sabem talvez até que ponto vejo a dialética como sintoma de décadence, por exemplo no mais famoso dos casos: o caso de Sócrates. — Todas as perturbações doentias do intelecto, mesmo aquele semi- entorpecimento que acompanha a febre, foram-me até hoje estranhas, coisas sobre cuja natureza e freqüência tive de me informar por via erudita. Meu sangue corre lentamente. Ninguém pôde jamais constatar febre em mim Um médico que tratou-me por algum tempo como doente dos nervos disse afinal: “Não, não é com os seus nervos, eu é que sou nervoso”. Impossível demonstrar qualquer degeneração local; nenhum mal do estômago de causa orgânica, embora freqüentemente, como conseqüência do esgotamento geral, grande debilidade do sistema gástrico. Também o mal da vista, por vezes aproximando-se perigosamente da cegueira, apenas decorrência, nada causal: de modo que a cada aumento da força vital também a força da visão cresceu. — Restabelecimento significa em mim uma longa, demasiado longa sucessão de anos — significa também, infelizmente, recaída, decaída, periodicidade de uma espécie de décadence. Necessito dizer, após tudo isso, que sou experimentado em questões de décadence? Conheço-a de trás para a frente. Inclusive aquela arte de filigrana do prender e apreender, aqueles dedos para nuances, aquela psicologia do “ver além do ângulo”, e o que mais me seja próprio, tudo foi então aprendido, é a verdadeira dádiva daquele tempo em que tudo em mim se refinava, tanto a observação mesma como os órgãos da observação. Da ótica do doente ver conceitos e valores mais sãos, e, inversamente, da plenitude e certeza da vida rica descer os olhos ao secreto lavor do instinto de décadence — este foi o meu mais longo exercício, minha verdadeira experiência, se em algo vim a ser mestre, foi nisso. Agora tenho-o na mão, tenho mão bastante para deslocar perspectivas: razão primeira porque talvez somente para mim seja possível uma “tresvaloração dos valores”.5 2. Sem considerar que sou um décadent, sou também o seu contrário. Minha prova para isso é, entre outras, que instintivamente sempre escolhi os remédios certos contra os estados ruins: enquanto o décadent em si sempre escolhe os meios que o prejudicam. Como summa summarum [totalidade] eu era sadio, como ângulo, como especialidade era décadent. Aquela energia para o absoluto isolamento e desprendimento das relações habituais, a imposição de não mais me deixar cuidar, servir, socorrer6 — isso trai a incondicional certeza de instinto sobre o que, então, era mais que tudo necessário. Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso — qualquer fisiólogo admitirá — é ser no fundo sadio. Um ser tipicamente mórbido não pode ficar são, menos ainda curar-se a si mesmo; para alguém tipicamente são, ao contrário, o estar enfermo pode ser até um enérgico estimulante ao viver, ao mais-viver. De fato, assim me aparece agora aquele longo tempo de doença: descobri a vida e a mim mesmo como que de novo, saboreei todas as boas e mesmo pequenas coisas, como outros não as teriam sabido saborear — fiz da minha vontade de saúde, de vida, a minha filosofia... Pois atente-se para isso: foi durante os anos de minha menor vitalidade que deixei de ser um pessimista: o instinto de auto-restabelecimento proibiu-me uma filosofia da pobreza e do desânimo... E como se reconhece, no fundo, a vida que vingou?7 Um homem que vingou faz bem a nossos sentidos: ele é talhado em madeira dura, delicada e cheirosa ao mesmo tempo. Só encontra sabor no que lhe é salutar; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do salutar é ultrapassada. Inventa meios de cura para injúrias, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o fortalece. De tudo o que vê, ouve e vive forma instintivamente sua soma: ele é um princípio seletivo, muito deixa de lado. Está sempre em sua companhia, lide com homens, livros ou paisagens: honra na medida em que elege, concede, confia. Reage lentamente a toda sorte de estímulo, com aquela lentidão que uma larga previdência e um orgulho conquistado nele cultivaram — interroga o estímulo que se aproxima, está longe de ir ao seu encontro. Descrê de “infortúnio” como de “culpa”: acerta contas consigo, com os outros, sabe esquecer — é forte o bastante para que tudo tenha de resultar no melhor para ele. — Pois bem, eu sou o oposto de um décadent: pois acabo de descrever a mim mesmo. 3.8 Esta dupla série de experiências, esta acessibilidade a mundos aparentemente separados repete-se em minha natureza em todo aspecto — eu sou um sósia, possuo também a “segunda” visão, além da primeira. E talvez ainda uma terceira... Já minha ascendência permite-me enxergar além das perspectivas puramente locais, puramente nacionais; não me exige esforço ser um “bom europeu”. Por outro lado, sou talvez mais alemão do que ainda podem ser os alemães de hoje, meros alemães do Reich9 — eu, o último alemão antipolítico. E no entanto, meus antepassados eram nobres poloneses: deles tenho muito instinto de raça no corpo, quem sabe até mesmo ainda o liberum veto.10 Se penso no quão freqüentemente, em viagens, sou abordado como se fosse polonês, até por poloneses, e no quão raramente tomam-me por alemão, poderia parecer que pertenço aos alemães malhados. Mas minha mãe, Franziska Oehler, é de qualquer modo bastante alemã; assim também minha avó paterna. Erdmuthe Krause. Esta última passou toda a sua juventude na velha e boa Weimar, não sem relação com o círculo de Goethe. Seu irmão, o catedrático de teologia Krause, de Königsberg, foi chamado a Weimar como superintendente geral, após a morte de Herder. Não é impossível que sua mãe, minha bisavó, seja a que aparece no diário do jovem Goethe sob o nome de “Muthgen”. Ela se casou em segundas núpcias com o superintendente Nietzsche, de Eilenburg; deu à luz no dia do grande ano de guerra em que Napoleão entrou em Eilenburg com seu estado-maior, em 10 de outubro de 1813. Como saxã, era grande admiradora de Napoleão; pode ser que eu ainda o seja. Meu pai, nascido em 1813, morreu em 1849. Antes de assumir o cargo de pastor da comunidade de Roecken, pouco distante de Lützen, viveu alguns anos no castelo de Altenburg, como preceptor das quatro princesas. Suas alunas são a rainha de Hannover, a grã-duquesa Constantin, a grã-duquesa de Oldenburg e a princesa Therese de Saxe-Altenburg. Ele tinha profunda reverência pelo rei Frederico Guilherme iv da Prússia, graças a quem foi pastor; os acontecimentos de 1848 perturbaram-no sobremaneira. Eu próprio, nascido no dia de anos do mencionado rei, 15 de outubro, recebi apropriadamente os nomes de Frederico Guilherme, habituais entre os Hohenzollern. A escolha desse dia teve de qualquer modo uma vantagem: durante toda a minha infância meu aniversário foi dia de festas. — Vejo como um grande privilégio haver tido tal pai: parece-me mesmo que assim se explica tudo o mais que possuo em privilégios — a vida, o grande Sim à vida não incluído. Sobretudo, que não me seja preciso aspirar, mas tão-somente esperar, para transpor involuntariamente um mundo de coisas mais elevadas e delicadas: lá estou em casa, minha mais íntima paixão torna-se lá somente livre. Que eu tenha pago quase com a vida esse privilégio não é, certamente, um negócio injusto. — Para compreender um pouco que seja do meu Zaratustra, é necessário talvez estar em condição semelhante à minha — com um pé além da vida... 4. Nunca entendi da arte de indispor contra mim — também isso devo a meu incomparável pai — mesmo quando me pareceu de grande valor. Embora possa parecer pouco cristão, não sou sequer indisposto contra mim mesmo, pode-se virar e revirar minha vida, nela se descobrirá raramente, apenas uma vez, no fundo, indícios de que alguém tenha mantido má vontade para comigo — talvez surjam, porém, indícios em excesso de boa vontade... Mesmo minhas experiências com aqueles com quem todos têm más experiências falam a seu favor; eu domo qualquer urso, faço até os bufões se comportarem. Nos sete anos em que ensinei grego à classe mais adiantada do Pädagogium11 da Basiléia, não tive ocasião para impor castigo; os mais relapsos eram industriosos comigo. Sempre estive à altura do inesperado; devo estar despreparado, para estar senhor de mim. Seja qual for o instrumento, esteja ele desafinado como só o instrumento “homem” pode desafinar — eu teria de estar doente, para não conseguir extrair dele algo que se ouvisse. E quantas vezes ouvi dos “instrumentos” mesmos que eles nunca haviam se escutado assim... Da maneira mais bela, talvez, daquele Heinrich von Stein que morreu imperdoavelmente jovem, o qual certa vez, tendo obtido cuidadosamente a permissão para isso, apareceu por três dias em Sils-Maria, esclarecendo a todos que não vinha pela Engadina. Este homem excelente, que com toda a impetuosa inocência de um junker12 prussiano mergulhara no lamaçal de Wagner (— e no de Dühring, ademais!), foi nesses três dias como que transformado por um vendaval de liberdade, como alguém que de repente é alçado à sua altura e recebe asas. Eu lhe dizia sempre que isso vinha do ar bom do local, assim era com todos, não era em vão que estávamos seis mil pés acima de Bayreuth — mas ele não queria crer em mim... Se não obstante sofri mais de uma desfeita, pequena e grande, a causa não foi “a vontade”, muito menos a má vontade: teria antes — já o insinuei — de queixar-me da boa vontade, que produziu transtorno nada pequeno em minha vida. Minha experiência me dá o direito de desconfiar em princípio dos impulsos chamados “desinteressados”, de todo o “amor ao próximo”, sempre disposto à palavra e ao ato. Eu o vejo em si como fraqueza, como caso especial da incapacidade de resistência aos estímulos — a compaixão passa por virtude apenas entre os décadents. O que lanço ao rosto dos compassivos é que lhes escapa facilmente o pudor, a delicadeza, a reverência às distâncias, que compaixão cheira instantaneamente a plebe e assemelha-se às más maneiras a ponto de com elas confundir-se — que mãos compassivas podem por vezes interferir destruidoramente em um grande destino, em uma solidão ferida, em um privilégio à culpa grave. Coloco a superação da compaixão entre as virtudes nobres: narrei poeticamente, como a “Tentação de Zaratustra”, um momento em que lhe vem um grito de socorro, em que a compaixão busca surpreendê-lo como um último pecado, subtraí- lo de si mesmo. Permanecer senhor da situação, manter a altura de sua tarefa limpa dos impulsos mais baixos e míopes que agem nas chamadas ações desinteressadas, eis a prova, a última prova talvez, que um Zaratustra deve prestar — sua verdadeira demonstração de força... 5. Em mais outro ponto sou apenas meu pai novamente, e como que sua sobrevida após uma morte prematura. Assim como todo aquele que nunca viveu entre seus iguais, e a quem a noção de “retribuição” é tão inacessível quanto, por exemplo, a de “direitos iguais”, proíbo-me qualquer contramedida, qualquer medida de proteção, nos casos em que se comete uma estupidez pequena ou muito grande comigo — também, claro, qualquer defesa, qualquer “justificação”. Minha forma de retribuição consiste em fazer seguir à estupidez, o mais rapidamente possível, algo inteligente: talvez assim ainda se possa apanhá-la. Usando uma imagem: envio um recipiente com doces para desfazer-me de uma coisa azeda... Basta que me façam algo de mal, eu o “retribuo”, disso esteja-se seguro: logo encontro oportunidade de expressar minha gratidão ao “malfeitor” (por vezes até pelo malfeito) — ou de pedir-lhe algo, o que pode ser mais cortês do que dar algo... Parece-me também que a palavra mais grosseira, a carta mais grosseira, são ainda mais humanas e mais honestas do que o silêncio. Aos que silenciam falta-lhes quase sempre finura e cortesia do coração; silenciar é uma objeção, engolir as coisas produz necessariamente mau caráter — estraga inclusive o estômago. Todos os calados são dispépticos. — Veja-se que não desejo ver subestimada a grosseria; ela é, de longe, a mais humana forma da contradição, e, em meio ao amolecimento moderno, uma de nossas primeiras virtudes. — Quando se é rico o bastante para isso, é inclusive uma fortuna estar errado. Um deus que viesse à Terra não poderia fazer senão injustiça — tomar a si não a pena, mas a culpa, é que seria divino. 6. Estar livre do ressentimento, estar esclarecido sobre o ressentimento — quem sabe até que ponto também nisso devo ser grato à minha longa enfermidade! O problema não é exatamente simples: é preciso tê-lo vivido a partir da força e a partir da fraqueza. Se existe algo em absoluto a objetar no estado de doença e de fraqueza, é que nele esmorece no homem o verdadeiro instinto de cura, ou seja, o instinto de defesa e ofensa. Não se sabe nada rechaçar, de nada se desvencilhar, de nada dar conta — tudo fere. A proximidade de homem e coisa molesta, as vivências calam fundo demais, a lembrança é uma ferida supurante. Estar doente é em si uma forma de ressentimento. — Contra isso o doente tem apenas um grande remédio — eu o chamo de fatalismo russo, aquele fatalismo sem revolta, com o qual o soldado russo para quem a campanha torna-se muito dura finalmente deita- se na neve. Absolutamente nada mais em si aceitar, acolher, engolir 13 — não mais reagir absolutamente... A grande sensatez desse fatalismo, que nem sempre é apenas coragem para a morte, mas conservação da vida nas circunstâncias vitais mais perigosas, é a diminuição do metabolismo, seu retardamento, uma espécie de vontade de hibernação. Alguns passos adiante nesta lógica e temos o faquir que durante semanas dorme em um túmulo... Porque nos consumiríamos muito rapidamente se reagíssemos, não reagimos mais: esta é a lógica. E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo sentido — para os exaustos é esta certamente a forma mais nociva de reação: produz um rápido consumo de energia nervosa, um aumento doentio de secreções prejudiciais, de bílis no estômago, por exemplo. O ressentimento é o proibido em si para o doente — seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação. — Isso compreendeu aquele profundo fisiólogo que foi Buda. Sua “religião”, que se poderia designar mais corretamente como uma higiene, para não confundi-la com coisas lastimáveis como o cristianismo, fazia depender sua eficácia da vitória sobre o ressentimento: libertar a alma dele — primeiro passo para a convalescença. “Não pela inimizade termina a inimizade, pela amizade termina a inimizade”; isto se acha no começo dos ensinamentos de Buda — assim não fala a moral, assim fala a fisiologia. — O ressentimento, nascido da fraqueza, a ninguém mais prejudicial do que ao fraco mesmo — no outro caso, em que se pressupõe uma natureza rica, um sentimento supérfluo, um sentimento tal que dominá-lo é quase a prova da riqueza. Quem conhece a seriedade com que minha filosofia perseguiu a luta contra os sentimentos de vingança e rancor, até ao interior da doutrina do “livre-arbítrio” — a luta contra o cristianismo é apenas um caso particular dela —, compreenderá por que coloco exatamente aqui em evidência meu comportamento pessoal, minha segurança instintiva na prática. Nos períodos de décadence eu os proibi a mim por prejudiciais; tão logo a vida voltou a ser rica e orgulhosa o bastante para isso, eu os proibi como abaixo de mim. Aquele “fatalismo russo” de que falei mostrou-se em mim no fato de que durante anos apeguei-me tenazmente a situações, paragens, moradas, companhias quase insuportáveis, uma vez que me haviam sido dispostas pelo acaso — era melhor do que mudá-las, do que senti-las como mutáveis — do que revoltar-se contra elas... Perturbar-me nesse fatalismo, despertar-me à força ofendia-me fatalmente então — em verdade sempre foi fatalmente perigoso. — Tomar a si mesmo como um fado, não se querer “diferente” — em tais condições isso é a grande sensatez mesma. 7. Outra coisa é a guerra. Sou por natureza guerreiro. Agredir é parte de meus instintos. Poder ser inimigo, ser inimigo — isso pressupõe talvez uma natureza forte, é em todo caso condição de toda natureza forte. Ela necessita de resistências, portanto busca resistência: o pathos agressivo está ligado tão necessariamente à força quanto os sentimentos de vingança e rancor à fraqueza. A mulher, por exemplo, é vingativa: isso é determinado por sua fraqueza, tanto quanto sua sensibilidade à aflição alheia. — A força do agressor tem na oposição de que precisa uma espécie de medida; todo crescimento se revela na procura de um poderoso adversário — ou problema: pois um filósofo guerreiro provoca também os problemas ao duelo. A tarefa não consiste em subjugar quaisquer resistências, mas sim aquelas contra as quais há que investir toda a força, agilidade e mestria das armas — subjugar adversários iguais a nós... Igualdade frente ao inimigo — primeiro pressuposto para um duelo honesto. Quando se despreza não se pode fazer a guerra; quando se comanda, quando se vê algo abaixo de si, não há que fazer a guerra. Minha prática de guerra pode-se resumir em quatro princípios. Primeiro: ataco somente causas vitoriosas — ocasionalmente, espero até que sejam vitoriosas. Segundo: ataco somente causas em que não encontraria aliados, em que estou só — em que me comprometo sozinho... Nunca dei um passo em público que não me comprometesse — este é o meu critério do justo obrar. Terceiro: nunca ataco pessoas — sirvo-me da pessoa como uma forte lente de aumento com que se pode tornar visível um estado de miséria geral porém dissimulado, pouco palpável. Assim ataquei David Strauss, ou mais precisamente o sucesso de um livro senil junto à “cultura” alemã — apanhei essa cultura em flagrante...14 Assim ataquei Wagner, ou mais precisamente a falsidade, a bastardia de instinto de nossa “cultura”, que confunde os sofisticados com os ricos, os tardios com os grandes. Quarto: ataco somente coisas de que está excluída qualquer diferença pessoal, em que não existe pano de fundo de experiências ruins. Pelo contrário, atacar é em mim prova de benevolência, ocasionalmente de gratidão. Eu honro, eu distingo, ao ligar meu nome ao de uma causa, uma pessoa: a favor ou contra — não faz diferença para mim. Se faço guerra ao cristianismo, isso me é facultado, porque dessa parte nunca experimentei contrariedades e obstáculos — os mais sérios cristãos sempre foram bem-dispostos para comigo. Eu mesmo, um adversário de rigueur do cristianismo, estou longe de guardar ódio ao indivíduo pelo que é a fatalidade de milênios. — 8. Posso arriscar-me a indicar um último traço de minha natureza que me cria não pouca dificuldade no trato com os homens? Pertence-me uma sensibilidade perfeitamente inquietante do instinto de limpeza, de modo que percebo fisiologicamente — farejo — a proximidade ou — que digo? — a parte mais íntima, as “entranhas” de cada alma... Tenho nesta sensibilidade antenas psicológicas, com as quais toco e me aposso de cada segredo: já ao primeiro contato tomo ciência da muita sujeira escondida no fundo de mais de uma natureza, talvez devida ao mau sangue, porém coberta por fina tinta de educação. Se observei corretamente, tais naturezas intoleráveis à minha limpeza também sentem, por seu lado, a cautela de meu nojo: o que não as torna menos malcheirosas... Como sempre foi meu hábito — uma extrema lisura comigo mesmo é o pressuposto de minha existência, eu pereço em condições impuras —, eu me banho, nado e patinho como que continuamente em água, em algum elemento perfeitamente cristalino e cintilante. Isso me torna o comércio com os homens uma prova de paciência nada pequena; minha humanidade não consiste em sentir com o homem como ele é, mas em suportar que o sinta... Minha humanidade é uma contínua superação de mim mesmo. — Mas tenho necessidade de solidão, quer dizer, recuperação, retorno a mim, respiração de ar livre, leve, alegre... Todo o meu Zaratustra é um ditirambo à solidão, ou, se fui compreendido, à pureza... Felizmente não à pura tolice.15 Quem tem olhos para cores o chamará diamante. — O nojo do homem, da “gentalha”, sempre foi o meu maior perigo... Querem ouvir as palavras com que Zaratustra fala da libertação do nojo? Mas que me aconteceu? Como me libertei do nojo? Quem rejuvenesceu meus olhos? Como voei às alturas onde a gentalha não mais senta à beira do poço? Meu próprio nojo criou-me asas, e deu-me a vidência para as fontes? Em verdade, tive de voar às grandes alturas para de novo encontrar a nascente do prazer! Oh, eu a encontrei, meus irmãos! Aqui, no mais alto, brota para mim a nascente do prazer! E há uma vida da qual gentalha nenhuma bebe conosco! Jorras quase que impetuosa demais, fonte do prazer! E muitas vezes esvazias novamente a taça, ao querer enchê-la. E ainda devo aprender a acercar-me de ti com maior moderação: muito impetuosamente corre meu coração ao teu encontro: — o coração em que arde o meu estio, esse estio breve, cálido, melancólico, mais que bem-aventurado. Como anseia meu coração estival pelo teu frescor! Terminada a indecisa aflição da minha primavera! Passada a maldade dos meus flocos de neve em junho! Tornei-me inteiro verão e meio-dia do verão, — Um verão nas grandes alturas, com frias fontes e bem-aventurada quietude: vinde, ó meus amigos, para que a quietude ainda mais bem-aventurada se torne! Pois esta é nossa altura e nosso lugar: aqui habitamos, demasiado alto e íngreme para todos os impuros e sua sede. Lançai vossos olhos puros à nascente do meu prazer, ó amigos! Como poderia isso enturvá-la? Sorriria para vós com sua pureza. Na árvore futuro construamos nosso ninho; a nós, solitários, águias trarão alimento nos bicos! Em verdade, não um alimento de que também os impuros comessem! Imaginariam estar comendo fogo e queimariam os focinhos! Em verdade, aqui não mantemos moradas para os impuros! Para seus corpos e para seus espíritos pareceria a nossa fortuna uma caverna de gelo! E como ventos fortes vivamos acima deles, vizinhos às águias, vizinhos à neve, vizinhos ao sol: assim vivem ventos fortes. E tal como um vento quero um dia soprar entre eles e com meu espírito tirar o ar ao seu espírito: assim o quer meu futuro. Em verdade, um forte vento é Zaratustra para todas as baixuras; e este conselho dá ele aos seus inimigos e a tudo que cospe e escarra: guardai-vos de cuspir contra o vento!...16 POR QUE SOU TÃO INTELIGENTE 1. — Por que sei algo mais? Por que sou enfim tão inteligente? Nunca refleti sobre problemas que não o são — não me desperdicei. — Autênticas dificuldades religiosas, por exemplo, jamais experimentei. Escapa-me inteiramente o quanto deveria sentir-me “pecador”. Desconheço igualmente um critério confiável para [definir] o que seja um remorso: pelo que se ouve, não me parece coisa respeitável... Não gostaria de abandonar uma ação após tê-la cometido, preferiria deixar o mau resultado, as conseqüências, radicalmente fora da questão do valor. Quando as coisas resultam mal, perde-se muito facilmente o olho bom para o que se fez: um remorso parece-me uma espécie de olho ruim. Honrar mais ainda dentro de si o que dá errado, porque deu errado — isto sim está de acordo com minha moral. — “Deus”, “imortalidade da alma”, “salvação”, “além”, puras noções, às quais não dediquei atenção nenhuma, tempo algum, mesmo quando criança — talvez não fosse infantil bastante para isso. — Não conheço em absoluto o ateísmo como resultado, menos ainda como acontecimento: em mim ele é óbvio por instinto. Sou muito inquiridor, muito duvidoso, muito altivo para me satisfazer com uma resposta grosseira. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para conosco, pensadores — no fundo até mesmo uma grosseira proibição para nós: não devem pensar!... De maneira bem outra interessa-me uma questão da qual depende mais a “salvação da humanidade” do que de qualquer curiosidade de teólogos: a questão da alimentação. Para uso imediato, podemos colocá-la assim: “como você deve alimentar-se para alcançar seu máximo de força, de virtù no estilo da Renascença, de virtude livre de moralina?”.17 — Minhas experiências neste ponto são as piores possíveis; surpreendo-me por ter ouvido essa questão tão tarde, por haver tão tarde retirado “razão” dessas experiências. Somente a perfeita nulidade de nossa cultura alemã — seu “idealismo” — explica até certo ponto, para mim, porque nisso era eu de um atraso que beirava a santidade. Esta “cultura”, que já de início ensina a perder as realidades de vista, para correr atrás de objetivos inteiramente problemáticos, “ideais”, a “formação clássica”, por exemplo — como se não fosse uma empresa de antemão condenada, juntar “clássico” e “alemão” em um conceito! Mais do que isso, divertida — imagine-se um cidadão de Leipzig com “formação clássica”! De fato, até minha maturidade sempre c o m i mal — para expressá-lo em termos morais, de modo “impessoal”, “desinteressado”, “altruísta”, para bem dos cozinheiros e outros irmãos em Cristo. Foi, por exemplo, graças à cozinha de Leipzig, quando do meu primeiro estudo de Schopenhauer (1865), que neguei muito seriamente minha “vontade de vida”. Arruinar ainda o estômago, com o fim de alimentar-se de modo insuficiente — a mencionada cozinha me parecia resolver esse problema de maneira admiravelmente feliz. (Diz-se que o ano de 1866 trouxe aí mudança.) Mas a cozinha alemã em geral — o que não carrega na consciência! A sopa antes da refeição (nos livros culinários venezianos do século xvi ainda chamada alla tedesca [à moda alemã]); as carnes demasiado cozidas, as verduras gordurosas e farinhentas; a degeneração dos doces em peso para papel! Se a isto se acrescenta a necessidade positivamente animalesca de regar o que se comeu, própria dos antigos — e não só dos antigos — alemães, compreende-se também a origem do espírito alemão: entranhas enturvadas... O espírito alemão é uma indigestão, de nada dá conta. — Mas também a dieta inglesa, que comparada à alemã, mesmo à francesa, representa uma espécie de “retorno à natureza”, ou seja, ao canibalismo, repugna profundamente ao meu instinto; parece-me que ela dota o espírito de pés pesados — pés de inglesas... A melhor cozinha é a do Piemonte. — Bebidas alcoólicas me são prejudiciais; um copo de vinho ou cerveja por dia basta perfeitamente para tornar a vida um “vale de lágrimas” para mim — em Munique vivem meus antípodas. Embora tenha percebido isso um pouco tarde, eu o vivi desde pequeno. Quando menino, acreditava que o vinho, como o tabaco, fosse inicialmente apenas vaidade de homens jovens, mais tarde um mau costume. Talvez o vinho de Naumburg tenha sua parte de culpa neste juízo acre. Crer que o vinho alegra: para isso eu teria de ser cristão, isto é, crer no que para mim justamente é absurdo. Curiosamente, enquanto pequenas doses de álcool fortemente diluídas alteram-me o ânimo ao extremo, eu me torno quase que um homem do mar quando se trata de doses fortes. Já quando garoto via nisso a minha valentia. Redigir e passar a limpo uma dissertação latina em uma noite de vigília, pondo na pena a ambição de imitar meu modelo Salústio em rigor e concisão, e derramar sobre o meu latim algum grogue de alto calibre, eis algo que, já quando era aluno da venerável Schulpforta, não contrariava minha fisiologia, tampouco talvez a de Salústio — ainda que certamente a venerável Schulpforta... Mais tarde, lá pelo meio da vida, é certo que tomei partido rigoroso contra qualquer bebida “espirituosa”: eu, adversário por experiência do vegetarianismo, exatamente como Richard Wagner, que me converteu, não saberia aconselhar com seriedade bastante a completa abstenção de álcool às naturezas mais espirituais. Água basta... Tenho preferência por lugares onde se possa beber de fontes vivas (Nice, Turim, Sils): um pequeno copo me segue como um cão. In vino veritas [no vinho, a verdade]: parece que também nisso me acho em desacordo com o mundo quanto ao conceito de “verdade” — em mim paira o espírito sobre a água...18 Mais algumas indicações extraídas de minha moral. Uma refeição forte é mais fácil de digerir do que uma demasiado ligeira. Que o estômago entre inteiro em atividade, primeira condição para uma boa digestão. Deve-se conhecer o tamanho do próprio estômago. Pelo mesmo motivo são desaconselháveis as tediosas refeições que chamo de banquetes sacrificiais interrompidos, aquelas na table d’hôte [mesa de pensão]. — Nada entre as refeições, nenhum café: café obscurece. Chá, somente de manhã benéfico. Pouco, porém vigoroso: é prejudicial e debilitante por todo o dia quando fraco demais, mesmo que por um mínimo. Cada qual possui nisso a sua medida, com freqüência entre os limites mais estreitos e delicados. Em um clima irritante desaconselha-se o chá como primeira bebida: deve-se começar uma hora antes por uma xícara de chocolate espesso sem gordura. — Ficar sentado o menor tempo possível; não dar crença ao pensamento não nascido ao ar livre, de movimentos livres — no qual também os músculos não festejem. Todos os preconceitos vêm das vísceras. — A vida sedentária — já o disse antes — eis o verdadeiro pecado contra o santo espírito.19 — 2. Com a questão da alimentação relaciona-se antes de tudo a questão do lugar e do clima. A ninguém é dado viver em qualquer lugar; e quem tem grandes tarefas a resolver, que desafiam toda a sua força, tem mesmo opção muito limitada. A influência climática sobre o metabolismo, seu retardamento, sua aceleração, é tal que um equívoco quanto a lugar e clima pode não apenas alhear um homem de sua tarefa, como inclusive ocultá-la de todo: ele não consegue tê-la em vista. O vigor animal jamais se tornou nele grande o suficiente para atingir aquela liberdade que transborda para o domínio do mais espiritual, quando se percebe: isto posso eu somente... Pequena que seja, uma indolência das entranhas tornada mau hábito basta inteiramente para transformar um gênio em algo mediano, algo “alemão”; o clima alemão em si já é suficiente para desencorajar vísceras fortes, de disposição heróica inclusive. O tempo do metabolismo mantém relação precisa com a mobilidade ou a paralisia dos pés do espírito; o próprio “espírito” não passa de uma forma desse metabolismo. Pense-se nos lugares em que há ou houve homens ricos de espírito, em que engenho, refinamento, malícia são parte da felicidade, onde o gênio quase que necessariamente sentiu-se em casa: todos possuem um ar magnificamente seco. Paris, a Provença, Florença, Jerusalém, Atenas — esses nomes provam algo: o gênio é condicionado pelo ar seco, pelo céu puro — isto é, por um metabolismo rápido, pela possibilidade de suprir-se sempre novamente de grandes, tremendas quantidades de energia. Tenho em mente um caso em que um espírito notável e potencialmente livre tornou-se estreito, encolhido, um rabugento especialista, por simples falta de fineza de instintos com relação ao clima. E eu mesmo poderia ter me tornado afinal este caso, se a doença não me tivesse forçado à razão, à reflexão sobre a razão no real. Agora, em que após longa prática sei ler em mim os influxos de origem climática e meteorológica, como em um instrumento muito sensível e confiável, e já numa curta viagem como de Turim a Milão posso calcular fisiologicamente a variação em graus da umidade do ar, penso com horror no fato sinistro de que excetuando os últimos dez anos, anos com perigo de vida, minha vida se passou apenas em lugares errados e realmente proibidos para mim. Naumburg, Schulpforta, a Turíngia mesma, Leipzig, a Basiléia, Veneza — tantos lugares nefastos à minha fisiologia. Se não tenho sequer uma lembrança agradável de toda a minha infância e juventude, seria tolice apresentar para isso causas ditas “morais” — como a indiscutível falta de companhia adequada: pois esta falta existe hoje como sempre existiu, sem que me impedisse de ser bravo e contente. A ignorância in physiologicis [em questões de fisiologia] — o maldito “idealismo” — é a verdadeira fatalidade em minha vida, o estúpido e supérfluo nela, algo de que nada bom resultou, para o qual não há compensação ou contrapartida. Como conseqüências desse “idealismo” explico a mim mesmo todos os desacertos, todos os grandes desvios do instinto e “modéstias” exteriores à tarefa de minha vida, por exemplo, que me tornasse filólogo — por que não médico, ao menos, ou alguma outra coisa própria para abrir os olhos? No meu tempo na Basiléia, toda a minha dieta espiritual, a divisão do dia incluída, era um desperdício sem sentido de forças extraordinárias, sem cuidar de uma provisão para cobrir o consumo, sem mesmo refletir sobre consumo e compensação. Faltava um sutil “cuidado de si”, a tutela de um instinto imperioso, era um nivelar-se a qualquer um, uma “ausência de si”, um esquecimento da distância própria — algo que jamais me perdôo. Quando estava quase no fim, por estar quase no fim, pus-me a refletir sobre essa radical insensatez de minha vida — o “idealismo”. Foi a doença que me trouxe à razão. — 3. A escolha na alimentação; a escolha de clima e lugar; — o terceiro ponto em que não se pode por preço algum cometer erro é na escolha de sua espécie de distração. Também nisso a medida em que um espírito é sui generis torna ainda mais estreitos os limites do que lhe é permitido, ou seja, útil. No meu caso, toda leitura faz parte de minhas distrações: portanto, do que me desprende de mim mesmo, do que me faz passear por ciências e almas alheias — o que não mais levo a sério. A leitura me distrai justamente de minha seriedade. Em períodos de profundo trabalho não se vê livro algum comigo: eu me preveniria contra alguém que falasse ou mesmo pensasse em minha presença. Pois isto seria ler... Já se observou realmente que naquela profunda tensão a que a prenhez conduz o espírito, e no fundo todo o organismo, o acaso, toda espécie de estímulo de fora tem efeito demasiado violento, “golpeia” fundo demais? É preciso esquivar-se tanto quanto possível ao acaso, ao estímulo de fora; um como que emparedar-se a si mesmo está entre as sabedorias instintivas da prenhez espiritual. Permitirei que um pensamento alheio escale furtivamente o muro? — Pois isto seria ler... Aos períodos de trabalho e fecundidade sucede o tempo de distração: vinde a mim, livros agradáveis, livros inteligentes e espirituosos! Serão livros alemães?... Tenho de retroceder seis meses para me surpreender com um livro nas mãos. Mas qual era ele? — Um excelente estudo de Victor Brochard, Les sceptiques grecs, no qual também as minhas Laertiana20 são bem utilizadas. Os céticos, o único tipo respeitável entre essa gente cheia de duplicidade — de quintuplicidade — que são os filósofos!... Quanto ao mais, tomo refúgio quase sempre nos mesmos livros, um número pequeno na verdade, os que provaram ser feitos para mim. Não é talvez de minha natureza ler muitas e diferentes coisas: uma sala de leitura me faz doente. Também não é de minha natureza amar muito e variadamente. Cautela, e mesmo hostilidade para com novos livros, fazem parte de meu instinto, não “tolerância”, “largeur du coeur” [largueza de coração] ou outro “amor ao próximo”... É a um número na verdade pequeno de velhos franceses que sempre retorno: creio apenas na cultura francesa e vejo como um mal-entendido tudo o mais que se denomina “cultura” na Europa, para não falar da cultura alemã... Os poucos casos de alta cultura com que deparei na Alemanha eram de procedência francesa, acima de tudo frau Cosima Wagner, de longe a primeira voz em questões de gosto que jamais ouvi. — Que eu não leia Pascal, mas o ame, como a mais instrutiva vítima do cristianismo, lentamente assassinado, primeiro corporalmente, depois psicologicamente, toda a lógica desta mais horrível forma de crueldade desumana; que eu tenha algo da petulância de Montaigne no espírito, quem sabe também no corpo; que meu gosto de artista defenda, não sem fervor, os nomes de Molière, Corneille e Racine contra um gênio agreste como Shakespeare: nada disso impede afinal que também os franceses mais recentes sejam para mim companhia encantadora. Não vejo absolutamente em que século da história se poderia pôr lado a lado psicólogos tão inquiridores e ao mesmo tempo tão delicados como na Paris de hoje: menciono como amostra — pois o seu número não é pequeno — os senhores Paul Bourget, Pierre Loti, Gyp, Meilhac, Anatole France, Jules Lemaître, ou, para destacar um da raça forte, um autêntico latino ao qual sou especialmente afeiçoado, Guy de Maupassant. Prefiro mesmo, seja dito entre nós, esta geração a seus grandes mestres, os quais foram todos corrompidos pela filosofia alemã (o sr. Taine, por exemplo, por Hegel, a quem deve a má compreensão de grandes homens e grandes épocas). Onde reina, a Alemanha corrompe a cultura. Somente a guerra “redimiu” o espírito na França... Stendhal, um dos mais belos acasos de minha vida — pois tudo o que nela marcou época foi-me trazido pelo acaso, jamais pela recomendação — é absolutamente inestimável, com seu antecipador olho de psicólogo, com sua garra para o real que lembra a proximidade do grande realista (ex ungue Napoleonem);21 e por fim, mérito não menor, como honesto ateísta, espécie rara e dificilmente encontrável na França — com toda a deferência a Prosper Mérimée... Talvez tenha eu mesmo inveja de Stendhal? Ele me roubou a melhor piada de ateísta que justamente eu poderia ter feito: “A única desculpa de Deus é não existir”... Eu mesmo disse em algum lugar: qual foi até agora a maior objeção à existência? Deus...22 4. A idéia suprema de poeta lírico me foi dada por Heinrich Heine. Em vão busco em todos os reinos dos milênios por uma música tão doce e apaixonada. Ele possuía aquela malícia divina sem a qual sou incapaz de imaginar o perfeito — estimo o valor dos homens e das raças pelo quão necessariamente concebem o deus como inseparável do sátiro. — E como maneja o alemão! Ainda se dirá que Heine e eu fomos de longe os primeiros artistas da língua alemã — a incalculável distância de tudo o que meros alemães com ela fizeram. — Com o Manfred de Byron tenho sem dúvida profundo parentesco: todos esses abismos eu os encontrei em mim — com treze anos era maduro para essa obra. Não tenho uma palavra, apenas um olhar, para aqueles que em presença de Manfred ousam pronunciar a palavra “Fausto”. Os alemães são incapazes de qualquer idéia de grandeza: vide Schumann. Expressamente por raiva contra este saxão adocicado compus uma antiabertura para Manfred, da qual disse Hans von Bülow não ter jamais visto algo semelhante em papel de música: um estupro em Euterpe, segundo ele.23 — Quando busco minha mais alta fórmula para Shakespeare, encontro sempre uma: haver concebido o tipo de César. Algo assim não se intui, se é ou não se é. O grande poeta nutre-se apenas de sua realidade — até o ponto de depois não mais suportar a sua obra... Após olhar em meu Zaratustra, ando de um lado para outro em meu quarto durante meia hora, sem conseguir dominar uma insuportável convulsão de soluços. — Não conheço leitura mais pungente do que Shakespeare: o que deve um homem ter sofrido, para necessitar de tal modo ser bufão! — Compreende-se o Hamlet? Não a dúvida, a certeza é que enlouquece... Mas é preciso ser fundo, ser abismo, filósofo, para assim sentir... Todos nós tememos a verdade... E confesso: estou instintivamente certo e seguro de que lord Bacon é o iniciador, o primeiro a se torturar experimentando essa mais estranha forma de literatura: que me importa o lastimável palavreado de americanos rasos e confusos? Mas a força para o mais potente realismo de visão não é apenas compatível com a mais potente força para a ação, para o monstruoso da ação, para o crime — ela a pressupõe mesmo. Estamos longe de saber o suficiente sobre lord Bacon, o primeiro realista em todo grande sentido da palavra, para saber tudo o que fez, o que quis, o que viveu consigo... E ao diabo, senhores críticos! Tivesse eu batizado meu Zaratustra com outro nome, por exemplo com o de Richard Wagner, a perspicácia de dois milênios não teria bastado para adivinhar que o autor de Humano, demasiado humano é o visionário do Zaratustra... 5. Agora que falo das distrações de minha vida, preciso expressar uma palavra de gratidão pelo que mais profunda e cordialmente nela me entreteve. Que foi sem dúvida o trato íntimo com Richard Wagner. Faço pouco do resto de minhas relações; por preço algum estaria disposto a me desfazer dos dias em Tribschen, dias de confiança, de jovialidade, de acasos sublimes — de momentos profundos... Não sei das vivências de outros com Wagner: por nosso céu não passou jamais uma nuvem. — E com isso volto uma vez mais à França — não tenho razões, tenho apenas uma comissura de desprezo nos lábios, para os “wagnerianos” et hoc genus omne [e toda essa gente], que acreditam honrar Wagner achando-o semelhante a si... Sendo, em meus instintos mais profundos, alheio a tudo o que seja alemão, de tal modo que a simples proximidade de um alemão retarda-me a digestão, o primeiro contato com Wagner foi também o primeiro instante de minha vida em que respirei: eu o senti, eu o venerei como o exterior, como o oposto, o protesto encarnado contra todas as “virtudes alemãs”. — Nós, que quando crianças respiramos os miasmas dos anos 50, somos necessariamente pessimistas quanto ao conceito de “alemão”; não podemos ser senão revolucionários — não admitiremos um estado de coisas em que o hipócrita predomine. Para mim é indiferente que ele hoje use outras cores, que se vista de escarlate e ponha uniforme de hussardo... Pois bem! Wagner era um revolucionário — ele fugiu aos alemães... Como artista não se tem outra pátria na Europa além de Paris: a délicatesse nos cinco sentidos artísticos que a arte de Wagner pressupõe, os dedos para nuances, a morbidez psicológica encontram-se somente em Paris. Em nenhum outro lugar se tem a paixão em questões de forma, essa seriedade na mise en scène — é a seriedade parisiense par excellence. Na Alemanha não se tem idéia da colossal ambição que vive na alma de um artista parisiense. O alemão tem bom coração — Wagner decididamente não o tinha... Mas já falei a contento (em Além do bem e do mal) sobre qual o lugar de Wagner, onde estão seus parentes mais próximos: é o romantismo francês da última fase, aquela espécie altaneira mas arrebatadora de artistas como Delacroix, como Berlioz, com um fond de enfermidade, de incurabilidade no ser, puros fanáticos da expressão, virtuoses de cima a baixo... Quem foi o primeiro adepto inteligente de Wagner? Charles Baudelaire, o mesmo que primeiro compreendeu Delacroix, aquele típico décadent no qual uma inteira geração de artistas se reconheceu — também o último talvez... O que nunca perdoei a Wagner? O haver condescendido com os alemães — o haver-se tornado alemão do Reich... Onde reina, a Alemanha corrompe a cultura.24 — 6. Tudo somado, eu não teria suportado minha juventude sem a música wagneriana. Pois eu estava condenado aos alemães. Quem quer se livrar de uma pressão intolerável necessita de haxixe. Pois bem, eu necessitava de Wagner. Wagner é o contraveneno para tudo alemão par excellence — ainda veneno, não discuto... A partir do instante em que houve uma partitura para piano do Tristão — meus cumprimentos, sr. von Bülow! — eu fui wagneriano. As obras mais antigas de Wagner eu via como abaixo de mim — ainda muito comuns, muito “alemãs”... Mas ainda hoje procuro uma obra de fascínio tão perigoso, de uma infinitude tão doce e assustadora como o Tristão — procuro em vão em todas as artes. Todas as extravagâncias de Leonardo da Vinci perdem sua magia aos primeiros acordes do Tristão. Esta obra é em absoluto o non plus ultra [o insuperável] de Wagner. Ele descansou dela com os Mestres cantores e o Anel. Tornar-se mais sadio — isto é um passo atrás em uma natureza como Wagner... Tomo como uma grande fortuna ter vivido no tempo certo e justamente entre alemães, para estar maduro para essa obra: tão longe vai em mim a curiosidade do psicólogo. O mundo é pobre para quem nunca foi enfermo o bastante para esta “volúpia do inferno”: é lícito, é quase imperativo empregar aqui uma fórmula dos místicos. — Penso conhecer melhor que qualquer outro a imensidão daquilo de que Wagner foi capaz, os cinqüenta mundos de estranhos êxtases aos quais somente ele ascendia; e sendo como sou, forte o bastante para converter mesmo o mais discutível e perigoso em vantagem, tornando-me assim mais forte, chamo Wagner o grande benfeitor de minha vida. Aquilo no que somos aparentados, termos sofrido mais profundamente, também um com o outro, do que os homens deste século são capazes de fazê-lo — isto juntará sempre e eternamente nossos nomes; e tão certamente como Wagner é um mero mal-entendido entre os alemães, também eu o sou e sempre o serei. — Dois séculos de disciplina psicológica e artística primeiro, senhores teutões!... Mas isto não se recupera. 7. — Direi ainda uma palavra para os ouvidos mais seletos: o que espero realmente da música. Que seja alegre e profunda como uma tarde de outubro. Que seja singular, travessa, terna, uma doce mulherzinha de baixeza e encanto... Jamais admitirei que um alemão possa chegar a saber o que é música. Os chamados músicos alemães, os maiores à frente, são estrangeiros, eslavos, croatas, italianos, holandeses — ou judeus: de outro modo são alemães da raça forte, alemães extintos, como Heinrich Schütz, Bach e Haendel. Eu mesmo continuo suficientemente polonês para dar todo o resto da música em troca de Chopin; excluo, por três motivos, o Idílio de Siegfried, de Wagner, talvez também algo de Liszt, que supera todos os músicos na nobreza dos tons orquestrais; por fim tudo o que brota além dos Alpes — aquém... Não saberia passar sem Rossini, menos ainda sem o meu Sul na música, a música do meu veneziano maestro Pietro Gasti. E ao dizer além dos Alpes, quero dizer na verdade Veneza. Quando busco outra palavra para música, encontro somente a palavra Veneza. Não sei distinguir música de lágrimas. — Não sei pensar a felicidade, o Sul, sem um estremecimento de pavor. Junto à ponte me achava há pouco na noite gris. De longe veio um canto; gota de ouro orvalhando sobre a superfície trêmula. Luzes, gôndolas, música — ébrio em direção ao crepúsculo... Minha alma um alaúde, por mão invisível tocada, cantou para si, em resposta, uma canção gondoleira, trêmula em mil tons de alegria. — Alguém a teria escutado? 8. Em tudo isso — na escolha da alimentação, de lugar e clima, de distração — reina um instinto de autoconservação que se expressa da maneira mais inequívoca como instinto de autodefesa. Não ver muitas coisas, não ouvi-las, não deixar que se acerquem — primeira prudência, primeira prova de que não se é um acaso, mas uma necessidade. A palavra corrente para esse instinto de autodefesa é gosto. Seu imperativo obriga não só dizer Não onde o Sim seria um “altruísmo”, mas também a dizer Não o mínimo possível. Separar-se, afastar-se daquilo que tornaria o Não sempre necessário. O sensato nisso é que os gastos defensivos, por menores que sejam, tornando-se hábito e regra levam a um empobrecimento extraordinário e completamente supérfluo. Nossos grandes gastos são os pequenos e muito freqüentes. O rechaçar, o não deixar que se aproximem é um gasto — não haja engano —, uma energia desperdiçada para fins negativos. Pela simples necessidade constante de defesa é possível tornar-se fraco a ponto de não mais poder se defender. — Supondo que ao sair de casa encontrasse, em vez da tranqüila e aristocrática Turim, uma pequena cidade alemã: meu instinto teria de bloquear-se para repelir tudo o que desse mundo estreito e covarde o assaltaria. Ou encontrasse uma grande cidade alemã, esse vício edificado onde nada cresce, onde cada coisa, boa ou má, é arrastada de fora. Não deveria então tornar-se um porco-espinho? — Mas possuir espinhos é um esbanjamento, uma dupla luxúria inclusive, quando somos livres para ter não espinhos mas mãos abertas... Outra prudência e autodefesa consiste em reagir com a menor freqüência possível e subtrair-se a situações e relações em que se estaria sujeito a como que suspender sua “liberdade”, sua iniciativa, e tornar-se apenas reagente. Tomo como imagem o trato com os livros. O erudito que no fundo não faz senão “revirar” livros — o filólogo uns duzentos por dia, em cálculo modesto — acaba por perder totalmente a faculdade de pensar por si. Se não revira, não pensa. Ele responde a um estímulo (— a um pensamento lido), quando pensa — por fim reage somente. O erudito dedica sua inteira energia ao aprovar e reprovar, à crítica ao já pensado — ele próprio já não pensa... O instinto de autodefesa embotou-se nele; de outro modo se protegeria dos livros. O erudito — um décadent. Isso vi com meus olhos: naturezas dotadas, de constituição rica e livre, “lidas à ruína” já aos trinta anos, apenas fósforos que se necessita riscar para que brilhem — emitam “pensamentos”. — Cedo, ao romper do dia, no frescor, na alvorada de sua força ler um livro — a isso chamo de vicioso! — — 9. Neste ponto já não há como eludir a resposta à questão de como alguém se torna o que é.25 E com isso toco na obra máxima da arte da preservação de si mesmo — do amor de si... Pois admitindo que a tarefa, a destinação, o destino da tarefa ultrapasse em muito a medida ordinária, nenhum perigo haveria maior do que perceber-se com essa tarefa. Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista possuem sentido e valor próprios até os desacertos da vida, os momentâneos desvios e vias secundárias, os adiamentos, as “modéstias”, a seriedade desperdiçada em tarefas que ficam além d’a tarefa. Nisto se manifesta uma grande prudência, até mesmo a mais alta prudência: quando o nosce te ipsum [conhece-te a ti mesmo] seria a fórmula para a destruição, esquecer-se, mal entender-se, empequenecer, estreitar, mediocrizar-se torna-se a própria sensatez. Expresso moralmente: amar o próximo, viver para outros e outras coisas pode ser a medida protetora para a conservação da mais dura subjetividade. Este é o caso de exceção em que eu, contra minha regra, minha convicção, tomo o partido dos impulsos “desinteressados”: eles aqui trabalham a serviço do amor de si, do cultivo de si.26 — É preciso manter toda a superfície da consciência — consciência é superfície — limpa de qualquer dos grandes imperativos. Cautela inclusive com toda palavra grande, com toda grande atitude! Representam o perigo de que o instinto “se entenda” cedo demais. — Entretanto segue crescendo na profundeza a “idéia” organizadora, a destinada a dominar — ela começa a dar ordens, lentamente conduz de volta dos desvios e vias secundárias, prepara qualidades e capacidades isoladas que um dia se mostrarão indispensáveis ao todo. — Constrói uma após outra as faculdades auxiliares, antes de revelar algo sobre a tarefa dominante, sobre “fim”, “meta”, “sentido”. — Encarada por este lado minha vida é simplesmente miraculosa. Para a tarefa de uma tresvaloração dos valores eram necessárias talvez mais faculdades do que as que jamais coexistiram em um só indivíduo, sobretudo também antíteses de faculdades, sem as quais estas se poderiam obstruir, destruir. Hierarquia das faculdades; distância; a arte de separar sem incompatibilizar; nada misturar, nada “conciliar”; uma imensa multiplicidade, que no entanto é o contrário do caos — esta foi a precondição, a longa e secreta lavra e arte de meu instinto. Sua tutela suprema revelou-se de tal maneira forte que não pressenti sequer o que em mim crescia — que todas as minhas capacidades brotavam um dia subitamente maduras e em sua perfeição última. Não tenho na lembrança recordação de haver alguma vez feito esforço — nenhum traço de luta pode ser apontado em minha vida, sou o oposto de uma natureza heróica. “Querer” algo, “empenhar-se” por algo, ter em vista um “fim”, um “desejo” — nada disso conheço por experiência própria. Ainda neste momento olho para meu futuro — um vasto futuro — como para um mar liso: nenhum anseio o encrespa. Não quero em absoluto que algo se torne diferente do que é; eu mesmo não quero tornar-me diferente... Mas assim vivi sempre. Não tive desejo algum. Alguém que tendo completado quarenta e quatro anos pode dizer que nunca lutou por honras, por mulheres, por dinheiro! — Não que me houvessem faltado... Um dia, por exemplo, fui professor catedrático — jamais havia pensado remotamente em coisa semelhante, pois mal tinha 24 anos. Assim também fui um dia filólogo, dois anos antes: no sentido de que meu primeiro trabalho filológico, meu começo em todos os sentidos, foi solicitado por meu mestre Ritschl para publicação no seu Rheinisches Museum. (Ritschl — digo-o com veneração — o único erudito genial que até hoje me foi dado encontrar. Ele possuía essa agradável corrupção que nos distingue, a nós turíngios, e com a qual até um alemão torna-se simpático — preferimos mesmo, para alcançar a verdade, os caminhos tortuosos. Com essas palavras não gostaria absolutamente de ver depreciado meu conterrâneo, o esperto Leopold von Ranke...) 10. — Perguntarão por que relatei realmente todas essas coisas pequenas e, seguindo o juízo tradicional, indiferentes: estaria com isso prejudicando a mim mesmo, tanto mais se estou destinado a defender grandes tarefas.27 Resposta: essas pequenas coisas — alimentação, lugar, clima, distração, toda a casuística do egoísmo — são inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que até agora tomou-se como importante. Nisto exatamente é preciso começar a reaprender. O que a humanidade até agora considerou seriamente não são sequer realidades, apenas construções; expresso com mais rigor, mentiras oriundas dos instintos ruins de naturezas doentes, nocivas no sentido mais profundo — todos os conceitos: “Deus”, “alma”, “virtude”, “além”, “verdade”, “vida eterna”... Mas procurou-se neles a grandeza da natureza humana, sua “divindade”... Todas as questões da política, da ordenação social, da educação foram por eles falseados até a medula, por haver-se tomado os homens mais nocivos por grandes — por ter-se ensinado a desprezar as coisas “pequenas”, ou seja, os assuntos fundamentais da vida mesma... Se me comparo aos homens até o momento venerados como os primeiros, a diferença é palmar. Esses supostos “primeiros” não conto sequer entre os homens; para mim são refugo da humanidade, abortos de doença e instintos vingativos: são monstros nefastos, no fundo infaustos,28 que da vida se vingam... Quero ser o oposto disso: meu privilégio está em possuir a finura suprema para os sinais de instintos sãos. Falta-me qualquer traço doentio; mesmo em tempo de severa doença não me tornei doente; em vão procure-se em meu ser um traço de fanatismo. Não se poderá demonstrar qualquer postura arrogante e patética em nenhum instante de minha vida. O pathos da atitude nada tem a ver com a grandeza; quem necessita de atitudes é falso... Cautela com os homens pitorescos! — A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado. Quem me viu nos setenta dias deste outono, quando sem interrupção fiz coisas de primeira ordem, que ninguém fará — ou faz diante de mim29 —, com uma responsabilidade para com todos os milênios vindouros, não terá percebido um traço de tensão em mim, antes transbordante frescor e alegria. Jamais comi com maior prazer, jamais dormi melhor. — Não conheço outro modo de lidar com grandes tarefas senão o jogo: este é, como indício de grandeza, um pressuposto essencial. A menor constrição, o ar sombrio, um tom duro na garganta são objeções a um homem, mais ainda à sua obra!... Não é lícito ter nervos... Objeção é também sofrer da solidão — sempre sofri somente da “multidão”... Absurdamente cedo, aos sete anos, já sabia que nenhuma palavra humana jamais me alcançaria: alguém me viu ensombrecido por isso? — Demonstro ainda hoje a mesma afabilidade para com todos, trato inclusive com distinção os humildes: em tudo não há um grão de soberba, de secreto desprezo. Quem eu desprezo adivinha que é por mim desprezado: com meu simples existir ofendo a tudo que no corpo possui sangue ruim... Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo — todo idealismo é mendacidade ante o necessário — mas amá-lo... POR QUE ESCREVO TÃO BONS LIVROS 1. Uma coisa sou eu, outra são meus escritos. Abordarei, antes de falar deles, a questão de serem compreendidos ou in-compreendidos. Faço-o com a negligência mais apropriada: pois este não é ainda o tempo para essa questão. Tampouco é ainda o meu tempo, alguns nascem póstumos. — Algum dia serão necessárias instituições onde se viva e se ensine tal como entendo o viver e o ensinar: talvez se criem até cátedras para interpretação do Zaratustra. Mas seria completa contradição, se já hoje eu esperasse ouvidos e mãos para minhas verdades: que hoje não me ouçam, que hoje nada saibam receber de mim, é não só compreensível, parece-me até justo. Não desejo ser confundido — para tanto, é preciso que eu mesmo não me confunda. — Repito, em minha vida pode-se assinalar pouco de “má vontade”, também de “má vontade” literária mal saberia relatar um caso. Em troca, pura tolice em abundância!... Tomar em mãos um livro meu parece-me uma das mais raras distinções que alguém se pode conceder — suponho mesmo que tire as sandálias para fazê-lo,30 ou as botas... Quando em certa ocasião o dr. Heinrich von Stein queixou-se honestamente de não entender palavra do meu Zaratustra, disse-lhe que era natural: haver compreendido seis frases dele, ou seja; tê-las vivido, elevaria alguém a um nível bem superior ao que homens “modernos” poderiam atingir. Como poderia eu, com tal sentimento de distância, sequer desejar ser lido pelos “modernos” que conheço! Meu triunfo é exatamente o inverso daquele de Schopenhauer — non legor, non legar [não sou lido, não serei lido], digo eu. — Não que eu queira subestimar o prazer que me produz a inocência do “não” a meus escritos. Ainda neste verão, quando, com minha literatura de peso, peso excessivo, desequilibrei talvez toda a literatura restante, um professor da Universidade de Berlim deu-me gentilmente a entender que eu deveria utilizar-me de uma outra forma: algo assim não se lê, disse ele. — Por último não foi a Alemanha, mas a Suíça, que forneceu os dois casos extremos. Um artigo do dr. V. Widmann no Bund, sobre Além do bem e do mal, sob o título “O perigoso livro de Nietzsche”, e uma resenha geral sobre meus livros pelo sr. Karl Spitteler, igualmente no Bund, são um ponto alto em minha vida — eu me guardarei de dizer do que... O último, por exemplo, tratou o meu Zaratustra como superior exercício de estilo, com os votos de que eu viesse a cuidar também do conteúdo; já o dr. Widmann expressou-me seu respeito pela coragem com que me esforço pela abolição de todo sentimento decente. — Por uma pequena malícia do acaso, cada frase do artigo era, com uma coerência que bem admirei, uma verdade de cabeça para baixo; não havia mais a fazer senão “tresvalorar todos os valores” para, de maneira notável, acertar no alvo a meu respeito — em vez de acertar-me como alvo... Razão tanto maior para tentar uma explicação. — Em última instância, ninguém pode escutar mais das coisas, livros incluídos, do que aquilo que já sabe. Não se tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da experiência. Imaginemos um caso extremo: que um livro fale de experiências situadas completamente além da possibilidade de uma vivência freqüente ou mesmo rara — que seja a primeira linguagem para uma nova série de vivências. Neste caso simplesmente nada se ouvirá, com a ilusão acústica de que onde nada se ouve nada existe... Esta é em definitivo minha experiência ordinária e, se quiserem, a originalidade da minha experiência. Quem acreditou haver compreendido algo de mim, havia me refeito como algo à sua imagem — não raro um oposto de mim, um “idealista”, por exemplo; quem nada havia compreendido de mim, negou que eu tivesse de ser considerado. — A palavra “super-homem”,31 para designação de um tipo que vingou superiormente, em oposição a homens “modernos”, a homens “bons”, a cristãos e outros niilistas — palavra que na boca de um Zaratustra, o aniquilador da moral, dá o que pensar — foi entendida em quase toda parte, com total inocência, no sentido daqueles valores cuja antítese foi manifesta na figura de Zaratustra: quer dizer, como tipo “idealista” de uma mais alta espécie de homem, meio “santo”, meio “gênio”... Uma outra raça de gado erudito acusou-me por isso de darwinismo. Reconheceu-se nisso até mesmo o “culto do herói”, por mim tão desdenhosamente rejeitado, daquele grande falsário inconsciente e involuntário, Carlyle. A quem sussurrei que deveria procurar em torno por um Cesare Borgia, não por um Parsifal, este não confiou em seu ouvido. — Terei de ser perdoado por faltar-me qualquer curiosidade quanto às recensões de meus livros, particularmente por jornais. Meus amigos, meus editores o sabem, e não me falam de tais coisas. Em um caso excepcional, caiu-me sob os olhos tudo o que se cometeu contra um só livro — era Além do bem e do mal; sobre isso poderia redigir um gracioso relato. Seria de acreditar que o Nationalzeitung — um jornal prussiano, seja dito para meus leitores estrangeiros — eu próprio leio, permitam-me, apenas o Journal des Débats — conseguiu seriamente ver o livro como um “signo dos tempos”, como a vera e correta filosofia junker para a qual ao Kreuzzeitung faltava somente a coragem?...32 2. Isso foi dito para alemães: pois em toda outra parte tenho leitores — inteligências seletas, caracteres provados, formados em elevados deveres e posições; tenho inclusive verdadeiros gênios entre os meus leitores. Em Viena, em São Petersburgo, em Estocolmo, em Copenhague, em Paris e Nova York — em toda parte sou descoberto: não o sou na Terra Chata da Europa, a Terra dos Alemães...33 E, deixem-me confessá-lo, alegro-me mais ainda com meus não- leitores, aqueles que jamais ouviram meu nome ou a palavra filosofia; mas aonde chego, aqui em Turim, por exemplo, os rostos ficam risonhos e bondosos ao me ver. O que até agora mais me lisonjeou é que as velhas vendedoras de frutas não descansam até escolherem para mim as suas uvas mais doces. Até esse ponto é preciso ser filósofo... Não é em vão que os poloneses são considerados os franceses entre os eslavos. Uma russa encantadora não se enganará um segundo a meu respeito. Não consigo ficar solene, o máximo que alcanço é o embaraço... Pensar em alemão, sentir em alemão — eu posso tudo, mas isto supera minhas forças... Meu velho mestre Ritschl chegou a afirmar que eu concebia mesmo meus trabalhos filológicos como um romancier parisiense — de modo absurdamente excitante. Em Paris mesmo estão assombrados com “toutes mes audaces et finesses” [todas as minhas audácias e finuras] — a expressão é de monsieur Taine —; receio que até nas formas supremas do ditirambo se encontre em mim uma pitada daquele sal que nunca se torna insípido — “alemão” — o esprit... Não posso agir de outro modo. Deus me valha! Amém.34 — Todos nós sabemos, alguns até por experiência, o que é um bicho de orelhas longas. Pois bem, ouso afirmar que possuo as menores orelhas que existem. Isso interessa nada pouco às mulherezinhas — parece-me que se sentem mais bem compreendidas por mim... Eu sou o Antiasno par excellence, e com isso um monstro universal — eu sou, em grego e não só em grego, o Anticristo...35 3. Conheço em alguma medida minhas prerrogativas como escritor; certos casos me testemunham o quanto a familiaridade com meus escritos “corrompe” o gosto. Simplesmente não se suporta mais outros livros, sobretudo os filosóficos.36 É uma distinção sem par penetrar nesse mundo nobre e delicado — para fazê-lo, é absolutamente imprescindível não ser alemão; é enfim uma distinção a ser conquistada. Mas quem comigo tem afinidade pela altura do querer, experimenta nisso verdadeiros êxtases do aprender: pois eu venho de alturas que asa nenhuma cruzou, eu conheço abismos onde pé algum jamais se extraviou. Disseram-me que é impossível pôr de lado um livro meu — que eu perturbo inclusive o repouso noturno... Não existe em absoluto espécie mais orgulhosa e mais refinada de livros — eles alcançam aqui e ali o mais elevado que se pode alcançar na Terra, o cinismo; é preciso conquistá-los com os dedos mais ternos, e com os punhos mais bravos. A menor fragilidade da alma os proíbe de uma vez por todas, mesmo a menor dispepsia: é preciso não ter nervos, é preciso ter um ventre feliz. Não apenas a pobreza, o ar de mansarda de uma alma os proíbe; bem mais ainda tudo o que há de covarde, impuro e secretamente vingativo nas entranhas: uma palavra minha faz subir à face todos os instintos ruins. Tenho entre meus conhecidos várias cobaias, nas quais aprecio a variada, muito instrutivamente variada reação a meus escritos. Quem nada quer ter a ver com seu conteúdo, os meus chamados amigos, por exemplo, torna-se “impessoal”: felicitam-me por ter novamente ido “tão longe” — haveria também um progresso na maior jovialidade do tom... Os “espíritos” inteiramente viciosos, as “almas belas”, os mendazes até a medula simplesmente não sabem o que fazer com esses livros — em conseqüência os vêem como abaixo de si, a bela lógica de todas as “almas belas”. O gado de chifres entre meus conhecidos, meros alemães, com licença da palavra, dá a entender que nem sempre partilha minhas opiniões, mas, é claro, por vezes... Ouvi isso até mesmo do Zaratustra... De igual modo, todo “feminismo”37 na pessoa, também no homem, constitui um obstáculo a mim: jamais se entrará nesse labirinto de conhecimentos arrojados. É necessário nunca haver se poupado, é necessário ter a dureza entre os seus hábitos, para estar bem e sereno entre somente duras verdades. Quando busco formar a imagem de um leitor perfeito, resulta sempre em um monstro de coração e curiosidade, e também em algo dúctil, astuto, cauteloso, um aventureiro e descobridor nato. Por fim: não saberia dizer melhor a quem no fundo me dirijo, do que Zaratustra ao dizer a quem somente contará seu enigma: A vós, ousados tenteadores, tentadores, e a quem se haja uma vez lançado com velas astutas em mares terríveis, — a vós, ébrios de enigmas, alegres crepusculares, cuja alma é atraída com flautas a todo precipício traiçoeiro: — pois não quereis sentir e seguir um fio com mão covarde; e, onde podeis intuir, detestais deduzir...38 4. Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do estilo. Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos por meio de signos, incluído o tempo desses signos — eis o sentido de todo estilo;