A Morte sob a Perspectiva Fenomenológica Existencial PDF
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Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Caroline de Paula Bueno, Giane Inácio dos Santos, Adriana Dias Basseto
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Summary
This paper analyzes the theme of death in the short story "The Wall", using existential phenomenological methods. It explores the relationship between death, freedom, and choices, while considering the consequences associated with each decision. The authors use Sartre's concepts and insights to illuminate the complexities of human existence and the confrontation mortality.
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A morte sob a perspectiva fenomenológica existencial Death under the existential phenomenological perspective CAROLINE DE PAULA BUENO1 GIANE INACIO DOS SANTOS2...
A morte sob a perspectiva fenomenológica existencial Death under the existential phenomenological perspective CAROLINE DE PAULA BUENO1 GIANE INACIO DOS SANTOS2 ADRIANA DIAS BASSETO3 Resumo: Esse trabalho tem como principal objetivo responder à questão de como podemos perceber o tema da morte no conto O muro. Para chegar a responder essa pergunta será preciso compreender conceitos tais como ocorre o confronto entre a morte e o mundo vivido, como a possibilidade de eleição e de realização é apresentada na obra, e como a obra consegue traduzir a diferença entre vontade e liberdade. Assim, faremos uso do método fenomenológico existencial de redução fenomenológica de Husserl, para que, de uma maneira clínica, possa-se fazer a análise do cliente, que no caso de nosso trabalho, será o personagem principal do conto O muro. Para alcançarmos esses objetivos, partiremos de referenciais teóricos do autor principal, Sartre, com a utilização de sua obra mais consagrada O ser e o nada e seu conto O muro, além de outros autores. Feita a análise, pretendemos demonstrar como o contexto da morte aparece no conto O muro como fator causador de angústias e resistências diante do mundo vivido, afetando assim a possibilidade de escolha e levantando uma reflexão sobre as consequências e as responsabilidades tidas através de cada escolha tomada, levando também a um conflito entre escolher uma possibilidade e negar o restante das possibilidades. Palavras-chave: Sartre. Morte. Existencialismo. Psicologia. Abstract: This work has as main objective to answer the question of how we can perceive the theme of death in the story The wall. In order to answer this question, one must understand concepts such as the confrontation between death and the lived world, how the possibility of election and fulfillment is presented in the work, and how the work translates the difference between will and freedom. Thus, we will make use of the existential phenomenological method of Husserl’s phenomenological reduction, so that in a clinical way one can do the analysis of the client, which in the case of our work, will be the main character of the story The wall. To reach these objectives we will start from the theoretical references of the main author Sartre with the use of your more consecrated work The being and the nothing and his short story The wall, besides other authors. The analysis aims at demonstrating how the context of death appears in the story The wall as a cause of anguish and resistance to the world lived, thus affecting the possibility of choosing and raising a reflection on the consequences and responsibilities taken through each choice taken, also leading to a conflict between choosing a possibility and denying the rest of the possibilities. Keywords: Sartre. Death. Existentialism. Psychology. 1 Graduanda do décimo período de Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica - PUC - PR. Cursando o terceiro ano de Filosofia pela Universidade do Oeste do Paraná - UNIOESTE - campus Toledo. Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET - Filosofia) do curso de licenciatura em filosofia da Unioeste desde maio de 2016. E-mail: [email protected]. 2 Graduanda do décimo período de Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica - PUC – PR. E-mail: [email protected]. 3 Possui graduação em Graduação em Licenciatura em Psicologia pela Universidade Paranaense (2002), graduação em Graduação em Bacharelado e Formação de Psicólogo pela Universidade Paranaense (2003) e mestrado em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2009). Atualmente é integral da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - Toledo. E-mail: [email protected]. Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 BUENO, C. / SANTOS, G. / BASSETO, A. Introdução Damos início ao trabalho com a fundamentação teórica sobre o conceito de liberdade em Sartre, trazendo elementos como o Em-si e o Para-si. Ora, é a partir do Para-si que melhor podemos situar a liberdade no contexto filosófico existencial. Nessa perspectiva, a liberdade tida como “verdadeira” não é a liberdade de obtenção, mas a liberdade de eleição, uma vez que o homem está condenado a ser livre. Fato é que essa liberdade faz com que o homem nunca seja considerado como fim em si mesmo, pois ele está sempre por se fazer de acordo com suas escolhas. Além disso, ao pensarmos em liberdade e suas limitações podemos refletir que a morte poderia ser uma dessas limitações. Sartre, porém, entende que a morte não só é do fim da existência: essa morte também pode ser vista como a morte das possibilidades, ou seja, assim que escolhemos um possível, todos os outros podem ser tidos como mortos. Ademais, nossa morte pode ser transformadora da nossa subjetividade em subjetividade-para-os-outros. Assim, podemos considerar a morte como um trauma, assim como o nascimento, em que ambas não são nossa escolha. Tendo isso posto, poderemos partir para a teoria que irá balizar nosso trabalho: a fenomenologia existencial. O existencialismo tem, como objetivo, analisar as relações existentes entre homem-mundo. Dessa forma, o existencialismo passa a ser o projeto do indivíduo. Outrossim, a fenomenologia é o estudo dos 111 fenômenos, não dos fatos. Existir para a realidade humana, é assumir seu próprio ser num modo existencial de compreensão. É nessa direção que também empregaremos o método fenomenológico inaugurado por Husserl, mas criticamente retomado por Sartre a fim de analisarmos o conto O Muro. Revisão bibliográfica Liberdade em Sartre Somos condenados a ser livres. Partimos dessa máxima de Sartre para dar início a uma compreensão do conceito de liberdade. Ora, para que seja possível a compreensão desse conceito tão caro ao filósofo é importante primeiro entender a definição de alguns outros conceitos como Em-Si. Sartre o utiliza para definir tudo o que existe no mundo, exceto a consciência; o Em-Si compreende então a realidade material, o mundo inorgânico dos objetos e o organismo humano. Já a consciência, Sartre chama de Para-Si. Esse traduz uma relação de si Para- Si, ou seja, são as relações que ocorrem na nossa consciência para nós mesmos. [...] enquanto o Em-Si é o que é, Para-Si não é o que é e é o que não é. Explicando: por causa da transcendência, o Para-Si não é o que é, pois se coloca à distância de si enquanto Ser, pelo recuo nadificador. Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 A morte sob a perspectiva fenomenológica existencial Mas, por causa da facticidade, o Para-Si também é o que não é, ou seja, tem de ser esse Ser que não é: embora me coloque à distância do Ser que sou, tenho de ser este Ser com o qual não coincido inteiramente. Não posso escolher-me Nada de outro Ser (PERDIGÃO, 1995, p. 49-50). Tendo esclarecido brevemente as definições desses termos, pode-se então exemplificar a definição de liberdade na psicologia existencial postulada por Sartre, pois é somente com a origem do Para-Si que podemos entender a liberdade no contexto filosófico existencial. Em outras palavras, é somente com a origem da consciência do indivíduo que ocorre o início da liberdade. Tudo isso se dá mesmo que exemplificar ou mesmo descrever a liberdade possa parecer algo difícil, visto que, para Sartre, a liberdade não tem uma essência. Essa razão mostra porque sua descrição pode enfrentar algumas dificuldades, como o autor mesmo destaca em sua obra o Ser e o Nada (SARTRE, 1997). Para Sartre, a liberdade não é um privilégio eventual, ou algo que possa ser conquistado. Ela está dada, não podendo ser confundida com vontade, decisão consciente ou uma deliberação racional, pois a liberdade não é uma posse. Visto que, todavia, a liberdade não pode ser confundida com vontade, ser livre vai muito além de sua vontade. A questão é que é possível que o indivíduo seja livre mesmo que este não queira. Sartre apresenta esse fato fundamental para então formular a clássica máxima de que somos condenados a ser livres (SARTRE, 2014). 112 Cabe notar que a liberdade também não pode ser confundida com o livre arbítrio, pois o livre arbítrio é uma escolha que o indivíduo pode escolher fazer ou não. Já a liberdade independe da vontade, por ser uma forma de manifestar-se concretamente no indivíduo não dando abertura a uma escolha ou recusa. Corroborando para o entendimento do conceito de liberdade, vale salientar ainda que, para que ela ocorra é necessário que sua ação encontre um campo de resistência do mundo, porque se não houver resistência diante do ato de realizar uma ação, esta então poderia ser confundida com imaginação ou sonho. Para isso, Sartre conceitua o que é um ato: O conceito de ato, com efeito, contém numerosas noções subordinadas que devemos organizar e hierarquizar: agir é modificar a figura do mundo, é dispor de meios com vistas a um fim, é produzir um complexo instrumental e organizado de tal ordem, que por uma série de encadeamentos e conexões, a modificação efetuada em um dos elos acarrete modificações em toda a série e, para finalizar produza um resultado previsto (SARTRE, 1997, p. 536). Ademais, o corpo que somos nos impõe a necessidade de agir entre os objetos. Podemos tomar como exemplo uma montanha que um indivíduo pretende escalar, pois, durante a escalada, ele encontrará dificuldades e são essas dificuldades que Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 BUENO, C. / SANTOS, G. / BASSETO, A. fará com que sejamos livres. Dessa maneira, somente pelo fato do indivíduo mentalizar estar no topo de uma montanha, e conseguir chegar lá sem nenhum esforço ou obstáculos, então essa ação seria uma realidade espontânea ou um sonho (PERDIGÃO, 1995). Em função disso, a verdadeira liberdade não é a liberdade de obtenção, mas a liberdade de eleição, ou seja, a escolha de fazer ou não uma determinada ação, é que nos faz que sejamos verdadeiramente livres. Assim, é a intencionalidade da ação que a torna um ato consciente. Considerando o exposto sobre o conceito de liberdade, segundo Sartre (1997), pode-se então compreender melhor sua afirmação de que a existência precede a essência. Isso ocorre porque o Para-Si, ao nascer, não é definido, de antemão, por uma essência pré-existente. Isto posto, a essência do indivíduo só começará a ser definida a partir do momento que existe a consciência; antes disso, ela é, apenas, inexistente. Eis porque é somente a partir da existência que o homem se faz a si mesmo criando, pois, a sua essência. Trata-se, obviamente, de uma essência que está ligada à subjetividade de cada indivíduo. Por outro lado, o homem só irá definir-se pela sucessão de seus atos. Por isso, não se pode afirmar que os indivíduos possuem uma essência imutável, pois o homem está perpetuamente reinventando o seu ser, ou seja, o homem é um eterno vir a ser, repleto de possíveis. Afinal, por mais que precisamos agir motivados por forças alheias a nossa 113 vontade, ainda estamos agindo livremente. Nós estamos sós e sem escusas. É o que experimentei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, pois ele não se criou a si mesmo, e, por outro lado, contudo, é livre, já que, uma vez lançado ao mundo, é o responsável por tudo que faz. O existencialista não crê no poder da paixão. Ele nunca pensará que uma bela paixão é uma torrente devastadora que leva fatalmente o homem a certos atos e que consequentemente leva uma escusa (SARTRE, 2014, p. 24). Portanto, também é falso afirmar que em uma ação em que somos aparentemente dominados por paixões estamos agindo sem liberdade, pois é o fato de agirmos perante a situação que nos faz sermos livres. A liberdade como definição do homem não depende de outrem, mas, desde que existe o engajamento, eu sou obrigado a querer, ao mesmo tempo que a minha liberdade, a liberdade do outro; e não posso ter como fim a minha liberdade do outro; e não posso ter como fim a minha liberdade sem ter a dos outros como fim (SARTRE, 2014, p. 40). Sartre (2014) define como facticidade, fatos dos quais não podemos escolher, como por exemplo, o local em que ao nascermos estamos situados. Ora, isso Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 A morte sob a perspectiva fenomenológica existencial independe de nossa vontade; é um fato que não podemos estar situados em outro lugar apenas por desejo de nossa consciência. Isso, no entanto, não limita a nossa liberdade; ao contrário, esse sítio em que estamos inseridos só pode existir por causa da consciência. Ainda sobre o conceito de distância e de sítio, no qual estamos situados ao nascer, Sartre afirma ser preciso fazer uma dupla nadificação, sendo da consciência perspectiva e do objeto percebido, tais que somente se verifica pelo Para-si. Quer dizer: a distância física não existe na consciência, ela só pode existir pelo prisma do meu projeto (PERDIGÃO, 1995). Por conseguinte, as coisas que nos cercam podem-se muitas vezes parecer limitar nossa liberdade, ou, outras vezes, fazerem-se favoráveis. No entanto, tais coisas só se tornam uma impossibilidade à medida que escolho livremente um projeto. Esse irá iluminar essa realidade objetiva com esse ou aquele sentido, ou melhor, nada limita a minha liberdade, já que o mundo só se torna favorável ou resistente à medida em que eu escolho um projeto. Antes disso, ele tão somente é. O passado também pode ser visto como algo limitador da liberdade, mas o passado é por si só algo irremediável e imutável. De fato, esse passado nos comprometerá permanentemente, sendo que não posso mudar a casa em que nasci ou as doenças que tive quando criança, mas de nenhuma maneira essa imutabilidade do passado poderá limitar a minha liberdade. O passado só adquire 114 força ou sentido à luz de nosso projeto. Posso traçar um projeto, começar uma faculdade e, no meio do caminho, decidir parar, para, em seguida, iniciar outro curso. Pois bem: o fato de ter desistido de uma faculdade não poderá ser apagado (o passado é imutável); no entanto, isso só ganhará força à medida do querer, caso contrário, será só um passado que, em nada, interfere no presente (PERDIGÃO, 1995). Sendo assim, nem mesmo a existência dos outros pode limitar a liberdade. O fato de que, ao nascer, o mundo já existe, e as coisas já serem dotadas de significados, não significa ter que viver uma vida qualquer em um lugar qualquer: Existe sempre uma possibilidade para o covarde deixar de ser covarde e para o herói deixar de ser herói. O que determina é o engajamento total e não é um caso particular, uma ação isolada, que engajará você totalmente (SARTRE, 2014, p. 33). Consequentemente, por ser livre, o homem nunca pode ser considerado como um fim em si mesmo, uma vez que ele está sempre por se fazer, de acordo com suas ações. Enfim, não há outro legislador de sua vida do que ele mesmo. Mesmo em momentos de angústia e desamparo, ele tem o poder de decidir por si mesmo, “buscando fora de si um fim que consiste nessa liberação, nesta realização Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 BUENO, C. / SANTOS, G. / BASSETO, A. particular, que o homem se realizará precisamente como humano” (SARTRE, 2014, p. 44). Morte em Sartre Dado o exposto sobre liberdade, pode-se então melhor compreender a morte como sendo limitação dessa liberdade? Existem duas maneiras para entender a morte. Uma delas é sobre a perspectiva de Heidegger, quando a morte é posta como uma escolha possível e realizada livremente como um projeto. Para ele, a morte é o que nos torna uma unicidade e um ser individualizado, dando sentido acabado e definitivo à vida. Em contrapartida, para Sartre, não é a morte que nos torna um ser individualizado, mas sim cada escolha ou projeto que fazemos, dado que, cada ato que tomamos, é algo único e individualizado o qual ninguém pode fazer como nós mesmos (PERDIGÃO, 1995). Além disso, a morte também pode ser vista como a morte das possibilidades. Da mesma maneira que escolhemos por um possível, todos os outros se dão mortos, independente de que, em outro momento, volta a trazer antigos possíveis que foram mortos no passado. Esses estarão, agora, em outro momento e, portanto, diante de uma nova realidade, um novo projeto. Sartre (2005) declara a morte como um ato de escolha dos possíveis, justamente “porque a morte é a detenção radical da Temporalidade pela petrificação 115 de todo sistema, ou, se preferirmos, a recapitulação da Totalidade humana pelo Em- si” (SARTRE, 2005, p. 204). Essa é a principal característica da morte à qual transforma nossa subjetividade em objetividade-para-os-outros. Dessa forma, podemos ver a morte como um trauma. Assim como no nascimento não escolhemos, a morte ocorre como uma facticidade. Respondendo ao questionamento anterior, de acordo com a perspectiva de Sartre, a morte não pode ser a limitação da liberdade visto que, na morte a liberdade já não existe, ou seja, não há como limitar algo não existente. “Ser livre é correr o perpétuo risco de ver nossas ações fracassarem e a morte destruir o projeto” (PERDIGÃO, 1995, p. 104). Fenomenologia existencial O existencialismo, decorrente de correntes filosóficas, tem como objetivo descrever as relações existentes entre homem-mundo. Isso significa que o existir passa a ser projeto, o existencial entendido como aquilo que se aplica ao homem e que se constitui, o que é diferente dos outros elementos do mundo que simplesmente são. E, para que essa forma de ver o homem possa ser analisada, faz- se uso do método fenomenológico (LAPORTE, 2009). Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 A morte sob a perspectiva fenomenológica existencial A Fenomenologia, em termos husserlianos, é a ciência descritiva dos objetos, método esse que se chega através da intuição pura. Trata-se de uma apreensão imediata de “coisa mesma” enquanto pura essência, objetos ideais e isentos de qualquer pretensão à existência (FORGHIEIRI, 2009). Ora, o objetivo é o de elucidar as estruturas formais, gerais e específicas, que operam de modo encoberto na organização da experiência de acordo com os diferentes modos da consciência, ou seja, de captar seus objetos e de acordo com as particularidades do ser. Como esclarece, aliás, o próprio Sartre (2014a, p. 24): De todo modo, a fenomenologia é o estudo dos fenômenos – não dos fatos. E por fenômeno convém entender “o que denuncia a si mesmo”, aquilo cuja realidade é precisamente a aparência. E essa “denúncia de si” não é uma denúncia qualquer... o ser do existente não é algo “atrás do qual” há ainda alguma coisa que não aparece”. De fato, existir, para a realidade humana, é, segundo Heidegger, assumir seu próprio ser num modo existencial de compreensão; existir para a consciência, é aparecer a si mesma, segundo Husserl. Para Husserl, Descartes não aprofundou suficientemente sua investigação epistemológica, retornando do “eu penso” ao mundo natural. Descartes estabeleceu de modo rápido a confiança nos dados da experiência deixando, pois, inexplorado todos os pressupostos transcendentais da experiência empírica. Nesse sentido, o método fenomenológico surgiu como uma contestação ao 116 método experimental. Esse último passou a ser utilizado pela psicologia vindo a considerar o ser humano como um objeto entre outros objetos na natureza, governado por leis naturais que determinam os eventos psicológicos. Ora, diversamente, a filosofia de Husserl apresenta como tema o que constitui o objeto da experiência possível: os fenômenos. As evidências às quais a fenomenologia lança mão, e as quais pode-se constituir como uma ciência rigorosa, serão somente os atos da consciência intencional, quer dizer, consciência de, sendo que em seus respectivos objetos imanentes existe sempre um ser, inseparável (FORGHIEIRI, 2009). Resumo do conto O Muro O conto apresentado nesse artigo aconteceu na Espanha durante a Guerra Civil (1936-1939). O conto relata a história de três homens que foram presos e, portanto, condenados à execução. A história é narrada, em primeira pessoa, por aquele que consideramos o personagem principal do livro, Pablo Ibbieta. A narrativa começa com o julgamento e a sentença dos três homens: Pablo Ibbieta, Tom e Juan. Logo após a sentença, eles são levados a permanecer em um porão de um hospital abandonado a fim de aguardar a execução. Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 BUENO, C. / SANTOS, G. / BASSETO, A. Nesse local, frio, eles passam a noite agonizando sobre a ideia de morrer no dia seguinte. Pablo e Juan tentam uma forma de racionalizar essa morte iminente, porém são traídos por seus próprios corpos que começam a externalizar seus medos, por meio de tremores, suores e até incontinência urinária. Ocorre que, no meio da noite, um médico belga é encaminhado para essa sala junto com dois soldados. Esses permanecem ali com o intuito de fazer esse momento “menos difícil”. Ora, é em comparação com esses homens que acabaram de chegar, que Pablo irá comparar seus corpos, como corpos de quem já está morto e corpos que ainda estão vivos. Em função disso, Pablo começa a fazer um apanhado geral de sua história de vida até aquele momento. Os principais pontos de análise do personagem são os objetos familiares, pessoas, amigos, estranhos, memórias e desejos, sendo que, ao chegar a manhã, ele já não entende mais o porquê de suas preocupações anteriores. Assim, momentos antes de sua execução, quando interrogado novamente sobre o paradeiro de Ramon Gris, Pablo começa a achar graça de sua teimosia, e, com isso, decide não entregar o colega de resistência. Porém, para fazer graça e pregar uma peça aos soldados, ele inventa um novo paradeiro para Ramon, pois naquele momento, “tudo era de uma comicidade irresistível” (SARTRE, 2017, p. 31). No fim, a localização apontada por ele acabou por ser verdadeira. Dessa maneira, ele deixou de ser executado naquele momento, passando a ficar junto com 117 os outros presos no pátio. Análise do conto O Muro Confronto entre a morte e o mundo vivido Partiremos nossa análise do ponto em que o personagem de Pablo Ibieta se percebe refém em consequência de suas escolhas, preso e prestes a morrer por crimes políticos. -Você é Pablo Ibbieta? –Sim, senhor. O sujeito olhou seus papéis e me perguntou: -Onde está Ramón Gris? –Não sei. –Você o escondeu na sua casa do dia 06 ao dia 19. –Não, senhor. Eles escreveram qualquer coisa e me fizeram sair. No corredor, Tom e Juan esperavam entre dois guardas. Pusemo-nos em marcha. Tom perguntou a um dos guardas: -E agora? –O que? –Foi um interrogatório ou um julgamento? –Julgamento. –Respondeu o guarda. – E então? O que vão fazer de nós? O guarda respondeu secamente: -Vocês receberão a sentença nas celas (SARTRE, 2017, p. 9-10). Dessa forma, nos cabe analisar como que Pablo Ibbieta passa a ressignificar sua existência a partir desse momento, já que suas vontades passam a não mais ser uma possibilidade de existir, visto que agora encontra-se enclausurado. Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 A morte sob a perspectiva fenomenológica existencial Mas a coisa me irritava: eu nunca pensara na morte porque a ocasião nunca se apresentara; agora, porém, a ocasião tinha chegado e não havia outra coisa a fazer senão pensar nela (SARTRE, 2017, p. 13). Para o existencialismo sartriano, a morte é uma facticidade, que vem de fora e nos transforma. Fato é que não podemos escolher a morte, ou como essa chegará até nós. Pois assim, como o nascimento, a morte também é uma facticidade. O significado da morte será sempre dado pelo outro. Logo, para Sartre, a morte seria viver as possibilidades do não. Ibbieta reconhece a morte como algo anormal no trecho abaixo: [...]. Cheirava a urina como os velhos prostáticos. Naturalmente, eu pensava como ele e tudo quanto me dizia eu poderia lhe dizer – esse negócio de morrer não é nada natural. E, como eu ia morrer mesmo, nada mais me parecia natural, nem o monte do carvão, nem o banco, nem a boca imunda de Pedro (SARTRE, 2017, p. 20). Nesse conto, o personagem Ibbieta é avisado de sua morte e vive por alguns dias a espera desse momento de finitude onde se daria o fim de sua existência. Se conjecturarmos a possibilidade de Ibbieta em responder à pergunta “o que ele faria se soubesse que seria seu último dia de vida”, com certeza, ele não escolheria estar preso com pessoas que não conhecia. 118 Deduzimos, então, que, a resposta dessa pergunta nos leva a conhecer o que realmente importa para cada pessoa. No entanto, aqui, nesse caso, essa não será uma possibilidade. Nossa análise então se fará através daquilo em que Ibbieta vive e sente nos períodos que precedem sua execução. Sartre (2017) afirma que a morte não é a única coisa que ninguém pode fazer por mim. Existem inúmeras coisas que outras pessoas também não podem viver por mim. São, portanto, experiências e sentimentos que nos tornam únicos e seres individuais. A esse modo, a experiência, emoções e sentimentos que sentimos, somente nós, podemos vivê-los de forma única e individual. Sendo assim, a experiência vivida por Ibbieta em seu cárcere difere dos outros dois homens que ali estão aprisionados com ele. Mesmo compartilhando da mesma espera para a morte, o corpo fisiológico dos três respondendo de maneira parecida, o que cada um vive é único e individual. [...] Tom obedeceu a contragosto; gostaria de consolar o menino; aquilo o manteria ocupado, não lhe daria tempo de pensar em si próprio [...] tinha medo de me ver suado e cinzento; estávamos iguais e piores do que espelhos um para o outro. Ele olhava o belga, o "vivo" (SARTRE, 2017, p. 13; 17). Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 BUENO, C. / SANTOS, G. / BASSETO, A. Através dos relatos de Ibbieta, é possível analisar que a espera vai se tornando mais difícil com o passar do tempo. O viver a não-possibilidade de ser enquanto espera vai se mostrando mais real a partir do momento em que ele, não mais se reconhece em seu corpo físico, precisando, pois, do olhar do outro para se reconhecer enquanto corpo fisiológico. [...]. Eu mesmo não avaliava tudo perfeitamente, perguntava-me se sofreríamos muito, pensava nas balas, imaginava sua passagem ardente através do meu corpo. Tudo aquilo estava fora da verdadeira questão, mas eu me sentia tranquilo (SARTRE, 2017, p. 14). Quando Ibbieta passa a diferenciar o médico que os observa como alguém vivo, ele começa a se reconhecer como corpo já sem vida, sem possibilidade de ser ou sem projeção. Já não se vê como pertencente àquele corpo; ele já não encontra forças físicas para se movimentar, seu corpo não responde aos seus comandos. [...]. Senti desejos de me levantar e quebrar-lhes a cara, mas assim que esbocei um gesto minha vergonha e cólera desapareceram; cai sobre o banco com indiferença. Nós três o olhávamos porque ele estava vivo. Fazia gestos de gente viva, tinha as preocupações de gente viva; ele tiritava no porão, como deviam tiritar todos os vivos; possuía um corpo obediente e bem-nutrido. Nós não sentíamos mais nossos corpos – não como ele, em todo caso (SARTRE, 2017, p. 119 16; 20). Ibbieta passa a relembrar seu passado e de como vivera sua vida, não encontrando sentido para as escolhas que havia tomado e que o fizera chegar até ali. Dessa maneira, nada mais lhe fazia sentido. O que nos retoma ao que Sartre revelava sobre o projeto inicial pré-reflexivo, no qual, ao fazer uma escolha, o homem está negando, então, todas as outras possibilidades de ser e existir, dando fim assim as outras possibilidades. [...]. Uma onda de lembranças surgiu em confusão, tanto as boas quanto as ruins [...] Lembrei-me de alguns episódios: o desemprego durante três meses em 1926, como escapei de morrer de fome. Recordei-me de uma noite passada num banco, em Granada; havia três dias que não me alimentava, estava enraivecido e não queria morrer. Aquilo me fez sorrir. Com que ansiedade eu corria atrás da felicidade, atrás das mulheres, atrás da liberdade...A troco de quê? (SARTRE, 2017, p. 21-22). Ao comparar a existência humana com a vida de uma pessoa que está presa esperando o dia de sua morte, e, nesse tempo de espera e angústia, escolhe por viver da melhor forma possível até seu suplício, Sartre considera que algumas mortes podem ser esperadas. Claro que aqui ele abrange seu raciocínio e fala não somente da vida de um prisioneiro esperando a morte. Essa, no entanto, é somente uma Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 A morte sob a perspectiva fenomenológica existencial analogia para explicar a existência humana em relação à morte. O ponto central é que, apesar da morte ser uma facticidade, temos ciência que é uma certeza; então, viver a espera dessa morte é dar sentido à própria vivência do ser-aí (SARTRE, 1997). Sustentando a analogia feita por Sartre, a experiência de espera vivenciada por Ibbieta não o coloca em uma situação totalmente impensável, já que, mesmo de sua prisão, já vivia à espera da morte, mesmo que de forma distante e não reflexiva. Nesse momento, os pensamentos nostálgicos assolam suas memórias trazendo a sensação de não ter valido a pena, sendo justificada pela facticidade, mas sim por uma vida vivida de forma inautêntica. Assim, a morte jamais é aquilo que dá à vida seu sentido: pelo contrário, é aquilo que, por princípio, suprime da vida toda a significação. Se temos de morrer, nossa vida carece de sentido, porque seus problemas não recebem qualquer solução e a própria significação dos problemas permanece indeterminada (SARTRE, 1997, p. 661). Viver é dar sentido às experiências do passado, do presente e do futuro. Viver significa estar à espera da morte, vivenciando a morte precoce e acelerada do corpo. Tudo isso são contingências que podem estar influenciando a maneira de Ibbieta significar ou até mesmo ressignificar seu passando, fazendo com que suas experiências percam o sentido. 120 Outrossim, esperar a morte sendo um condenado, diferencia-se de esperar a morte enquanto alguém livre, que compreende que não é biologicamente possível a imortalidade. Dessa forma, vive-se com a certeza de que a morte irá chegar, o que, de fato, muda toda a perspectiva da espera. Sartre diferencia essas duas esperas como, expectar e esperar a morte. No caso de Ibbieta, ele está esperando a morte, pois sabe que sua execução tem nada marcada para acontecer. Ele vive enquanto alguém livre sem data marcada para morte, à espera, não tendo certeza da hora e momento em que a encontrará. Diferença entre a escolha e a facticidade da morte Partimos da afirmação de que o humano é um ser-no-mundo. Ora, sua relação de existência sempre ocorre em relação com algo ou alguém. É, pois, com base nisso que passará a dar sentido a sua existência. Porém, não é somente na relação do homem com o outro que determinará sua relação com a vida, mas também irá determinar sua relação com a morte, com a finitude de suas possibilidades (FORGHIERI, 2009). Assim, apesar das possibilidades, tais relações não são facilmente realizadas, visto que existem obstáculos que irão restringir essas escolhas. Um desses obstáculos pode ser elencado do conto em questão, em que Ibbieta se vê frente à Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 BUENO, C. / SANTOS, G. / BASSETO, A. possibilidade da finitude de suas possibilidades, ou seja, há naquela sentença uma proximidade maior com a morte. [...] de súbito aconteceu algo que me surpreendeu: a presença daquele médico cessou bruscamente de me interessar. Geralmente, quando pego um homem, não largo mais. Entretanto, o desejo de conversar me abandonou; dei de ombros e desviei os olhos (SARTRE, 2017, p. 14). Segundo Forghieri (2009, p. 18), “somos vivos, mas, também mortais. Vivemos e morremos de certo modo simultaneamente”. Isso ocorre porque ao vivermos o presente estamos, de certa forma, abrindo caminho para o futuro; pois bem, o futuro sempre traz imprevistos. Assim, um ser sadio existencialmente precisa, ao mesmo tempo, aceitar e enfrentar os paradoxos e as restrições que existem na existência. Em função disso, conjecturamos que Ibbieta, no momento do julgamento, em que foi encaminhado a sua cela, e passa a saber que sua existência terá um fim em poucas horas, ele pode ser considerado um ser-doente. Segundo Forghieri (2009), esse adoecimento do ser ocorre quando as limitações e conflitos não são reconhecidos e enfrentados, visto que, perante às múltiplas possibilidades já não são uma escolha. Isso ocorreu com Ibbieta, no momento que, para ele, a sentença de sua execução também passou a significar a sentença do fim de suas possibilidades. 121 [...]. Olhei durante algum tempo o disco de luz que o lampião projetava no teto. Estava fascinado. Depois, bruscamente, voltei a mim, a roda luminosa desapareceu e me senti esmagado por um peso enorme. Não era o pensamento da morte, nem medo; era uma coisa sem nome. Minhas faces queimavam e eu sentia uma dor na cabeça (SARTRE, 2017, p. 15). Assim, a facticidade da morte é a ausência da possibilidade de escolha. Pois, segundo Sartre, nem no nascer e nem no morrer temos uma possibilidade de escolha. Podemos perceber isso no personagem no momento em que ele visualiza a situação em que se encontra. Ele ainda percebe os recursos que tem para enfrentá- la, porém, fica sem saber como agir para se libertar daquele sofrimento em que se encontra para poder seguir com sua existência normal. Segundo Laporte (2009), a morte pode ser vista como um corte no desenvolvimento do indivíduo, uma obstrução que impede a sua continuação, ou, fazendo parte dele, põe nele seu ponto final. Segundo a autora, “a morte muitas vezes, foi encarada como o encontro do humano com o além de si, o inumano, aquilo que não faz parte do homem, de sua existência, seria a transposição para outra forma de ser, a entrada no interdito” (LAPORTE, 2009, p. 122). Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 A morte sob a perspectiva fenomenológica existencial [...] Era verdadeiramente penoso ver assim a terra toda refletir-se no céu. Mas, agora, eu podia olhar para fora tanto quanto quisesse, pois, o céu não evocava mais nada. Preferia assim. [...] tinha medo de me ver suado e cinzento; estávamos iguais e piores do que espelhos um para o outro. Ele olhava o belga, o "vivo" (SARTRE, 2017, p. 17). Para Sartre, usar a morte como uma teoria que interioriza a morte como termo liberdade é uma tentativa para recuperar a própria liberdade. Assim, como analisa Laporte (2009, p. 123), “a morte não seria uma passagem ao inumano e nem uma luz penetrando no interior do mesmo, mas revelaria a condição humana”. Dessa forma, podemos afirmar que a morte é um a priori do indivíduo, quer dizer, ela é algo que vem de fora e recai sobre o Para-si, pondo, dessa forma, um fim a todos os seus projetos. Nós três o olhávamos porque ele estava vivo. Fazia gestos de gente viva, tinha as preocupações de gente viva; ele tirava no porão, como deviam tiritar todos os vivos; possuía um corpo obediente e bem- nutrido. Nós não sentíamos mais nossos corpos – não como ele, em todo caso (SARTRE, 2017, p. 20). Nessa medida, entendemos que a morte é subjetiva, visto que é a possibilidade e o acontecimento que só ocorre para aquele Para-si de forma única. É só ele que caberá morrê-la, visto que essa possibilidade é intrasferível; só o homem poderá 122 morrer por si. Com isso, podemos diferenciar o esperar a morte e o expectar a morte. No caso do personagem Pablo, ele espera a morte, pois segundo seu julgamento, ele seria condenado à morte na manhã seguinte. Nesse quadro, o caminho é previsível, porém ao mesmo tempo a morte é imprevista e impensável, pois, assim, como no exemplo que Sartre nos oferece sobre o condenado à morte que morre de gripe, algo assim também poderia ter ocorrido com Ibbieta. Segundo Laporte (2009, p. 125), “a vida do Para-si será, portanto, à espera da espera, esperando a derradeira espera que interromperá todas as esperas”. Desse modo, a morte é a ausência de todo sentido, que dará fim a toda a espera, e que acabará com quem espera. Em função disso, esperar se torna um absurdo visto que, “esperar a última espera é esperar o próprio aniquilamento” (LAPORTE, 2009, p. 125). [...] Mas não tinha vontade de perder duas horas de vida; viriam me acordar mal amanhecesse, eu os seguiria tonto de sono e estrebucharia sem um ai; não queria morrer como um animal, queria compreender (SARTRE, 2017, p. 21). Para Sartre, há uma distinção entre finitude e morte. A morte, por ser contingência e facticidade, é, como escreve Laporte (2009, p. 127), “condição ontológica do Para-si, responsável pela liberdade e só existe em um projeto que Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 BUENO, C. / SANTOS, G. / BASSETO, A. busca seus fins e seus objetivos, o fim que anuncia a mim mesmo aquilo que sou. Ser finito é escolher-se e o ser que é livre cria seus possíveis”. Assim, para Sartre, não há possibilidade de pensar a própria morte, nem em esperá-la, ou se proteger dela, visto que, ela é um mistério. Assim, quando chegar o momento de vivê-la, este Para-si já não terá condições de emitir juízo sobre o ocorrido, visto que já não estará aqui (LAPORTE, 2009). Escreve Sartre (2017, p. 22): Nesse momento, tive a impressão de que teria toda a vida pela frente, e pensei: “É uma grande mentira.” Não valia nada, pois havia acabado. Perguntei-me como conseguira passear, divertir-me com mulheres; não teria movido um dedo se imaginasse que acabaria desse jeito. Tinha toda a vida diante de mim, fechada com um saco, e, entretanto, tudo quanto estava lá dentro continuava inacabado. Percebemos também, que o personagem analisado aqui, está enfrentando algo que o existencialismo costuma tratar com a seguinte frase: “o homem é angústia” (SARTRE, 2016). Angústia essa que percebemos em Ibbieta, que se vê desamparado perante os fatos que estão ocorrendo. Em sua máxima, Sartre afirma que “o homem é livre, o homem é liberdade”. Com isso, entendemos que o homem a partir do momento que é livre, não há desculpas, ele está só. É por isso que os existencialistas afirmam que o homem está condenado a ser livre pois, “ele não criou a si mesmo, e, por outro lado, contudo, é 123 livre, já que, uma vez lançado ao mundo, é o responsável por tudo o que faz” (SARTRE, 2006, p. 24). Naturalmente, não podia pensar com clareza na minha morte, mas eu a via por todos os lados, sobre as coisas, no jeito pelo qual as coisas tinham recuado e se conservado a distância, discretamente, como pessoas que sussurram à cabeceira do moribundo. Era a sua morte que Tom acabara de tocar sobre o banco. No estado em que me achava, se viesse me avisar que eu poderia voltar tranquilamente para casa, que a minha vida estava salva, eu ficaria indiferente; algumas horas ou alguns anos de espera dão na mesma, quando se perdeu a ilusão de ser eterno. Não ligava mais para nada; em certo sentido estava calmo. Era, porém, uma calma horrível – por causa do meu corpo; enxergava com seus olhos, ouvia com seus ouvidos, mas não era mais eu; (SARTRE, 2017, p. 23-24). “O homem, sem nenhum tipo de apoio nem auxílio, está condenado a inventar a cada instante o homem” (SARTRE, 2016, p. 25). Conseguimos perceber esse movimento do personagem no trecho citado a seguir em que faz uma escolha para o tipo de morte que quer ter: “quero morrer firme”. Assim, podemos dizer que o personagem encontrou seu projeto visto que, “só existe realidade na ação” (SARTRE, 2016, p. 25). Isso significa que seu ato de morrer Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 A morte sob a perspectiva fenomenológica existencial firme, escolha feita perante à perspectiva da morte, passa a ser uma forma de existir em sua cela. Um segundo, um único segundo, também tive vontade de chorar, de chorar de piedade de mim. Mas o que aconteceu foi o contrário; dei uma olhadela no garoto, vi seus magros ombros arquejantes e me senti inumano; não podia ter piedade nem dos outros nem de mim mesmo. Disse com meus botões: “Quero morrer firme” (SARTRE, 2017, p. 25). Segundo Sartre (2016), há sempre a possibilidade de o covarde virar herói e do herói virar covarde. Ora, o que irá determinar isso é a forma de engajamento de cada um. Por isso, que a escolha sempre se faz possível, visto que, não é possível não escolher. O não escolher também é uma escolha. Dessa maneira, Ibbieta toma uma decisão perante à pressão de entregar o esconderijo de Gris, decisão essa que sem ele esperar, o leva para um caminho novo e, totalmente inesperado. Entretanto, eu estava ali, podia salvar a pele entregando Gris e me recusava a fazê-lo. Achava aquilo meio cômico; era pura obstinação. Pensei: “Isso é que é ser teimoso”, e uma alegria esquisita me invadiu (SARTRE, 2017, p. 28). Desse modo, “ele se torna o legislador dele mesmo, e que é no desamparo que ele decidirá por si mesmo; [...] não é voltando-se para si mesmo, mas sempre 124 buscando fora de si um fim que consiste nessa liberação, nesta realização particular, que o homem se realizará precisamente como humano (SARTRE, 2016, p. 44). Considerações finais Ao longo de todo nosso trabalho procuramos refletir sobre como o conceito da morte influencia, sob a ótica existencial, nos demais conceitos como: liberdade, escolhas e responsabilidade citados por Sartre. Para entender melhor a didática do autor e como ele representava seus conceitos, partimos de um de seus romances para entender o conceito. O tema gerador de nossa análise foi a morte. Assim antes mesmo de entrar no conto O Muro, procuramos situar o conceito à luz da teoria existencial de Sartre. Desta forma, entendemos que a morte nos acontece como uma facticidade e que não podemos escolher por ela. Essa nos é dada como finitude de todas as nossas possibilidades de existir, dando fim a todos os projetos de vida. Assim, começamos refletindo sobre a diferença de expectar a morte e esperar a morte, tendo em vista duas situações distintas, quais sejam, a de um homem livre e a de alguém enclausurado esperando pelo momento de sua execução. Segundo afirma Sartre, o homem livre está expectando a morte, pois esse sabe que ela chegará. No entanto, ele não sabe o momento e nem como ela o encontrará. Já o Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 BUENO, C. / SANTOS, G. / BASSETO, A. homem enclausurado que apenas espera o momento de sua execução, está esperando a morte, pois essa tem hora marcada e já o está certo de seu fim. A partir disso, passamos a analisar e a observar como o personagem Ibbieta do conto O Muro passa a ressignificar sua vida a partir do momento que é preso e condenado à execução. Nesse momento, sua liberdade passa a ser experienciada de uma maneira completamente diferente, pois a sua prisão e sua condenação fora uma facticidade. Trata-se igualmente de uma consequência de seus atos e das circunstâncias e contingências sociais da época e período histórico no qual ele se encontrava. Desse modo, Ibbieta passa a ter experiências com o seu corpo na qual ele ainda não havia sentido. Ele escolhe não pensar em seu passado e na vida que tinha quando estava livre. Para ele, nada disso mais faz sentido pois, a certeza de sua morte e a espera dela o coloca em uma situação trágica em que ele se vê de certa forma separado de seu corpo. Assim refletimos que, para Ibbieta, o ato de se olhar e se enxergar em tal situação tão lastimável o faz ter repulsa de si mesmo, isto é, de viver e sentir o seu corpo como pertencente a si. Portanto, Ibbieta passa a olhar o outro e analisá-lo para fugir de si mesmo e de seus pensamentos a respeito de si. E, é somente a partir do momento em que ele recebe uma nova oportunidade 125 de delatar o colega, que se apresenta uma nova possibilidade de escolha em relação a seu futuro. Nesse instante, ele escolhe por ser firme em sua resolução de não entregar Escobar, preferindo, pois, inventar uma história que, para ele, era hilariante. Com essa escolha que ele faz resulta uma nova gama de possibilidades pela qual o próprio personagem não estava esperando. Referências FORGHIERI, Y. C. Psicologia Fenomenológica: fundamentos, métodos e pesquisa. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2009. LAPORTE, A. M. A.; VOLPE, N. V. Existencialismo: uma reflexão antropológica e política a partir de Heidegger e Sartre. Curitiba, PR: Juruá, 2009. PERDIGÃO, P. Existência e liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre. Porto Alegre, RS: L&PM, 1995. SARTRE, J-P. A transcendência do ego. Tradução João Batista Kreuch. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. ______. Esboço para uma teoria das emoções. Tradução Paulo Neves. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014a. ______. O existencialismo é um humanismo. Tradução João Batista Kreuch. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014b. ______. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018 A morte sob a perspectiva fenomenológica existencial ______. O muro. Tradução H. Alcântara Silveira. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2017. Submissão: 23.11.2018 / Aceite: 30.11.2018. 126 Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 4, n. 2, 2018