Os Cenários da República: O Brasil na Virada do Século XIX para o Século XX PDF
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Margarida de Souza Neves
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Summary
This document explores the multifaceted scenarios of the Republic of Brazil at the turn of the 19th and 20th centuries. It examines contrasting experiences in urban and rural areas, highlighting the tension between rapid modernization and enduring traditions. The document analyzes the contrasting realities faced by various social groups during this transformative era.
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1. Os cenários da República. O Brasil na virada do século XIX para o século XX Margarida de Souza Neves* Vertigem e aceleração do tempo. Esta seria, sem dúvida, a sensação mais forte experimentada pelos homens e mulheres que viviam ou circulavam pelas ruas do Rio de Janeiro na virada do s...
1. Os cenários da República. O Brasil na virada do século XIX para o século XX Margarida de Souza Neves* Vertigem e aceleração do tempo. Esta seria, sem dúvida, a sensação mais forte experimentada pelos homens e mulheres que viviam ou circulavam pelas ruas do Rio de Janeiro na virada do século XIX para o século XX. Ainda que de forma menos contundente, o mesmo sentimento estaria presente nas principais cidades brasileiras, que, tal como a cidade-capital,1 cresciam como nunca, tornavam complexas suas funções e recebiam levas de imigrantes europeus que atravessavam o Atlântico em busca do sonho de fazer a América. Tudo parecia mudar em ritmo alucinante. A política e a vida cotidiana; as ideias e as práticas sociais; a vida dentro das casas e o que se via nas ruas. Como nas subidas, descidas, voltas e reviravoltas de uma montanha-russa estonteante, na feliz imagem utilizada por Nicolau Sevcenko (2001, pp. 11-22), o progresso, tudo parecia arrebatar em sua corrida desenfreada. Marasmo. E um tempo que parecia transcorrer tão lentamente que sua marcha inexorável mal era percebida. Assim, nas fazendas, nas vilas do interior e nos sertões do país, essa mesma virada do século seria percebida. Ali, nada parecia romper uma rotina secular, firmemente alicerçada no privilégio, no arbítrio, na lógica do favor, na inviolabilidade da vontade senhorial2 dos coronéis e nas rígidas hierarquias assentadas sobre a propriedade, a violência e o medo. Tudo parecia ser sempre igual, e o tempo, ao menos aparentemente, ainda seguia o ritmo da natureza. Como nas memórias de infância de Graciliano Ramos, a vida transcorria lentamente e sem outras alterações que não aquelas que distinguiam a estação das chuvas daquela da estiagem: Mergulhei numa comprida manhã de inverno. O açude apojado, a roça verde, amarela e vermelha, os caminhos estreitos mudados em riachos, ficaram-me na alma. Depois veio a seca. Árvores pelaram-se, bichos morreram, o sol cresceu, bebeu as águas, e ventos mornos espalharam na terra queimada uma poeira cinzenta. Olhando-me por dentro, percebo com desgosto a segunda paisagem. Devastação, calcinação. Nesta vida lenta sinto-me coagido entre duas situações contraditórias – uma longa noite, um dia imenso e enervante, favorável à modorra (Ramos, 1978, p. 20). Na República Velha, uma lógica paradoxal diferencia e ao mesmo tempo relaciona organicamente esses dois cenários – o da capital federal e o do interior –, à primeira vista opostos pelo vértice, o cenário do progresso montado na cidade que, após o 15 de novembro, assume foros de capital federal e o cenário do interior do país, onde a República recém-implantada, aparentemente, muda apenas, no cotidiano, os selos que estampilham as cartas que o correio de quando em vez faz chegar, a bandeira nacional hasteada nas festas, as notas e moedas que pouco circulam e algumas das datas pátrias festejadas com fanfarra e bandeirolas. Aprofundar na relação entre esses dois cenários, sem deixar de perceber as diferenças entre a modorra da vida no interior e a vida vertiginosa3 do Rio de Janeiro, é premissa fundamental para o entendimento da história do primeiro período republicano no Brasil. Como poucos, entre aqueles que viveram o tempo conturbado do fim do Estado imperial e do início da República, Euclides da Cunha experimentou na própria vida e trouxe para a sua obra o paradoxo entre os dois cenários da República e os impasses do sonho republicano. Nascido em uma fazenda em Santa Rita do Rio Negro, interior da então província fluminense, peregrinou desde muito pequeno pelo Brasil afora em razão da morte precoce de sua mãe e, já adulto, ao sabor dos deveres de ofício que assume como militar, como engenheiro ou como jornalista. Ainda menino, é levado, da Fazenda Saudade em que nascera, para a cidade serrana de Teresópolis; dali a São Fidélis, para a fazenda de um tio, coronel da Guarda Nacional. Depois, muda- se para Salvador, na Bahia, onde vive entre os 11 e os 12 anos em companhia dos avós paternos. Transfere-se então para o Rio de Janeiro em 1879, onde, mais tarde, ingressa na Escola Militar, sem, no entanto, concluí-la em função de um famoso episódio ocorrido no mês de novembro de 1888, em que ostenta suas convicções republicanas diante de Tomás Coelho, ministro da Guerra do governo imperial. Já adulto, continuará o périplo pelo Brasil: São Paulo, novamente o Rio de Janeiro, interior de Minas Gerais, e outra vez São Paulo, quando retoma a colaboração com a imprensa no periódico O Estado de S. Paulo, que o enviará como repórter à cena do mais desconcertante confronto a que fez frente a República em seus primeiros anos: aquele que resultou do enfrentamento, no interior da Bahia, entre o Exército nacional e os sertanejos que buscavam nas pregações de Antônio Conselheiro a esperança que o Estado republicano – tal como a monarquia – insistia em negar-lhes no plano dos mais elementares direitos de cidadania. Depois da expedição à aldeia sagrada de Canudos, para o escritor uma verdadeira epifania em que o Brasil se revelou por inteiro, Euclides seguiria ainda a peregrinação que não cessava de levá-lo e de trazê-lo do cenário do progresso montado no Rio de Janeiro para os grotões mais remotos do país; das vilas pacatas para as capitais dos estados; da rotina das fazendas e plantações para a exuberância indomável da selva amazônica. Depois de testemunhar a tragédia de Canudos e antes de sua morte violenta em 1907, aos 43 anos de idade, Euclides viajaria ainda por todo o interior de São Paulo como engenheiro de obras públicas; conheceria a tranquilidade da vida em Guaratinguetá e Lorena; viveria no Guarujá enquanto trabalhava em Santos; percorreria boa parte da Amazônia, chegaria às nascentes do rio Purus e regressaria à vida agitada da capital federal já travestida em Paris tropical pela reforma Pereira Passos. Por ter testemunhado o fim trágico daquilo que ele próprio qualificou de A nossa Vendeia (Cunha, 1966, v. 1, p. 575), Euclides pode escrever Os sertões, um dos mais lúcidos e dramáticos Retratos do Brasil4 do início do século passado. Nesse livro, engastada no meio de uma rebuscada descrição da caatinga e do homem sertanejo escrita conforme os cânones positivistas em que fora formado, aparece uma rara síntese que condensa o contraste entre os ideais de progresso e civilização que pautam os sonhos de seu tempo e a dura realidade do Brasil. Destilada no incessante ir e vir, na experiência da vida familiar entre os coronéis das fazendas fluminenses e da Bahia, no Exército, no jornal e no trabalho como engenheiro e funcionário do governo pelo Brasil afora, esse trecho daquela que é uma das obras maiores da literatura brasileira oferece uma cartografia simbólica dos dois cenários republicanos: Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos. A afirmativa é segura. [...] Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos de vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos de chofre, arrebatados no caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem no âmago do país um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo, respingando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nessa terra que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos (Cunha, 1966, v. 2, pp. 141 e 231). Na esteira dessas palavras, o que se pretende aqui é, em primeiro lugar, refletir sobre a República, regime político que Euclides da Cunha afirmava ser, no caso brasileiro, uma herança inesperada, bem como sobre as relações entre a nova institucionalidade implantada em 1889 e os sonhos de progresso e civilização, sem esquecer que, para o autor de Os sertões, o primeiro termo está associado a uma condenação inexorável e o segundo constitui-se em um ideal de empréstimo. É também, em segundo lugar, aprofundar nessa curiosa geometria euclidiana que mede em séculos a distância entre o âmago do país e o litoral vastíssimo, representações espaciais dos dois cenários da República da perspectiva do autor. É ainda – e sobretudo – pensar como, apesar das transformações de toda ordem que caracterizam aquela virada de século, permanece intransponível o fosso que exclui da arena política formal os rudes patrícios e como se mantêm intocadas as hierarquias que subordinam aos interesses e ao mando dos que imprimem direção à República aqueles que Euclides, num cálculo talvez otimista, estima serem um terço da nossa gente. O caudal dos ideais modernos Ao associar discursivamente o momento do advento da República no Brasil às ideias de improviso, de arrebatamento, de ascensão, de velocidade e de inesperado, Euclides da Cunha reúne e resume um sentimento fortemente presente entre os seus contemporâneos, em especial entre aqueles 522.651 homens e mulheres que o censo de 1890 contabilizava como a população da cidade do Rio de Janeiro. De fato, era sob o signo de uma certa pirotecnia de súbitas mudanças que o tempo vivido era percebido na cidade que, na sexta- feira, dia 15 de novembro de 1889, amanhecera como corte imperial para anoitecer capital republicana. Arrebatado no caudal dos ideais modernos, o Rio de Janeiro, no fim do século XIX e início do século XX, era palco de não poucas transformações na esfera pública e na vida privada. De olhos postos no outro lado do Atlântico, o Brasil, metonimizado em sua capital, procurava imitar, em faina cega de copistas e fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, nas palavras de Euclides, os modos de viver, os valores, as instituições, os códigos e as modas daquelas que então eram vistas como as nações progressistas e civilizadas. Esses ideais modernos, condensados no que então era visto como a associação indissolúvel entre os conceitos de progresso e de civilização, redesenhavam o quadro internacional, acenavam com a possibilidade de um otimismo sem limites em função das conquistas da ciência e da técnica, impunham uma determinada concepção de tempo e de história, e ocultavam aos olhos da maioria o reverso de um panorama apresentado, quase sempre, como uma espécie de parusia terrena na qual as conquistas da técnica e do engenho humano transformariam a barbárie das guerras no reinado da emulação entre os países mais aptos, destinados a anunciar, por todo o orbe, a boa- nova da redenção do atraso. São muitas as novidades do tempo. Novos protagonistas assumem um papel importante no cenário internacional e, ao lado da Inglaterra, que havia sido até então a potência hegemônica inconteste, senhora do império onde o sol jamais se punha, e que subordinara a seus interesses boa parte dos jovens países da América Latina – entre eles o Brasil –, outros países passam a desempenhar um papel imperialista de destaque. A França, até o período napoleônico potência eminentemente continental, que ocupara a Argélia desde 1830, alarga seus domínios africanos depois de 1878 na bacia mediterrânea, na Mauritânia, na África Ocidental, no Gabão, na ilha de Madagascar; ocupa, no Pacífico, o Taiti, as ilhas Marquesas e a Nova Caledônia, e passa a dividir com os britânicos territórios significativos no Oriente: Cochinchina, Camboja, Anam, Tonquim e Laos, ocupados entre 1862 e 1893, vão constituir a Indochina Francesa. A Alemanha, unificada em 1870, apossa-se na África de Camarões, do Togo e de vastos territórios da África sul- ocidental e oriental, além de parte significativa da Nova Guiné e das ilhas do Pacífico a partir de 1878. Simultaneamente, a Itália também unificada no mesmo período que a Alemanha, ocupa a Líbia, a Eritreia e parte da Somália no território africano. A Bélgica planta, em 1908, no coração da África o Congo Belga, enquanto Portugal e Espanha, há muito presentes na África, aumentam seus domínios. A Holanda mantém os territórios em Sumatra, Java, Bornéu, ilhas Célebes e Nova Guiné. No Extremo Oriente, o Japão rompe o insulamento e ocupa territórios na Coreia e na China. A Rússia expande-se pelos Bálcãs, pelo Turquestão, pela Pérsia, pela Mongólia Exterior e pela China. Nas Américas, os Estados Unidos, considerados como um modelo de país jovem e empreendedor, entram na corrida imperialista e estabelecem bases militares ou ocupam, entre 1867 e 1915, o Alasca, o Havaí, Guam, Cuba, Haiti, Porto Rico, ilhas Virgens, Nicarágua, Panamá, parte do território mexicano, algumas ilhas no Pacífico e, em 1898, substituem os espanhóis nas Filipinas. O mapa político do mundo passa a ser outro, e o Brasil nele continua inscrito como país dependente e periférico, mas não mais exclusivamente na área de influência inglesa. Outros investimentos e interesses internacionais aqui aportam, notadamente os norte- americanos. Novas engrenagens internacionais transformam a economia mundial, as grandes potências hegemônicas descobrem, nas áreas periféricas – inclusive no Brasil –, um mercado lucrativo para aplicações financeiras e passam a investir fortemente ali, onde a mão de obra é barata, os direitos sociais estão longe de serem conquistados e a matéria-prima é farta e disponível. O capitalismo financeiro complementa as conquistas dos países industrializados e os trustes e cartéis darão novas formas às políticas monopolistas. Por toda parte, novos agentes e novas práticas sociais transformam as cidades. Empresários e operários redesenham os polos da conflitividade social, e se os primeiros ostentam riqueza nos salões e nas festas suntuosas, os segundos encontram nas greves e nos sindicatos a forma de reivindicar seus direitos. Cresce o número das fortunas feitas da noite para o dia, e Balzac, escritor francês que traz para a literatura as transformações que, então, afetavam tantas vidas, sustenta com argúcia que, por trás de uma grande fortuna, há sempre um crime inconfessável (Balzac, 1965, p. 139). Simétrica e oposta, cresce também a pobreza nas cidades; já em 1859 Charles Dickens e em 1862 Victor Hugo a transporão para a literatura em Um conto de duas cidades e em Os miseráveis. Os pobres – cada vez mais numerosos nas cidades – se amontoam em casas de cômodos, pardieiros, pensões, águas-furtadas e tugúrios nos bairros miseráveis e nas periferias. A multidão, outra das novidades do tempo, ocupa as ruas e, paradoxalmente, faz crescer a sensação de isolamento e solidão ao instaurar o anonimato. Para contê-la, os urbanistas reformam as cidades. Para diverti-la, os mesmos maquinismos, que nas fábricas estão associados à dura rotina do trabalho, são utilizados nos grandes parques de diversões. Para amenizar a distância que a separa da natureza são construídos os grandes parques urbanos, como o Central Park, em Nova York, ou o Bois de Boulogne, em Paris.5 Para educá-la, curá-la, discipliná-la e civilizá-la, mobilizam-se os intelectuais e o poder público. Também no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, esse mesmo fenômeno pode ser observado e é captado pela literatura. Machado de Assis, em 1904, faz do contraste entre o morro do Castelo e os palacetes da rua São Clemente um dos temas de Esaú e Jacó, e, talvez como nenhum outro escritor de seu tempo, Lima Barreto traz para seus romances, contos e crônicas o universo dos pobres e dos subúrbios que se ocultava nos desvãos da capital da ordem e do progresso. Novas conquistas da ciência e da técnica e novas invenções revolucionam os hábitos e o cotidiano. Na medicina são extraordinários os avanços. Por um lado, os segredos da saúde do corpo vão sendo desvendados a partir da identificação do bacilo da febre tifoide por Eberth em 1880, do bacilo da tuberculose por Koch em 1882, do bacilo da difteria por Klebs em 1883, do bacilo da peste bubônica por Yersin em 1894, da descoberta do rádio por Pierre e Marie Curie em 1894 e dos grupos sanguíneos por Landsteiner em 1900. Por outro, os mistérios do inconsciente começam a ser revelados desde que, no ano de 1900, Sigmund Freud escreve A interpretação dos sonhos. No Brasil, os higienistas, tendo à frente Oswaldo Cruz, terão um papel importante na ciência e na modernização da capital, e alguns cientistas, como Carlos Chagas, que em 1909 isola o Trypanosoma cruzi, se destacarão no mundo científico internacional. É novo também o ritmo da vida e, com a associação da ciência à técnica, as distâncias parecem encurtar-se. Em terra, amplia-se a poderosa rede de ferrovias que corta os cinco continentes e, em 1890, um trem, o Empire State Express, atinge uma velocidade de mais de 100 km por hora. Um novo veículo ganha as ruas de todas as cidades desde que Daimler e Benz constroem um automóvel movido a gasolina em 1885 e Henry Ford começa a fabricar em série seus modelos T em 1908. Nos mares, desde 1873, a máquina Normand, de expansão tripla, torna os navios transatlânticos mais velozes, e o submarino lançado por Laboeuf em 1899 traz para a realidade o que antes era possível apenas na ficção de Júlio Verne, que já fizera o capitão Nemo singrar as profundezas do mar nas páginas de Vinte mil léguas submarinas. O telefone, o rádio, o telégrafo e a linotipo, inventada por Mergenthaler em 1884, revolucionam as possibilidades de comunicação. E os balões, os dirigíveis, os zepelins e outras engenhocas voadoras tornam cada vez mais tangível o mito de Ícaro e o sonho de Leonardo da Vinci, que se tornará realidade graças a um brasileiro franzino, Alberto Santos Dumont, que cruza os céus de Paris em 1906 a bordo do primeiro avião, o 14-Bis, ainda que muitos afirmem que a proeza de voar a bordo de um aparelho mais pesado que o ar pertenceu aos irmãos Wright. Também o espaço privado se transforma com mil novidades desde que Siemens inventa um forno elétrico em 1870, surge a baquelite – a primeira matéria plástica – em 1872, Edison acende a primeira lâmpada incandescente no vácuo em 1876 e o primeiro fogão elétrico começa a ser vendido em 1893. O progresso técnico invade as casas, transforma os ritos, os costumes e os horários da rotina doméstica. Quando, em 1905, Einstein propõe a teoria da relatividade, revolucionando a física moderna, a química cotidiana da cozinha da maioria das casas já havia sido transformada pela descoberta de um norte-americano de nome Normann que, em 1903, patenteara o processo de hidrogenação para a fabricação da margarina. Entre nós, alguns desses artefatos começam a modificar os hábitos dos casarões da rua São Clemente e da avenida Paulista.6 Uma nova concepção de tempo e de história acompanha as múltiplas mudanças que, aproximadamente entre 1870 e a Primeira Grande Guerra de 1914, se multiplicam em todos os âmbitos. O Ocidente vive um desses períodos em que a história parece acelerar-se, e não é apenas a experiência do tempo vivido que reflete e provoca essa sensação: a própria percepção mais abstrata do tempo e a concepção de história que é seu corolário estarão pautadas pela primazia da noção de evolução e por uma representação linear, em constante aceleração, do tempo histórico, que certamente ganha uma nova coloração, ainda que possa ser percebida desde o século XVIII e da construção da razão instrumental moderna, posto que, nas palavras de Reinhart Koselleck, nosso conceito moderno de história é fruto da reflexão das Luzes sobre a complexidade crescente da “história em si, na qual as condições da experiência parecem afastar- se, cada vez mais, da própria experiência” (Koselleck, 1990, p. 12). Uniforme, rigidamente controlado, cada vez mais veloz e pautado pela eficiência, o tempo é visto como um continuum entre dois polos que especificam seu ponto de partida e seu telos, situado no polo que assinala a sempre renovada conquista do progresso e da civilização, marcado com um sinal de positividade e oposto ao polo do atraso e da barbárie, negativado. Nesse tempo retilíneo e direcionado mover-se- iam todas as nações, que se viam e eram vistas como modernas na medida em que se situassem no limiar das mais recentes conquistas da época, consideradas como manifestações inequívocas da primazia de seu engenho e arte. Cabe lembrar que o evolucionismo social de Spencer precede o darwinismo, que parece aplicar em sua teoria da seleção natural das espécies os princípios que norteiam a concepção de história como uma incessante corrida pelos trilhos do progresso, e que permitiria aos países que se viam como os mais aptos arvorar-se uma missão civilizadora em relação àqueles países ou mesmo continentes vistos como mais atrasados, cujo destino seria emular os que se apresentavam como a vanguarda do Ocidente. O problema dessa concepção evolucionista e linear da história reside em tratar diferenças como se fossem desigualdades. Com efeito, ainda que os países periféricos – entre eles o Brasil – incorporassem o discurso das nações hegemônicas e entendessem que bastaria imprimir uma maior velocidade a suas conquistas para entrar no rol das nações civilizadas e progressistas – para utilizar uma formulação recorrente na época – e mesmo para chegar a alcançar um lugar de proeminência na corrida pelo progresso, superando assim uma desigualdade facilmente sanável pela aplicação das inteligências e a mobilização das vontades, a diferença essencial que os separava de países como a França e a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos, a Bélgica ou a Itália não cessava de aprofundar-se, uma vez que da manutenção de seu lugar periférico, subordinado e ainda colonial, dependia a reprodução exponencial da riqueza, da hegemonia e do lugar ocupado pelos chamados países civilizados e progressistas no concerto das nações. A ideologia do progresso, no entanto, impedia a percepção dessa diferença fundamental e de algumas das decorrências menos edificantes do espírito do tempo, tais como o etnocentrismo, o desrespeito aos valores das diversas culturas, a injusta distribuição da riqueza entre os Estados e no interior deles, a prepotência, a violência e a exploração. Desde a metade do século XIX, essa ideologia, síntese dos ideais modernos em cujo caudal Euclides da Cunha via o Brasil arrebatado, transformara-se em algo muito próximo a uma religião leiga. Como toda religião, para além de realizar seu sentido etimológico – re ligare –, ao congregar os que partilhavam a mesma fé em torno de um credo comum, aquela que se consolida a partir da crença inabalável na marcha do progresso da humanidade como decorrência lógica e necessária das conquistas técnicas e científicas saberá encontrar seus ritos, sua liturgia e suas celebrações: as Exposições Internacionais,7 realizadas periodicamente, cumprirão com eficácia essa função. Não sem razão, Walter Benjamin, arguto observador de seu tempo, as considerará como lugares de peregrinação à mercadoria- fetiche (Benjamin, 1982, p. 64). Desde 1851, quando a Inglaterra vitoriana inaugura a primeira das Exposições Universais, o caudal dos ideais modernos virá desaguar nessas festas do progresso e da civilização, vistas pelos organizadores como arenas pacíficas (Neves, 1988). Milhares de visitantes de todas as latitudes geográficas e sociais aprenderão, ao visitá-las, lições indeléveis que resumirão as convicções daquele tempo, associarão indissoluvelmente os conceitos de progresso e civilização e assimilarão uma determinada visão da história. Cabe assinalar que muitos dos marcos que monumentalizam esses ideais modernos são originariamente vinculados às Exposições. É o caso do Palácio de Cristal, projetado por John Paxton para a Exposição londrina de 1851; da Estátua da Liberdade, presente da França aos Estados Unidos no centenário de sua emancipação política e que, antes de cruzar o Atlântico e aportar diante da ilha de Manhattan, esteve exposta em Paris na Exposição de 1878, e também da torre Eiffel, em seu tempo a mais alta e ousada construção erguida pela mão do homem, e que presidiu à grandiosa Exposição Universal com que a França comemorou o terceiro centenário da Revolução Francesa. No Brasil, timidamente, as novidades do tempo estarão presentes desde a década de 1860. Antes mesmo de abolir a escravidão, que se tornara um obstáculo real para o progresso material e desmentia a reputação de progressista perseguida pelo Império e pelo segundo imperador, aqui chegaram alguns lampejos suntuários das conquistas modernas. A fotografia, o telefone, o telégrafo e o fonógrafo causaram espanto e maravilha. A rede de estradas de ferro estendeu-se, unindo aos portos de escoamento para o mercado externo as grandes fazendas do oeste paulista, onde o trabalho livre ganhava espaço e os proprietários pretendiam ser empresários modernos. Desde 1862 o Brasil participava das Exposições Internacionais8 realizadas na Europa e nos Estados Unidos, ainda que a imagem que os visitantes dessas grandes mostras que, por acaso, se fixassem no que o Estado imperial enviava para representar o país não pudesse deixar de estar associada à sua extraordinária riqueza natural e ao exotismo: pedras e madeiras preciosas, peles de animais selvagens, produtos agrícolas e arte plumária abarrotavam o espaço destinado ao Império do Brasil nas primeiras Exposições Internacionais que contaram com a presença do país. No mesmo ano em que os holofotes da Exposição Universal de 1889 fizeram resplandecer em Paris a torre de 300 metros de altura construída por Gustave Eiffel, um golpe militar, a princípio destinado apenas a provocar a derrocada do gabinete Ouro Preto, terminou por derrubar a monarquia, expulsar o velho imperador e sua família e instaurar a República. Revolucionariamente, como dirá Euclides da Cunha, engenheiro militar para quem a conotação de revolta, sublevação e convulsão social que nos habituamos a associar ao termo revolução certamente estaria associada àquela de seu sentido primitivo, oriundo dos campos intelectuais da física, da astronomia, da geometria e da mecânica, e que aparecem em primeiro lugar no Dicionário prático illustrado de Jayme Séguier, um dos mais usados em sua época e que assim define os principais sentidos da palavra revolução: Revolução, s.f. (lat. revolutio). Phys. Movimento de um móvel que percorre uma curva fechada. Astron. Marcha circular dos corpos celestes no espaço; período de tempo que elles empregam em recorrer a sua órbita: a revolução da terra em torno do sol. Geom. Movimento suposto de um plano em volta de um dos seus lados, para gerar um sólido. Mechán. Giro completo de uma roda. Fig. Levantamento ou insurreição política de grande importância e gravidade, tendente a modificar, a transformar a constituição de um Estado, as suas instituições etc.: a revolução francesa (Séguier, s.d., p. 1001). Sem dúvida o golpe militar do 15 de novembro de 1889 modificaria a Constituição do Estado brasileiro e suas instituições. Mas, tal como na acepção astronômica da palavra, a República, revolucionariamente instaurada, terminaria por ser mais uma das transformações sem mudanças substantivas da história brasileira. Concluído o movimento circular no plano político, a sociedade voltaria ao ponto de partida sem grandes convulsões. Sob novas formas, os antigos e os novos Donos do Poder9 manteriam firmes as rédeas do mando. Ou, na clássica formulação que Machado de Assis põe na boca do Conselheiro Aires sobre os acontecimentos do 15 de novembro, mais uma vez os brasileiros constatariam que “nada se mudaria; o Regime sim, era possível, mas também se muda de roupa sem mudar de pele. O comércio é preciso. Os bancos são indispensáveis. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a Constituição” (Machado de Assis, 1971, p. 1031). Uma República de improviso? A proclamação da República no dia 15 de novembro de 1889 é, sem dúvida, um dos acontecimentos significativos de nossa história. Feriado nacional festejado anualmente como uma das datas cívicas mais importantes, o 15 de novembro se inscreve nos livros escolares e no imaginário coletivo como um acontecimento fundador do que somos, como um lugar de memória10 para todos os brasileiros e como um marco significativo de nossa história. Por isso mesmo, presta-se, como poucos, a uma reflexão mais consistente sobre o acontecimento e seu significado para a história. É Pierre Nora, historiador francês, quem nos lembra que se, por um lado, as novas correntes da história aprenderam a relativizar os acontecimentos do universo da política e a dar importância a novos temas, tais como as mentalidades coletivas, a novos objetos de estudo como, por exemplo, a festa, o riso, os hábitos de leitura ou a vida familiar e a novas perspectivas de análise propostas pela história cultural, por outro é preciso não esquecer que há acontecimentos que condensam e permitem uma melhor compreensão do processo histórico em que se inserem. Assim como a ponta de um iceberg, esses acontecimentos revelam o que se esconde sob o mar do cotidiano, deixam perceber aspectos fundamentais da lógica que imprime direção à história de uma coletividade e que pode ser responsável por inflexões significativas nessa mesma história. Nas palavras de Nora, “é necessário auscultar o acontecimento porque é ele que une, como num feixe, todos os significados sociais de que se rodeia” (Nora, 1978, p. 61). Nessa linha de raciocínio, o acontecimento da proclamação da República merece uma atenção particular. Visto do plano do ocorrido naquele 15 de novembro, sem dúvida a República brasileira parece feita de improviso, do jeito que sugere Euclides. A proclamação da República aparenta ser a resultante imediata de um golpe militar, e o marechal Deodoro da Fonseca, ao assumir as rédeas do movimento que resultou na implantação do novo regime, pode ser visto como o fundador a contragosto da República brasileira, como lembra Joseph Love ao escrever que “no 15 de novembro de 1889, os conspiradores republicanos que se agruparam em torno do marechal Deodoro da Fonseca o convenceram a proclamar a República” (Love, 2000, p. 127). A hipótese de que a República brasileira foi, em sua origem, obra dos militares, resultado do descontentamento de setores do Exército e fruto das questões militares que se arrastavam desde o fim da Guerra do Paraguai, encontra respaldo nas versões contemporâneas ao fato e na historiografia. Entre as análises recentes, os trabalhos de Celso Castro (1995, 2000) sustentam o argumento do protagonismo do Exército no advento da República. E o mais conhecido dos testemunhos escritos sobre aquele 15 de novembro, a carta de Aristides Lobo, em que o futuro ministro do Interior do primeiro governo republicano afirma ter o povo assistido ao desenrolar dos fatos daquele dia “bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”, reconhece, no calor da hora, que “por ora, a cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula” (Citado em Carone, 1969, p. 289). A iconografia dos primeiros anos republicanos também sublinha o papel do Exército, tanto se tomarmos como referência a imprensa ilustrada de então, em que desponta a pena inspirada de Angelo Agostini, quanto se pensarmos nos registros mais solenes dos pintores da época. O quadro de Henrique Bernardelli em que Deodoro, montado em um cavalo branco e com ar triunfal, ocupa todo o primeiro plano da tela, deixando na sombra um grupo fardado e alguns poucos civis que dão vivas à República, é exemplar nesse sentido e já foi objeto da análise de José Murilo de Carvalho (1990). Angela Maria de Castro Gomes (Gomes, Pandolfi e Alberti, 2002, pp. 12-30) mostra ser esse também o sentido da tela de Benedito Calixto pintada em 1893 e que continua pondo no centro dos acontecimentos Deodoro e o Exército, se bem que alargue o plano pintado, mostrando todo o campo da Aclamação, a tropa formada, canhões assestados, oficiais a cavalo em meio aos quais está o major Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro com sua espada desembainhada, e alguns civis, entre os quais é possível reconhecer republicanos históricos, como Quintino Bocaiuva. Ainda que com mais personagens em cena, Deodoro e o Exército continuam, na tela de Benedito Calixto, a desempenhar o papel principal no advento republicano. Visto da perspectiva do tempo cronológico que antecede o 15 de novembro propriamente dito, outra luz ilumina o ocorrido e é fácil perceber que a República brasileira não foi apenas obra do golpe militar que fez cair a monarquia. Se bem que seja possível encontrar referências mais remotas, é a partir de 1870 que se oficializa o republicanismo brasileiro, com a publicação do Manifesto Republicano no primeiro número do jornal A República. Coerente com o princípio descentralizador do federalismo, que se constituía na grande bandeira política dos republicanos de todos os matizes e na principal proposta do Manifesto de 1870,11 o movimento republicano organizou-se desde então em partidos políticos provinciais; divulgou seus ideais em jornais da corte e das províncias; multiplicou a existência de clubes republicanos por todo o país; chegou a eleger dois representantes para a Câmara dos Deputados; organizou Congressos Republicanos, como os de 1887 e 1888; abrigou tendências diferenciadas entre as quais os chamados republicanos históricos – os signatários do Manifesto de 1870 –, os positivistas, os moderados, os liberais e tantos outros; cooptou descontentes com os rumos do Estado imperial – os ironicamente chamados republicanos de 14 de maio, fazendeiros e proprietários de escravos que abandonam o barco da monarquia após a abolição de 13 de maio de 1888, ou Rui Barbosa, que em voto em separado no Congresso do Partido Liberal de maio de 1889 anuncia sua adesão ao ideal republicano, uma vez que a monarquia recusava a bandeira federalista; publicou obras de grande aceitação pelo público leitor, como A República federal de J. F. de Assis Brasil ou o famoso Catecismo republicano, de autoria de Alberto Sales, que teve uma tiragem de 10 mil exemplares – excepcional para a época – para distribuição gratuita e, tal como o livro de Assis Brasil, foi patrocinado pelo Partido Republicano Paulista. Do ponto de vista da política, era explosiva a combinação entre a perda de apoio político da monarquia por parte de setores influentes, como os cafeicultores do vale do Paraíba – grande parte deles com interesses escravistas – e do oeste paulista – que consideravam insuficientes os esforços de modernização do Império; os descontentamentos militares; a inabilidade da política imperial para lidar com os interesses corporativos da Igreja Católica; a saúde periclitante do monarca que punha de manifesto a chamada questão dinástica, pois a ausência de um herdeiro homem levaria ao trono a Princesa Isabel, não precisamente popular entre os fazendeiros escravistas e casada com o Conde d’Eu, que conseguira angariar antipatias generalizadas; o êxito da proposta federalista que os partidos monárquicos recusavam a despeito dos esforços de Tavares Bastos e de Joaquim Nabuco;12 e também da propaganda dos partidários da República, entre os quais o barulhento Silva Jardim, que constrangia a representação diplomática francesa ao promover festas republicanas nas ruas do Rio de Janeiro no dia 14 de julho e que, quando o Império patrocinou uma viagem do Conde d’Eu pelo litoral brasileiro para promover o futuro da monarquia, embarcou no mesmo navio, que, a cada porto, atracava ao som de duas fanfarras, uma servindo de pano de fundo aos grupos monarquistas e outra entoando hinos republicanos. Estava portanto minado o terreno da monarquia brasileira, cuja razão de ser era a garantia e a reprodução da ordem escravista, e bem pavimentado o caminho republicano quando o golpe militar fez ruir o Estado imperial em novembro de 1889. Disso davam-se conta não apenas os brasileiros atentos à vida política, mas também os representantes diplomáticos sediados no Rio de Janeiro. Entre os primeiros, poucos testemunhos são tão eloquentes quanto o do historiador João Ribeiro, que, em janeiro de 1889, mapeia os setores descontentes com a monarquia e profetiza a proclamação no primeiro número da Revista Sul-Americana, periódico literário publicado no Rio de Janeiro pelo Centro Bibliographico Vulgarizador entre janeiro e dezembro do ano em que foi proclamada a República. Há um fermento revolucionário por toda parte: a república triunfa e apenas deve-se registrar a existência de um único partido monárquico, o dos que esperam lugubremente a certidão de óbito de Sua Majestade. [...] Não há espírito, por mais obtuso, que não veja, ao menos dentro de poucos anos, a ruína total da instituição monárquica no Brasil. [...] A força republicana atual é uma caudal [sic] soberana que resulta de várias convergências: da antiga e tradicional ideia republicana; da autonomia da lavoura, já não precisando da proteção imperial; dos desesperos das classes em crise econômica; do ódio contra a imoralidade dos governos; da miséria das províncias; do abolicionismo que trabalhou pela liberdade e não ficou monárquico... O republicanismo espera apenas a reação armada e esta já deploravelmente se manifestou mascarada, ainda que iniludível. [...] Seja como for, a república vencerá (Citado em Hansen, 2000, pp. 24-25). Entre os observadores estrangeiros, dois relatórios diplomáticos se destacam. Em junho de 1888, o representante diplomático da Espanha escreve a seu governo aludindo a uma agitação republicana generalizada, e associa a enfermidade do imperador ao descontentamento dos ex-proprietários de escravos, aos interesses paulistas e ao que chama de separatismo das províncias do sul do império: Cumpre-me participar a V. Excia. que, desde o momento em que se teve conhecimento da melhora de S. M. o Imperador do Brasil, a excitação política que se notava em várias províncias do Império, particularmente nas de São Paulo e Minas, acalmou-se bastante. As manifestações de caráter republicano que tiveram lugar durante os dias em que a enfermidade de S. M. fazia esperar, a qualquer momento, um desenlace fatal preocuparam sobremaneira a atenção pública, pois, em São Paulo, o assim chamado Congresso Republicano ocupou-se [...] de questões de grande transcendência. As tendências separatistas que desde há muito tempo vêm-se manifestando nas províncias do sul do Império começam a encontrar certo eco nas demais províncias, sobretudo desde a emancipação dos escravos, quando os donos das fazendas ou engenhos, prejudicados em seus interesses, começam a aderir às ideias republicanas.13 O representante do Reino Unido, por sua vez, escreverá em dezembro desse mesmo ano, em carta confidencial de nove páginas ao Ministério das Relações Exteriores (Foreign Office): Em meu despacho confidencial nº 72, de 12 de agosto, tive a honra de dirigir a atenção de Vossa Senhoria para a existência de certas tendências republicanas neste Império. Ainda que a ação dos republicanos tenha decrescido por algum tempo após o retorno do Imperador, tal como assinalei em meu despacho nº 94, de 16 de setembro último, voltou a tornar-se ultimamente extremamente ativa, e a propaganda contra a continuidade das instituições monárquicas no Brasil é feita abertamente e sem contestação aqui e em outras cidades do Império. [...] O exército e a marinha, fui informado, tornam-se republicanos, e a Escola Militar do Rio de Janeiro, onde estão aproximadamente quatrocentos cadetes, também está, conforme ouvi, imbuída das mesmas opiniões. Por volta do fim do mês passado, O Paiz, um importante jornal da cidade, trazia um artigo conclamando as tropas à adesão ao Partido Republicano, e o mesmo jornal alardeia, todos os dias, as manifestações republicanas que se realizam por todo o país. [...] O Imperador tem a saúde enfraquecida [...]; a Princesa Imperial não é, infelizmente, popular junto a uma classe numerosa e influente, prejudicada em seus negócios privados com a abolição da escravidão; o executivo é fraco; o exército não inspira confiança, e todas essas circunstâncias apontam para a possibilidade de uma revolução num futuro não distante.14 Previsível para brasileiros e não brasileiros, a República, se bem que talvez inesperada para alguns e proclamada de chofre, como assevera Euclides, talvez não tenha sido feita tão de improviso assim, como parece indicar o próprio gesto rebelde do autor quando jovem cadete da Escola Militar em 1888. No entanto, quando o fato do golpe militar republicano torna-se acontecimento histórico na versão que o ex-cadete e então jornalista e intelectual respeitado Euclides da Cunha publica em 1902, e tal como propõe Pierre Nora ao teorizar sobre o acontecimento e a história, passa a enfeixar todos os significados sociais que rodeiam seu ponto de vista e as circunstâncias da escrita, muito especialmente o massacre dos rudes patrícios que testemunhara em Canudos. Por isso, sendo outro seu foco de observação em 1902, a República parecia-lhe feita de improviso. Se à perspectiva do período que antecede à Proclamação, e no qual o eco republicano se multiplicara, acrescentarmos aquela dos anos que sucedem ao 15 de novembro, adensando assim o tempo histórico, será possível inferir que, além de não propriamente de improviso, a nova institucionalidade republicana instaurada em 1889 revestiu-se de uma lógica histórica possivelmente pouco evidente para as tropas que, reunidas no campo da Aclamação e atentas ao comando de Deodoro da Fonseca, precipitaram o golpe de morte da monarquia. Essa perspectiva de futuro também não seria previsível para os que, naquela sexta-feira, 15 de novembro de 1889, ouviram pelas ruas da cidade, leram nas fachadas dos prédios em que se alojavam os principais jornais ou escutaram da boca de José do Patrocínio na Câmara Municipal a notícia de que estava deposta a monarquia e proclamada a República. Também o imperador e sua família, retirados da paz do verão petropolitano por um telegrama do visconde de Ouro Preto, chefe do último gabinete monárquico, mantidos sob custódia militar no Paço Imperial e embarcados, na madrugada do dia 17, no Alagoas para o exílio europeu, não poderiam imaginar o que se seguiria àqueles dias, para eles tão conturbados. Nas províncias, os telegramas com as notícias do que se passara no Rio de Janeiro certamente surpreenderam a muitos, mas não houve reação digna de notícias na imprensa e, imediatamente, foram formados governos provisórios. Também nelas não era possível prever o que sucederia no futuro imediato da República recém-implantada. Talvez apenas o povo das ruas da capital, que a tudo assistira bestializado, no dizer de Aristides Lobo, assim como o povo pobre do interior, das vilas e capitais provinciais, intuísse que toda aquela agitação nada mudaria em suas vidas. Muitos se benzeriam, mais de um bateria com a mão na boca, e, recorrendo à sabedoria dos refrãos e provérbios repetidos de geração em geração, diriam que essa tal de República não mudaria nada para quem não tem eira nem beira e anda pela vida sem ofício nem benefício. Em tempo de Murici... cada qual cuide de si! Em todo caso, a submissão de séculos levaria alguns a pensar que quem à boa árvore se achega, boa sombra o cobre, para continuar buscando o favor e a proteção dos poderosos de sempre, muitos deles convertidos em ardorosos republicanos depois daquela sexta-feira quente de novembro. Em novembro de 1889, a República foi apenas proclamada. Só anos mais tarde, no governo de Campos Sales (1898-1902), o irmão do autor do Catecismo republicano, de 1885, e que se tornaria o grande arquiteto e o executor da obra de engenharia política que faria funcionar, azeitadas, as engrenagens da chamada República Velha, serenaria a turbulência da primeira hora republicana no Brasil. Só então o terreno movediço e ainda indefinido da República brasileira se assentaria para que as bases de um equilíbrio político complexo, frágil, mas eficiente até a década de 1930, fossem lançadas. Como nunca antes, as rédeas do poder do Estado, sem a mediação da coroa metropolitana ou da coroa imperial, estariam direta e exclusivamente nas mãos dos que – sem grandes sutilezas e com boa dose de arbítrio – efetivamente imprimiam direção à sociedade brasileira. Como num feixe, para novamente recorrer à imagem proposta por Pierre Nora, os significados sociais de que se rodeia o acontecimento da proclamação da República no Brasil se reúnem e o improviso de 1889 encontra sua completude na invenção republicana (Lessa, 1999 e 2001, pp. 11-58) de Campos Sales e dos governos que o seguiram. Aos que viveram o sucedido entre 1870 e a primeira década do século XX, no entanto, só os fatos eram acessíveis. O acontecimento, com toda sua carga de significados e com a possibilidade de abrir-se a um sem-número de possíveis versões, quase nunca pertence à história vivida. Ele é, sobretudo, o território da história feita pelos historiadores. A capital e os estados Entre 15 de novembro de 1889 e 15 de novembro de 1898, quando Manuel Ferraz de Campos Sales assume a Presidência, a República brasileira enfrentou anos tumultuados. Antes que o novo regime político se consolidasse, a República viveu um período de instabilidade, de não poucas tensões, de indefinição de rumos e de ausência de um desenho político nítido para a nova ordem instaurada. Para Renato Lessa, “os primeiros anos republicanos se caracterizaram mais pelo vazio representado pela supressão dos mecanismos institucionais próprios do Império do que pela invenção de novas formas de organização política. O veto imposto ao regime monárquico não implicou a invenção de uma nova ordem” (Lessa, 2001, p. 17). A composição do ministério do governo provisório, presidido por Deodoro, demonstra a necessidade de abrigar, no mais alto escalão do primeiro governo da República, representantes de tendências muito diferenciadas e das mais variadas latitudes republicanas. Compunham esse primeiro ministério, na pasta da Justiça, o paulista Campos Sales, o mesmo que mais tarde, como presidente eleito, assentaria as bases da República Velha e que, nas primeiras horas do novo regime, fora chamado para garantir o apoio dos cafeicultores paulistas; à frente do Ministério da Fazenda estava o baiano Rui Barbosa, que poucos meses antes abandonara o Partido Liberal por considerar a defesa do federalismo mais importante que a fidelidade à monarquia. Também estavam presentes dois republicanos históricos, signatários do Manifesto de 1870, o moderado Quintino Bocaiuva, na pasta das Relações Exteriores, e, no Ministério do Interior, Aristides da Silveira Lobo, o jornalista paraibano e republicano da ala radical que afirmara, em 15 de novembro, ter o povo a tudo assistido bestializado. A pasta da Guerra coubera ao positivista Benjamin Constant Botelho de Magalhães, enquanto Eduardo Wandenkolk presidia a pasta da Marinha, uma força militar mais elitista que o Exército. Por fim, na pasta da Agricultura, Demétrio Ribeiro, um representante do Rio Grande do Sul, província que sempre se apresentara com características muito próprias no cenário político brasileiro. Estavam portanto presentes nesse primeiro ministério representantes de interesses nem sempre convergentes das províncias mais poderosas; republicanos históricos e outros de adesão muito recente à causa republicana; federalistas e centralistas; moderados e radicais; liberais e positivistas, e não seria fácil ao marechal habituado à disciplina da caserna presidir aquele governo e atravessar as tensões provocadas pelo primeiro plano econômico do país, decidido por Rui Barbosa e decretado sem consulta a seus colegas de ministério, episódio que provocou enorme turbulência política e financeira e ficou conhecido pelo nome de Encilhamento. Somente em junho de 1890 foram convocadas eleições para a Assembleia Constituinte e, em 24 de fevereiro de 1891, a nova Constituição, de forte inspiração na carta constitucional norte- americana, e cujas marcas principais eram a adoção do federalismo, a acentuação do presidencialismo, o estabelecimento de três poderes – o Executivo, o Legislativo e o Judiciário – para o governo da República, a separação entre a Igreja e o Estado e a definição do critério da alfabetização como elemento de qualificação dos que teriam direito a voto. No dia seguinte ao da promulgação da primeira Constituição republicana, foi realizada a eleição presidencial, indireta, votando os membros da Assembleia Constituinte. Contabilizaram-se 234 eleitores, e os resultados do pleito demonstram a tensão e a instabilidade desses primeiros tempos republicanos. Defrontavam-se duas candidaturas, a primeira, da situação, formada pelo marechal Deodoro da Fonseca e pelo almirante Eduardo Wandenkolk e a segunda composta por Prudente de Morais, paulista que havia presidido a Constituinte, e por Floriano Peixoto, militar de geração e formação distintas daquelas de Deodoro. Os resultados foram eloquentes: para a Presidência, é eleito Deodoro com 129 votos, contra 97 dados a Prudente de Morais. Para vice-presidente, no entanto – os dois cargos, nessa eleição, não estavam vinculados –, Floriano recebeu 153 votos, enquanto Wandenkolk teve apenas 57. Em novembro desse mesmo ano as tensões políticas tornaram-se insustentáveis. Deodoro decreta a dissolução do Congresso, mas, diante da pressão de grupos militares e civis, de uma greve de ferroviários que explode no Rio de Janeiro, do aumento da tensão no Rio Grande do Sul com a deposição de Júlio de Castilhos e, por fim, da revolta de Custódio de Melo, que assesta os canhões dos navios da armada ancorados na baía de Guanabara contra a capital da República, sem ter como lidar com uma situação que se aproximava perigosamente da guerra civil, em 23 de novembro, o proclamador da República transformado, depois de um breve governo constitucional, em ditador passa o governo às mãos de Floriano Peixoto, o vice- presidente eleito pela Assembleia Constituinte. Floriano passaria à história como o Marechal de Ferro, por ter enfrentado com êxito, entre 23 de novembro de 1890 e 15 de novembro de 1894, período em que presidiu a República, movimentos armados de expressão como a Revolução Federalista no Sul do país e a Revolta da Armada; ter procedido à derrubada de quase todos os governadores de estado, substituindo-os por outros, fiéis a seu governo; ter buscado apoio político nas oligarquias estaduais, na jovem oficialidade e na capital federal, onde aplicou medidas como o combate à especulação dos aluguéis das casas populares e a baixa dos preços de alguns produtos, como a carne, que lhe granjearam forte apoio popular. Com a eleição de Prudente de Morais, o primeiro civil a presidir a República, São Paulo, então a principal oligarquia do país, ascende ao poder, e o Partido Republicano Paulista consolida-se como a principal força política do Brasil. Mas ainda era instável o panorama republicano. Prudente teve de fazer frente a dois gravíssimos problemas: no plano internacional, a queda dos preços do café, que dominava a pauta de exportações brasileiras, ameaçando assim as bases econômicas da República. Internamente, para além dos malabarismos políticos necessários às composições regionais desequilibradas pela consolidação dos paulistas no poder, Prudente enfrentou uma ameaça insuspeitada: a de ver o brioso Exército nacional desbaratado e vencido pelos homens de Canudos, os rudes patrícios que Euclides da Cunha vira lutar como bravos e morrer como fortes na aldeia sagrada de Canudos. Durante esse primeiro momento republicano, ainda instável e turbulento, governo e intelectuais ligados ao novo regime não descuraram na difícil busca da construção de referências simbólicas para a República brasileira. Tanto quanto o controle das cisões e oposições políticas, era importante inscrever a República nos corações e nas mentes dos brasileiros, e o processo de construção de um imaginário republicano, como já foi demonstrado,15 mostrou-se tão complexo quanto aquele da formulação da engenharia política necessária à estabilidade do regime implantado em 1889. Essa última, como já foi sugerido aqui, foi obra de Campos Sales. O político campineiro conhecia bem, desde que compusera o gabinete do primeiro governo republicano, os meandros dos difíceis equilíbrios regionais, das suscetibilidades oligárquicas e o que, de seu ponto de vista, representava o perigo potencial das multidões na rua. Ao assumir a Presidência da República, Campos Sales fez coincidir o desenho republicano com os interesses dos setores oligárquicos que o haviam conduzido ao Catete. As questões financeiras foram encaminhadas pela via do endividamento externo negociado através do funding loan; do ponto de vista econômico, o desemprego, a estagnação econômica e a alta dos preços foram a tônica das diretrizes impressas pelo ministro da Fazenda Joaquim Murtinho; as greves que se multiplicaram no Rio de Janeiro e em São Paulo como resposta à crise foram objeto de forte repressão, e a República brasileira encontrou seu fundamento na consolidação de uma lógica fortemente excludente e hierarquizadora. Ao escrever suas memórias políticas, Campos Sales formula assim a síntese da arquitetura política que, a partir de seu governo, presidiu à primeira República brasileira: Nessa, como em todas as lutas, procurei fortalecer-me com o apoio dos Estados, porque – não cessarei de repeti-lo – é lá que reside a verdadeira força política. [...] Em que pese os centralistas, o verdadeiro público que forma a opinião e imprime direção ao sentimento nacional é o que está nos Estados. É de lá que se governa a República por cima das multidões que tumultuam, agitadas, nas ruas da Capital da União (Sales, 1983, p. 127). É clara a equação política formulada em seu governo: ela supõe, em primeiro lugar, a clara prioridade atribuída a um dos cenários da República, o dos estados da federação, em que dominam e se digladiam as oligarquias regionais, onde predomina a relação pessoal e a política do favor, nos quais se perpetuam as práticas coronelísticas. Um cenário, se nos lembrarmos do trecho das memórias infantis de Graciliano Ramos, em que o tempo parecia não ter passado e no qual a República proclamada em 1889 não mudara grande coisa. Mas a formulação de Campos Sales é de uma limpidez cristalina: para ele, é dos estados que se governa a República. Não termina por aí no entanto sua fórmula política. Na contraface do primado atribuído ao cenário dos estados como lugar da direção política da República e alicerce da ordem, Campos Sales também explicita com nitidez o corolário desse primeiro termo de sua equação de governo: por cima das multidões que tumultuam, agitadas, nas ruas da Capital da União. O cenário da capital federal, que o governante enxerga sob o signo da desordem, deveria, por via de consequência, ser despolitizado. Traçados assim os princípios da política a ser implementada, com a clara hierarquização entre os dois cenários da República, um a Capital da União, a ser politicamente esvaziado, e outro os Estados, a ser tomado como o locus, por excelência, do exercício do poder, restava pôr em movimento o maquinismo político. Para tanto, Campos Sales e, a partir dele, os presidentes que se sucederão até 1930 buscarão no federalismo, inscrito no ideário republicano brasileiro como princípio cardeal desde o Manifesto de 1870, a mola mestra que fará funcionar a República brasileira, permitindo, por um lado, um grau de autonomia consagrado institucionalmente para as oligarquias regionais e suas lutas intestinas e, por outro, uma base para a política de contraprestação de favores políticos que os porá em consonância com o governo federal. O sutil equilíbrio entre municípios, estados da federação e governo federal pode então armar-se com a forte politização de uma instância – os estados – que, durante todo o século XIX, quando ainda eram chamados de províncias, tivera uma função, sobretudo, de mediação administrativa. Agora, com base no peculiar federalismo da primeira República brasileira, era possível fazer funcionar a chamada política dos governadores, que garantia ao governo federal o apoio necessário – traduzido acima de tudo no fornecimento de uma base eleitoral –, enquanto este oferecia em troca as verbas necessárias para a manutenção do prestígio da situação nos estados e municípios e, para casos de necessidade, o mecanismo da Comissão de Verificação de Poderes, encarregada de corroborar os resultados eleitorais. Nas raras ocasiões em que as eleições escapavam das rédeas da situação, a Comissão simplesmente impedia a titulação dos eleitos. Na base do sistema estava a figura do coronel, dono da vontade dos eleitores e senhor dos currais eleitorais, cujo poder pessoal substituía e representava o Estado, distribuindo como favor e benesses, a seu bel-prazer, o que seria de direito dos cidadãos. Nesse quadro, as eleições eram um ritual vazio, a participação eleitoral era mínima (Carvalho, 2002, p. 40) e a fraude a norma eleitoral. O coronelismo costurava assim, pela base, o sistema político da primeira República. E se nos municípios os coronéis teciam as malhas iniciais dessa rede de compromissos, ela tornava-se mais complexa e mais firme ao passar pelos arranjos entre as oligarquias regionais nos estados e chegar até a definição de quem presidiria o governo federal. Para arrematá-la pelo alto, Campos Sales maneja com destreza o princípio do federalismo e a prática da política dos governadores. O desenho que resulta dessa tessitura complexa e firme mostrará a clara hierarquia das oligarquias regionais. Não por outra razão o Palácio do Catete hospedará, até 1930, uma sucessão de paulistas e mineiros, com algum fluminense como a exceção para confirmar a regra: essas são as duas oligarquias mais poderosas da época, a primeira fundando seu poder na riqueza dos cafezais e da incipiente indústria cafeeira paulista, e a segunda encontrando seu prestígio no maior contingente eleitoral do país. Como num gigantesco móbile político, as oligarquias estaduais se equilibravam no eixo federativo, oscilavam ao sabor dos ventos dos arranjos políticos e deixavam de manifesto a hierarquia existente entre os estados da federação. Num plano mais elevado, São Paulo e Minas. Logo abaixo, o Rio de Janeiro com o Distrito Federal, seguido, quase no mesmo plano, ainda que por distintas razões, da Bahia e do Rio Grande do Sul. Depois o bloco das principais oligarquias nordestinas. Um pouco mais abaixo, os estados do Norte, o Paraná e Santa Catarina. Depois ainda o Mato Grosso e Goiás. E no plano da menor ponderação política, estados como o Sergipe e Piauí. Ao poder federal competia, despolitizada a capital federal e mantidas sob rédea curta as multidões das cidades,16 governar os ventos políticos para que não se embaraçassem os tênues fios que uniam os diferentes interesses políticos e não se rompesse o frágil, complexo e – a seu modo – eficiente equilíbrio sobre o qual repousava a República. Esse era o segredo da ordem, que, cada vez mais, era apresentada como pre- condição do progresso, subordinando assim ao primeiro o segundo dos dois termos da divisa positivista que a República brasileira bordara em pé de igualdade, em letras de ouro, no centro da bandeira nacional. Com o governo Rodrigues Alves, o desenho político traçado encontra seu complemento necessário. Despolitizada, a capital federal será higienizada por Oswaldo Cruz e reformada pelas picaretas comandadas por engenheiros como Paulo de Frontin e Francisco Bicalho. Na avenida Central, boulevard retilíneo traçado sobre o emaranhado de ruelas ainda coloniais e ladeado por fachadas ecléticas, o Rio de Janeiro viveria o sonho de ser uma Paris tropical (Needell, 1993), tão bem condensado por João do Rio: “De súbito, da noite para o dia, compreendeu-se que era preciso ser tal qual Buenos Aires, que é o esforço despedaçante de ser Paris” (João do Rio, 1919, p. 215). E do porto deslocado do velho cais Pharoux para a praça Mauá, iluminado e modernizado, a cidade continuaria a exportar as riquezas do país, cumprindo assim o destino mercantil, que, desde os tempos coloniais, era o seu. De que forma a suntuária e caríssima reforma urbana do Rio de Janeiro orquestrada pelo prefeito Pereira Passos se justifica, uma vez que, como foi visto, a capital havia sido esvaziada de seu potencial político? Para desvendar esse aparente paradoxo é preciso lembrar o papel simbólico que o Rio assume como cidade-capital: reformada, iluminada, saneada e modernizada, a capital permitia aos estrangeiros que nela aportavam, aos que circulavam pelas calçadas da grande avenida vestidos pelo último figurino parisiense e aos líderes da República acreditar que o Brasil – nela metonimizado – havia finalmente ingressado na era do progresso e da civilização. Para o país como um todo, os estados – para utilizar a fórmula de Campos Sales –, a capital modernizada antecipava um futuro que imaginavam que um dia seria o seu. Opostos pelo vértice na aparência, os dois cenários inscrevem-se no mesmo círculo da lógica da primeira República e demonstram ser complementares. No primeiro – aquele conformado pelos estados – a República consolida os alicerces políticos que permitem a privatização da res publica e imprime direção ao governo. No segundo – a capital federal despolitizada – a República constrói um cenário de sonho, projeta um futuro imaginado e legitima, assim, o presente. Num e noutro cenário, a velha ordem excludente e hierarquizadora manterá, sob novas formas, a permanência de práticas sociais, estrutura econômica, lógicas políticas e visões de mundo. Num e noutro cenário, para dizer o mesmo nos termos propostos por Euclides da Cunha, iludidos por uma civilização de empréstimo, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Nela, na capital, como nos estados, a nova ordem institucional não impede que se torne mais fundo o contraste entre aqueles que o autor de Os sertões qualifica de copistas, empenhados em construir uma República à imagem e semelhança de seus interesses, e o modo de viver [...] daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nessa terra que os imigrantes da Europa. Notas 1. Para o conceito de cidade-capital aplicado à cidade do Rio de Janeiro da virada do século, ver Neves (1991, pp. 53 a 65). 2. Para o conceito de inviolabilidade da vontade senhorial, ver Chalhoub (1990). 3. Vida vertiginosa é o título de uma série de crônicas de João do Rio (Paulo Barreto) publicada em livro no ano de 1911. 4. Retrato do Brasil é o título de um livro de Paulo Prado, publicado em 1928. Muitos foram os intelectuais brasileiros que, pela via ensaística ou pela ficção, dedicaram-se nesse período a formular, na letra, interpretações do Brasil. Sobre esse tema, ver, por exemplo, os textos de Alberto da Costa e Silva (2000), e os três volumes de Intérpretes do Brasil, coordenados por Santiago (2000). 5. Ver, a respeito das formas de divertir e educar a multidão, o livro de Kasson (1978). 6. A respeito das novidades do tempo e de seu impacto na vida e na história brasileiras, é importante a leitura do texto de Nicolau Sevcenko intitulado “O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso”, que abre o terceiro volume da História da vida privada no Brasil (1998). Ver também Neves; Heizer (1998). 7. A bibliografia brasileira sobre as Exposições Internacionais é já numerosa e significativa. Para um balanço dessa produção, ver o capítulo “A ‘machina’ e o indígena. O Império do Brasil e a Exposição Internacional de 1862”. In Heizer; Videira (orgs.) (2001). 8. Ver, a esse respeito, Neves (1986). 9. Alusão à obra clássica de Raimundo Faoro. 10. Para uma compreensão do conceito de lugares de memória, ver o texto de Pierre Nora que introduz a coleção de oito volumes sobre o tema publicada pela editora Gallimard. Traduzido para o português, o artigo de Nora foi publicado pela revista Projeto História, do Programa de Pós-Graduação em História da PUC de São Paulo. 11. A íntegra do Manifesto Republicano de 1870, um longuíssimo texto de acusação à monarquia pelos males do Brasil, que silencia sobre o problema da escravidão e apresenta como conteúdo político quase exclusivo a proposta federativa, pode ser encontrado em Pessoa (1973, pp. 38-62). 12. Tavares Bastos formula com clareza uma proposta de federalismo monárquico em sua obra A província, publicada em 1870, e Nabuco apresenta ao Parlamento dois projetos de federalização do Império brasileiro, um em 1881 e outro em 1885, mas desde 1870 o ideal federalista esteve associado às ideias republicanas no Brasil. 13. Carta manuscrita, originalmente em espanhol, do representante diplomático da Espanha, Luis del Castillo Trigueros, ao ministro de Estado do Exterior do governo espanhol. Rio de Janeiro, 17/6/1888. Archivo del Ministerio de Asuntos Exteriores de España. 14. Carta manuscrita, originalmente em inglês, do representante diplomático da Inglaterra, Hugh Wyndham, ao ministro de Estado do Exterior do governo inglês. Rio de Janeiro, 19/12/1888. Foreign Office Records, Inglaterra. 15. Ver, a respeito do processo de construção do imaginário republicano, o conhecido livro de José Murilo de Carvalho (1990), mas também alguns trabalhos acadêmicos relevantes (Ferreira Neto, 1889, e Siqueira, 1995) e artigos em periódicos especializados (Oliveira, 1989). 16. Sobre esse tema, há uma extensa bibliografia. Entre os mais recentemente publicados ou reeditados, ver Chalhoub (2001), Cunha (2001) e Pereira (2002). Bibliografia Assis, Machado de. 1971. Esaú e Jacó. In Obra completa, v. 1. Rio de Janeiro: Aguilar. Balzac, Honoré de. 1965. L’Auberge Rouge. In La Comédie Humaine, v. 7. Paris: Éditions du Seuil. Benjamin, Walter. 1982. Paris, Capitale du XIXème Siècle. In Gesammelte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp Verlag. Carone, Edgard. 1969. A primeira República (1889-1930): texto e contexto. São Paulo: Difusão Europeia do Livro. Carvalho, José Murilo de. 1987. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras. _______. 1990. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. _______. 1998. Pontos e bordados: Escritos de História e Política. Belo Horizonte: UFMG. _______. 2002. Cidadania no Brasil: O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Carvalho, Maria Alice Resende de (org.). 2001. República no Catete. Rio de Janeiro: Museu da República. _______. 1995. Os militares e a República: um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro: Zahar. Castro, Celso. 2000. A proclamação da República. Rio de Janeiro: Zahar. Chalhoub, Sidney. 1990. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. Campinas: Companhia das Letras. _______. 2001. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores do Rio de Janeiro na Belle Époque. Campinas: Unicamp. Cunha, Euclides da. 1966. Artigos, fragmentos e notas. In Obras completas, v. 2. Rio de Janeiro: Aguilar. _______. 1966. Os sertões. In Obras completas, v. 2. Rio de Janeiro: Aguilar. Cunha, Maria Clementina Pereira da. 2001. Ecos da folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras. Dickens, Charles. 1982. Um conto de duas cidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Faoro, Raymundo. 1976. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Editora Globo, 2 v. Ferreira Neto, Edgar Leite. 1989. A memória da ordem: comemorações cívicas no Rio de Janeiro – 1888-1895. Dissertação de mestrado – Departamento de História–UFF, Niterói. Gomes, Angela de Castro; Pandolfi, Dulce Chaves; Alberti, Verena (orgs.). 2002. A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/FGV. Hansen, Patrícia. 2000. Feições e fisionomia: a história do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro: Access. Heizer, Alda; Videira, Antonio Augusto Passos (orgs.). 2001. Ciência, civilização e império nos trópicos. Rio de Janeiro: Access João do Rio (Paulo Barreto). 1911. Vida vertiginosa. Rio de Janeiro/Paris: Garnier. _______. 1909. “O velho mercado”. In Cinematographo. Paris: Chardon. Kasson, John F. 1978. Amusing a million: Coney Island at the Turn of the Century. Nova York: Hill & Wang. Koselleck, Reinhart. 1990. Le Futur Passé: contribution à la sémantique des temps historiques. Paris: Éditions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales. Le Goff, Jacques et al. 1978. A nova história. Lisboa: Edições 70. Lessa, Renato. 1999. A invenção republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da primeira República. Rio de Janeiro: Topbooks. _______. 2001. “A invenção da República no Brasil: da aventura à rotina”. In Carvalho, Maria Alice Resende de (org.). República no Catete. 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