Sebenta de Cristianismo e Cultura - Inês Teixeira PDF

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This document is a student's notes (sebenta) on the subject of Christianity and culture. The document includes topics such as the concepts of culture and religion, the Christian perspective, and the relationship between the two. It details different perspectives on culture and how they relate to religious practice and theological study.

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Cristianismo e Cultura Sebenta da Nês Docentes: Teres Messias Discente: Inês Teixeira Lisboa 2019/2020 INÊS CRUZ TEIXEIRA 1 ...

Cristianismo e Cultura Sebenta da Nês Docentes: Teres Messias Discente: Inês Teixeira Lisboa 2019/2020 INÊS CRUZ TEIXEIRA 1 ÍNDICE I – NOÇÕES DE CULTURA E RELIGIÃO........................................................................................................... 3 1. Cultura e culturas............................................................................................................................ 3 1.1. Noção de ‘Cultura’.................................................................................................................. 3 2. O fenómeno religioso: elementos para uma sistematização........................................................ 11 2.1. As diversas aproximações ao estudo do fenómeno religioso:............................................. 12 2.2. Noção de Religião................................................................................................................. 15 2.3. Religião e cultura.................................................................................................................. 17 II – O CRISTIANISMO VISTO POR DENTRO.................................................................................................. 20 1. A Bíblia e as raízes judaicas do cristianismo.................................................................................. 20 1.1. A Biblia- Um dos três Pilares do Cristianismo....................................................................... 20 1.2. Bíblia, Fé e Ciência................................................................................................................ 21 1.3. A Bíblia, um livro humanista (a propósito do Jubileu).......................................................... 21 2. Jesus Cristo: fundamento e futuro do cristianismo....................................................................... 27 A ressurreição de Jesus...................................................................................................................... 31 3. Igreja: convicção e comunidade......................................................................................................... 33 3.1. As Origens da Igreja..................................................................................................................... 33 III – CRISTIANISMO E CULTURA.................................................................................................................. 37 1. Etapas, ruturas e atualidade.......................................................................................................... 37 1.1. A Cristandade....................................................................................................................... 37 1.2. Cristianismo e Cultura.......................................................................................................... 42 INÊS CRUZ TEIXEIRA 2 I – NOÇÕES DE CULTURA E RELIGIÃO 1. CULTURA E CULTURAS 1.1. NOÇÃO DE ‘CULTURA’ T.S.Eliot fala de três noções de cultura, mas parece referir-se mais a diferentes níveis de fazer e viver a cultura (indivíduo, grupo ou classe, sociedade) e não tanto ao seu significado propriamente dito. Isabel Ferin (citando a Edgar Morin): «na sociedade atual a palavra ‘cultura’ oscila entre um sentido totalizante e um sentido residual, entre um sentido antropo-socio-etnográfico e um sentido ético-estético». O conceito ‘humanista’ depende muito da etimologia do vocábulo ‘cultura’: vem do latim ‘colere’ e, posteriormente, ‘cultus’ aponta para o exercício das capacidades humanas, cultivo das artes, das letras, dos espíritos, das artes, da filosofia e das ciências. contexto religioso, cultura = honrar (culto) a Deus – já que os termos cultura e cultus têm a mesma raiz etimológica. Esta noção de cultura pode incorrer num perigo (isso denunciado por variados autores): o elitismo, a perspetiva aristocrática, já que se reconhece e dá carta de cidadania ao homem culto instruído por oposição ao homem sem estudos-ignorante (‘sem cultura’). Cultura expressa, aqui, o acervo de conquistas da humanidade no plano do conhecimento da natureza, do homem, do indivíduo e da sociedade, e da relação da pessoa com o sagrado. conceção clássica de cultura: «a ação que o homem realiza – quer sobre o seu meio, quer sobre si mesmo – no sentido de aperfeiçoar as suas qualidades e promover a cultura do espírito». fácil será reconhecer que a ‘cultura humanista’ será tanto maior quanto maior for, também, a conjugação consistente dos conhecimentos com a erudição, as maneiras, as artes, a filosofia, etc. O segundo enfoque de ‘cultura’ vincula-se mais às ciências sociais, nomeadamente à etnologia e antropologia cultural- ciências que «estudam a diversidade de manifestações do homem nos inúmeros grupos ou comunidades dispersas pelo mundo». Cultura enquanto arte de viver de um povo concreto, nos seus múltiplos aspetos, e tal perspetiva obriga-nos a falar de ‘culturas’ já no plural. Não se trata tanto de um ideal ético ou estético, mas sim de um conjunto determinado e particular de crenças e sistemas simbólicos, regras sociais e do saber fazer, que se transmitem de geração em geração, e ajudam a distinguir os povos e comunidades entre si. aqui, há muitas propostas de definição de cultura: descritivas, históricas, normativas, psicológicas, estruturais, funcionais, etc. Elege-se uma definição de Willowbank : «A cultura é um sistema integrado de crenças (sobre Deus, ou sobre a realidade, ou a significação última do mundo), de valores (sobre o que é bom, verdadeiro, belo e normativo), de costumes (como se comportar, as nossas relações humanas e maneiras de falar, rezar, comer, vestir, trabalhar, jogar, fazer comércio, lavrar a terra, etc) e de instituições que exprimem estas crenças, estes valores, estes costumes (governo, tribunais, templos ou igrejas, família, escolas, hospitais, fábricas, armazéns, sindicatos, clubes, etc) que reúnem uma sociedade e lhe dão um sentido da sua identidade, da sua dignidade, da sua segurança e da sua INÊS CRUZ TEIXEIRA 3 continuidade”- definição herdeira da formulação de E.B.Tylor mas desenvolve-a bastante: «a palavra cultura ou civilização, tomada no seu sentido etnográfico mais amplo, designa todo esse complexo de crenças, conhecimentos, artes, leis, costumes, moral e demais capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade». no mesmo sentido vai a definição simples de cultura dada por J.Paulo II como realidade de um povo que engloba o conjunto das relações com o transcendente, dos homens entre si e com a natureza. Os dois conceitos de ‘cultura’ não devem ser entendidos como radicalmente opostos, mas sim numa relação de complementaridade tal como afirmou J.Paulo II nos inícios do seu pontificado, num discurso à UNESCO: «a cultura é um modo específico do existir e do ser do homem. O homem vive sempre segundo uma cultura (…) Na unidade da cultura, qual modo próprio da existência humana, se enraíza ao mesmo tempo a pluralidade das culturas»; por outro lado, homem é o único sujeito ôntico da cultura, é também o seu objeto e o seu fim. A cultura é aquilo pelo qual o homem, enquanto homem, é mais homem, ‘é’ mais, acede mais ao ser». Salientar o contributo de outro autor Denys Cuche, um sociólogo. Cuche salienta que a definição de cultura foi sendo construída essencialmente no mundo ocidental. Isto dá-nos ocasião de inferir uma série de realidades, como: as definições de um termo correspondem muitas vezes aos interesses de quem faz uso do termo e o faz por vezes numa relação de forças assimétrica. Vejamos um pouco a evolução do conceito no contexto ocidental, e incidindo num período da história relativamente curto, que vai do século XVIII ao princípio do século XX. Na língua francesa, até ao século XVIII, o conceito seguiu sobretudo o movimento natural da língua, que procedia por metonímia (da cultura como estado à cultura como acção) ou por metáfora (da cultura da terra à cultura do espírito). No século XVIII, a cultura começa a ter um sentido figurado e é sempre usada no singular, refletindo o universalismo e o humanismo dos filósofos: ela é própria do Homem, sem distinção de povos ou classes, muito embora os evolucionistas britânicos do final do século XIX considerassem que havia estádios diferentes de cultura, mas que todos os povos chegariam ao nível da sociedade vitoriana da época. Voltando à língua francesa, a cultura dará lugar a um outro vocábulo: «civilização». Também usado no singular, num singular que designa uma coletividade: a civilização francesa, por exemplo. Sobre esta civilização pensou-se muito tempo que devia ajudar os povos mais atrasados a recuperar de tal atraso. Notar, assim, que o século XVIII vê nascer uma nova conceção de cultura, assente numa conceção dessacralizada da História (cultura já não remete necessariamente, como outrora, para culto). Na Alemanha, no século XVIII, vai surgir o termo «Kultur», que parece ser a transposição do termo francês «culture». Rapidamente o termo toma outra feição: para os alemães, tudo o que dirá respeito ao autêntico e contribui para o enriquecimento intelectual e espiritual deriva da cultura, ou «Kultur»; por sua vez, o que é apenas brilho, aparência, requinte superficial será conotado com a civilização. «Kultur» constituirá uma noção particularista, invocada pela INÊS CRUZ TEIXEIRA 4 Alemanha devassada por divisões políticas que a estilhaçaram numa série de principados, uma nação que deseja remeter-se a si mesma para uma existência gloriosa. Em França, no século XIX, a evolução da palavra «culture» : esta adquire uma conotação coletiva e deixa de dizer apenas respeito ao desenvolvimento intelectual individual. No século XX, citando Denys Cuche: «a rivalidade dos nacionalismos francês e alemão e a sua confrontação brutal na Guerra de 1914-1918 vão exacerbar o debate ideológico entre as duas conceções de cultura. As palavras transformam-se em palavras de ordem que são usadas como armas. Aos alemães, que pretendem defender a cultura (no sentido em que a entendem), os franceses replicam, tornando-se campeões da civilização». Ainda Denys Cuche: «O debate franco- alemão entre os séculos XVIII e XIX é arquetípico das duas conceções de cultura, uma particularista e a outra universalista, que se encontram na base das duas maneiras de definir o conceito de cultura nas ciências sociais contemporâneas». A cultura, nestes contextos, foi sobretudo alvo de um tratamento normativo, que indicava o que a cultura deveria ser, mas não exatamente o que ela era. No mesmo período, alguns pretenderam proceder a uma análise e a uma descrição científicas da cultura. Desde a segunda metade do século XIX até ao momento presente, muitos foram aqueles que se entregaram a este procedimento. O século XIX vê nascer a Sociologia e a Antropologia como disciplinas científicas. A Etnologia, como já foi referido, tratava de oferecer uma reflexão científica sobre a diversidade cultural, e não sobre uma cultura tida como única. A diversidade cultural era uma preocupação essencial bem como a unidade do homem. É na própria unidade do homem, noção herdeira do Iluminismo, que a diversidade das culturas existe. Como afirma Denys Cuche: «Os etnólogos vão explorar simultânea e concorrentemente duas vias: a que privilegia a unidade e minimiza a diversidade, reduzindo-a a uma diversidade “temporária”, segundo um esquema evolucionista, e a que, pelo contrário, atribui toda a importância à diversidade, embora esforçando-se por demonstrar que esta última não contradiz a unidade fundamental da humanidade». É neste cenário intelectual que surge a definição da cultura por Tylor, um dos primeiros antropólogos. É aqui que entra o contributo evolucionista: é que o estudo das «culturas singulares», como lhes chama Denis Cuche, não é possível de se empreender sem se estabelecerem, necessariamente, comparações entre elas; as culturas estariam ligadas umas às outras pelo facto de haver sobrevivências culturais, sobrevivências a partir das quais se poderia inferir estados culturais anteriores. Assim se explicaria a possibilidade de proceder a uma articulação entre a cultura primitiva e a cultura mais avançada: tudo seria uma questão de tempo; mais tarde ou mais cedo, as culturas primitivas alcançariam um estado avançado, mais de acordo com a cultura das sociedades atuais. Franz Boas preocupar-se-á essencialmente com as particularidades das culturas e afastar- se-á do paradigma evolucionista. Nega a pertinência da noção de raça, que consistia no estabelecimento de uma relação entre traços físicos e traços mentais. A Boas se deve a noção antropológica de «relativismo cultural», muito embora esta expressão tenha surgido mais tarde. Só nos anos 30 do século XX se desenvolverá em França uma «etnologia de campo», a partir de trabalhos de investigadores africanistas, como Marcel Griaule. A autonomização INÊS CRUZ TEIXEIRA 5 relativa da Etnologia e o trabalho de campo junto de populações muito diferentes favoreciam a entrada em cena de algum relativismo cultural. Durkheim, grande sociólogo francês da viragem do século XIX para o século XX, não se preocupou tanto em estudar a cultura quanto a sociedade. Segundo ele, o social devia ser explicado pelo social, isto é, a natureza de uma sociedade deveria ser procurada no interior da mesma. Por seu turno, os Estados Unidos iam produzindo uma reflexão importante sobre a ideia de cultura. Denys Cuche afirma que «falar de antropologia americana ou de “antropologia cultural” vem a ser quase a mesma coisa». Para a abordagem realizada pela Antropologia cultural contribuiu o facto de os Estados Unidos se autorrepresentarem desde muito cedo enquanto país de imigrantes provenientes de origens culturais muito diversas. Por seu turno, a Sociologia americana, então emergente, privilegiará o estudo da imigração e das relações interétnicas. Em relação à Antropologia, de acordo com Cuche, os seus vários culturalismos podem ser agrupados em três correntes principais: O primeiro constitui a herança dos ensinamentos de Boas, concebe a cultura sob a perspectiva da história cultural. De acordo com estes herdeiros de Boas, a Antropologia devia ocupar-se da «repartição espacial de um ou vários traços culturais em culturas próximas e analisar o processo da sua difusão». A segunda corrente é a escola da cultura e personalidade. Perspetiva que procurava estabelecer relações entre a cultura e os indivíduos. O terceiro tipo de culturalismo americano concebe a cultura enquanto sistema de comunicação entre os indivíduos. Para Edward Sapir, nomeadamente, a língua e a cultura estabelecem uma relação estreita, dado que a língua serve para transmitir a cultura, mas é também ela marcada pela cultura, moldada por esta. Entretanto, em França, a Antropologia cultural desenvolvida nos Estados Unidos não ganhou muitos adeptos. Mas aquele que muitos consideram o maior antropólogo francês do século XX – Claude Lévi-Strauss – tratou também o tema da totalidade cultural, conduziu, em grande parte, a Antropologia a interessar-se por modelos ou padrões relativamente independentes dos indivíduos, ou seja, modelos ou padrões abstratos e mesmo inconscientes. Ainda em França, um novo registo teórico se estabelecia, o qual dependia do avanço dos estudos sobre processos de aculturação. A palavra «aculturação» é usada por vários teólogos para se referirem à experiência do choque entre culturas, a qual foi abordada por outros teólogos e por estes concebida como «inculturação». De acordo com o Memorando para o Estudo da Aculturação – surgido ainda nos Estados Unidos em 1936 –, a aculturação não deve ser confundida com «assimilação», que é a última fase da aculturação e que só raramente se atinge. E também não deve ser confundida com a «difusão», dado que há difusão sempre que há aculturação, mas também há difusão sem contacto permanente e direto. Os estudos sobre aculturação insistem igualmente nos processos de «seleção dos elementos «tomados de empréstimo» de outras culturas e nos fenómenos de resistência a esses empréstimos. É importante compreender que nenhuma cultura recebe passivamente todos os elementos de outra cultura: pelo contrário, vai selecionando esses elementos e procedendo a manipulações no âmbito dessa escolha. Significa que não podemos dividir o mundo entre culturas totalmente dominantes e culturas totalmente dominadas. A reflexão sobre a aculturação contribuirá para a renovação do conceito de cultura. Considera-se que nenhuma cultura existe em estado quimicamente puro. Portanto, e de algum modo graças ao trabalho de Roger Bastide, séc. XX, a cultura, no âmbito da produção antropológica posterior, foi concebida como um processo dinâmico. INÊS CRUZ TEIXEIRA 6 Falámos da perspetiva teológica da inculturação, fenómeno que, no entanto, alguns teólogos designam como aculturação. Definição de inculturação do Pe. Arrupe –sacerdote jesuíta do século XX : «[Inculturação] significa incarnação da vida e mensagem cristã numa área cultural concreta, de tal modo que esta experiência não só chegue a expressar-se com os elementos próprios da cultura em questão (o que seria só uma adaptação superficial), mas que se converta num princípio inspirador, normativo e unificante, que transforma e recria essa cultura, dando origem a uma nova criação». Também no seu discurso aos homens das universidades, em Portugal (Coimbra, 15-5- 1982), aquelas duas noções de ‘cultura’ aparecem complementarmente: «se o objetivo da verdadeira cultura, portanto, é fazer do homem uma pessoa, um espírito plenamente desenvolvido, capaz de chegar à perfeita realização das suas capacidades», cultura é também «o estilo de vida comum que caracteriza determinado povo e abarca a totalidade da vida de um povo: o conjunto dos valores que o animam que, sendo partilhados por todos os cidadãos, os reúnem numa mesma consciência pessoal e coletiva ». Assim, em ambas as aceções, cultura é sempre criação humana (não divina nem matéria bruta…) em ambas o homem é o fim da criação cultural; ambas as noções apontam para a cultura como algo que é ‘feito’ pelo homem para o ‘humanizar’; como lembra M.Azevedo, cada cultura particular (noção da antropologia) é construída pelo homem de um lugar e é diferente das outras culturas; mas, simultaneamente, ao criar essa consciência da diferença, produz também o reconhecimento de que há outros homens, noutros lugares, que produziram outras culturas que também humanizam. E assim, o diálogo entre as culturas só pode humanizar mais e mais todas e cada uma delas. VER TS ELIOT- Sebenta de Textos a) A noção de cultura é polissémica, implica uma grande variedade de sentidos, que o seu uso quotidiano ilustra. Por um lado, refere-se a níveis muito diversos da atividade humana: do trabalho da terra (agricultura) à expressão artística nas suas diversas expressões (das letras às artes), passando pelo conhecimento técnico-científico, envolvendo saberes especializados. Por outro lado, a atividade cultural implica sempre a ideia de desenvolvimento ou aperfeiçoamento pessoal e social, a ponto de se falar da cultura como referida às “atividade do espírito”, consideradas superiores, por contraposição ao domínio da materialidade. No entanto, na perspetiva da antropologia fala-se também de uma “cultura material”, contrariando assim a antinomia material/espiritual. b) Na base, a cultura refere-se sempre à atividade humana, exprimindo formas de compreensão do que é o ser humano, contribuindo para criar ou recriar e, por vezes, cristalizar, mas veiculando sempre formas de relacionamento de pessoas, grupos e sociedades. Antropologicamente falando, o ser humano define-se precisamente como um “ser de relação”: relação consigo mesmo, com os outros, com o mundo, com a realidade em geral, incluindo a experiência e ideia de Deus enquanto transcendência ou a sua INÊS CRUZ TEIXEIRA 7 negação. Nesta medida, a noção de “cultura” opõe-se à de “natureza”, constituindo em elemento diferenciador do ser humano relativamente às outras espécies animais. c) A cultura pressupõe assim a ideia de conhecimento, aprendizagem e transmissão de um património adquirido socialmente. De facto, a cultura implica não apenas a capacidade de manipular objectos, de trabalhar a terra ou domesticar animais, mas também o domínio da linguagem enquanto forma de apropriação e intervenção na realidade. Aliás, a linguagem é um dos dois principais elementos distintivos relativamente às outras espécies animais, em particular os primatas. Um segundo elemento distintivo reside, por outro lado, na capacidade de diversificação, isto é, na capacidade do ser humano se adaptar a diferentes meios ambientes (climáticos e outros) e de diversificar modos de vida: «Na natureza, uma mesma espécie animal ocupa sempre o mesmo tipo de ambiente, no qual adopta a mesma gama de comportamentos. […] Quanto a nós [humanos], somos capazes de viver tanto nos gelos do pólo como nas aldeias do Sara, com todos os possíveis intermediários marítimos e terrestres. Inventamos estruturas sociais que mudam inteiramente de uma população para outra, de uma etnia para outra. A espécie humana diversificouse em milhares de etnias diferentes, seguindo normas que já não são determinadas pela biologia, como as dos animais, mas aprendidas. E conhecemos também uma grande variedade de comportamentos, de estruturas sociais, de ambientes…» (LANGANEY, André; CLOTTES, Jean; GUILAINE, Jean; SIMONNET, Dominique – A mais bela história do homem: como a terra se tornou humana. Lisboa: Ed. Asa, 1999, p. 20). d) A afirmação do ser humano como “ser capaz do melhor e do pior” compreende-se assim pela articulação entre existência e consciência, entre natureza e cultura. Nesta perspetiva, a natureza apresenta-se como sendo do domínio do que nos é dado como elemento de determinação da existência, enquanto a cultura como expressão da consciência que o ser humano tem acerca da sua condição mortal (veja-se a importância dos enterramentos como marca ou critério no processo de hominização). Consequentemente, o ser humano compreende-se não apenas pela capacidade de realização, mas pela capacidade de interrogação acerca das modalidades, possibilidades e finalidades da sua ação (individual e social), através das diversas formas de linguagem e pensamento (que não apenas a racionalidade). e) A cultura passa assim a articular-se diretamente com esta visão do ser humano não apenas como animal racional ou emotivo, mas sobretudo como “animalus symbolicum” (cf. CASSIRER, Ernst - Ensaio sobre o homem. Lisboa: Guimarães Editores, 1995; original de 1921). O sistema simbólico transforma toda a vida humana: o ser humano não vive apenas numa realidade mais lacta, vive numa nova dimensão. A atividade cultural enraíza nessa capacidade de “conversação” para que o universo simbólico remete: «O homem já não pode defrontar imediatamente a realidade; não pode vê-la, por assim dizer, face a face. A realidade física parece recuar na proporção em que a atividade do homem avança. Em vez de lidar com as próprias coisas, o homem está, num sentido, constantemente em conversa consigo mesmo. Envolveu-se tanto em formas linguísticas, imagens artísticas, símbolos místicos ou ritos religiosos, que não pode ver ou conhecer seja o que for, exceto pela interposição deste meio artificial. A sua situação é a mesma na esfera teórica e prática. Ainda aqui, o homem não vive num mundo de factos brutos, ou segundo as suas INÊS CRUZ TEIXEIRA 8 necessidades e desejos imediatos. Vive antes entre emoções imaginárias, em esperanças e temores, em ilusões e desilusões, nas suas fantasias e sonhos.» (CASSIRER, p. 33). f) Esta perspetiva introduz-nos na complexidade do mundo cultural. Em última análise, cultura corresponde a tudo aquilo que os seres humanos transportam e lhes permite “compreender” a realidade, isto é, lidar com essa mesma realidade que integram ou em que estão imersas mas sem com ela se confundirem, aos mais variados níveis. Essa relação não é imediata, nem direta, como acima foi dito; pelo contrário, necessita das mediações, mediações culturais, isto é, instrumentos, formas e conteúdos que ajudam os seres humanos a (inter)agirem com o seu meio, a posicionar-se e pensar-se em situação concretas, isto é, como seres situados no espaço e no tempo. A par da resposta imediata, orgânica, biológica que o ser humano apresenta na interação com o seu meio, existe uma resposta retardada, mais complexa que resulta da própria cultura e que é muito diferenciada consoante os indivíduos, os grupos e as sociedades. g) Historicamente, a cultura traduziu, em primeiro lugar, a experiência de trabalhar a terra (agricultura), a qual constituiu uma etapa importante na história da humanidade. O Neolítico ou “nova idade da pedra” (c. 10 000 anos a.C.) correspondeu, grosso modo, ao período em que se desenvolveu a criação de gado e da agricultura, permitindo o início de um processo de sedentarização e seus corolários. Esta experiência trouxe consigo um processo de diferenciação cultural: diferenciação do ser humano relativamente à natureza envolvente; diferenciação de papéis sociais desempenhados por homens e por mulheres; e diferenciação na constituição de diversos grupos, com a consequente hierarquização social. Na história da humanidade, a consciência da diferença antropológica conduziu ao desenvolvimento de alguns marcadores culturais: o paulatino desenvolvimento de um sentido de individualidade e correlativa consciência da alteridade (o sentido do outro), fez-se acompanhar de um sentido de integração na comunidade ou pertença social. h) Neste sentido, é possível falar de uma cultura individual, de um grupo ou classe, e ainda de toda uma sociedade, conforme sublinham autores como T.S. Eliot, por exemplo. Paralelamente, à medida que se verifica uma crescente especialização de funções sociais e complexificação no mundo cultural, é possível falar também de diversos tipos de cultura: cultura oral e cultura escrita; cultura letrada e cultura popular; cultura humanista e cultura científica; cultura de elites e cultura de massas; cultura humanista e cultura científica; etc. i) Associada à noção de cultura encontra-se a noção de culto, em duas aceções distintas, que se traduzem em atitudes sociais diversas: a) “ser culto”, alguém que é culto é alguém que conhece, que sabe; b) “prestar culto” a alguma coisa ou alguém pressupõe o reconhecimento de uma alteridade a que se dá o seu assentimento, a que se presta a sua homenagem. Nesta ambivalência, a noção de culto leva-nos a refletir sobre duas questões culturais centrais na abordagem de qualquer sociedade: a questão de ordem – já que a ideia de se “ser culto”, sabedor, conhecedor, pressupõe ou aponta necessariamente para a existência de um processo de diferenciação, assente numa determinada ordem social; e a questão do sentido na vida social, entendido este como forma de integração individual ou grupal numa dada sociedade ou, mais globalmente, como forma de orientação ou INÊS CRUZ TEIXEIRA 9 significação em função de determinados princípios ou valores culturais dominantes nessa mesma sociedade. j) Desta última observação é possível depreender que toda a reflexão cultural implica, envolve uma reflexão sobre o(s) valor(es), isto é aquilo que se dá atenção e que pesa nas escolhas que os indivíduos, os grupos e as sociedades fazem. Observada numa perspectiva histórica, a cultura articula-se assim com o processo de humanização, sempre em aberto. O modo como cada sociedade valoriza (ou não), cria ou recria, integra ou anula determinado património cultural constitui um processo que aproxima ou divide grupos, sociedades e civilizações. Um exemplo: a pena de morte (ainda hoje) é aceite em muitos países, enquanto noutros – caso de Portugal - foi abolida há mais de um século. k) Se a cultura corresponde, então, a tudo aquilo que as pessoas, os grupos e as sociedades transportam consigo, oferecendo-lhe um capital social que se acrescenta ao património genético da espécie humana, o modo como tudo isso se organiza e se inscreve num determinado espaço geográfico e tempo histórico corresponde ao que normalmente se designa por civilização. A civilização corresponde, assim, ao plano da concretização social, da materialização de elementos, traços ou complexos culturais, constituindo uma área cultural alargada de grande coerência e continuidade no tempo. No entanto, as civilizações não são realidades estanques, fechadas ou imutáveis; ao invés, a sua vitalidade reside precisamente na capacidade de troca, empréstimo, recusa e absorção de elementos culturais diversos. l) As civilizações integram diversas formas de organização política das sociedades, num processo de dimensão e complexidade crescente, dos clãs ou tribos locais às cidades- estado, aos reinos e impérios, até às mais diversas formas de organização política dos Estados modernos. Em todo o caso, a noção de civilização remete sempre para um processo histórico de formação, desenvolvimento e até desintegração de uma dada civilização. m) Do ponto de vista da história das ideias, a reflexão acerca da relação entre cultura e civilização surgiu no quadro da reflexão setecentista sobre a sociedade (v.g. Montesquieu e Voltaire), em função da constatação da sua diversidade e tentativa de inventário e paralelo programa explicativo da sua diferença a partir do conceito iluminista de progresso. A oposição binária entre “bárbaro” e “civilizado” surgira já na Grécia (v.g. Tucídides); no entanto a sequência temporal que vai dos “povos primitivos” aos “povos civilizados” é uma construção ideológica desenvolvida a partir do século XVIII e que se fortalece no século XIX, em função de uma simplificada conceção evolutiva do homem e da cultura, à semelhança do que acontecia para as espécies. n) Numa perspetiva antropológica, o núcleo central de todas as culturas e civilizações remete sempre para o(s) modo(s) de lidar com o que poderemos designar como a economia de vida-morte. É em função de um núcleo de questões ligadas à existência e experiência concreta de cada pessoa, grupo ou sociedade (tais como as questões da finitude, dos limites e possibilidades, etc.) que se definiram parâmetros de afirmação e desenvolvimento da consciência humana e de estruturação comunitária. Sendo uma realidade íntima de cada um, essa consciência inscreve-se num processo relacional, que é da ordem da cultura, e no qual a instância do “religioso” ocupa um lugar de INÊS CRUZ TEIXEIRA 10 destaque. Como resume Eliot, «Em última análise, cultura pode até ser descrita simplesmente como aquilo que torna a vida digna de ser vivida. E é também aquilo que justifica outros povos e outras gerações quando dizem, ao contemplar os restos e a influência de uma civilização extinta, que valeu a pena ter existido essa civilização» (ELIOT, T. S. – Notas para uma definição de cultura. Lisboa: Ed. Século XXI, 1996, p. 30). 2. O FENÓMENO RELIGIOSO: ELEMENTOS PARA UMA SISTEMATIZAÇÃO a) A primeira constatação que historicamente podemos fazer é a de que não existe sociedade humana sem religião, isto é sem uma qualquer forma de expressão de uma “dimensão religiosa”, forma de vivência ou afirmação de um sentido de “religiosidade” na vida social, por mais vaga ou difusa que seja. Não é por acaso que o enterramento dos mortos, acima referido, constitui um dos sinais valorizados para definir se, no caso de determinado agrupamento cujos vestígios arqueológicos se analisam, estamos ou não diante uma comunidade humana. b) As manifestações ou fenómenos religiosos são, no entanto, muito diversos de sociedade para sociedade, e mesmo no interior de uma mesma sociedade. E nem todos se corporizaram num corpo diferenciado que possamos definir como sendo uma “religião”, enquanto sistema simultaneamente de ideias, crenças, doutrinas ou pensamento organizado (o qual remete para o nível das mundividências), e de práticas sociais concretas (remetendo para o nível das relações sociais). c) Tendo presente a noção de cultura expressa, podemos então considerar os fenómenos religiosos como decorrentes dos processos culturais, sempre em aberto, de procura de significação de uma compreensão global, de atribuição de um sentido para a vida, experimentado e pensado nas experiências limite da vida dos seres humanos e das sociedades. Os fenómenos religiosos surgem-nos assim enraizados na vida em sociedade, exprimindo sempre uma determinada compreensão do ser humano e do mundo, na procura da sua identidade, no reconhecimento da sua diversidade, na valorização de um determinado sistema de relações sociais, numa abertura ou fechamento à dimensão da transcendência. d) Nesta perspetiva, as religiões têm sempre uma dimensão social e cultural. Articulam- se com a cultura dessa sociedade numa relação biunívoca: são uma forma ou nível de uma dada cultura e são, simultaneamente instâncias produtoras de cultura. Atendendo ao esquema feito nas aulas, podemos considerar que a religião incorpora sempre, a nível do pensamento, a relação com uma determinada mundividência e, a nível das práticas sociais, implica um determinado sistema de relações sociais. È neste quadro se podem compreender os mitos e os ritos, por exemplo, como duas formas de expressão simbólica da sociedade (ver esquema feito nas aulas). e) Para salvaguardar a expressão pessoal, e até individualizada, da vivência e expressão do religioso, surge a noção de fé. A fé como atitude que vincula, no concreto, aquele que professa uma determinada compreensão religiosa.. INÊS CRUZ TEIXEIRA 11 2.1. AS DIVERSAS APROXIMAÇÕES AO ESTUDO DO FENÓMENO RELIGIOSO: a. Se o conceito de religião é recente – digo conceito, não vocábulo ou palavra –, as definições que desde o século XIX foram sendo dadas, abundam. Na perspectiva das modernas ciências humanas e sociais, a religião, as religiões, passaram a ser consideradas como um fenómeno cultural e social ligado à ideia de evolução das sociedades e às teorias explicativas acerca do seu funcionamento. Nesta perspetiva, uma das definições mais abrangentes, foi dada pelo sociólogo Émile Durkheim (1858-1917): «Uma religião é um sistema de crenças e de práticas relativas às coisas sagradas, quer dizer, separadas, interditas, crenças e práticas que unem numa mesma comunidade moral, chamada Igreja, todos os que a ela aderem. O segundo elemento que define a religião não é menos importante que o primeiro; pois, mostrando que a ideia de religião é inseparável da ideia de Igreja, faz pressentir que a religião deve ser uma realidade eminentemente colectiva.» (In Les formes élémentaires de vie réligieuse. Paris: PUF; tradução nossa). b. Esta definição tende a sublinhar o papel integrador que a religião desempenha na sociedade, secundarizando, em contrapartida, o lado dinâmico e o potencial criativo da religião. Tal visão enraíza numa perspetiva “culturalista” da religião, que a reduz a determinadas dimensões da “vida do espírito” e escamoteia outras consideradas de carácter material (civilizacional, portanto), sublinhando sobretudo a já referida dimensão funcional da religião, em articulação com uma visão evolucionista ou mesmo positivista das sociedades; isto é, visão assente na ideia de que historicamente se assiste a uma progressão e emancipação racional da humanidade relativamente à religião, que, no limite, levaria aos desaparecimento desta. Nesta visão, as religiões tendem a ser consideradas como sistemas coerentes de crenças e práticas sociais, assentes no pressuposto e afirmação de determinada compreensão da divindade, considerada como criação humana, as quais espelhariam, afinal, etapas sucessivas da vida em sociedade: animismo, totemismo, politeísmo, monoteísmo. O que Durkheim fez foi partir do estudo do totemismo das primitivas tribos australianas para analisar e definir precisamente o que definiu como “as formas elementares da vida religiosa”. c. Por outro lado, a definição da religião como aquilo que se refere às “coisas sagradas” constitui uma perspetiva sugestiva, mas também limitativa, na medida em a procura da fenomenologia do sagrado (v. R. OTTO) que pode conduzir a uma visão “essencialista” da religião, desligada precisamente dos processos e dinâmicas sociais em que se inscreve. Nesta abordagem, sublinha-se sobretudo a interação sagrado / profano, considerados como realidades que se distinguem e que, normalmente, concorrenciam ou se antagonizam entre si. A ideia de sagrado pressupõe afirmar a existência de uma potência ou poder que se manifesta e se reconhece em determinados lugares, tempos, objetos ou seres; em contraponto, o profano surge como o lugar da ausência desse poder ou potência, dessa qualidade, como aquilo de que se encontra separado, “expulso” pelo sagrado. INÊS CRUZ TEIXEIRA 12 d. As dimensões do sagrado e do profano não podem, pois, ser analisadas abstratamente. Ao invés, elas tendem a invadir o espaço social organizado e quotidiano, em função de dinâmicas concorrenciais próprias: “sacralização” e, inversamente “profanação” da realidade. A análise de tais dinâmicas remete necessariamente para as questões ligadas aos processos de ordenação na sociedade (a ordem, qualquer ordem, contrapõe-se sempre à ideia de um caos) e à estruturação do poder (o que pesa) nas sociedades. Autores houve, como Mircea Eliade (1907-1986), que através de uma exaustiva inventariação das expressões do sagrado e do profano procuraram definir uma espécie de “estrutura e morfologia do sagrado”, conforme a uma perspetiva interpretativa ou hermenêutica desse mesmo sagrado (cf. Tratado de História das Religiões. Porto: Asa, 1992; orig. 1948). e. No entanto, numa análise histórica ou sociológica, nem as sociedades, nem as diversas religiões apresentam perceções idênticas ou mesmo equivalentes acerca desta questão do sagrado / profano; a sua compreensão ou definição diferenciada é, em grande medida, expressão de formas de consciência acerca da condição humana, as quais transportam tensões próprias e específicas às próprias sociedades em que se manifestam. Numa visão mais abrangente, é a relação entre essas formas de consciência e a contínua reelaboração do universo religioso numa dada sociedade que interessa averiguar. f. A ausência dessa visão abrangente de que os fenómenos e as dimensões que integram ou definem um determinado universo religioso não são imutáveis, mas se articulam com processos mais vastos de recomposição da ordem e do poder nas sociedades, está na origem de alguns equívocos na leitura dos fenómenos religiosos no mundo contemporâneo. No mundo ocidental contemporâneo (séculos XIX e XX), o abandono de uma conceção sacral das sociedades, coincidente com determinadas formas de organização política das mesmas (v.g.: as monarquias de direito divino) não implicou o fim da religião nas sociedades, nem o seu acantonamento na esfera da vida privada, conforme certas teorias sociológicas acerca da secularização chegaram a considerar. g. No interior desse processo de mutação social, de passagem de uma sociedade sacralizada (isto é, que se organiza e onde o poder se legitima a partir de uma dada compreensão religiosa) para uma sociedade secularizada (isto é, com autonomia relativamente a essa compreensão religiosa global), assistiu-se na transição do século XIX para o século XX , na Europa, ao desenvolvimento de diversas teorias de crítica radical da religião, procurando questionar a validade dos seus fundamentos. Três perspetivas são de referir: o materialismo de Feuerbach e Marx, o nihilismo filosófico de Nietzsche e a psicanálise de Freud que tendem a considerar a religião como “alienação” ou “falsa consciência do homem” e “ópio do povo”, ou ainda como nevrose obsessiva da humanidade” assente numa estrutura de fetichismo. Em todas estas perspetivas, a religião e, em particular a ideia de Deus presente nos monoteísmos não seriam mais do que o resultado de uma projeção humana. INÊS CRUZ TEIXEIRA 13 h. No entanto, para além destas e de outras críticas racionalistas, assentes em visões redutoras do ser humano (recorde-se o que acima se afirma sobre o ser humano como ser simbólico), a dimensão e os fenómenos religiosos presentes na realidade humana continuaram a manifestar-se e a desempenhar papel importante no interior das dinâmicas sociais aos mais diversos níveis. Mesmo em sociedades de cariz totalitário, com programas políticos de extinção ou substituição da religião (é nesta perspectiva que alguns autores chegam a falar destes projectos como de “religiões políticas”) tal não aconteceu. i. Em suma, a religião apresenta-se à observação do “cientista social” como uma realidade dinâmica, abrangente nas suas formas e diversificada nos seus processos de manifestação social, e transversal às vivências dos indivíduos, grupos e comunidades. Na definição do fenómeno religioso encontram-se sempre presentes aspetos ligados à problemática da sobrevivência (individual ou comunitária) trabalhada pela relação vida-morte, desde a sua origem, no seu desenvolvimento e ocaso. Por outro lado, a religião, enquanto manifestação humana, não apenas expressa uma necessidade de sobrevivência mas também a necessidade de elaboração de uma linguagem, onde o “verbo” (palavra proferida, gesto desenhado, símbolo realizado) dá forma ao sonho; sonho entendido como dimensão projetiva e criativa do ser humano, como capacidade de romper com as circunstâncias e enunciar o desejo de instauração de uma nova ordem (“os novos céus e a nova terra” de que falam as profecias bíblicas, por exemplo). A linguagem permite a reelaboração da condição humana enquanto consciência, e consciência crítica, da sua realidade e da sua finitude. A religião apresenta-se, assim, não apenas como um marco no processo de hominização, mas elemento estruturante no processo humanização. j. Partindo desta visão global do fenómeno e dinâmica religiosos, a par da noção de religião há que referir o conceito de fé. Enquanto a religião se refere a um sistema coerente a nível da procura e significação do sentido, em articulação com as diversas formas de pensamento e agir social (filosófico, político, social, económico, etc), a fé (de fide, fidelidade) refere-se à dimensão individual e comunitária de definição de uma convicção, que implica a vida de cada um em todas as suas dimensões, enformando o seu comportamento e prática social (cf. esquema dado nas aulas, onde se articula: universo mental da sociedade – sistema de crenças religioso; práticas sociais e religiosas – sistema de relações). k. Do ponto de vista histórico e social, encontramos diversas compreensões da religião que não são possíveis, no entanto, de reduzir a uma perspetiva estritamente evolutiva, nem isolar como exclusivas de determinado tipo e sociedade. No sentido de identificar a diversidade de formas culturais relativas à dimensão religiosa das sociedades, referiram-se: o animismo, o totemismo, o panteísmo, o materialismo, o espiritualismo, o teísmo, o politeísmo, o henoteísmo, o monoteísmo, o ateísmo. Subjacente a todas estas visões, encontra- se a questão antropológica de pensar a realidade humana e social articulando as dimensões do uno e do múltiplo, na tensão entre a procura e afirmação de um princípio identificador do ser humano e da sociedade, versus a experiência da INÊS CRUZ TEIXEIRA 14 multiplicidade, constitutiva de toda a realidade humana e social. Esta questão não se esgota, no entanto, na contraposição histórica entre “politeísmo” e “monoteísmo” enquanto afirmação de um só Deus por contraponto à ideia de vários deuses, pois essa mesma afirmação inclui também uma outra perspetiva acerca da questão de Deus. Em última análise, é sempre uma questão em aberto. l. Se os universos religiosos são diversos, de um modo ou de outro, todos eles transportam consigo a questão do divino. Esquematicamente, fazem-no por três vias: a) através da divinização da natureza e das suas forças, sacralizando determinados lugares, animais ou outros elementos da natureza; b) através da divinização ou “santificação” de determinadas figuras humanas (heróis, por exemplo); c) através da afirmação da ideia de deus ou de uma divindade que se manifesta através de fenómenos considerados como sua manifestação (e, portanto, sagrados, numinosos, tremendos ou misteriosos, conforme as diversas perspetivas). Esta última perspetiva teve desenvolvimento significativo através dos diversos teísmos, os quais pressupõem já um certo nível de elaboração cultural, embora cada um deles afirmando uma visão distinta da questão do divino: numa perspetiva panteísta, há uma identificação ou fusão de cada ser num todo divinizado; enquanto que no politeísmo ou no monoteísmo, tal não acontece, pois há o reconhecimento e afirmação de cada um dos deuses ou de Deus como um outro distinto e diferenciador (a tal questão do uno e do múltiplo). m. Filosoficamente, podemos aproximar o monoteísmo e o ateísmo enquanto formas de colocar (afirmando ou negando) a questão de Deus, entendido como absoluto e transcendência relativamente à realidade humana. Na visão monoteísta esta ideia de um Deus absoluto e transcendente articula-se com a noção de alteridade: é a consciência da alteridade (na relação de um “eu-tu”, onde emerge a consciência do “outro”) que leva a enunciar a ideia de Deus precisamente como um Outro pessoal que se manifesta, isto é, se revela à humanidade. Esta conceção encontra-se presente nos três grandes monoteísmos (Judaísmo, Cristianismo e Islão). 2.2. NOÇÃO DE RELIGIÃO 1. “A religião não é uma questão meramente teórica ou do passado, reservada a investigadores de documentos e fontes históricas. É vida vivida, inscrita no coração e no quotidiano de muitos milhões de homens. Pode ser praticada de forma superficial, passiva, ou sentida de modo profundo, empenhado e dinâmico. Com aspetos conscientes ou inconsientes, a religião é sempre uma perspetiva, uma postura, uma forma de existir dentro da fé. Pode ser designada como um padrão básico sócio individual que abrange o ser humano e o seu mundo, através do qual mulheres e homens- de um modo que só parcialmente lhes é consciente- tudo vêem e experimentam, pensam e sentem, agem e repousam, sofrem e se alegram. É, por isso, um sistema de coordenadas justificado de forma transcendente e actuante de forma imanente, em relação ao qual o ser humano se orienta do ponto de vista intelectua, emocional e existencial. A religião transmite um sentido concreto e abrangente à vida, INÊS CRUZ TEIXEIRA 15 garante valores e padrões absolutos, gera a comunidade espiritual e um sentimento de segurança”- Bento Domingues 2. Introdução que não define na totalidade ‘religião’, mas lembra a centralidade que ocupa na vida, a abrangência do fenómeno religioso que tudo penetra e tudo ‘invade’. Podemos agrupar as inúmeras definições de ‘religião’ em: a. Funcionais: “religião é o que confere sentido à vida do homem” b. Substantivas as mais importantes pois são aquelas que nos introduzem verdadeiramente nos conteúdos, que permitem aprofundar mais a questão, perceber melhor o que é ou pode ser ‘religião’. 3. Uma definição clássica de F. Durkheim: “religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, interditas, crenças e práticas que unem numa mesma comunidade moral, chamada ‘igreja’, todos aqueles que a ela aderem.” Relativamente ao conceito de cultura das ciências sociais, religião seria uma ‘parte’ da cultura…uma parte do todo… mas a verdade é que a definição de F.D. já nos alerta para aquilo que tem sido defendido por inúmeros pensadores da cultura e da religião: esta é que dá o verdadeiro sentido àquela!- P. Tillich “a religião é o que garante o sentido último à cultura, a religião é a substância da cultura.” Vejamos os elementos verdadeiramente importantes e imprescindíveis de um fenómeno para que possa ser apelidado de ‘religião’. a. Qualquer religião move-se num determinado âmbito, o âmbito do sagrado. Este âmbito estabelece uma separação entre o sagrado e o humano (não sagrado). Por isso, deve haver uma iniciação a qualquer vida religiosa, uma iniciação para entrar na vida do sagrado. Esse ‘sagrado’ tem valor, merece a nossa maior estima, é o que há de mais valioso. É um Absoluto, que relativiza tudo resto, é gratuidade total, não é fruto de possível conquista por parte do sujeito que nele crê: está para além do sujeito, não depende deste. O ‘sagrado’ envolve uma seriedade/ gravidade muito grande, é algo com que ‘não se brinca’, onde o sujeito religioso tem consciência de aí se jogar o seu fracasso ou êxito pessoal, a salvação ou perdição. b. Em segundo na religião estamos sempre perante o Mistério- realidade superior a que se refere tudo o que se move dentro do sagrado. O ‘Mistério’ apresenta conotações de transcendência e imanência. O Transcendente pode ser o totalmente outro, o omnipotente, o vazio ou o nada… Mas apresenta-se também como Imanente: proximidade permanente do homem, origem permanente do homem,… E cada religião terá depois a sua cor: politeísmo, Absoluto, Deus cristão… c. Em terceiro devemos destacar a atitude religiosa, isto é, não há religião sem resposta do Homem a esse Mistério ou Absoluto. E a resposta do homem, no mais profundo da experiência religiosa, não é a satisfação de desejos ou necessidades, pedidos à divindade. É verdade que na religião o Homem busca a salvação, mas ela será sempre um dom, não uma conquista. A verdadeira atitude religiosa é adoração, devoção, fé (e seus equivalentes). É ir mais além de si mesmo, é aceitar uma realidade superior em tudo e entregar-se a esse valor supremo. De facto, em relação às coisas, o Homem sente-se o centro de tudo; face a Deus não. Deus não está como objeto em função do sujeito. O Supremo não é o Homem, é Deus. Em nenhuma religião Deus é rival do Homem. Mas há algo muito claro em qualquer INÊS CRUZ TEIXEIRA 16 religião: o Homem não é o absoluto, não é ele a medida de todas as coisas- J. P. Sartre: “somos livres para tudo, menos para ser livres”. De facto, não fomos nós a decidir originariamente da nossa liberdade. d. Em quarto, uma religião sempre envolve mediações, isto é, sempre se requerem mediações que possibilitem o encontro do Homem com o Absoluto. Podemos falar de: Mediações objetivas: são as ‘hierofanias’ de que falava Mircea Eliade, as manifestações do Mistério, do Sagrado: sol, lua, montanhas, vegetação, água… Mediações subjetivas: são as que variam de religião para religião, de cultura para cultura: espácio temporais (catedral, templo, festas,…), racionais (ideias de Deus, teologias, dogmas, símbolos, mitos- tudo isto são mediações, não são objetos de fé em si mesmos), ativas (culto, oração, sacrifício, ética, …), emotivas (maravilhamento, entusiasmo), comunitárias (seita, discipulado, igreja, vida religiosa, etc.). Finalmente uma referência à questão da ‘magia’ … Tanto a religião como a magia buscam a relação com o Supremo, o invisível transcendente. Contudo, podem distinguir-se (nem sempre facilmente) ao nível da intenção e das mediações Intenção: na superstição os atos são provocados pelo medo ou então pelo interesse em querer ganhar os deuses para o seu lado; há assim uma fé não racional e pouco livre Mediações: na religião, os gestos contam pouco, muito menos que a intenção (de devoção), por isso a religião é mais sóbria; a superstição é uma religião que peca por excesso: rende um culto indevido a Deus (na intenção) ou rende um culto a quem não deve render (às mediações, o que é idolatria) 2.3. RELIGIÃO E CULTURA Regis Debray para abordar esta matéria. O primeiro ponto deste documento chama-se «Esperanças». Nele Debray menciona aquilo que designa «um aparente consenso»: «A opinião francesa, na sua maioria, aprova a ideia de aprofundar o estudo do religioso na escola pública. Também identifica «uma argumentação conhecida»: «É a ameaça cada vez mais sensível de uma perda coletiva, de uma rutura dos laços da memória nacional e europeia» que faz mover essa opinião. O Estado deve ocupar-se da religião em nome de uma memória própria, de uma história própria. Ele afirma mesmo: «O desmoronamento ou a erosão dos antigos vetores de transmissão constituídos pelas Igrejas, costumes e civismo, passa para o serviço do ensino público as tarefas elementares de orientação no espaço-tempo, que a sociedade civil já não está em condições de assegurar». O modo pelo qual a escola deve «pegar» no religioso deve ser, no entanto, entendido de um modo específico: «O objetivo não é o de repor “Deus na escola”, mas de prolongar o itinerário humano por múltiplas vias, tanto quanto a continuidade cumulativa, chamada também cultura, distingue a nossa espécie animal das outras, menos afortunadas». INÊS CRUZ TEIXEIRA 17 Regis Debray faz uma convocação muito séria da cultura. É em nome da cultura que a reflexão sobre o religioso na escola pública faz sentido para ele. E declara que a história das religiões devia ser um suporte muito sólido para este empreendimento. É ela que pode unir «o curto ao longo prazo, recuperando os encadeamentos, as produções longas próprias da humanitude». Há, aqui, um apelo fundamental à memória. Para sabermos como hoje somos laicos, temos de saber como fomos crentes. O autor identifica também aquilo a que chama «resistências», tanto dos espíritos laicos quanto dos religiosos: «De um lado, há quem denuncie com palavras mais ou menos encobertas o cavalo de Troia de um clericalismo disfarçado, a última artimanha de um proselitismo, aliás em decadência, quando não é o instrumento de uma Reconquista papista da Europa, isto é, da anti ciência e do retorno dos mágicos.(…) Do lado eclesiástico ou crente, há quem denuncie um outro cavalo de Troia, o da confusão e do relativismo difamadores que, justapondo dados inertes e desbotados, apagariam as fronteiras entre o inefável e a vulgaridade, a “verdadeira religião” e as “falsas”». Debray elenca uma série de pontos que lhe parecem dever ser esclarecidos: a. «Ninguém pode confundir catequese e informação, proposição de fé e oferta de saber, testemunhos e explicações. (…) b. “A busca de sentido” é mesmo uma realidade social que o Ministério da Educação não pode esquecer, mas não devemos, por uma questão de facilitismo, reconhecer às «religiões» (…) um qualquer monopólio do sentido. (…) c. Relegar o fenómeno religioso para fora do espaço da transmissão racional e publicamente controlada dos conhecimentos favorece a patologia do terreno em vez de o sanar. Por si só, o mercado das crenças, a imprensa e os livros inflacionam a vaga esotérica e irracionalista. (…) d. Assim como o sábio e a testemunha não se invalidam mutuamente, também a abordagem objectivante e a abordagem confessante não fazem concorrência, desde que as duas possam existir e prosperar simultaneamente (…) e. A deontologia do ensino (…) exige pôr entre parênteses convicções pessoais. (…) Uma didáctica das Ciências das Religiões que se encontra, sem dúvida, ainda por fazer ou a refazer, saberá prosseguir nesse sentido com a ajuda da experimentação pedagógica. (…) Dizer o contexto histórico sem a espiritualidade que o anima, é correr o risco de desvitalizar. Dizer, pelo contrário, a sabedoria sem o contexto social que a produziu, é correr o risco de mistificar. (…) f. A incultura religiosa, segundo muitos indicadores, afecta tanto os estabelecimentos privados de carácter confessional como a Escola pública. Vários indicadores mostram que a ignorância neste domínio está, em grande escala, relacionada com o nível de estudos e não com a origem religiosa dos alunos ou com a sua pertença familiar» (pp. 20-22). De acordo com o autor, a laicidade é o pano de fundo em que todos estes elementos devem ser tidos em consideração. Afirma que «a laicidade não é uma opção espiritual entre outras», mas sim «o que torna possível a sua coexistência, pois o que é comum, por direito a todos os homens deve sobrepor-se ao que os separa de facto». Não são competências da laicidade nem a adesão pessoal nem a recusa. E Debray afirma que «o espírito de laicidade nada deveria temer. E isto por três razões: INÊS CRUZ TEIXEIRA 18 a. O alargar dos discursos racionais ao domínio do imaginário e do simbólico, sem fugir às dificuldades, é continuar o «combate pela ciência» que liberta dos medos e dos preconceitos. (…) b. Só uma deontologia laica experimentada pode evitar a confusão dos magistérios, porque exige imparcialidade e neutralidade por parte dos mestres (…) c. Se a laicidade é inseparável de uma visão democrática de verdade, é contribuir para desarmar os diversos integrismos, que têm em comum uma dissuasão intelectual: é preciso pertencer a uma cultura para poder falar dela. (…) (p. 24) Ele conclui deste modo a exposição teórica do seu argumento no relatório enviado ao Ministro da Educação Nacional: «Agora parece ter chegado o tempo de passar de uma laicidade de incompetência (o religioso, por definição, não nos diz respeito) a uma laicidade de inteligência (é nosso dever compreendê-lo)». O cenário de França, naquilo que diz respeito à religião, tem características muito próprias que devem ser tidas em conta. A França esteve dividida em duas: a França republicana e a França religiosa, que, na sua maioria, corresponde à França católica. Mas o contexto que vivemos hoje em Portugal talvez não esteja assim tão distante da especificidade francesa. Claro que temos que ter em conta a realidade concordatária, que vos diz particularmente respeito, enquanto estudantes de Direito. Mas uma mesma perda de memória religiosa se vai erguendo, sub-repticiamente. Neste contexto, dão-se muitas vezes casos de «folclorização da religião», isto é, de deslocação do religioso para uma esfera de exibição que já pouco tem de religioso. Podemos dar-nos conta, aqui e ali, na televisão, de reportagens feitas sobre tal ou tal costume religioso. Mas isso significa que esse costume religioso é uma exceção à regra. Talvez o Ocidente tenha mais em comum com o contexto especificamente francês do que à primeira vista poderia imaginar. É neste quadro de distanciamento próprio de uma perspetiva não assente numa crença e numa pertença, isto é, numa religião, que surge a proposta de Regis Debray. Será bom focarmos o contexto português neste domínio do papel da religião na esfera pública, ou melhor, da gestão do sagrado na esfera pública. Este debate surge, como em França, muito associado ao ensino religioso ou ao ensino das religiões, como veremos, na escola. Para Paulo Mendes Pinto, não basta que o Estado assegure a existência de um ensino religioso nas escolas – ele caracteriza tal prática como «politicamente correta». Interroga-se, antes, sobre o acesso dos não crentes ou não praticantes, que correspondem, grosso modo, ao resto da população: «Da forma como o lugar da religião na escola está montado, a prática que dele advém apenas interessa aos profissionais das religiões que, numa dimensão pastoral, quase catequética, mantém o seu lugar na instituição escolar». Paulo Mendes Pinto propõe não um ensino religioso, mas um ensino das religiões enquanto formação cívica e, portanto, não comprometida com uma religião em particular. Como no caso das propostas de Regis Debray, este tipo de ensino deve decorrer na própria laicidade do estado. O autor que tenho vindo a mencionar contextualiza esta posição no enquadramento constitucional português pós-25 de Abril. O texto da Constituição que ele refere: «Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social» (artigo 13º) A Constituição defende também o carácter não confessional do ensino público e a não intervenção neste domínio em nome de posições «filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas» (artigo 43º cit. In Pinto, p. 42). INÊS CRUZ TEIXEIRA 19 Este quadro legal favorecia a existência do ensino religioso fornecido por cada religião. O que Pinto defende é a introdução do ensino das religiões, isto é, que contemple todos os grupos religiosos, dotando os alunos de conhecimentos no âmbito da História e da Sociologia das Religiões. Se o Estado não é confessional, ele pode, no entanto, permitir e encorajar este tipo de ensino que decorre da sua laicidade. E assim se aproximam as propostas deste autor, como já foi referido, das de Regis Debray. II – O CRISTIANISMO VISTO POR DENTRO 1. A BÍBLIA E AS RAÍZES JUDAICAS DO CRISTIANISMO 1.1. A BIBLIA- UM DOS TRÊS PILARES DO CRISTIANISMO 1. Vamos deter-nos na consideração do cristianismo como fenómeno religioso, a partir de três grandes eixos: A Bíblia (o cristianismo também uma religião do Livro), Jesus Cristo (o fundador do Cristianismo) e a Igreja (instituição que configura historicamente esta religião). 2. A Bíblia é, de longe e sem comparação, o livro mais lido, editado e traduzido da história da humanidade. Além disso, serve de inspiração e bússola, desde há séculos, para muitos milhões de crentes, nomeadamente no mundo europeu-ocidental ao qual pertencemos. 3. A Bíblia é um livro que contém um conjunto de livros…o seu nome vem justamente dali: “biblos”, que significa livro ou biblioteca. Trata-se de um conjunto de 73 livros, divididos em Antigo Testamento (46 livros a.C.) e Novo Testamento (27 livros d.C.) 4. A Bíblia não é um livro de história ou de ciência, mas sim um livro de fé. Isto significa que o que a Bíblia pretende é o fazer de ensinamentos religioso a através de processos literários (comuns a qualquer obra literária). Esquecer isto conduz-nos imediatamente para leituras historicistas, literalistas ou fundamentalistas do texto bíblico- incompatíveis com muitas afirmações das ciências e, sobretudo, incompatíveis com a racionalidade do homem moderno. 5. É muito importante saber o que é a Bíblia e mais ainda de que modo se deve lê-la. A Comissão Pontifícia Bíblica: “A interpretação da Bíblia na Igreja.” Ali se faz uma resenha dos diferentes métodos atualmente conhecidos e mais usados para uma profícua leitura do texto bíblico. Assim, para além da sempre necessária atualização e inculturação do texto bíblico, podem-se destacar os seguintes métodos de abordagem: a. Método histórico critico: com a ajuda de ciências com a história, a filologia, a arqueologia, etc., procura-se encontrar o autor do texto, a sua situação histórica, a sua intenção ao escrever determinadas frases, etc. É a busca do sentido original e literal do texto b. Métodos literários: partindo do principio de que a Bíblia é, de facto, obra literária, procura-se determinar os seus grandes géneros literários, perceber como o texto é constantemente apresentado com variadíssimas figuras de estilo (metáforas, comparações, contrastes, etc.) e recurso a diferentes processos literários (etiologias, alegorias, etc.). Mais recentemente apareceu também o interesse da semiótica para a interpretação do próprio texto. c. Método a partir das ciências humanas: Ciências como a sociologia (por exemplo, na determinação de grupos sociais em presença em determinado momento da história do povo bíblico), a antropologia (por exemplo, destacando a importância da cultura mediterrânica, onde foi produzida a Bíblia) ou a psicologia (para a INÊS CRUZ TEIXEIRA 20 interpretação dos numerosos textos de sonhos ou para a diferenciação entre pecado e transgressão e culpabilidade…), muito têm contribuído para leituras cada vez mais ricas do texto bíblico. d. Métodos contextuais: destacam-se sobretudo dois: os que fazem uma leitura libertadora da Bíblia, a partir das condições sociais degradantes de muitos homens e mulheres que anseiam por ‘libertação’; os que fazem uma leitura feminista da Bíblia, procurando descobrir em todo texto uma verdadeira defesa da mulher. 1.2. BÍBLIA, FÉ E CIÊNCIA Não me parece que a ciência de R. Dawkins vá substituir a religião. Como dizia o poeta Eliot, “não há nada neste mundo ou no outro que possa ser substituto de outra coisa”. Já referi a obra de resposta de Alister McGrath a Dawkins que termina com um convite: “temos muito a ganhar com um debate comum, cordato e rigoroso. A questão acerca da existência de Deus – e como será Deus se existir – mantém ainda toda a sua importância intelectual e pessoal nesta época pós-Darwin. Encontramos mentes fechadas de ambos os lados da barricada. Para superar este abismo entre as mentes fechadas, fundamentalistas, de ambos os lados, um outro biólogo, Francisco J. Ayala, escreveu uma obra, mostrando que não há contradição necessária entre a ciência e as crenças religiosas. “A ciência procura descobrir e explicar os processos da natureza: o movimento dos planetas, a composição da matéria e do espaço, a origem e a função dos organismos. A religião trata do significado e propósito do universo e da vida, as relações apropriadas entre os humanos e o seu criador, os valores morais que inspiram e guiam a vida humana. A ciência não tem nada a dizer sobre essas matérias, nem é assunto da religião oferecer explicações científicas para os fenómenos naturais. (…) O Deus da revelação e da fé cristã é um Deus de amor, misericórdia e sabedoria”. Ayala, no balanço final do seu percurso, verifica que “a evolução e a fé religiosa não são incompatíveis. Os crentes podem ver a presença de Deus no poder criativo do processo de seleção natural de Darwin”. Era esta, aliás, a convicção do próprio Darwin. 1.3. A BÍBLIA, UM LIVRO HUMANISTA (A PROPÓSITO DO JUBILEU) 1. A Bíblia é um livro verdadeiramente humanista. É certo que há uma progressão, uma evolução mais ou menos lenta ao longo de toda a Bíblia e da história do povo de Israel, onde se pode constatar um contínuo aperfeiçoamento do ideal humanista que Deus tem para a humanidade. É isso que explica, em vários momentos, a crença num Deus de exércitos capaz de muita violência… Mas a Bíblia é uma proposta verdadeiramente humanista: isso é claro logo na criação, na libertação do Egito (êxodo) ou na crítica profética às injustiças e defesa dos mais fracos, como os órfãos e as viúvas. Depois, com Jesus Cristo, o ideal humanista é bem claro: o bem da pessoa, de toda e qualquer pessoa, está acima de tudo, mesmo das leis religiosas. Um exemplo deste humanismo bíblico é a preocupação social relativa ao Jubileu, vivido de 50 em 50 anos e desenvolvimento da realidade religiosa social do Sábado e do Ano Sabático. INÊS CRUZ TEIXEIRA 21 2. O ano jubilar inspira-se no ‘Sábado’ a. O sábado era uma instituição dos povos vizinhos de Israel, para o descanso. b. O relato da criação (gen. 1) passa daí a uma leitura teológica: deve-se descansar porque Deus também descansou. c. O sábado era, pois, para descanso e para louvor de Deus (oração): Senhor do Tempo e da História d. Pouco a pouco, o sábado começa a ser relacionado com preocupações sociais e humanitárias: os escravos não devem trabalhar (“lembra-te Israel que já foste escravo no Egito 3. O Ano Jubilar inspira-se no Ano Sabático a. O ano sabático está para os outros anos como o sábado está para os restantes dias: o sábado é o 7º dia, o ano sabático é o 7º ano b. Assim, as prescrições para o sábado- descanso, louvor de Deus, preocupações sociais- vão agora ser aplicadas ao ano sabático (de 7 em 7 anos). Só que o ano sabático vai desenvolver muito as questões mais sociais humanitárias: A terra- fica de repouso um ano inteiro com a finalidade humanitária: para que os pobres tenham de comer e os animais do campo também. Além disso, diz que a terra é de Deus e portanto o 7º ano é para lembrar isso- que o homem não é o dono da terra. A terra foi dada por Javé para todos e deve ser usada para o serviço de todos. Assim, ao menos uma vez de 7 em 7 anos, todos estão em iguais circunstâncias e os pobres terão para comer como os proprietários das terras Libertação dos escravos e perdão das dívidas- dever de perdoar as dívidas. Todos sabiam que no ano sabático se perdoavam as dívidas, podia haver a tentação de não emprestar quando se estava perto desse ano… Também a escravatura era uma maneira de pagar as dívidas: por isso, no ano sabático, o escravo ficava livre e o seu antigo senhor não o podia deixar ir de mãos vazias. 4. O Ano Jubilar (ou ‘Jubileu’): o nome ‘Jubileu’ vem de ‘Yobel’- chifre de carneiro que era tocado no início desse ano, toque feito solenemente pelos sacerdotes. Acontecia de 50 em 50 anos: 7 vezes 7 anos sabáticos. E as prescrições do sábado e no ano sabático eram aqui também aplicadas, mas com uma extensão ainda maior, sobretudo em dois campos: a. Devolução dos bens aos antigos proprietários (portanto, recuperação do património) b. Possibilidade de regresso ao seu clã, à sua família (escravos, assalariados,…) As leis do Jubileu permitiam, assim o refazer da vida a cada um, uma grande oportunidade. E ali se afirma um grande sentimento de solidariedade e ali se procuram atenuar as diferenças sociais. 5. Poderíamos dizer que os Evangelhos e a pregação de Jesus sobre o Reino de Deus têm o mesmo espírito do Ano Jubilar: festa…porque finalmente há justiça e solidariedade. 6. E é certamente este espírito humanista da Bíblia que vai inspirando a Igreja ao longo dos tempos (pelo menos nos seus melhores momentos). Veja-se o que disse Paulo VI na sede da ONU em 1965: “ A Igreja é perita em humanidade”; J. Paulo II “o caminho da Igreja é o homem”. INÊS CRUZ TEIXEIRA 22 INÊS CRUZ TEIXEIRA 23 1. A Bíblia e as raízes judaicas do cristianismo. a) A importância cultural da Bíblia. Algumas referências estruturantes nas culturas de matriz judaico-cristã: o monoteísmo judaico e a noção de “aliança” como eixos de leitura e compreensão da Bíblia, correspondendo ambos a um longo percurso histórico (desde c. 2000 a. C.) Como experiência religiosa, o Judaísmo surgiu em tribos que se constituíram em sociedade com unidade própria, na qual a referência ao Deus “único” “daquele povo” os distinguia de outros povos (concepção henoteísta de Deus ou henoteísmo). Só com Moisés e o período do “êxodo” ou libertação do Egipto (c. 1250 a.C.) se pode falar com propriedade de monoteísmo. b) As raízes judaicas do Cristianismo estão patentes nas mais diversas narrativas bíblicas. A compreensão mítica das origens da humanidade: o livro do Génesis e a ideia da criação - Adão e Eva; a desobediência e o sentido do pecado que se repercute nas diversas narrativas sequentes. A narrativa histórica de um povo (o “povo eleito” ou “povo de Deus”), onde a referência ao Deus “único” foi central na passagem do nomadismo de tribos semitas (os hebreus) à sua sedentarização e fixação em Canaã. É o “Deus de Abraão” que confere identidade àquele povo. c) Surge assim a figura de Abraão como o “pai da fé”, resultante de uma história onde prevalece a atitude de escuta, convicção e confiança em Deus; um Deus que conforme à ideia de “aliança” com o homem, promete uma longa e fecunda descendência (a si e a sua mulher Sara), dando origem a um novo povo a quem também promete uma terra de abundância e felicidade (cf. Gén. 12; 15; 17). É o início bíblico da ideia da “promessa”: a “terra prometida”. Do ponto de vista cultural, Abraão é a figura arquétipo do herói que é chamado a partir numa viagem sem retorno, à procura de uma “terra prometida” mas que lhe é estranha, desconhecida, à diferença, por exemplo, do grego Ulisses, que depois de fazer a guerra e cumprir a sua missão, regressa à casa donde partiu. Abraão aceita partir de Ur, sem qualquer garantia, a não ser uma “palavra” dada, aquela que reconhecera com sendo pronunciada por Deus. A sua partida alicerça-se na confiança, na fé e dá sentido à promessa. d) Na perspetiva da história das religiões, a figura de Abraão e a ideia da aliança, afirmar- se-á uma herança comum às três religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islão), referindo-as precisamente como sendo três “religiões abraâmicas”, pois todas se reconhecem nessa mesma tradição da fé como confiança pessoal em Deus, um “Deus que fala” e que se revela aos homens ao longo da história. e) A partir da história e do estudo da Bíblia, considera-se que a passagem do henoteísmo ao monoteísmo de Israel, aconteceu apenas com Moisés, que “liberta o povo do Egipto” e recebe, no monte Sinai, a Lei ou ”Decálogo”, as dez palavras ou mandamentos (cf. Ex. 20, 2-14; e Dt. 5, 6-18), corporizando assim a aliança de Deus com o seu povo: “Javé é o Deus de Israel e Israel o seu povo” (cf. Ex. 19 e 20). A partir de então, a Bíblia narra-nos a história das vicissitudes desse povo ou nação, desde o regresso ou “êxodo” do Egipto e da sua fixação na Palestina. INÊS CRUZ TEIXEIRA 24 f) Com o rei David (c. ano 1000 a.c.) deu-se a criação de Israel como um estado unificado com um governo monárquico; «ele é considerado uma mistura ideal de bom governante, poeta genial (a ele são atribuídos os salmos) orante exemplar e grande penitente» (cf. H KUNG – Religiões do mundo: em busca dos pontos comuns. Lisboa: Multinova, 2005, p. 191). E, com o rei Salomão, contruiu-se o templo de Jerusalém, como lugar onde se guarda a “arca da aliança”, contendo as “tábuas da lei” e se prestam sacrifícios a Deus, passando a ser o centro da vida religiosa do novo reino. g) As posteriores vicissitudes políticas de Israel (com divisão dos reinos do Norte e do Sul, o fim da monarquia, o exílio na Babilónia, e o desenvolvimento de uma forma de governo teocrática sob o domínio dos grandes impérios, do persa ao romano, etc.) ajudam a compreender o aparecimento da profecia na Bíblia; isto é, paralelamente a essas vicissitudes políticas, que ameaçam a sobrevivência do povo e parecem pôr em causa a promessa inicial de Deus, surgem as figuras de profetas que denunciam os desmandos na sociedade, criticam reis e sacerdotes, ao mesmo tempo que apelam à “conversão” ou mudança de atitudes do povo e anunciam a renovação da “promessa” de Deus. Assim, e tendo em conta a história e as narrativas bíblicas, que dela procuram dar conta, surgem três pólos principais na definição do Judaísmo histórico: a lei, o templo e a profecia. h) Após a destruição definitiva do templo de Jerusalém, na sequência da guerra dos Judeus com o Império romano (de 66 a 70 d. C.), que perderam e a consequente dispersão ou “diáspora” judaica, o Judaísmo sobreviveria em novos moldes. Historicamente conheceu um conjunto de mudanças na sua organização social e religiosa, que permitem então passar a falar-se de um “Judaísmo rabínico”. «O lugar do altar [do Templo] destruído passou a ser ocupado pelos rolos da Tora, e o lugar de culto no templo foi ocupado pela oração, pelas boas obras e pelo estudo da Tora. O lugar do sacerdócio hereditário [i.e., de casta] passou a ser ocupado pelos escribas, pelos rabinos, e o da dignidade dos sacerdotes e levitas, herdada de pai para filho, pela dignidade do rabino, conquistada através de uma formação erudita. […] Em lugar do único templo em Jerusalém surgem agora por toda a parte as sinagogas: um novo tipo de casa para reuniões e para oração, surgido certamente no exílio babilónico, onde, em qualquer caso, não havia nenhum templo judeu.» (cf. KUNG, op. cit., p. 195). i) A par da Tora, o conjunto dos textos que narram a história da revelação inicial e da “lei de Deus” [os cinco primeiros livros da Bíblia], existia uma lei oral judaica. Para a sua correcta interpretação, desenvolveu-se então um tipo de literatura particular que se reúne no chamado Talmude. A palavra refere-se a estudo, significando aprender, elucidar, compreender. É o texto fundamental da literatura religiosa no exílio. Composto por duas partes: a Mishna ou colecção da lei oral; e a Gemara, i.e., comentários muito desenvolvidos dessa mesma lei. Diferencia-se, pois, de um código; constitui antes uma compilação sistemática de conclusões acerca dos mais diversos aspectos relativos à vida, história, religião e tradições, gozando de grande autoridade em todo o mundo judaico, não só como fonte normativa, como também tesouro do espírito judaico e como tradição viva e unificadora de um povo. j) A ideia de Deus desenvolvida pelo Judaísmo assente na ideia de que Deus é simultaneamente o Criador e o Senhor da história: Deus criou o ser humano, à sua imagem e semelhança, o mundo e tudo o que nele existe, que é confiado aos seres INÊS CRUZ TEIXEIRA 25 humanos; estes reconhecem-No como o seu Senhor e Senhor da história. A história da humanidade compreende-se assim simultaneamente como lugar da revelação de Deus e de salvação dos homens e mulheres, assente numa concepção linear do tempo. Deus, embora transcendente ao ser humano e ao mundo, isto é, separado e distinto, relaciona- se com eles, interessa-se por eles, em função da já referida ideia da “aliança”; mais, Ele é reconhecido como o seu Criador e Senhor e a história da humanidade como o lugar onde se joga a sua salvação. k) O Judaísmo assenta, de facto, numa nova visão do tempo: rutura com a tradicional conceção cíclica do tempo e aparecimento de uma conceção linear do tempo, que passa a considerar-se ter uma origem e que há-de ter um fim. Neste sentido, compreende-se que as noções de criação, revelação e tradição se tornem nos três tópicos fundamentais da compreensão religiosa de Deus, da Sua relação com o mundo e a humanidade e da valorização da própria história. A história tem um sentido e uma finalidade última. l) Continuidade e diferença entre a Bíblia judaica (hebraica ou Tenak e grega ou dos Setenta) e a Bíblia cristã, que lhe acrescenta novos livros; donde, a divisão na Bíblia cristã entre “Antigo” e “Novo” Testamento. Importância da Tora no Judaísmo: o primeiro significado do termo hebraico “tora” é o de ensino” ou “instrução divina”; é o nome que os Judeus dão à lei de Deus como aparece escrita nos cinco primeiros livros da Bíblia, conhecidos também como “Pentateuco” (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio). «A Tora tem como fim guiar o povo de Deus de maneira prática [i.e. ética] na sua vida diária. Assim ficou expresso com clareza pela primeira vez nas instruções contidas na Aliança no Sinai. Estas instruções [ou Lei] têm mais carácter de revelação que de código [jurídico]. Fundamentam-se na evidência histórica de Deus, na eleição e promessa a Abraão, na libertação dos seus descendentes e na aliança firmada com eles. A Tora é a magna carta da Aliança entre Deus e o Seu povo.» (P. SANTIDRIÁN – Dicionário básico das religiões, p. 529). m) «A Bíblia não é um livro, mas uma biblioteca». Qualquer hermenêutica ou interpretação dos textos bíblicos necessita atender aos diversos géneros literários da Bíblia (mítico, histórico, poético, profético, epistolar, etc.). Já os pensadores medievais distinguiam entre os diversos níveis de compreensão ou significação da Bíblia. Qualquer leitura que não tenha em conta este dado conduz necessariamente a uma atitude de reducionismo cultural ou de fundamentalismo religioso. No seio do cristianismo, a modernidade ocidental e, com ela, a valorização do estudo crítico da Bíblia, com recurso à história e à hermenêutica contemporâneas, trouxeram consigo um reconhecimento da diferença de planos e perspectivas entre a visão religiosa e a explicação científica da realidade. Hoje as diversas tradições religiosas e Igrejas cristãs reconhecem a necessária complementaridade entre fé e razão, religião e ciência, no seu trabalho conjunto de aproximação, compreensão e estudo da realidade. n) Em síntese: relativamente às raízes judaicas do Cristianismo, são duas as principais questões a reter: a. – a conceção religiosa da “aliança” de Deus com o seu povo (desde a criação, passando por Abraão, Moisés) e que agora é percecionada como sendo renovada INÊS CRUZ TEIXEIRA 26 em Jesus, considerado o Messias esperado, e que alarga essa aliança a toda a humanidade; b. – as Escrituras judaicas (com as suas três partes, Lei, Profetas e Escritos) , enquanto repositório de uma História (a história do “povo eleito” de Deus) e de uma Palavra (a Palavra de Deus) que se prolonga e enriquece agora no cristianismo com novos textos dando assim origem à Bíblia cristã. Esta integra assim duas partes, cada uma delas qualificada de Testamento, palavra que significa também aliança: o Antigo Testamento e o Novo Testamento. 2. JESUS CRISTO: FUNDAMENTO E FUTURO DO CRISTIANISMO 2.1. O Cristianismo nasce de uma convicção profunda testemunhada por muitos dos que conheceram Jesus e com ele viveram (nomeadamente os primeiros apóstolos) e de outros que só ouviram falar dele mas que se tornaram também seus apóstolos (como Paulo de Tarso): Jesus é o Messias anunciado e esperado no seio do Judaísmo; Jesus ressuscitou da morte e está vivo; e há-de de voltar para instaurar o Reino de Deus, 6º tema central da pregação de Jesus. Como diz Jean Baubérot, «O título de “Cristo” corresponde à tradução grega do hebraico Messias. Significa “ungido” ou “enviado de Deus” e constitui a trave mestra do termo “cristianismo”. A mensagem central do cristianismo consiste, por consequência em dizer que Jesus é o Cristo, o enviado de Deus, o que revela a vontade e a obra da salvação de Deus. A relação única entre Deus e Cristo exprime-se nos termos Pai e Filho.»). Esta convicção muda a vida daqueles que a têm e que passam a viver de modo diferente, ao jeito de Jesus, procurando seguir os ensinamentos e a vida de Jesus, organizando-se em comunidade de crentes. 2.2. As fontes históricas disponíveis sobre Jesus e as primeiras comunidades cristãs são assim de três tipos: a) textos romanos ou latinos; b) textos judaicos; e c) textos cristãos propriamente ditos. No conjunto destes últimos (c), é importante identificar e distinguir na Bíblia os seguintes: os Evangelhos (ou “Boa Nova” de Jesus), que relatam a sua vida, a sua pregação, o processo da sua condenação à cruz, a sua morte e os testemunhos da sua ressurreição; os Actos dos Apóstolos, isto é, escritos que dão conta da vida dos apóstolos e da comunidade de Jerusalém, assim como o anúncio realizado por esses mesmos apóstolos não apenas na Palestina e territórios limítrofes, mas através da Ásia Menor e até aos confins do Império Romano, chegando à cidade de Roma; e as Cartas ou Epístolas, em particular as de S. Paulo, que dão conta dos contactos mantidos entre os primeiros apóstolos e as novas comunidades cristãs fundadas, a partir da sua missão itinerante. 2.2.1. Os textos cristãos que procuram dar conta da vida de Jesus só foram fixados algumas décadas após a sua morte. A oralidade antecedeu a escrita. São textos que procuram narrar a sua vida como expressão ou demonstração da sua própria convicção ou fé em Jesus, mais do que fazer uma biografia minuciosa ao jeito do género histórico actual. Não significa isso, no entanto, que estejam desprovidas de valor historiográfico. Ao invés, constituem uma das principais fontes de informação acerca de Jesus e têm sido objecto de múltiplas e sucessivas análises críticas. Como afirma E.P. Sanders, um autor muito rigoroso no que à história se refere, «A pesquisa sobre o Jesus da História já tem mais de 200 anos.» (in Texto de Apoio n.º 9, p. 20). E acrescenta: «Não existem dúvidas substanciais sobre o curso geral da vida de Jesus: 7 quando e onde viveu, quando e onde morreu, aproximadamente, e o que fez durante a sua actividade pública.» (Ibidem, p. 25). INÊS CRUZ TEIXEIRA 27 2.2.2. A Bíblia cristã veio a integrar assim os textos ou Escrituras judaicas da Bíblia, que passou a designar por “Antigo Testamento”, a que acrescentou os textos cristãos propriamente ditos que designou por “Novo Testamento” - onde se contam os Evangelhos, relativos à vida, morte e ressurreição de Jesus; assim como os Actos dos Apóstolos e as Cartas ou Epístolas relativas à vida das primeiras comunidades cristãs, também chamadas de “comunidades primitivas”, porque primeiras; e ainda o Apocalipse. Ou seja, os cristãos conservam as Escrituras judaicas mas atribuem- lhe um significado que as autoridades religiosas judaicas não podem aceitar, pois não reconhecem Jesus como o Messias. 2.2.3. Em ambas as tradições religiosas, judaica e cristã, se verificaram debates acerca da natureza e autoridade dos vários textos que integram a Bíblia, que historicamente foram sendo escritos ou traduzidos em diversas línguas, e que as diversas comunidades religiosas foram guardando até constituírem um cânone no seio de cada uma das tradições religiosas. Assim, e no caso da história do cristianismo, relativamente aos primeiros séculos da sua existência, encontramos textos que virão a ser considerados “canónicos”, isto é, que int

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