Direito Internacional Público - Professor Francisco Ferreira de Almeida - 3rd Edition PDF
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2024
Francisco António de Macedo Lucas Ferreira de Almeida
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This document provides an introduction to public international law, discussing its concepts, subjects, and sources. It examines important historical context and the evolving nature of the international community. The document is part of a course on the topic.
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1 FRANCISCO ANTÓNIO DE MACEDO LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO COIMBRA – 2024/25 2 INTRODUÇÃO: Sumário: 1 – Noção de direito intern...
1 FRANCISCO ANTÓNIO DE MACEDO LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO COIMBRA – 2024/25 2 INTRODUÇÃO: Sumário: 1 – Noção de direito internacional. 2 – Direito internacional, direito interestadual ou direito das gentes? 3 – Direito internacional geral e direito internacional particular. 4 – Direito internacional público e direito internacional privado. 5 – Direito internacional e moral internacional. 6 – Direito internacional e cortesia internacional. 7 – As funções do direito internacional. 8 – As expressões sociedade e comunidade internacional. 9 – A normatividade internacional: problemas estruturais. Bibliografia principal: Afonso Queiró, Direito Internacional Público, Coimbra, 1960; Antonio Cassese, Le droit international dans un monde divise, Berger-Levrault, Paris, 1986; Azevedo Soares, Lições de Direito Internacional Público, 4ª edição, Coimbra Editora, 1988; Bruno Simma, From bilateralism to Community Interest in International Law, RCADI, 1994 – VI; Cançado Trindade, A humanização do Direito Internacional, 2ª edição, Del Rey, 2015; Christian Tomuschat, Obligations arising for States without or against their will, RCADI, 1993 – IV; Gerd Seidel, Die Völkerrechtsordnung na der Schwelle zum 21. Jahrhundert, Archiv des Völkerrechts, 38, 2000; Francisco Ferreira de Almeida, Mutações sistémicas e normativas no direito internacional em face de novos desafios, RDCPB, Tomo LX, Número 326, Maio-Agosto, 2011; Francisco Resek, Direito Internacional Público: Curso Elementar, 17 ed., São Paulo, Saraiva, 2018; Gonçalves Pereira/Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3ª edição, Almedina, 1993; Hermman Mosler, The International Society as a Legal Community, RCADI, 1974; Ian Brownlie, Princípios de Direito Internacional Público, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997; J. L. Brierly, Direito Internacional, 4ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1965; Jónatas Machado, Direito Internacional, 5ª edição, Gestlegal, 2020; Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Público – Uma Perspectiva de Língua Portuguesa, 5ª edição, Almedina, 2020; Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6ª edição, Principia, 2016; Quoc Dinh, Daillier/Pellet, Droit International Public, LGDJ, Paris, 1994; Malcom Shaw, International Law, Eighth Edition, Cambridge University Press, 2017; Maria Luísa Duarte, Direito Internacional Público e Ordem Jurídica Global do Século XXI, AAFDL, 2019; Prpsper Weil, Le droit international en quête de son identité, RCADI, 1992, VI; Wladimir Brito, Direito Internacional Público, 2ª edição, Coimbra Editora, 2014; Verdross/Simma, Universelles Völkerrecht – Theorie und Praxis, Duncker & Humbolt, 2010. 1 – NOÇÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Ao iniciar-se um curso de direito internacional, caberá, antes de mais, perguntar qual seja o seu objecto, isto é, a matéria que nele vai ser tratada. O que se volve, portanto, em reconhecer que, logo à partida, necessitaremos de uma noção da nossa disciplina que nos habilite a percorrer a via traçada. Ora, o direito internacional é um ramo da ciência jurídica. Tal significa analisar- se num corpo de normas jurídicas reguladoras de certo tipo de relações que se 3 estabelecem numa determinada sociedade ou agrupamento. Ele é, simultaneamente, por outras palavras, uma ordem normativa e um factor de organização social (C. ROUSSEAU), não diferindo, nesse particular, de outros ramos do direito. Mas qual, então, a sociedade a que se aplicam as normas de direito internacional? Trata-se justamente da denominada sociedade internacional, hoje constituída por um leque relativamente alargado de sujeitos de direito, a saber, os Estados, em primeira linha, mas também, em medida crescente, as organizações internacionais, os povos não autónomos, as minorias, o indivíduo e quiçá até, conquanto dentro de apertados limites, as próprias organizações não governamentais e as sociedades transnacionais. Poderemos assim, na esteira de QUOC DINH/DAILLIER/PELLET e de P. GUGGENHEIM, definir, em termos formais, o direito internacional como aquele que se aplica à sociedade internacional. Afirmá-lo, todavia, pressupõe a existência dessa sociedade internacional ao lado da sociedade nacional ou interna, com o que, do mesmo passo, e à luz de uma concepção dualista mais radical (cfr., infra, cap. III), entretanto caída em desuso, se achariam delimitados os campos de aplicação respectivos do direito internacional e do direito interno: o primeiro, como se referiu, aplicar-se-ia à sociedade internacional; o segundo, às várias sociedades nacionais ou internas. A noção de direito internacional supra-expendida, traduzindo a ligação sociológica e, por isso, necessária, entre direito e sociedade, serve igualmente para, uma vez mais, atestar a justeza do velho adágio ubi societas ibi jus; quer dizer, onde existir sociedade, existirá necessariamente direito para a disciplinar, sendo, em decorrência, todo o direito um produto social (QUOC DIHN/DAILLIER/PELLET). A verdade, porém, é que importa completar (e, de algum modo, corrigir) a definição acima proposta com umas quantas precisões suplementares. Socorramo-nos, para o efeito, dos três principais critérios – cada qual não isento de reparos, adiante-se – em que, desde há muito, se tem inspirado a doutrina: o critério dos sujeitos, o critério das matérias reguladas e o critério das fontes (BACELAR GOUVEIA). De acordo com o primeiro, e mais antigo, o direito internacional começou por ser definido como conjunto de normas jurídicas reguladoras das relações entre Estados 4 soberanos (FAUCHILLE); posição esta que, em 1927, no âmbito do caso Lotus, o Tribunal Permanente de Justiça Internacional corroborou. Mais tarde, consumado que estava um alargamento da personalidade jurídica internacional a outras entidades, foi aquele ordenamento caracterizado como direito regulador das relações entre os sujeitos de direito internacional (C. ROUSSEAU). Bem é de ver, contudo – facto, de resto, assinalado por diversos autores –, que esta definição enferma de um vício de raciocínio: a qualidade de sujeito de direito internacional há-de, por força, resultar das próprias normas de direito internacional, quer dizer, é através destas que determinadas entidades ficam investidas na titularidade de um conjunto de direitos e obrigações. Daí a objecção da circularidade ou da petição de princípio que imediatamente suscita. Igualmente insatisfatório – e hoje de forma evidente – é o critério das matérias reguladas, assente, como sugere a respectiva designação, no pressuposto da possibilidade de destrinça entre matérias da competência interna dos Estados e matérias atinentes à comunidade internacional. Têm, na verdade, surtido infrutíferas as tentativas (doutrinais e jurisprudenciais) para delimitar, com base em parâmetros de natureza material, a linha de fronteira entre ordem jurídica interna e ordem jurídica internacional. Cada vez mais, «a norma de direito internacional pode, em princípio, regular qualquer matéria e ser dirigida a qualquer entidade…» (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS), com o que se vai paulatinamente comprimindo o chamado domínio reservado dos Estados (cfr. art. 2.º, nº7 da CNU), essa espécie de reduto inexpugnável da soberania. Por fim, de harmonia com o terceiro critério (o das fontes), sobraçado pelo normativismo de KELSEN, o direito internacional retiraria a sua identidade dos processos de produção das suas normas. Mais do que aos sujeitos das relações internacionais, mais do que às matérias susceptíveis de regulamentação internacional, faz-se apelo às fontes normativas do direito internacional. Estamos, desta feita, por conseguinte, em presença de um critério simultaneamente formal e funcional, que, como observa, v. g., AZEVEDO SOARES, negligencia a dimensão axiológica; dimensão imprescindível para que qualquer ramo de direito se possa reclamar de validade num determinado contexto espaçio-temporal. Conclui-se, deste modo, que nenhuma das directrizes apontadas se revela, 5 isoladamente, capaz de explicar de forma completa o direito internacional. O que, no entanto, não há-de significar que se não lhes reconheça préstimo suficiente para, mediante um exercício conciliatório, estarem na base de uma noção compreensiva deste domínio do jurídico. Eis, nessa linha de pensamento, a definição que propomos: o direito internacional é o conjunto de normas jurídicas, criadas por processos de formação próprios da comunidade internacional, que, ratione materiae, se aplicam, prioritariamente, nessa comunidade aos respectivos sujeitos de direito. Como se vê, estão subjacentes a esta noção os três critérios mencionados acima (o das fontes, o das matérias reguladas e o dos sujeitos, por esta ordem). O resultado final da correspondente conjugação, nos termos sugeridos, supera, em nosso entender, as virtualidades que adviriam de uma sua simples justaposição. Com a vantagem de, ao arrepio de uma concepção dualista mais extremada, se evitar uma compartimentação artificial, e actualmente inaceitável, entre as matérias que interessam apenas à comunidade internacional e aquelas que, ao invés, são exclusivas do direito interno dos Estados. Teremos ensejo, mais adiante, de dar conta de algumas das especificidades deste ramo do direito, que, designadamente, se prendem com o seu sistema de fontes, a sua normatividade, os seus sujeitos, as formas de responsabilidade que admite e os mecanismos sancionatórios que comporta (cfr., a este propósito, JORGE MIRANDA). 2 – DIREITO INTERNACIONAL, DIREITO INTERESTADUAL OU DIREITO DAS GENTES? Para aludir ao direito da sociedade internacional, a expressão habitualmente utilizada é, todos disso estamos conscientes, «direito internacional», isto é, em sentido etimológico, direito regulador das relações entre nações ou entre Estados – por consequência, direito interestadual. Não se ignora, por certo, que os termos Estado e Nação recobrem realidades não obrigatoriamente coincidentes. A verdade, porém, é que a expressão «direito internacional» remonta a um período histórico não muito distante do séc. XIX, tendo sido, como se sabe, por essa altura que, com base no princípio das nacionalidades, se procurou firmar o entendimento, mais tarde rejeitado, segundo o qual a cada Estado deveria corresponder uma e uma só nação; ou se se preferir, que toda a nação teria o direito de se organizar politicamente em Estado. 6 Actualmente, no entanto – o que, de resto, resulta já do que dissemos no número anterior –, a sociedade internacional não mais é constituída apenas por Estados. As transformações nela ocorridas, maxime a partir da segunda metade do séc. XX, tendo determinado, entre muitas coisas de relevo, o reconhecimento de personalidade jurídica internacional a outras entidades, para além do Estado soberano – sujeito primário e originário –, tornaram-na indiscutivelmente mais vasta e diversificada. Parece, pois, legítimo questionar a adequação ao momento presente do termo «direito internacional», o qual, para alguns, se apresenta como manifestamente redutor da realidade hodierna; uma realidade diversa daquela para que fora pensado. De facto, continuando a ser a sociedade internacional, há que reconhecê-lo, uma sociedade centrada na figura estadual, vai sendo também, e cada vez de forma mais nítida, uma sociedade de instituições dotadas de verdadeira autonomia e de efectivos poderes de decisão, de povos com titularidade do direito à autodeterminação que, as mais das vezes, visam ascender à plena independência ou a um certo grau de autonomia política e até de indivíduos, que, em certos domínios, passaram a ser destinatários directos de normas jurídicas internacionais. Assim é que, em virtude de uma maior abrangência, a expressão «direito das gentes» – tradução literal do jus gentium Romano – obtém o favor de certa doutrina. Ela permitiria realmente englobar todos os sujeitos de direito internacional, evitando inculcar o entendimento erróneo de que o direito internacional se aplica tão-somente a Estados. Que dizer acerca deste ponto? Trata-se, como logo se intui, de um problema menor, de escassa ou nenhuma relevância prática. Sempre adiantaremos, contudo, que os termos «direito internacional» e «direito das gentes» são perfeitamente equivalentes, por isso que intermutáveis, tendo, não obstante, o primeiro uma longa tradição atrás de si, razão por que continuaremos preferencialmente a utilizá-lo daqui por diante. 3 – DIREITO INTERNACIONAL GERAL E DIREITO INTERNACIONAL PARTICULAR A sociedade para a qual o direito internacional visa assegurar uma regulação jurídico-normativa não é, consabidamente, homogénea (QUOC 7 DINH/DAILLIER/PELLET). Pelo contrário, sendo formada por Estados política, económica, social e culturalmente distintos, exibe uma marcada heterogeneidade. Compreende-se, destarte, que também o direito internacional haja de reflectir essa diversidade, sendo ele próprio feito da articulação de regras gerais com regras particulares e especiais. Para comprovar o que acaba de ser dito, e sem que seja necessário recuar muito no tempo, basta pensar-se em que a sociedade internacional estava há não muitos anos – mais propriamente no período da «Guerra Fria» - claramente fraccionada em três blocos distintos de Estados: o bloco dos países ocidentais, tributários de uma filosofia política liberal e democrática, o bloco dos países socialistas, que, de uma forma geral, gravitavam em torno da esfera de influência da ex-URSS, e o bloco dos chamados países do terceiro mundo e em vias de desenvolvimento. Com a derrocada dos sistemas políticos dos Estados do leste europeu, esbateram-se, no estertor do séc. XX, as clivagens até então existentes. Mas, reconhecida a imponderação do pré- anunciado «fim da história», descortinam-se, no dealbar do terceiro milénio, outras e não menos preocupantes assimetrias. Atente-se, com efeito, v. g., nos graus diversos de desenvolvimento entre os países do hemisfério norte e os países do hemisfério sul, nas gritantes diferenças culturais e religiosas entre os Estados ocidentais e os do mundo islâmico – aqui com a preocupante nota do fundamentalismo –, na singularidade idiossincrática dos povos asiáticos, nos nacionalismos exacerbados que se manifestam em Estados multinacionais, etc.. A despeito destas diferenças, muito é de notar a existência de uma verdadeira comunidade jurídica (H. MOSLER), assente na circunstância de todos os sujeitos de direito internacional, em particular os Estados, estarem submetidos ao mesmo ordenamento jurídico, ao mesmo direito. Deste modo, fala-se em direito internacional geral para aludir ao direito (internacional) que se aplica a toda a comunidade internacional – concepção universal do direito internacional (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET). Integram esta noção as normas de costume geral, bem como as convenções de alcance universal, quer dizer, tratados amplamente participados que tenham sido objecto de um elevado número de ratificações. Diga-se, aliás, que têm sido as próprias decisões de tribunais internacionais a fazer referência e a louvar-se no chamado direito internacional geral ou comum, o que demonstra ser não apenas a doutrina a fazer-se reiteradamente eco de uma ideia de eficácia global (erga omnes) de certas normas e princípios de direito internacional. 8 Numa palavra, o direito internacional geral consubstancia-se no conjunto – porventura restrito – das normas de maior «amplitude subjectiva» (BACELAR GOUVEIA) ou «não especificamente vinculativas de alguns» (JORGE MIRANDA), que são aceites pela comunidade internacional de Estados no seu conjunto. Recorde-se, a este propósito, o preceituado no art. 53.º da Convenção de Viena Sobre o direito dos Tratados, de 23 de Maio de 1969, que, cominando a sanção da nulidade para os tratados que infrinjam uma norma imperativa de direito internacional – ou de jus cogens – se refere precisamente a essas normas como sendo aquelas aceites e reconhecidas como tal pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto. Não menos exacto, porém, é haver igualmente na comunidade internacional normas dotadas de uma eficácia, a um tempo subjectiva e objectiva, bem mais circunscrita. A que se deve tal fenómeno? Essencialmente, à coexistência de uma sociedade internacional universal com várias sociedades internacionais particulares (regionais). Estas últimas despontam com base em afinidades, de índole diversa, que ligam os Estados de uma mesma região. Por vezes, materializam-se institucionalmente em organizações internacionais, como, v. g., sucede com a União Europeia, com o Mercosul, com a União Africana, com a Liga dos Estados Árabes, etc.. Pois bem, é para o direito aplicável a tais sociedades particulares (constituídas por um mínimo de dois Estados) que se reserva a designação de direito internacional particular. E se do direito internacional geral fazem parte, como vimos, as normas de costume geral e as convenções de carácter universal, aquele, ao invés, é, nas palavras de AZEVEDO SOARES, composto pelas normas de costume regional e local e, bem assim, pelas constantes da maior parte dos tratados internacionais (justamente os não universais). Refira-se, para concluir este ponto, que, como bem salientam diversos autores, nem sempre se revela simples a compatibilização entre normas gerais e particulares, sendo que a importância destas varia na razão inversa e a daquelas na razão directa da homogeneidade e do grau de integração da sociedade internacional: quanto maior essa integração, mais tende a sobrepujar-se o direito internacional geral ou comum. Deverá assinalar-se, em síntese, que é tríplice o contributo regional ou particular para o ordenamento jurídico internacional, a saber: modificação do conteúdo de certas 9 normas – surgidas previamente num determinado contexto –, impedindo que se convertam em regramentos de alcance geral (caso, v. g., do princípio da liberdade de navegação fluvial, relativamente ao qual os Estados africanos foram por demais reticenciosos); adaptação evolutiva do direito internacional geral tradicional (v. g., surgimento, a certa altura de uma «nova ordem económica internacional», sob poderoso impulso dos Estados mais desfavorecidos); e catalisação do aparecimento de novos institutos de direito internacional geral (v. g., o princípio uti possidetis juris, que, inicialmente confinado ao âmbito regional americano, se converteu entretanto num critério de delimitação territorial integrante do direito internacional geral) (cfr., a este propósito, GONZÁLES CAMPOS/SÁNCHEZ RODRÍGUEZ/SÁENZ DE SANTA MARÍA). 4 – DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO Com o direito internacional (público) não deve confundir-se o direito internacional privado. De facto, em bom rigor, este último é direito interno. Porquê então o qualificativo internacional – diríamos, algo enganador? É que, como, v. g., referem BAPTISTA MACHADO e I. MAGALHÃES COLLAÇO, em causa estão aquelas normas que em cada ordenamento jurídico regulam questões privadas internacionais. Por outras palavras, existem actos do comércio jurídico que apresentam conexões com várias ordens jurídicas («relações “plurilocalizadas”»), importando então que as chamadas regras de conflitos de cada Estado remetam para a lei (interna) declarada competente para os resolver. Ex.: um comerciante português, estabelecido no Porto, conclui em Inglaterra um contrato de venda de vinho do Porto com um comerciante inglês, estabelecido em Londres (exemplo de BAPTISTA MACHADO); A, português, pretende casar-se em Londres com B, cidadã francesa. Qual a lei aplicável a estas situações? Pode, assim, dizer-se que o direito internacional privado é um «direito interno de remissão» (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS), contido, essencialmente, entre nós, no Código Civil (arts. 15.º e ss.). O seu carácter “inter-nacional” advém, portanto, apenas e tão-só, de não se quedar confinado às fronteiras dos respectivos Estados de nacionalidade (ou de residência) o relacionamento jurídico entre as pessoas, nem, em virtude disso, a circulação de bens, serviços e capitais. É certo que abundam convenções internacionais de uniformização, versando o 10 direito de conflitos. O seu propósito é o de evitar as discrepâncias do direito internacional privado dos diferentes países (JORGE MIRANDA), mas a verdade é que apenas formalmente (quanto ao processo de produção jurídica) tais instrumentos normativos são de direito internacional público. Do ponto de vista do seu objecto, que não da sua roupagem jurídico-formal, continua a estar-se em presença de normas de direito internacional privado. O direito internacional público, por seu turno, conforme vimos já, constitui-se através de processos técnicos específicos (costume, convenção internacional, actos jurídicos unilaterais, etc.) e regula as relações que, na vida internacional, e sob o predomínio de determinados interesses públicos, se estabelecem entre os respectivos sujeitos. Arredia da realidade dos factos nos parece, deste modo, a posição outrora defendida por JESSUP, para quem caberia acolher a designação genérica «transnational law», apta, segundo pensava, a significar toda a lei disciplinadora de actos que extravasam das fronteiras nacionais. Por motivos diversos, permitimo-nos não acompanhar também MARQUES GUEDES quando parece propugnar uma distinção entre o direito internacional público e o direito internacional privado, fundada no facto de o primeiro regular relações entre sujeitos de direito público e o segundo relações entre sujeitos de direito privado. Na verdade, como advertem GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, nem o direito internacional público regula hoje, exclusivamente, relações entre sujeitos de direito público, nem o direito internacional privado disciplina, predominantemente, relações jurídicas substantivas. 5 – DIREITO INTERNACIONAL E MORAL INTERNACIONAL A distinção entre o direito internacional e a moral internacional não levanta à partida especiais dificuldades. Se, por um lado, os ditames da moral são extra-jurídicos, só episodicamente inspirando as normas de direito internacional ou compelindo os Estados a adoptá-las, por outro, nas zonas em que ambos os domínios se intersectam (casos, v. g. do direito internacional humanitário, do direito internacional dos direitos humanos, do direito internacional penal, etc.), ainda assim a violação dos respectivos preceitos acarreta, necessariamente, consequências diferenciadas: a infracção a uma norma de moral internacional (v. g., a recusa de auxílio a um Estado assolado por uma catástrofe ambiental grave ou por uma qualquer situação de urgência humanitária) gera um mero juízo de censura da parte da comunidade internacional, ao passo que a 11 violação de uma obrigação (jurídica) internacional (v. g., o incumprimento de um tratado) faz desencadear determinados mecanismos de coerção (responsabilidade internacional do Estado autor do acto ilícito), traduzidos, entre outros efeitos admissíveis, num dever de reparação dos danos causados ao Estado vítima. Conclui-se, pois, que a par da moral individual existe uma moral social, disciplinando esta as relações dos sujeitos dos vários agrupamentos ou instituições sociais, entre os quais a comunidade internacional, sendo certo que, como sublinha AFONSO QUEIRÓ, alguns dos seus preceitos obrigam, inclusive, os Estados a adoptar comportamentos conformes ao direito internacional, contribuindo para assegurar a eficácia deste. A respectiva violação não legitima, porém, qualquer medida de resposta ou represália por parte do Estado que sofra os efeitos de tal incumprimento. 6 – DIREITO INTERNACIONAL E CORTESIA INTERNACIONAL A cortesia internacional (comitas gentium) designa um conjunto de regras protocolares, de bom trato e urbanidade, vagamente inspiradas em postulados de carácter moral, que os Estados observam nas suas relações recíprocas e que têm nos cerimoniais diplomáticos o seu âmbito privilegiado de aplicação. Tradicionalmente, é com base num critério subjectivo que se procura distinguir a comitas gentium do direito internacional: com efeito, ao serem adoptadas sem qualquer sentimento de obrigatoriedade jurídica, tais regras de cortesia não lograriam tanger o domínio do jurídico, havendo, por isso, que qualificá-las como meras práticas ou usos sociais. Mas também à luz de uma directriz de pendor objectivo (a menor dignidade do correspondente valor social), não deixariam elas de apartar-se das normas jurídicas internacionais (CORREIA BAPTISTA). A verdade, contudo, é que não faltam autores, designadamente na doutrina espanhola (casos, v.g., de AGUILAR NAVARRO e TRUYOL Y SERRA), a contestar a natureza meramente protocolar das regras em causa. Dever-se-ia, efectivamente, reconhecer-lhes uma normatividade específica, muito próxima da normatividade jurídica. Pela nossa parte, aderimos à distinção clássica, acima exposta. O que, todavia, nos não impede, na esteira de CORREIA BAPTISTA, de relevar o carácter muito ténue da fronteira que, em determinadas circunstâncias, demarca as diferentes normatividades (as extra-jurídicas e a jurídica). Assim como, por outra parte (e 12 exactamente em virtude disso), não contestamos que certas regras de cortesia internacional possam, a certa altura, converter-se em normas (jurídicas) de costume internacional: pense-se, por ex., entre outras, na regra que determina a prestação de honras aos chefes das missões diplomáticas aquando da apresentação das credenciais respectivas às autoridades do Estado acreditador, à qual dificilmente hoje se poderá negar uma natureza consuetudinária. 7 – AS FUNÇÕES DO DIREITO INTERNACIONAL Deixámos já dito que o direito internacional, sendo uma ordem normativa, e pelo facto de o ser, constitui um factor de organização social. Cumpre agora, de uma forma mais pormenorizada, averiguar em que se concretiza afinal essa função de organização que ao direito internacional está cometida desde as suas origens. Para o sabermos, no entanto, importa que nos detenhamos, pouco que seja, nas particulares circunstâncias históricas em que surgiu o direito internacional na sua forma moderna. É, sem dúvida, na época pré-estadual – na Antiguidade Clássica e na Idade Média – que se encontram as verdadeiras origens do direito internacional. As primeiras normas reguladoras de relações intercomunitárias correspondem, com efeito, a uma necessidade desde sempre sentida a partir do momento em que os homens se começaram a organizar em sociedades políticas. Simplesmente, enquanto ramo autónomo da ciência jurídica, o direito internacional é contemporâneo do Estado moderno. É por isso, como oportunamente refere J. L. BRIERLY, que só atentando no específico contexto em que foram moldados os Estados europeus resultará possível compreender, com exactidão, as funções a cujo cumprimento o direito internacional está adstrito. De entre os vários obstáculos que, durante a Idade Média, entravaram a concentração de poderes que é própria do Estado moderno, dois merecem destaque especial. O primeiro foi o feudalismo, que, em traços gerais, se pode caracterizar como um sistema de organização social baseado na propriedade da terra e em laços de permuta, serviço e lealdade entre vassalos e seus senhores. A patente inexistência de autoridades centrais fortes e a correlativa fragmentação dos centros de poder, tornam abusivo, nesta altura, falar-se de Estados soberanos, tal como hoje os conhecemos. Paradoxalmente, no entanto, a concepção feudal da sociedade legou aos 13 futuros Estados nacionais unificados um património de ideias que moldaram uma nova concepção do poder (J. L. BRIERLY). Assim, o dever de lealdade do vassalo perante o senhor convolou-se no dever de fidelidade do súbdito perante o rei; a assimilação, por outro lado, de direitos de natureza política a verdadeiros direitos de propriedade, favoreceu o entendimento do governo como poder concentrado ou centralizado (ibidem). O segundo factor que condicionou o nascimento dos Estados modernos reconduz-se à influência retardadora que a Igreja exerceu na consolidação da autoridade civil. Com o movimento da Reforma, todavia, os Estados forcejaram por emancipar-se (libertar-se) da tutela do poder espiritual e criaram, em definitivo, condições para a instauração de uma nova ordem política na Europa (o sistema europeu de Estados). Os tratados de paz de Westefália – o de Osnabruck e o de Münster – que, em 1648, puseram termo à sangrenta guerra religiosa dos Trinta Anos, marcam, no continente europeu, o início de uma nova era, assente na emergência de entidades soberanas e independentes, colocadas num plano, ao menos jurídico-formal, de perfeita igualdade. Não é certamente por acaso que os tratados de Westefália – concluídos entre os vários implicados na Guerra dos Trinta Anos (a França, a Espanha, as Províncias Unidas, o Sacro Império Romano-Germânico, a Suécia e a Dinamarca), consubstanciando um jus publicum europeum (WLADIMIR BRITO), são não raras vezes apelidados de Carta Constitucional da Europa. De facto, por meio deles, os senhores e príncipes europeus reclamaram liberdade para gerir os seus próprios assuntos, recusando submeter-se a uma autoridade superior. Com a paz de Westefália soou o toque de finados pela Res Publica Christiana; de um lance, parecia ter-se consumado a derrota do Império e a do Papado, estabelecendo-se, num contexto de liberdade religiosa, a igualdade entre católicos, luteranos e calvinistas. Acresce que dois dos mais importantes princípios vertebradores do ordenamento jurídico internacional aí obtiveram, desde logo, acolhimento: o princípio da soberania e o da igualdade dos Estados. Nos anos subsequentes à celebração dos tratados de Westefália, a França a Suécia e a Dinamarca afirmam-se progressivamente como potências emergentes do continente europeu; a Suíça, por seu turno, converte-se em Estado neutral, ao passo que a Alemanha se divide em pequenos Estados e o Império hispânico dá mostras de uma inexorável decadência. Assim se manterá a sociedade internacional (ainda exclusivamente europeia) até à Revolução Francesa e ao Império Napoleónico. Com a derrota de Napoleão, em 1815, o Congresso de Viena deu origem ao chamado Concerto Europeu, através de conferências diplomáticas – um arremedo de sistema de segurança colectiva entre as 14 grandes potências europeias da época – a Áustria, a França, a Grã-Bretanha, a Prússia e a Rússia (GUTIÉRREZ ESPADA/CERVELL HORTAL). Foi, deste modo, num contexto de subalternização do poder da Igreja, propiciado pela Reforma, e de uma renovada ambiência cultural e intelectual, saída do Renascimento, que nasceram os Estados modernos. O novo statu quo, porém, comportava riscos evidentes, designadamente o da institucionalização de um clima de anarquia e de violência entre aquelas comunidades soberanas, que, de si próprias, tinham a ideia de communitates perfectae e não estavam, na sua actuação, limitadas por qualquer autoridade política superior. A doutrina da soberania, por seu turno, formulada em 1576 por JEAN BODIN na sua obra de teoria política De Republica, e os desenvolvimentos ulteriores que lhe foram dados, sobretudo por THOMAS HOBBES no Leviathan, concorreram igualmente para adensar as razões de apreensão quanto ao futuro previsível das relações internacionais. Ora, perante tal circunstancialismo tornou-se imperioso fundar aquelas relações num «ideal unificador» (J. L. BRIERLY). Que ideal seria esse? Seria, já se vê, o da submissão dos vários Estados seculares e territoriais a um conjunto de normas reguladoras das suas relações recíprocas; normas essas que, portanto, pudessem obviar ao sobredito clima de caos e violência que, com toda a probabilidade, se instalaria caso as novas entidades soberanas e independentes se não achassem ligadas pela supremacia do direito. Estas são, pois, como sublinha CARRILLO SALCEDO, acompanhado, neste ponto, pela generalidade dos autores, as raízes do moderno direito internacional, as quais, em simultâneo, nos revelam as duas funções que, desde o início da sua existência, ele é chamado a desempenhar: por um lado, compete-lhe permitir a coexistência entre Estados heterogéneos, mas juridicamente iguais, num clima de paz, por outro, cabe- lhe satisfazer necessidades e interesses comuns que, entretanto, começaram a surgir entre os membros da comunidade internacional. Coexistência e cooperação: eis, em resumo, as duas funções principais que dialecticamente estão cometidas ao direito internacional desde a paz de Westfália, no séc. XVII. 15 Diga-se, aliás, que o próprio Tribunal Internacional de Justiça tem confortado, em algumas das suas decisões, este entendimento das coisas, ao considerar o direito internacional como um garante da independência dos Estados e um instrumento para a cooperação entre eles. Vejam-se, a título meramente exemplificativo, os acórdãos proferidos nos casos das Actividades militares e paramilitares na Nicarágua e contra esta (ICJ Reports, 1986) e do Pessoal diplomático e consular dos Estados Unidos em Teerão (ICJ Reports, 1980). O dualismo coexistência/cooperação espelha, de resto, as duas pulsões conflituantes com que se confrontam os Estados nas relações internacionais: a da independência e a da Interdependência. À primeira, melhor se afeiçoa a função da coexistência; à segunda, a da cooperação. No que, especificamente, se refere a esta, sublinhe-se que actualmente tendem a prevalecer os mecanismos institucionalizados e permanentes de cooperação, sob os auspícios de organizações internacionais universais e regionais – facto que, de certo modo, representa o epílogo de um paradigma clássico, assente num sistema de Estados auto-suficientes e numa concepção absoluta de soberania. 8 – OS TERMOS SOCIEDADE E COMUNIDADE INTERNACIONAL Chegados a este ponto, parece-nos conveniente procurar esclarecer uma questão que contende afinal com tudo aquilo que até aqui fomos dizendo. Abstraindo agora das considerações expendidas no ponto 1, usa, na verdade, definir-se o direito internacional como aquele que se aplica à sociedade internacional. Certo é, todavia, que ele é também muitas vezes apresentado como sendo o direito da comunidade internacional. Ora, a despeito de, nos números anteriores, termos vindo a utilizar indistintamente os dois termos, importa tornar claro que, em bom rigor, eles não são sinónimos. Fica efectivamente a dever-se a uma conhecida teoria sociológica alemã, da autoria de F. TÖNNIES, a distinção entre Gemeinschaft (comunidade) e Gesellschaft (sociedade). A tal propósito, escreve, entre nós, MARCELLO CAETANO: «…a primeira será, pois, um produto espontâneo da vida social que se estrutura naturalmente, enquanto a segunda resulta da vontade dos indivíduos manifestada em obediência a um certo propósito que os leva a juntar-se e a colaborar entre si. Desta maneira encontramo-nos nas comunidades, mas entramos nas associações. Na comunidade os membros estão unidos apesar de tudo quanto os separa; na associação permanecem separados apesar de tudo quanto fazem para se unir». 16 Outro grande sociólogo alemão, MAX WEBER, não deixando de fundar a aludida distinção entre comunidade e sociedade em critérios idênticos aos acima explicitados, adverte, contudo, para o facto de corresponderem a tipos ideais essas duas formas de relação social, raramente encontrando tradução fiel na realidade. Pode assim dizer-se que, por via de regra, os elementos societários coexistem com os laços comunitários, havendo que tomar em linha de conta os caracteres predominantes, em ordem a qualificar, com um mínimo de rigor, um dado grupo como comunidade ou como sociedade. Ficou a dever-se a G. SCHWARZENBERGER a mais lograda tentativa de transposição desta teoria para o âmbito do direito internacional, considerando este autor que a soberania dos Estados potencia o individualismo e, nessa medida, constitui um factor de conflito e de desagregação, sem dúvida, mais poderoso do que os também indiscutíveis elementos de união. Resulta do exposto que em qualquer agrupamento se encontram entre os seus membros interesses comuns e interesses divergentes ou, dito de outra forma, factores de agregação ou aproximação e factores de conflito, ruptura ou afastamento. Pois bem, de acordo com a teoria a que nos temos estado a reportar, na comunidade os primeiros sobrelevam os segundos, passando-se exactamente o contrário na sociedade. Assim sendo, será agora mister perguntar quais sejam as características prevalecentes na sociedade (ou comunidade) internacional. Que dizer então acerca deste problema? À primeira vista, o conceito de comunidade internacional constituirá uma pura utopia. Com efeito, são profundos os desequilíbrios e os factores de divisão entre os Estados no mundo actual. As diferenças étnicas, culturais e civilizacionais, os conflitos ideológicos e políticos, o enorme fosso que separa os países ricos dos países pobres, etc., tudo milita em favor de uma conclusão que se afigura indiscutível: são por demais evidentes os elementos de tensão na sociedade internacional, de tal sorte que parece não haver aí lugar para a coesão, a solidariedade e a afectividade que os laços comunitários necessariamente pressupõem. Talvez por isso o direito internacional regule essencialmente, ainda hoje, «relações horizontais de simples coordenação» (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS). Não obstante, é também inquestionável a existência nas relações internacionais de um importante elemento subjectivo que radica na vontade de os Estados viverem em comum, apesar de tudo quanto os afasta. Sentimento esse que o consenso em torno de uns quantos valores e princípios fundamentais (de jus cogens), 17 correspondentes a outras tantas exigências mínimas de sã convivência, terá, entrementes, robustecido. Pense-se, entre outros, no valor irredutível da paz, no da dignidade fundamental da pessoa humana, no da cooperação e interdependência económica – que se manifesta, v. g., na luta contra o subdesenvolvimento –, no da sustentabilidade ambiental, no do combate ao terrorismo e a outros crimes internacionais (genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra), etc.. Ao que acaba de ser dito, pode ainda acrescentar-se, na peugada de autores como H. MOSLER, que o vínculo comunitário assenta, de igual modo, na consideração da sociedade internacional como comunidade jurídica, isto é, na circunstância de todos os Estados estarem submetidos ao mesmo ordenamento jurídico e, consequentemente, subordinados verticalmente às instituições encarregadas de o aplicar, sobretudo, como é bom de ver, à ONU. Como quer que seja, parece claro que perpassam dois movimentos antinómicos nas relações internacionais (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET): de um lado, a tendência para os Estados afirmarem a sua soberania e independência; de outro, a sua aspiração a uma verdadeira comunidade. Ora, o direito internacional nasce destas duas dinâmicas de sinal contrário, tendo precisamente por finalidade – tanto quanto isso se revele exequível – compatibilizá-las e harmonizá-las. Embora se esteja «diante de uma realidade extremamente complexa e dinâmica» (JÓNATAS MACHADO), não cabe dúvida que a um direito internacional clássico tem vindo a suceder um direito internacional moderno, forjado no pós- Segunda Guerra Mundial, que não repousa já na soberania absoluta e intangível do Estado, mas que, cada vez mais, se vai abrindo a novos domínios onde prevalecem a coesão e a solidariedade (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS). Vale isto por dizer que, nos últimos anos se assiste a um reforço dos laços comunitários num agrupamento onde antes claramente predominavam as características societárias. Teremos, de qualquer modo, ocasião de voltar a este assunto no capítulo dedicado à evolução histórica do direito internacional. 9 – A NORMATIVIDADE INTERNACIONAL: PROBLEMAS ESTRUTURAIS Parece-nos oportuno, neste último número da introdução geral ao nosso curso, dedicar algumas considerações, ainda que necessariamente esparsas e perfunctórias, à 18 normatividade internacional e a algumas das indefinições que na hora actual a percorrem em resultado de uma evolução que originou alterações significativas em muitos dos seus pontos fulcrais. Tarefa que será, de resto, tão mais necessária quanto é certo que para quem se inicie no estudo desta disciplina tomando como modelo paradigmático o direito interno, emanado das ordens estaduais, esse primeiro contacto com o direito internacional não deixará porventura de lhe causar alguma perplexidade. E porquê? Tal resulta fundamentalmente da estrutura primitiva – rectius, descentralizada – da sociedade internacional, em que inexistem, ou pelo menos escasseiam, órgãos superiores aos Estados capazes de assegurar o controlo dos seus comportamentos através do exercício das três funções típicas que, de acordo com a divisão tripartida de poder proposta por MONTESQUIEU, devem centralizadamente ser levadas a cabo em qualquer ordem jurídica. Referimo-nos, como se sabe, à função de criação de direito, isto é, de emanação autoritária de normas gerais e abstractas, destinadas a disciplinar as relações entre os sujeitos de direito internacional (poder legislativo); à função de dirimir, em termos compulsórios, os seus conflitos à luz das normas jurídicas existentes, com a consequente cominação das sanções que se julguem adequadas (poder judicial); e, finalmente, à de efectivação coactiva dessas sanções sempre que tal se revele necessário (poder executivo). Daí o dizer-se que não há na comunidade internacional “ni législateur, ni juge ni gendarme” (cfr., neste ponto, AFONSO QUEIRÓ). Não sendo isto exactamente assim – sobretudo, desde a segunda metade do século XX –, certo é que são gritantes as diferenças estruturais entre aquela comunidade e as comunidades internas ou estaduais; o que não deixará reflexamente de importar a existência de especificidades próprias do direito internacional, que, em medida considerável, o apartam do figurino do direito interno, com origem em entidades dotadas de uma forte coesão e de um elevado grau de institucionalização. É, pois, nesses particularismos que doravante iremos atentar com o objectivo de tornar claras algumas das fragilidades – se é que de fragilidades se trata – do ordenamento jurídico internacional. Genericamente, dado o característico processo de formação da maior parte das normas jurídico-internacionais, pode afirmar-se, com P. WEIL, que o direito 19 internacional se apresenta ainda eivado de lacunas e de interstícios em determinados domínios; que dele fazem parte, por outro lado, normas com um conteúdo algo controverso ou polémico, o que, como é bom de ver, redunda numa sua relativa ineficácia; e que, além disso, é também formado por outras, demasiado vagas e imprecisas, carecidas de uma concretização ou densificação que as torne realmente operativas. A tudo isto acresce, por derradeiro, uma evidente insuficiência de mecanismos sancionatórios. Muitos exemplos se poderiam fornecer para comprovar o que acaba de ser dito. Bastará, no entanto, para esse efeito, que pensemos no conteúdo incerto de alguns dos princípios basilares do moderno direito internacional – v. g., o princípio da autodeterminação, o do respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana, o da cooperação, o da boa-fé, etc. –, em algumas das novas regras sobre a exploração de recursos naturais, e que, nomeadamente, para certos espaços internacionais estão na base do surgimento do conceito, algo controvertido, mas actualíssimo, de património comum da humanidade; ou, num outro plano, na indefinição de algumas das consequências sobrevindas à prática dos actos ilícitos (em particular, os mais graves) e no funcionamento ainda demasiado aleatório da justiça internacional. Para além, todavia, desse primeiro juízo incidente na normatividade internacional, será importante que aprofundemos um pouco o nosso estudo, recorrendo a três níveis distintos de análise, que se reconduzirão afinal a outros tantos problemas a que seguidamente caberá aludir e à volta dos quais convirá fazer uma breve reflexão crítica. São eles o problema do limiar ou fronteira da normatividade, o da gradação da normatividade e, por fim, o da diluição da normatividade. Foram identificados por PROSPER WEIL num célebre estudo publicado, há já largos anos, na Revue Générale de Droit International Public e amadurecidos, mais tarde, num curso ministrado pelo autor na Academia de Direito Internacional, na Haia. Ambos os textos conservam grande actualidade e pertinência. O primeiro problema referido – o do limiar ou fronteira da normatividade – transporta-nos para o conceito de soft law em direito internacional (direito “mole”, “macio” ou frágil), que se opõe à hard law (direito “duro” ou forte). Ora, no seu sentido mais corrente, a soft law designa aquelas normas vagas, imprecisas, pouco impositivas, que se encontram com frequência no sistema normativo internacional, cujos direitos conferidos e obrigações impostas se 20 apresentam algo indefinidos para os destinatários respectivos. Em virtude desse conteúdo pouco perceptível, muitos as designam como normas meramente exortatórias, incitativas ou programáticas. Têm o seu campo dilecto de incidência nas resoluções recomendatórias das organizações internacionais e, bem assim, naquelas disposições convencionais, ambíguas e escassamente precisadas no seu alcance, por intermédio das quais as partes signatárias se comprometem simplesmente, v. g., a «consultar», a «promover» a «envidar esforços no sentido de…», a «evitar», a «tomar as medidas adequadas para…», a «agir tão rapidamente quanto possível», etc.. Mas também algumas normas costumeiras, designadamente as que, ao longo dos tempos, têm vindo a ser certificadas pela jurisprudência arbitral internacional (em particular, no âmbito do direito do mar), apresentam essa natureza soft. Em reverência a um propósito depurador, e acompanhando de perto P. WEIL, impõe-se, contudo, desde já, fazer a distinção entre a soft law quanto ao instrumento (soft law do instrumentum) e a soft law quanto à substância (soft law do negotium). A primeira reporta-se ao instrumento que veicula a norma, isto é, ao processo técnico (fonte formal) através do qual a norma é revelada. Por exemplo, uma convenção internacional não ratificada, embora possa codificar ou estar na origem da formação de uma norma de costume, é, por si só, um instrumento de soft law. O mesmo se passa, decerto, com uma recomendação emanada de uma organização internacional. Inversamente, um tratado assinado, ratificado e já entrado em vigor é, indubitavelmente, um instrumento de hard law. A segunda, por sua vez, diz respeito ao conteúdo material da norma. Este será soft logo que, como se disse acima, estejamos em presença de normas imprecisas, ainda que inseridas num tratado já em vigor. Será hard, pelo contrário, se as normas em causa forem precisas e minudenciosas, impondo às partes obrigações jurídicas bem definidas. Claro está que as duas acepções acabadas de referir poderão, em concreto, coincidir ou não. Uma disposição clara, precisa e impositiva acolhida numa convenção internacional devidamente ratificada pelas partes será hard law quer quanto ao instrumento de que brotou quer no tocante ao seu conteúdo material. Assim como, reciprocamente, um preceito vago, indeterminado e indefinido inserido numa resolução recomendatória será soft law no que tange a esses mesmos dois aspectos. Já 21 o mesmo não sucederá, porém, caso um tratado em vigor para os signatários (hard law) enuncie direitos e obrigações de conteúdo indefinido e escassamente perceptível (soft law) ou, em sentido inverso, uma norma precisa e detalhada (hard law na substância) haja sido vertida numa resolução da Assembleia Geral da ONU (soft law no que se refere ao instrumento). Interessa-nos aqui, em especial, a dimensão material da soft law. E a esse respeito uma interrogação, desde já, se levanta: não constituirá a soft law um fenómeno patológico da normatividade internacional? Por outras palavras: a versatilidade normativa do direito internacional que ela deixa a descoberto não terá como consequência a sua descredibilização ou até a sua falência enquanto ordem jurídica? Parece-nos bem que não. É próprio do direito, como salientou KELSEN, um mínimo de eficácia, não uma eficácia total. E esse mínimo de eficácia pode advir de um espontâneo acatamento das normas que fazem parte de uma determinada ordem jurídica – diríamos até que advirá sobretudo daí –, não derivando, pois, necessariamente, da sua imposição coerciva. Acresce que, caso nos consigamos libertar de critérios de excessivo rigor formal, não custará admitir que ao direito “frágil” ou “fraco”, como amiúde se designa também a soft law, se ligam indiscutíveis virtualidades que importa não negligenciar. Assim, desde logo, estamos em presença de normas que os Estados se predispõem a aceitar mais facilmente porque menos “afrontosas” para a sua soberania, não reduzindo a zero a sua liberdade de actuação e desempenhando, desse modo, a necessária função de “válvula de escape” do sistema. Para mais, pouco eficazes no imediato, elas são susceptíveis, a prazo, de se converter em normas costumeiras (hard), em resultado de uma sua geral aceitação e aplicação por parte dos sujeitos de direito internacional. Nenhuma razão sobeja, por conseguinte, para que a soft law seja encarada como um fenómeno patológico da normatividade internacional. Pelo contrário: a existência de normas dotadas de fraca coercibilidade perfeitamente quadra e se coaduna com a estrutura desorganizada (pouco institucionalizada) da sociedade internacional, constituindo inclusive um factor de progresso e evolução do direito internacional. Adiante-se que a questão do limiar da normatividade, isto é, da fronteira entre 22 os actos não normativos e aqueles que, ao invés, relevam já do domínio do jurídico, se coloca em qualquer ordem jurídica, mas ganha particular acuidade no sistema normativo internacional, dadas as características próprias da sociedade que ele visa regular e atentos os procedimentos de criação de direito aí prevalecentes. Às múltiplas formas de actuação dos vários sujeitos de direito (em particular, os Estados), corresponde uma diversa natureza dos actos em que se materializa essa actuação, a tal ponto, que, para alguns deles, se torna problemático afirmar com segurança se terão já transposto ou não esse limiar da normatividade. Partindo desta ideia, alguns autores empregam a expressão soft law numa acepção diversa daquela que até aqui temos acolhido: existiriam, de facto, determinadas regras que, a despeito de não haverem ainda transposto a mencionada fronteira da normatividade e de, nessa medida, relevarem do domínio do pré-jurídico, produziriam, ainda assim, certos efeitos de direito. Em concreto, delas não resultaria qualquer obrigação, mas teriam, não obstante, um valor permissivo ou ab-rogatório Permissivo, porque constituiriam um título cuja consequência mais saliente seria a de impedir que aqueles que com elas se conformassem praticassem um acto ilícito e, portanto, se tornassem incursos em responsabilidade internacional. Ab-rogatório, pois que, não criando direito novo, teriam, sem embargo, a virtualidade de revogar normas preexistentes, deixando os Estados livres para cessarem de as observar. Não cremos, todavia, que assim seja. Afigura-se-nos, com efeito, extremamente duvidoso que actos não jurídicos possam, como que por alquímica metamorfose, produzir de efeitos jurídicos… A ter, na verdade, de admitir-se uma tal conclusão, estar-se-iam, julgamos, a tornar totalmente evanescentes as fronteiras entre o mundo do direito e outros domínios que com ele apresentam alguns pontos de contacto, postergando, de modo inaceitável, a estabilidade, a certeza e a segurança que devem caracterizar qualquer ordem jurídica e, quiçá sobremodo, a ordem internacional. Assim, obrigações que se situem no terreno pré-jurídico não são soft nem hard, visto que ambos os qualificativos se deverão, neste âmbito, confinar ao mundo jurídico. Em concreto, o tema do real alcance das resoluções das organizações internacionais (sobretudo, as recomendações) – pelo qual passa muito da discussão em torno da soft law –, tem sido objecto de acesa disputa entre os autores. A ausência de força obrigatória de uma recomendação, não obsta a que, a par do seu impacto político, lhes reconheçamos um certo valor jurídico (não normativo), que seria erro de 23 monta depreciar. De facto, a mais de impender sobre os destinatários (Estados membros da organização internacional de que emanam) um dever de a examinar de boa-fé, e de não se desencadearem, para aqueles que efectivamente adoptem comportamentos afeiçoados ao respectivo conteúdo, as consequências jurídicas que a prática de uma acto internacionalmente ilícito ocasiona, ainda lhes poderá ser assacado um papel fundamental na formação das normas de costume internacional. A estes assuntos voltaremos, todavia, mais à frente. O segundo problema que caberá dilucidar, prende-se com a gradação ou hierarquização da normatividade internacional, alegadamente ocorrida nas últimas décadas. Debrucemo-nos sobre ele continuando a acompanhar P. WEIL. Tradicionalmente, a ordem jurídica internacional é uma ordem não hierarquizada; horizontal, acaso a pretendêssemos representar graficamente. Em flagrante contraste com os direitos internos, organizados em “pirâmide normativa” (Constituição, lei, regulamento, acto administrativo, etc.), todas as normas de direito internacional, independentemente da sua origem formal (tratado, costume, etc.), do seu conteúdo e do seu objecto, têm valor idêntico, situando-se no mesmo plano. É sabido, no entanto, que o advento da Segunda Guerra Mundial, com as nefastas consequências que viria a acarretar para a Humanidade, trouxe mudanças profundas à estrutura e ao pulsar da sociedade internacional; mudanças essas que viriam depois a ter indeléveis refracções no plano normativo e que, de forma simples, podemos substanciar na seguinte ideia: a um bloco único e paritário de normatividade – isto é, a um corpo homogéneo de normas prescritivas, proibitivas ou permissivas – terá sucedido um sistema normativo hierarquizado. Depois de uma gradação na base (soft law versus hard law), a que aludimos no número anterior, estar-se-ia agora perante um esboço de gradação no topo, com «normas de autoridade reforçada» - uma espécie de «super-direito». Que factores terão concorrido para tal hierarquização? Em primeiro lugar, a teoria do jus cogens, que, partindo de uma ideia de ordem pública internacional, assenta numa summa divisio entre normas imperativas e normas simplesmente obrigatórias; respectivamente, portanto, um jus strictum e um jus dispositivum à semelhança do que se verificava no Direito Romano. 24 Tal ideia de ordem pública internacional passou a ser defensável a partir do momento em que se admitiu a existência de um núcleo de valores reputados de fundamentais e indisponíveis pela consciência jurídica geral da comunidade internacional. Alguns desses valores ditos essenciais encontram-se positivados nos princípios fundamentais do direito internacional, enunciados na CNU e reafirmados em diversos textos normativos, de entre os quais se destaca a Resolução 2625 (XXV) da Assembleia Geral, de 24 de Outubro de 1970, também conhecida por «Declaração dos 7 princípios», em virtude de serem exactamente sete os princípios nela vertidos: princípio da proibição do recurso à força nas relações internacionais, princípio da solução pacífica dos conflitos, princípio da não ingerência ou não intervenção nos assuntos internos dos outros Estados, o dever de cooperação, o princípio da autodeterminação, o princípio da igualdade soberana dos Estados e, por último, o princípio da boa-fé. Todos os princípios acabados de referir condicionam materialmente a actuação dos sujeitos de direito internacional, impondo-lhes a observância de obrigações de valor constitucional, sendo que, relativamente a alguns deles, os autores não hesitam em atribuir-lhes a natureza de jus cogens. Ao conceito de jus cogens está, pois, associada uma ideia de «escala de normatividade» (P. WEIL), em tais termos que as normas imperativas por tutelarem interesses fundamentais da comunidade internacional, são hierarquicamente superiores às demais que integram o corpus do direito internacional vigente. Isto explica, aliás, que na Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, de 1969, se preveja a invalidade (nulidade absoluta) dos tratados que contrariem as normas juris cogentis. A necessidade de protecção de certos princípios indispensáveis a um adequado standard de convivência entre os sujeitos de direito internacional e, por isso, à existência de uma comunidade de direito, determina, na verdade, aquela limitação à liberdade contratual dos Estados. Ao beneficiarem de uma normatividade reforçada, as normas imperativas tornam-se insusceptíveis de ser afastadas pela via de acordos particulares (G. CARELLA). Inicialmente acantonada nesse âmbito particular do direito dos tratados, a «super-normatividade» irradiou, todavia, a sua influência para outros domínios do direito internacional, estando, v. g., na base da construção jurisprudencial e doutrinal da teoria das obrigações erga omnes, bem como, dos actos ilícitos mais graves do Estado, em sede de responsabilidade internacional. Apesar da proclamação retumbante de JELLINEK, para quem «Tout acte illicite international pourrait être élevé au rang de droit si l’on en faisait le contenu d’un traité» ou do cepticismo exprimido por P. GUGGENHEIM, quando, na 1ª edição do seu Droit International Public, asseverava que as normas de direito internacional não têm um carácter imperativo e que jamais seria possível apreciar a validade 25 de uma convenção internacional à luz de um critério de moralidade, muitos outros autores importantes, como VERDROSS, QUADRI ou VIRALLY, reconhecem a existência das normas de jus cogens, separando, contudo, essa noção de direito imperativo da de jus naturale, porquanto, sem embargo de alguns pensáveis pontos de contacto entre ambos, este último teria uma natureza universal e imutável, ao passo que aquele, porque permeável às exigências da comunidade internacional em cada momento, seria, ao invés, evolutivo e contingente. Explicando melhor: o direito natural é concebido como uma ordem superior e exterior ao direito positivo, enquanto o jus cogens faz parte integrante do sistema. É o direito internacional, ele próprio, que outorga a certas normas o estatuto de normas imperativas. Se estas se inspiram, é certo, em determinadas considerações éticas ou morais, a verdade é que o respectivo carácter normativo advém de factores puramente endógenos. Em último termo, a norma imperativa – potencialmente geradora de obrigações praeter e mesmo contra voluntem – retira essa qualidade da vontade dos Estados, facto que parece, paradoxalmente, confirmar, também aqui, a natureza voluntarista do direito internacional (ainda que, desta feita, o voluntarismo seja porventura apenas o de alguns…). Baldado propósito, pois, o de um retorno, através do jus cogens, ao direito natural e à unidade fundamental do género humano. Subjacente ao jus cogens está o conceito multiforme de comunidade internacional de Estados no seu conjunto (cfr. art. 53.º da CV) – um misterioso protagonista que se sub-roga aos Estados no múnus de criação do direito internacional. O apelo constante, nas discussões em torno do direito internacional imperativo, à «consciência jurídica geral», aos «valores morais superiores», ao «bem comum», etc., denuncia uma aspiração clara a que a ética sobreleve a aridez do direito positivo (P. WEIL) e, consequentemente, a que, na comunidade internacional, possam emergir a solidariedade e a unidade no meio das diferenças políticas, ideológicas e económicas entre os Estados. Em anos mais recentes, a CDI debruçou-se sobre o tema do jus cogens, tendo o seu Relator Especial, DIRE TLADI, apresentado quatro relatórios, entre 2016 e 2019. O quarto é credor de menção especial, ao afrontar a questão, algo embaraçosa do ponto de vista teorético-conceitual, da existência de um pretenso jus cogens regional, questão essa acerca da qual muitos Estados, incluindo Portugal, exprimiram o seu cepticismo. Para além da aparente contradictio in adjectu resultante da incompatibilidade entre o carácter universal e imperativo das normas de jus cogens, tal como originariamente pensadas, e a aventada possibilidade de algumas delas vincularem apenas os Estados de uma determinada região do globo, não visando, necessariamente, tutelar qualquer interesse ou valor fundamental da humanidade como um todo, outros obstáculos parecem comprometer, de forma irremediável, esta elucubração. Desde logo, a ausência de uma prática constante e uniforme que pudesse tornar plausível a formação de normas 26 imperativas de alcance regional e, bem assim, a relativa volatilidade do conceito de região (por ex., as regiões da África do Sul e da Europa incluem, respectivamente o Burundi e a Federação Russa? – DIRE TLADI). Isto para não falar dos problemas (consequências jurídicas) que a violação de uma norma imperativa regional colocaria em sede de responsabilidade internacional. Em segundo lugar, também a teoria das obrigações erga omnes concorreu para a hierarquização do sistema normativo internacional e, portanto, para retrogradar o bilateralismo e o espírito de estrita reciprocidade através dos quais se entreteciam as relações internacionais clássicas. Num contexto de mera justaposição de soberanias, a responsabilidade internacional analisa-se numa relação bilateral, em que à obrigação de um se opõe o direito do outro (P. M. DUPUY). Cada Estado tem o direito a que determinada norma internacional seja respeitada perante si próprio; mas já, decerto, não lhe assiste o direito a que a “legalidade internacional” seja, em si mesma, cumprida ou reposta. Por outras palavras: cada um deverá assegurar a protecção dos seus próprios direitos, sem curar de arvorar-se em «campeão dos direitos dos outros» (P. WEIL). Ou dito ainda de outra forma: tradicionalmente não há lugar para obrigações erga omnes no direito internacional. «A doutrina do cada um por si» (P. WEIL), mal se compagina, todavia, com a abertura à axiologia e à ética, de que acima demos nota, e com o reconhecimento dos interesses gerais da comunidade internacional. Talvez por isso, pela primeira vez, em 1970, num célebre obicter dictum do Tribunal Internacional de Justiça, no caso Barcelona Traction, Light and Power Company Limited – vibrado, aliás, em evidente desconcerto com outra passagem do mesmo aresto… –, se fez referência ao conceito de obrigação erga omnes. Afirmou então o Tribunal: «Vu l’importance des droits en cause, tous les Etats peuvent être considérés comme ayant un intérêt juridique à ce que cês droits soient protégés; les obligations dont il s’agit sont des obligations erga omnes». E mais adiante: «Ces obligations découlent par exemple… de la mise hors la loi des actes d’agression et le génocide mais aussi des principes et des régles concernant les droits fondamentaux de la personne humaine, y compris la protection contre la pratique da l’esclavage et la discrimination raciale.». Quais os sentido e alcance destas obrigações? Como se observou, o direito internacional clássico é, na sugestiva expressão de 27 W. RIPHAGEN, «bilateral-minded», isto é, as obrigações internacionais não impõem aos Estados a adopção urbi et orbi de um certo comportamento; pelo contrário, apenas os vinculam (a cada um individualmente) em face de um particular Estado, ou quando muito, perante um grupo limitado de Estados. A protecção dos direitos correlativos a essas obrigações, por seu turno, é feita em regime de auto-tutela, quer dizer, é o próprio Estado ofendido que, ao arrepio da velha máxima nemo judex in causa sua, chama a si tal tarefa. Ora, no que tange às obrigações erga omnes do que se trata, como adverte P. WEIL, é justamente de saber se poderá impender sobre um Estado, independentemente de qualquer liame convencional, uma obrigação internacional que o vincule perante todos os demais Estados; todos, desse modo, se tornando credores dela. Uma resposta positiva, levar-nos-á a aceitar a existência de um núcleo (restrito) de obrigações de cada Estado para com a comunidade internacional no seu conjunto. A sua particular natureza, rectius, o seu específico conteúdo, determinará que elas digam respeito a todos os Estados; a todos conferindo, em conformidade, idênticos direitos de protecção. Mas protecção de quê? Não propriamente dos interesses egoísticos dos Estados, ou pelo menos não prioritariamente destes; protecção isso sim, em primeira linha, dos interesses de toda a comunidade internacional. Quer isto significar que nestas obrigações internacionais avulta o «interesse comunitário». Resta saber qual o meio mais idóneo para garantir a protecção daquele interesse. Será tal desiderato alcançado à guisa de uma actio popularis dos Estados, agindo estes ut singuli (v.g., sendo beneficiários de um jus standi, podendo recorrer a actos de protesto ou ainda estando habilitados a lançar mão de contramedidas, mesmo não havendo sido directamente lesados com a violação da obrigação erga omnes) ou “a expensas” da comunidade internacional organizada (institucionalizada), conhecendo-se todas as dificuldades de funcionamento do Conselho de Segurança? Os quesitos acabados de formular, ilustram bem, pensamos, os principais pontos carecidos de esclarecimento no regime jurídico das obrigações erga omnes. E a estrutura actual da comunidade internacional não deixa aos doutrinadores grande margem de manobra… Ao conceito de obrigações erga omnes anda por vezes associado o de direitos erga omnes. Eles não constituem, porém, as duas faces da mesma moeda (P. GALVÃO TELES). Os direitos erga omnes 28 implicam, do lado passivo, uma obrigação universal de respeito – caso, v. g., do direito de cada Estado ao gozo das várias liberdades do alto-mar. Isto não significa, contudo, que as obrigações correlatas a um direito erga omnes sejam, necessariamente, obrigações erga omnes. Sê-lo-ão apenas se, para além de visarem a protecção de um interesse do titular do direito em questão, tiverem sobretudo como escopo a protecção do interesse geral da própria comunidade internacional. Caso contrário, serão tão-somente obrigações omnium. Assim, não obstante possíveis intersecções, se as obrigações erga omnes sugerem uma ideia de universalização dos titulares de direitos, as obrigações omnium apontam antes para a universalização dos titulares de obrigações. As teorias do jus cogens e das obrigações erga omnes, sumariamente explicitadas acima, viriam a estar na base de importantes alterações no instituto da responsabilidade do Estado por factos ilícitos. Com efeito, a identificação de um conjunto de normas reputadas de hierarquicamente superiores às restantes, por tutelarem interesses precípuos da comunidade internacional, legitimou (diríamos mesmo, forçou) a arrumação dos actos ilícitos internacionais em duas categorias: a dos crimes (ilícitos mais graves) e a dos meros delitos (ilícitos menos graves), segundo uma terminologia controversa (a certa altura, abandonada) da Comissão de Direito Internacional, no seu Projecto de Artigos Sobre a Responsabilidade do Estado. Tal destrinça sugeria (sugere) a existência de (pelo menos) dois regimes diversos de responsabilidade em função do conteúdo da obrigação internacional violada: os crimes resultariam da violação grave de obrigações que tutelam interesses fundamentais da comunidade internacional, por isso a eles estariam ligadas consequências jurídicas específicas ou suplementares, comparativamente àquelas que subjazem aos meros delitos; estes, por sua vez, apresentar-se-iam como factos ilícitos ordinários, em virtude de constituírem violação de normas primárias menos importantes, isto é, de normas cujo objecto de protecção se não reconduz a um valor essencial para a comunidade internacional, pelo que o regime de responsabilidade seria, desta feita, o regime-regra. Muitas incertezas subsistem, todavia, quanto à definição dos elementos constitutivos dos actos ilícitos mais graves (muito em especial no tocante às suas relações com o jus cogens e com as obrigações erga omnes) e, bem assim, às consequências jurídicas específicas que fazem espoletar; tanto mais que ao haver introduzido no seu Projecto de Artigos o requisito da gravidade da violação da 29 obrigação internacional em causa, a CDI fizera pairar ainda mais dúvidas sobre uma construção que, à partida, se afigurava capaz de trilhar um caminho auspicioso. Na elaboração do primitivo art. 19.º do seu Projecto de Artigos – mais tarde, suprimido – a CDI socorreu-se de um critério indicativo, mas algo tautológico: os crimes internacionais seriam aqueles que fossem reconhecidos como tal pela comunidade internacional no seu conjunto. A despeito disso, não se furtou a fornecer alguns exemplos de violações qualificadas do direito internacional: a agressão armada, a repressão pela força do direito dos povos à autodeterminação, a violação em larga escala de direitos fundamentais da pessoa humana – v. g., situações de escravidão, genocídio ou apartheid – e ainda o crime ambiental, resultante, designadamente, da contaminação maciça da atmosfera e dos mares. O jus cogens, as obrigações erga omnes e a distinção, favorecida por essas duas teorias, entre actos ilícitos do Estado mais e menos graves, parecem não fazer soçobrar – antes parecem impelir – a busca por uma «nova ética da globalização» (N. VIEIRA DE CARVALHO) ou, se preferirmos, por um mínimo ético universal. Mesmo conhecendo-se as profundas divisões que grassam actualmente na comunidade internacional. Ainda assim, todavia, ao lado de indiscutíveis efeitos benéficos para a evolução do direito internacional, muitas são as sombras que pairam sobre estas construções. A exorná-las, sobressai o conceito, algo enigmático, de comunidade internacional no seu conjunto. As dificuldades em redor da respectiva explicitação podem abrir caminho à aceitação de um «direito internacional ideológico» (no limite, à coonestação de uma «oligarquia de facto») que negue o princípio da igualdade soberana dos Estados. Quem, na verdade, num mundo desprovido de verdadeira representação orgânica e institucional está habilitado a identificar a (ou, pelo menos, toda a) super- normatividade, as obrigações erga omnes e as formas agravadas da ilicitude estadual? Acrescem a esta “dúvida metódica” algumas dificuldades técnicas mais concretas que urge superar e para as quais havíamos já alertado mais atrás: como se inter-relacionam o jus cogens, as obrigações erga omnes e os actos internacionalmente ilícitos reputados de mais graves? Qual, de entre estes conceitos, corresponde à categoria mais ampla e à mais restrita, acaso, por hipótese, nos socorrêssemos de três círculos concêntricos? Haverá dois ou mais regimes jurídicos de responsabilidade internacional? E quais as consequências jurídicas emergentes de que cada um deles? 30 Como se vê, há aqui margem para delongadas reflexões; reflexões, porém, que só na parte final do nosso curso se tornarão porventura mais profícuas. E sobeja tratar do terceiro e último problema que neste número nos propusemos abordar e que surge imbricado, de forma clara, com os analisados precedentemente. É ele o da diluição da normatividade. Ora, em que sentido se poderá falar hoje de uma diluição da normatividade internacional? A identificação de uma super-normatividade, com as teorias do jus cogens e das obrigações erga omnes, veio pôr em causa, de modo particularmente impressivo, o voluntarismo que caracterizava o direito internacional clássico; sobretudo, parece ter, em larga medida, esvaziado de conteúdo a regra tradicional da individualização (determinação) dos sujeitos activos e passivos das normas de direito internacional. Comprovemos o que acaba de ser dito, olhando separadamente para o direito convencional e para o direito costumeiro. No que toca às convenções internacionais, o princípio da eficácia relativa dos tratados, segundo o qual estes não produzem, em regra, efeitos para Estados terceiros – isto é, para Estados não partes – sem o seu consentimento (cfr. art. 34.º da Convenção de Viena, de 1969), garantia uma certa estabilidade e segurança às relações internacionais. Tudo se alterou, contudo, a partir do momento em que se admitiu a criação de obrigações internacionais vinculativas de todos os Estados por intermédio de uma norma convencional. Verdade que sempre se aceitara no passado, que um tratado pudesse, em determinadas circunstâncias, codificar (isto é, passar a escrito e cristalizar) uma norma costumeira ou contribuir para a sua formação (precedentes convencionais), mas jamais se previu que um fenómeno, ainda assim, excepcional pudesse, pela sua frequência e amplitude, quase converter-se em regra geral, concorrendo para a erosão daquele velho princípio vertido no art. 34.º da CV e, consequentemente, para o esbatimento (ou desaparecimento?) da fronteira, outrora bem nítida, entre convenção e costume. Abundam hoje, com efeito (sobretudo em tratados amplamente participados), as disposições convencionais declaratórias de costumes preexistentes ou que cristalizam normas costumeiras em vias de formação ou até que, a partir de uma categórica afirmação da opinio juris num primeiro momento, constituem um forte acicate ao paulatino desenvolvimento de uma prática 31 concordante subsequente (“costumes selvagens” ou instantâneos). Assiste-se, deste modo, a uma certa desfiguração da norma convencional, ela que sempre fora encarada como a mais pura expressão do voluntarismo e da consensualidade que caracterizavam o direito internacional clássico. Dir-se-ia que, a partir de certa altura, o direito convencional adquire todo o seu valor quando justamente deixa de ser exclusivamente convencional ou “contratual” (P. WEIL)… No que diz respeito, por outro lado, às normas costumeiras, não mais se pode afirmar, com segurança, que a aceitação de um costume – quer tácita, quer resultante da uniformidade de certos comportamentos (precedentes) que são praticados ao longo do tempo e concorrem para a formação de uma opinio juris – constitui ainda um traço essencial do seu regime. O que, aliás, se traduzia numa espécie de velada homenagem ao voluntarismo. Com efeito, a emergência dos aludidos “costumes instantâneos” ou “selvagens” (RENÉ-JEAN DUPUY), parece claramente infirmar o modus operandi tradicional. Classicamente, numa espécie de “quadratura do círculo”, aceitava-se que as normas costumeiras (de alcance geral) se pudessem formar sem o consentimento individual de todos os Estados, permitindo-se, contudo, simultaneamente, que um Estado pudesse escapar à vinculação de um costume que não reconhecesse como tal e a cuja constituição se tivesse oposto firme e reiteradamente (objector persistente). No tocante à prática (elemento material ou objectivo das normas consuetudinárias), sempre se exigiu que ela fosse «constante e uniforme», jamais «unânime» ou «universal». Neste sentido, afirmava C. de VISSCHER, já em 1925, que para invocar contra determinado Estado uma norma de costume internacional não seria imprescindível demonstrar que esse Estado contribuíra “pessoalmente”, através dos seus comportamentos individuais (precedentes), para a respectiva formação: assim é que, por ex., em matéria de direito do mar, muitas normas costumeiras lograram surgir com base em condutas adoptadas pela generalidade dos Estados costeiros e relativamente às quais os Estados sem litoral permaneceram evidentemente arredios. Também, de igual modo, acerca da opinio juris (elemento subjectivo ou psicológico do costume), nunca se considerou indispensável que cada um dos Estados implicados na adopção de comportamentos consonantes, ao longo de um certo lapso 32 temporal, experimentasse individualmente, a respeito deles, uma convicção de obrigatoriedade jurídica. Conquanto assim excluído o consensus omnium, os ditames do voluntarismo permaneciam, ainda assim, válidos mediante a faculdade, acima aludida, de opting out, reconhecida a um Estado que, ainda durante o processo de constituição de um costume, se opusesse, de forma inequívoca e continuada, à sua formação e ao seu conteúdo material. A verdade, porém, é que esta arquitectura normativa começou a ser posta em causa desde que, por um lado, se conveio num aligeiramento da prática, quer quanto à sua duração quer quanto à sua generalidade e, por outro, se passou, igualmente, a conceber a opinio juris de modo menos estrito e exigente. Ficou assim desembargado o caminho a que um cada vez maior número de normas costumeiras se impusesse a um número também crescente de Estados, mesmo contra a sua vontade, expressamente manifestada (P. WEIL). Eis-nos perante a teoria – algo desafiante da lógica tradicional do consentimento – dos chamados “tratados quase universais”. Conforme se disse já, sempre foi admitida a possibilidade de uma norma convencional estar na origem da formação de um costume, que, salvo manifestação de vontade em contrário, iria, subsequentemente, vincular Estados terceiros (não partes nessa convenção internacional). Do que se trata agora, é, todavia, de algo bem diferente: da aceitação de que uma prática “geral” possa circunscrever-se a uma disposição convencional adoptada por um número razoável (suficiente) de Estados, em especial pelos Estados particularmente interessados, dando origem, desse modo, a um costume instantâneo ou “selvagem”. Os “tratados quase universais”, por conseguinte, aceites a título de direito convencional por um número significativo de Estados, lograriam impor-se aos demais a título de regras costumeiras. Mais do que a uma aceleração do processo costumeiro, assiste-se, isso sim, a uma autêntica revolução na teoria do costume (P. WEIL). E, mesmo abstraindo de todas as fragilidades e ambiguidades que rodeiam esta construção de efeitos “subversivos”, deparamos com uma notória perplexidade: a regra de direito internacional geral – que outrora se opunha às normas de direito internacional particular (conf., supra, nº 3) – passou, repentinamente, a ser sinónimo 33 de regra costumeira. Regra esta que, não admitindo derrogações individuais, se impõe a todos os Estados à guisa de direito universal… A generalidade deixa, portanto, de sofrer excepções. Como observa P. WEIL, «…a recusa expressa torna-se inoperante. De uma aceitação presumida, passa-se para uma aceitação imposta», com o que a opinio juris se dissolve num consentimento maioritário mal definido. Como se vê, a normatividade internacional relativiza-se; a fronteira entre a norma convencional e a norma costumeira vai-se crescentemente esbatendo e a regra parece ser agora a da indeterminação dos titulares activos e passivos das normas jurídicas internacionais. Daí, pois, a ideia da diluição da normatividade, que, forçosamente, convida os jusinternacionalistas a um repensar de toda a teoria das fontes. São estas, em suma, algumas das indefinições do moderno direito internacional. Procurámos dar conta delas de forma deliberadamente tópica, tanto mais que alguns dos conceitos e ideias atrás expendidos, em virtude de pressuporem conhecimentos que iremos adquirir em capítulos subsequentes, só resultarão compreensíveis numa fase mais avançada do nosso curso. Bastemo-nos, pois, para já, com o que ficou dito, que, ainda assim, ao que julgamos, será suficiente para que se tenha a percepção de que a ordem jurídica internacional, reflexo afinal da estrutura da sociedade que visa regular, apresenta, em boa verdade, características muito particulares. 34 CAPÍTULO I EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO INTERNACIONAL Sumário: 1 – Introdução. 2 – Direito internacional clássico (“modelo de Westefália”). 3 – Direito internacional moderno (“modelo da Carta das Nações Unidas”). Bibliografia principal: Afonso Queiró, Direito Internacional Público, Coimbra, 1960; Antonio Cassese, Le droit international dans un monde divise, Berger-Levrault, Paris, 1986; Jónatas Machado, Direito Internacional, 5ª edição, Gestlegal, 2020; Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6ª edição, Principia, 2016; José Alberto de Azeredo Lopes (coordenador), Regimes Jurídicos Internacionais, Volume I, Universidade Católica Editora Porto, 2020; Quoc Dinh/Daillier/Pellet, Droit International Public, LGDJ, Paris, 1994; 1 – INTRODUÇÃO Concluída a parte introdutória geral, o primeiro capítulo da presente obra será dedicado a uma análise, ainda que breve, da evolução histórica do direito internacional. Sem dúvida que uma visão retrospectiva se revela imprescindível para que os vários ramos do direito melhor se possam compreender na actualidade. Quantos dos institutos do nosso direito civil, por ex., não têm a sua origem no Direito Romano? Decerto que mediante o conhecimento deste último se tornará muito mais fácil compreendê-los adequadamente nos seus sentido e alcance. E também o direito internacional não foge à regra: diga-se até que, fruto das características da sociedade internacional, ele é um direito essencialmente evolutivo, quando não contingente e tergiversante no seu rumo. Daí que, em seu redor, uma curta “viagem no tempo” faça particularmente sentido. Neste excurso histórico, não iremos, porém, ocupar-nos da época que poderemos apelidar de pré-estadual, onde, em bom rigor, se encontram os primeiros rudimentos do direito internacional. São, na verdade, inestimáveis os contributos dos vários períodos históricos que antecederam o surgimento dos Estados modernos para a formação do direito internacional. Seja o contributo do Império chinês, sejam os dos Impérios do oriente (o egípcio, o babilónico, o assírio e o persa), sejam ainda os da Grécia (com as relações entre as Cidades-Estado) e de Roma (com o jus fetiale e o jus gentium) ou, mais tarde, 35 o da época medieval. Mas o certo é que, no seu conjunto, eles constituem a pré-história do direito internacional, não a sua história. Esta inicia-se com o aparecimento do direito internacional enquanto ramo autónomo da ciência jurídica, e tal ocorreu, como assinalámos na parte introdutória do nosso curso, aquando da formação dos Estados modernos, na Europa, seguidamente à paz de Westfália. É, pois, desde 1648 – data da assinatura dos Tratados de Westfália – até aos nossos dias que neste capítulo nos iremos concentrar. 2 – DIREITO INTERNACIONAL CLÁSSICO (“MODELO DE WESTEFÁLIA”) Tanto quanto se podem delimitar temporalmente os fenómenos sociais e humanos, afigura-se ajustado situar o direito internacional clássico no período que medeia entre 1648 – ano da paz de Westefália, que pôs termo à guerra religiosa dos Trinta Anos e abriu caminho ao surgimento do Estado moderno – e 1945, que, como se sabe, marcou o fim da Segunda Guerra Mundial. É certo que logo após o primeiro conflito global (1914-18) se verificou um esforço, sem precedentes, de institucionalização da comunidade internacional, mas foi apenas da segunda metade do séc. XX em diante que as transformações ocorridas prenunciaram o início de uma nova era. Em obediência a um intento clarificador, ANTONIO CASSESE – cujo pensamento doravante acompanharemos – contrapõe o modelo clássico ou de Westefália ao modelo moderno ou da Carta das Nações Unidas. Impõe-se, no entanto, advertir que os modelos, enquanto construções teóricas feitas a partir da realidade, comportam sempre boa dose de artificialismo. Apesar de um carácter falível e algo redutor da realidade, é, todavia, possível, por seu intermédio, identificar grandes tendências, linhas de força e princípios estruturantes fundamentais, que, tomados em conjunto, conferem identidade ao lapso temporal considerado. Como sublinha JORGE MIRANDA, bom será, ademais, não esquecer que antes da conclusão dos tratados de paz de Westefália o movimento dos Descobrimentos (dos portugueses e, mais tarde, de outras nações europeias) trouxe problemas novos sobre os quais se debruçaram os primeiros cultores do direito internacional nascente: desde a delimitação das zonas de influência das potências europeias da época, passando pela forma de relacionamento entre os europeus e as populações autóctones dos territórios descobertos, até ao regime jurídico do mar (mare liberum versus mare clausum). Avultam então nomes como os de FRANCISCO DE VITÓRIA e FRANCISCO SUÁREZ (Escola Peninsular de Direito Internacional), SERAFIM DE FREITAS (Escola Portuguesa) e HUGO GRÓCIO – habitualmente considerado o “fundador do direito internacional”. Com a expressão direito internacional clássico pretendemos reportar-nos às características principais que assumiu aquele domínio do jurídico na época histórica 36 supramencionada, reflexo da estrutura que, ao tempo, revestia a sociedade internacional. Atentemos, pois, nesta estrutura e naquelas características. À estrutura da sociedade internacional dos primeiros tempos calha bem o epíteto de «vasta planície interestadual» (RENÉ-JEAN DUPUY), pois que ela é composta por Estados situados num plano (formalmente) paritário, inexistindo órgãos próprios dessa sociedade capazes de controlar o respectivo comportamento. Os órgãos estaduais são simultaneamente órgãos da ordem internacional, actuando, por isso, nos dois planos – o interno e o internacional – num desdobramento de tarefas a que SCELLE chamou desdobramento funcional. Até finais do séc. XVIII, a sociedade internacional será exclusivamente europeia. Nessa altura, porém, as grandes revoluções liberais (a americana e a francesa) e a emancipação de vários povos latino-americanos, entre 1811 e 1821 – que a Santa Aliança não conseguiu suster – fariam emergir um «sistema de Estados de civilização cristã». Em particular, da Revolução Francesa (1789) saiu um ideário que iria insuflar gérmenes de mudança no direito internacional. Entre outras coisas, proclamou-se então que a soberania reside no povo, e não no rei; que o direito internacional regula as relações entre povos, e não entre monarcas; e que todos os povos, porque livres e iguais entre si, tal como os indivíduos, têm direito à autodeterminação (Cfr. JORGE MIRANDA). 2.1 – Sujeitos de direito Em matéria de sujeitos de direito, era gritante o contraste entre a sociedade internacional dos primeiros tempos e as sociedades nacionais ou internas, visto que enquanto estas sempre dispuseram de um vasto leque de sujeitos, naquela o atributo da personalidade jurídica praticamente se circunscrevia aos Estados soberanos e, eventualmente (excepcionalmente), a um sujeito menor: os insurrectos, caso fossem objecto de reconhecimento internacional. Teremos ensejo mais adiante de estudar as figuras (hoje, novamente em voga) dos insurrectos e beligerantes no direito internacional. Por ora, bastemo-nos com a ideia de que se trata de grupos que, no interior de um determinado Estado, se sublevam, contestando – mediante o recurso a acções violentas – a legitimidade do poder aí constituído (as respectivas autoridades oficiais) e causando, desse modo, o esboroamento da unidade nacional. Quando reconhecidos, quer por parte de Estados terceiros, quer pela própria mãe-pátria, os insurrectos ficam, ipso facto, investidos na titularidade de certos direitos e obrigações internacionais; concretamente o conflito fica sob a alçada do direito internacional humanitário, deixando, a partir de então, os membros desse grupo armado de poder ser tratados como vulgares delinquentes. Num segundo momento, verificados que estejam certos requisitos, poderão tais 37 grupos vir a ser reconhecidos como beligerantes, adquirindo um estatuto quase equiparado ao de um Estado. Numa sociedade internacional pouco institucionalizada (descentralizada), os Estados, enquanto únicos sujeitos de direito, beneficiavam de uma liberdade de actuação quase total. A enorme dispersão de poder dava azo a que cada Estado se considerasse como uma «comunidade perfeita» e auto-suficiente, permitindo que, aos poucos, se benquistasse uma concepção absoluta de soberania (a Kompetenz- Kompetenz de que falava JELLINEK). Este quadro circunstancial favorecia a existência de um direito internacional minimalista, que, pragmaticamente, se limitava a dar o seu beneplácito aos equilíbrios de força e de poder prevalecentes em cada momento, emprestando, nessa medida, alguma estabilidade e coerência às relações internacionais. Não se esperava, por conseguinte, que as normas jurídicas vigentes, porque informadas de preocupações de justiça material, visassem alterar o statu quo; visassem, por outras palavras, corrigir as disparidades e desequilíbrios de facto que em cada momento existissem. Deste jeito, não é para admirar que o direito internacional clássico seja encarado como um direito de “laisser-faire” (liberal) que ao “princípio da autonomia da vontade dos Estados” impõe ténues ou nenhumas barreiras. E isto, uma vez mais, por oposição ao que se verifica nos sistemas jurídicos internos, em que existe um conjunto de normas – de direito constitucional, de direito penal, de direito civil, etc. – que cerceiam a liberdade e autonomia dos cidadãos. Além de serem dotadas de uma eficácia limitada, tanto do ponto de vista subjectivo como objectivo, as normas jurídicas internacionais não recobriam, nesta fase, senão alguns domínios do relacionamento interestadual. Assim, do corpus do direito internacional positivo faziam parte, designadamente, normas relativas aos corolários da soberania estadual (territorial) e, bem assim, às liberdades do mar alto; normas – de inicio, apenas consuetudinárias – consagradoras de privilégios e imunidades diplomáticas e consulares; normas atinentes à responsabilidade internacional, as mais das vezes no âmbito específico do tratamento de estrangeiros; normas respeitantes à conclusão e condições de validade dos tratados; e, por último, como seria de esperar numa época em que se entendia que o recurso à guerra 38 consubstanciava uma faculdade discricionária dos Estados, normas concernentes a conflitos ou litígios internacionais e acerca da adopção de represálias. 2.2 – Fontes de direito No que se refere às fontes de direito internacional, elas quase se resumiam, no modelo de Westefália, ao costume e aos tratados bilaterais. Enquanto expressão de um direito voluntarista, as normas jurídicas internacionais assentavam, com efeito, no consentimento dos Estados, exprimido justamente através de processos consuetudinários ou “contratuais”. Temos aqui em mente, conforme se alcança, fontes em sentido formal, isto é, enquanto modos de revelação das normas ou, dito de outra forma, enquanto procedimentos técnicos de produção jurídica através dos quais surgem as várias normas. Diferente é o conceito de fontes materiais, que faz apelo aos fundamentos sociológicos, políticos, económicos, morais, etc. das normas, quer dizer, às necessidades sociais que lhes estão subjacentes e que, portanto, determinam o seu aparecimento. Sem pretendermos neste local desenvolver a temática das fontes de direito internacional, que será, de resto, objecto de tratamento autónomo no Capítulo II, não será despiciendo recordar que por costume se entende um processo espontâneo de formação de normas jurídicas, resultante da reunião de dois elementos: um elemento material ou objectivo, também designado consuetudo, reconduzível à adopção reiterada e uniforme – no tempo e no espaço – de certos comportamentos (os precedentes), e um elemento subjectivo ou psicológico, traduzido na consciência de obrigatoriedade jurídica que, transcorrido determinado período de tempo, experimentam os sujeitos de direito internacional ao adoptar tais comportamentos (opinio juris sive necessitatis). Por outro lado, os tratados são acordos de vontade entre dois ou mais sujeitos de direito internacional (inicialmente, apenas os Estados), dirigidos à produção de efeitos de direito e regulados predominant