Estória do Ladrão e do Papagaio PDF
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José Luandino Vieira
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Summary
This story, "Estória do Ladrão e do Papagaio", is a fictional tale set in Luanda, Angola. It follows the experiences of a man caught in a conflict with a police officer and then the friendship and support he receives from a friend during his trial. It explores themes of conflict, social situations and corruption in Angola.
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Estória do Ladrão e do Papagaio Um tal Lomelino dos Reis, Dosreis para os amigos e ex-Loló para as pequenas, vivia com a mulher dele e dois filhos no musseque Sambizanga. Melhor ainda: no sítio da confusão do Sambizanga com o Lixeira. As pessoas que estão morar lá dizem é o Sambizanga; a po...
Estória do Ladrão e do Papagaio Um tal Lomelino dos Reis, Dosreis para os amigos e ex-Loló para as pequenas, vivia com a mulher dele e dois filhos no musseque Sambizanga. Melhor ainda: no sítio da confusão do Sambizanga com o Lixeira. As pessoas que estão morar lá dizem é o Sambizanga; a polícia que anda patrulhar lá, quer já é Lixeira mesmo. Filho de Anica dos Reis, mãe, e de pai não lhe conhecia, o comerciante mais perto era mesmo o Amaral. Ou assim disse, na Judiciária, quando foi na justiça. Mas também podia ser mentira dele, lhe agarraram já com o saco, lá dentro sete patos gordos e vivos e as desculpas nasceram ainda poucas. Um amigo dele é que lhe salvou. O Futa, Xico Futa, deu-lhe encontro lá na esquadra, senão ia lhe pôr chicote o auxiliar Zuzé. Começou assim: Entrou meia-noite e meia já passava, o saco tinha ficado no piquete, os patos lá dentro a mexerem, cuacavam, cadavez estavam perceber tinham-lhes salvado o pescoço. Zuzé dormia nessa hora e sempre ficava raivoso quando lhe acordavam só para guardar um preso. Foi o que sucedeu. Cheio de sono, os olhos vermelhos parecia era tinha fumado diamba, deixou as mãos à toa revistarem o homem, resmungando, xingando só para ele ouvir. Dosreis nem que mexia nada; quieto, os braços em cima da cabeça, no coração a raiva desse sungaribengo do Garrido aumentava, crescia, arreganhava. Apostava quem queria, jurava mesmo, sabia, o coxo tinha-lhe queixado... — Elá! Isso aqui é o quê então? Pópilas! Se eu fico dormir... Ria, o sono tinha-lhe fugido logo dando encontro com a pequena faca de sapateiro, no bolso de trás. Dosreis, caçado, disfarçou arranjando os trapos do casaco todo roto e desarrumado da revista. Sambizanga — musseque de Luanda. Lixeira — musseque de Luanda. — Você és bandido, não é?... — Bandido não sou, não senhor! — Cala-te a boca mas é! Você é bandido... Vamos! Mas Dosreis não admitiu, não gostava ninguém que lhe empurrava. Tinha as pernas dele para andar, não era assim um cipaio qualquer que ia lhe enxotar, mesmo que estava na esquadra não fazia mal. Refilou: — Sukua’! Um aço assim pode se matar uma pessoa? Você tens cada uma... Xê! Não empurra! Sei o caminho! — Anda lá! ‘tás arreganhar? — Não empurra, já disse. Cipaios, tens a mania... E foi aí mesmo já dentro da cadeia que aumentou a confusão. Zuzé arreou-lhe uma chapada no pescoço e Dosreis saltou, quis lhe dar soco, mas, no escuro da cela, os trapos do casaco amarraram-lhe e o auxiliar pôs-lhe um soco na cara. Nessa hora, toda a gente já estava acordada com o barulho e adiantava refilar, xingar para o escuro, uns vieram separar ainda, outros só falavam asneiras de insultar famílias nesses sacristas, vinham assim acordar o sono leio, sem respeito... — Ená, seu sacana! Você pensas podes abusar autoridade, pensas? Dou-te com o chicote, ouviste, se você não ganhas juízo! Já se viu, um velho todo velho e ainda quer pelejar... — Velho é trapo! Não tenho medo de cipaio... As palavras ainda não tinham acabado e já lhe arreganhara uma cabeçada, de repente, na zuna, ninguém que podia pensar um corpo magro e pequeno, todo amarrado com os farrapos ia mesmo fazer aquela corrida parecia era pacassa. Zuzé nem teve tempo de fugir, só pôs as mãos para aguentar a cabeça do homem quando bateu na barriga dele. Aí é que apareceu o Futa, para desapartar e salvou o Lomelino mesmo na hora. — Elá, Dosreis! Calma então! Agarrou-lhe os braços atrás das costas, puxando com a força dele, de levantar barril cheio, sozinho, o Lomelino ficou no ar a mexer as pernas, parecia era um cuacar — o grasnar dos patos. esquadra — delegacia de polícia. leio (a) — alheio; dos outros. zuna — corrida com velocidade; que passa em velocidade; zunindo. boneco de brinquedo. Os outros queriam apaziguar o Zuzé, ele estava raivoso, então concordavam ele tinha razão, ninguém que podia dar-lhe cabeçada assim no serviço, era um polícia para lhe respeitarem e ele jurara se iam lhe largar punha chicotes nesse cap’verde... — Deixa lá. o homem, sô Zuzé... Está bêbado, não vês ainda? — Ih?! Bêbado? Esse bandido, ponho-lhe chicotes! — Pronto já! Ambul’o kuku, mano! Eu conheço-lhe bem, o homem só está com raiva da prisão... compreendes? A voz de Futa era assim como o corpo dele, quieta e grande e com força para calar os outros. Calaram mesmo; só que Zuzé agora queria — e isso ninguém que podia lhe convencer do contrário, eram as ordens de ordem-de-serviço — o Lomelino tinha de tomar banho, todos os bêbados quando entram têm de ir embaixo do chuveiro para passar as manias... Mas ninguém que lhe ouvia já, só gozavam, com olhares malandros no auxiliar, e falavam baixinho para Dosreis: não havia direito, um homem como ele, assim civilizado e limpo, a roupa estava velha, verdade, mas não adiantava, fazerem-lhe tomar banho no cacimbo, uma da manhã, parecia era um qualquer!... E isso era ainda para lhe verem arreganhar outra vez, xingar o cipaio, adiantarem gozar mais um pouco. Nessa hora, Xico Futa já ia acompanhar o Zuzé na porta, falando, todo abaixado em cima dele, Zuzé era um cambuta metade de bocado de cana só, explicando sabia o homem e a família, era um bom, só que agora parecia tinha qualquer coisa para lhe fazer ficar raivoso. Conhecia-lhe bem, de visita mesmo, jurava era um pacífico. — Aka! Um bom, assim com as cabeçadas?... Não precisa m’intrujar só, mano Futa. Hoje eu deixo, o amigo estás pedir, senão... Tudo estava ficar sossegado outra vez; muitos, já tinham-se deitado para dormir; Futa, nas grades despedia com o auxiliar, aproveitava acender cigarro na beata do outro. Mas não acabou, não, porque a raiva na cabeça de Dosreis era grande e não sabia como ia-lhe fazer para sair, a porta que era preciso abrir para chegar o ar pacassa — boi selvagem, semelhante ao búfalo. cap’verde — caboverde; no texto, caboverdiano. ambul’o kuku — deixa o avô; larga o velho. cambuta — baixinho. limpo e o sol quente outra vez. Só tinha lembrança do saco dos patos, sete patos gordinhos assim a dormir lá no piquete, nem chegara-lhes a ver. Atacara no escuro, devagar, um a um meteu no saco, cheio de cuidado para não assustar os gansos, esses é que fazem mais barulho que todos, na noite não presta para lhes roubar. Essa lembrança é que doía, pior que o sítio da chapada do cipaio aí na cara, em cima dos pêlos brancos da barba. Tinha de ser mesmo o Garrido que lhe queixara, não podia ser outro ainda, para lhe agarrarem logo-logo, nem que chegara no Rangel, no sítio de deixar o saco, o jipe deu-lhe encontro ainda perto da quitanda da Viúva. Azar! Mas esse sungaribengo ia-lhe pagar, jurava. E depois também, esse outro com a mania das chapadas só porque deu-lhe encontro com a faquinha... — Ximba não usa cueca! — berrou-lhe, parecia era monandengue. Alguns saltaram nas tábuas para lhe segurar, não deixaram Dosreis chegar nas grades, Futa agarrou-lhe embaixo dos braços, rindo no Zuzé para fazer desculpar, pondo dedo na testa a querer dizer. Depois, devagar, passeando na prisão enquanto o sono estava vir tapar os corpos ajuntados três-três cada tábua da cama, o amigo falou-lhe como mais novo para ouvir a sabedoria do mais velho, mas a verdade é quem estava a conselhar era o Futa mesmo. Um bocado escuro, uma falta de luz estava entrar na janela alta e a claridade pouca trazia sono com ela. Lomelino puxava o fumo quente, nessa falta de barulho da noite só o arder do tabaco misturava-se com o respirar das pessoas. Sentaram na ponta da tarimba, o grosso braço de Futa nas costas de Dosreis para proteger, parecia era asa de galinha tapando pintinho. — Então, compadre... estás melhor? O riso cabobo de Lomelino barulhou no meio do escuro e o outro riu também, cheio de vontade. — Sukua’, avô! Você estás velho mas arreganhas... — É! Esse sacana do cipaio... Mal que cheguei, nem esperou nem nada, deu- me com a chapada logo-logo! O qu’é eu ia fazer? Ficar-me? Possa! Lomelino dos Reis não leva porrada sem devolver, mano Futa! Chapada da cara, nem minha mãe, Deus Nosso Senhor Cristo lhe conserve! ximba — (gíria) cipaio. cabobo — sem dentes, desdentado. Mas tinha já alegria nessas palavras. Xico Futa espreitava o trabalho do “Francês-1” , o arder quente na boca desprotegida do velho, esse pequeno e vagaroso aquecer do cigarro que traz a calma e a vontade de rir. Era assim o auxiliar Zuzé, como foi lhe contando mano Futa, explicando todas as fraquezas, ensinando, para Dosreis saber, como é podia lhe cassumbular um pão mais, na hora do matabicho, só precisava falar bem mesmo, conversa de pessoa igual, quando Zuzé entrava, de manhã, para cumprimentar com a voz grossa dele: — Bom-dia meus senhores! Nem uazekele kié-uazeka kiambote, nem nada, era só assim a outra maneira civilizada como ele dizia, mas também depois ficava na boa conversa de patrícios e, então, aí o quimbundo já podia se assentar no meio de todas as palavras, ele até queria, porque para falar bem-bem português não podia, o exame da terceira é que estava lhe tirar agora e por isso não aceitava falar um português de toda a gente, só queria falar o mais superior. E na hora de adiantar escolher as duas pessoas, ou quatro, tanto faz, para saírem com os baldes de creolina e pano lavar as prisões dos brancos, essa simpatia era muito precisa, para escapar... — Cabeçada não, mano Dosreis! Cabeça só! Usa cabeça, o rapaz é bom... Chicote ele não põe, só quando lhe mandam para obedecer. E aí mesmo, cada vez arranja maneira de esquivar... Lhe conheço... O cacimbo chovia misturado com a luz, na janela estreita. O barulho dos sonos, o cheiro pesado de muita gente num sítio pouco, o correr da água na retrete, de não deixar dormir mais a pessoa que fica só pensar os casos da vida, tudo passeava junto na sala escura. O cigarro de Lomelino já tinha-se gastado, mas as palavras de amizade de Xico Futa também aqueciam, ajudavam a tapar os buracos do casaco roto. O amigo ensinou-lhe ainda nada que devia recusar fazer se era no refeitório, esse trabalho não estava igual de limpar o chão, era melhor. Aí, Zuzé deixava-lhes ficar todo tempo para lavar a louça e a mesa de cimento com devagar, podiam até assobiar e cantar com pouca força, e só depois, quando o serviço estava acabado, ele vinha todo de farda esticada... “Francês-1” — tipo de cigarro. — Deixa só, mano Lóló! O gajo aí parece é chefe! A investigar, passa dedo, mira nas canecas, cheira nas panelas... Deixa-lhe só, mano! Não dá-lhe corrida. Aguentas aí em sentido, direito se você pode e sempre que ele diz uma coisa, fala “sim, sô Zuzé” ou “sim, sôr auxiliar”... E o resto, Dosreis viu ele mesmo com os olhos dele, no outro dia. Zuzé mandou-lhes entrar e todo pão e a carne e a comida que estava sobrar falava eles podiam comer ou mesmo levar na cela, se queriam. Cambuta e grosso, puxava a cigarreira, “Francês” numa parte, com-filtro na outra, e facilitava escolhendo com o dedo: — Tirem daqui! Um cigarro assim sabia bem, mais melhor que muitos em liberdade mesmo, fumado com os amigos e companheiros de trabalho, bebendo e conversando. Verdade podia-se continuar chamar cipaio no Zuzé se ele não estava ali, mas no coração essa palavra já não queria dizer o mesmo. Com essas conversas a noite descia na manhã, a luz da madrugada começava despir as sombras dentro da sala, os barulhos do dia a nascer calavam todos os silêncios da prisão. — Tens sono, compadre? — Nada! A chapada acordou-me no coração e mesmo que você gaba assim esse teu amigo, a raiva ainda não dormiu... — E os casos que lhe trouxeram... como é então? A cara dele, larga e achatada, estava séria, queria aguentar, segurar a vontade, mas derrotou-se rindo: — O Zuzé falou lhe agarraram com um saco de patos... Verdade mesmo? Falar uns casos desses, de roubo de patos e azar de ser caçado na polícia, sem ficar parecer era pouco jeito de capianguista ou falta de conhecimento do serviço, só mesmo Lomelino dos Reis. Por isso começou logo-logo sem desculpa, falando quase sem mostrar vontade, a conversa desse sacrista do Kam’tuta que tinha-lhe posto queixa senão ninguém que ia lhe agarrar mais, a criação era um negócio ele sabia bem... — Você lembra esse gajo, não é? capianguista — larápio; ladrão de coisas pequenas. Que não, não lhe conhecia, não lembrava mais esse tal Kam’tuta, devolveu o Xico, pensando talvez aí mesmo estavam nascer mas era as mentiras do Lomelino. — Sukua’! Um rapaz coxo, estreitinho, puxa sempre a perna aleijada. Mulato. — Não lembro, mano!... Aleijado... espera... Só se fosse esse o tal que tinha um caixote de engraxar ali mesmo na frente do “Majestic”, espera só, um mulato-claro, o nome dele é Garrido, olhos azuis, quase um monandengue ainda, não é? Que sim, ele mesmo, confirmou Dosreis; e explicou a alcunha que estavam lhe chamar nos miúdos era o Kam’tuta, você percebe, mano, o rapaz tem vergonha de dormir com as mulheres por causa a perna assim, e depois... Vejam a vida: quem podia mais adivinhar um sonso como aquele era ainda um bufo para pôr queixa nos companheiros? Mas, no mesmo tempo, a dúvida também nasceu na cabeça de Futa, essas estórias de fanguistas de criação são sempre assim: quando lhes agarram é só de queixa porque eles sabem, nunca que deixam rasto para a polícia, são mestres, etc. — Olha ainda, Dosreis! Pensa bem, não lhe acusa assim à toa, no rapaz... — Acusar à toa? Eu? Você me conhece, mano Xico, você sabe eu sou um homem duma palavra, não falo se não tenho a certeza... O gajo queixou. Senão, como iam me dar encontro? Como?... Mas uma coisa é o que as pessoas pensam, aquilo que o coração lá dentro fala na cabeça, já modificado pelas razões dele, a vaidade, a preguiça de pensar mais, a raiva nas pessoas, o pouco saber; outra, os casos verdadeiros de uma maca. E isso mesmo disse-lhe Xico Futa. Depois, os casos ficaram mesmo bem sabidos: no fim da tarde desse dia, o Garrido Kam’tuta adiantou entrar também na esquadra, na mesma prisão que eles dois. Mas, antes, na Judiciária, passou assim; O Lomelino disse: sim, senhor, era o Lomelino dos Reis; pai, não sabia; mãe, Anica; o mesmo que já tinha falado na patrulha antes de lhe mandarem na esquadra. A casa dele explicou, mas também desviou e a polícia, com a preguiça, o caso não era de muita importância, roubo de sete patos, não ligou muito. Só que lhe agarraram bufo — informante, alcagüete. fanguista — larápio. gatuno. esquadra — delegacia de polícia. no casaco roto e velho, o chefe queria lhe pôr até chapadas, para ele falar quem eram os outros que ajudavam-lhe no capiango. Mas nada. Dosreis não gostava falar os amigos e só foi explicando melhor, baralhando as palavras de português, de crioulo, de quimbundo, ele sozinho é que tinha entrado lá, agarrado os bichos para o saco e tudo. Por quê? Ora essa, mulher e dois filhos, sô chefe, mesmo que os meninos já trabalham e a mulher lava, não chega, precisa arredondar o orçamento. — Arredondar o orçamento, seu sacana!? Com a criação dos outros... — Oh, sô chefe, criação minha eu não tenho!... Riu-se, mais contente. Xico Futa tinha-lhe falado os polícias andavam raivosos, qualquer palavra punham logo chapada, mas até nesse caso os homens estavam gozar o assunto, nem que ligaram muito, não queriam perguntar saber quem ia-lhe comprar os patos, ninguém que rouba assim à toa sete bicos para guardar no quintal... E isso, se eles queriam, ele falava mesmo, sabia o Kabulu tinha um primo era da polícia e não iam lhe fazer mal, mas assim ficava amarrado, Lomelino conhecia os truques todos e quando andava com a mangonha e não gostava mais fazer nada, o comerciante tinha de lhe adiantar uns fiados por conta... Mas o que é bom para o preso, polícia não pergunta. Escreveram nome do que deixou-se ser roubado, era Ramalho da Silva, para devolver os patos, mas aquele que ia lhe receber, nada. Tanto que aí, Dosreis pensou o melhor era ainda sair na dianteira dos casos, falar mesmo que não lhe perguntaram. — Ená, sô Zuzé! Meu azar, mano Futa! Pra quê eu pensei assim? Nem que disse o nome, nem nada. Puseram-me logo uma chapada, arreganharam para calar a boca, a polícia já sabia, se estava a armar em esperto ia sair chicote cavalmarinho. Pronto! Nessa hora calei, pópilas! Com a força, conversa não adianta, meus amigos... Zuzé aproveitou para meter a parte dele, ainda doía-lhe no coração a cabeçada antiga: — Ih! Então você não aproveitou para lhe arrear a cabeçada? — Não goza-me, senhor! Tem pena um velho como eu, sô Zuzé... Cabeçada no polícia branco? Você pensa eu só fui preso agora? Elá! Já conheço muito... Na última vez — contou —, tinham-lhe posto socos e chicotes mesmo, mas o capiango — roubo; furto. caso era outro, mais complicado, ele ficou sofrer também seis meses por causa o Kabulu. Esse branco tinha feitiço dele, ninguém que lhe agarrava, mesmo que lhe queixavam o nome. — Ih!? Feitiço, tuji! É mas é o primo dele... Pois é. Mas mesmo com primo na polícia podiam lhe agarrar para adiantar pagar a multa, e nada disso que sucedia nunca, E depois o azar conta no negócio das pessoas, e o azar com Kabulu não pelejava. Até no dia da última prisão — dezembro de 61, passei Natal na cadeia, Deus Nosso Senhor me perdoe — aquele caso dos barris de quimbombo e mais alguns de candingolo, o feiticeiro tinha-se escapado; ele, Lomelino dos Reis, é que sofreu na cadeia e o sacrista nem cigarros nem nada estava lhe mandar. — Como é você percebe, sô Zuzé, os casos assim? Sempre todos os dias, naquela hora, ele ia lá p’ra vigiar o serviço no quintal do quimbombo, a hora era a mesma que eles chegaram, seis horas sem falta, e nada! Nesse dia não apareceu, só quem adiantou vir foi a polícia?! Como é?... Sô Zuzé também não percebia; disfarçou metendo dedo nas panelas, pondo cara de importância, revistando os cantos do refeitório à procura dum lixo para xingar, fazer vaidade do cargo. Lomelino lamentava: — Esse homem não me larga mesmo, mano Xico. Como é eu vou fazer? Cada vez sinto com remorsos, quando vou na igreja com os meninos, nos domingos... Eles sabem! — Deixa! Vida de pessoa está escrita, não adianta!... — Naquele mês, depois desse caso do quimbombo, até procurei trabalho de vender gasolina e arranjei. Mas o gajo foi-me intrigar, arreganhou ia falar no patrão eu era um gatuno, falar os meus casos... — Pois é, Dosreis! Você, com essa pele de branco, não vão saber você é cap’verde... — E depois, isso tem nada? — Tem, mano Dosreis, tem! Assim podem dizer você mesmo fabrica, você é que é o dono. Se é preto e tem muitos barris, não podem lhe aceitar, mas assim até é bom... quimbombo — bebida fermentada de milho. Xico Futa falava, procurava um caminho para desamarrar a língua do amigo. Sentia faltavam ainda palavras, casos que Lomelino não queria contar. Porque lhe conhecia bem, não gostava as maneiras dele agora, sempre sacudido, raivoso, parecia estava zangado, gato encostado na parede com cão a atacar. E já nem olhava mais as pessoas na cara, os olhos sempre no chão, parecia tinha um peso em cima da cabeça, e isso não era que Xico Futa conhecia, de homem direito nas conversas e no serviço dele, mesmo que era do capiango ou outro. Mas Dosreis não queria, não aceitava fazer sair o que tinha guardado, mesmo que no peito agora estava-lhe roer uma dúvida, começou inchar muito tempo, desde a hora da manhã, quando voltou da justiça. Gostava falar tudo, mas não era com o Zuzé ali, sentia vergonha de pôr esses casos na frente do auxiliar. Com Xico Futa, seu amigo, era diferente, podia falar de igual, profissão era a mesma, cubata era vizinha, fome de um era a fome do outro, e só ele mesmo é que podia lhe tirar essa vergonha que estava crescer. — Ouve então, Xico... Parecia o vento sacudia-lhe na voz e batia as folhas na garganta, tão tremida estava sair embora. Os olhos agora eram os velhos olhos de Lomelino, mas cheios de água de vergonha no meio do escuro do refeitório. Só que não lhes aguentou assim, baixou outra vez para começar sorrir. Porque era essa a verdade: também era para rir o caso, estava mesmo a pensar a cara de banzado do rapaz quando lhe agarrassem e lhe trouxessem na esquadra para falar, aqueles casos dos sete patos, ele nem que sabia nada, não tinham-lhe deixado ir por causa era aleijado. O Garrido ia adivinhar a queixa era dele, Lomelino dos Reis, o homem ele chamava de seu mais amigo, o único que podia ler e lhe percebia ainda as confissões do coração feito pouco pelas pequenas, as maneiras delicadas de falar, gozo de todos; apostava ele ia chorar talvez, porque tinha coração bom de monandengue. — Estás rir de quê então, compadre Dosreis? — De vergonha, mano, de vergonha! E falou. As palavras saíam devagar, cheias de tristeza, também custava confessar mesmo quando é amigo que está ouvir e da profissão ainda, percebe todos os casos, doía dizer tinha falado o Garrido Kam’tuta lá na justiça, que sim, o rapaz ajudara-lhe candingolo — bebida fermentada de milho. no serviço, ficou de polícia para avisar as patrulhas se viessem e tudo era uma grande mentira porque até nem tinha aceitado o mulato nesses casos por causa era aleijado e não podia nem saltar quintal nem fugir se ia passar berrida. Mas mais pior era que os polícias nem tinham perguntado nada, não sabiam nada, sentiu bem naquela hora estava ser bufo, ninguém que lhe queixara, só o azar que dera-lhe encontro nessa noite e a patrulha desconfiou um saco tão grande. Até falou o resto, pôs o nome e tudo, Garrido Fernandes, cubata dele ali para cima, perto do Rangel, sozinho que morava num canto de favor até, na casa duma madrinha. — Oh! Deixa lá, mano! Agora se você volta lá na justiça, fala tudo é mentira, não adianta agarrar o rapaz, ele nem é do grupo nem nada... — Pois é! Mas o meu medo é se lhe dão encontro com qualquer coisa, lá em casa... E depois? Mas a conversa teve que acabar nessa hora. No corredor, o carcereiro, zangado, estava berrar o nome dele; guardou depressa as sandes de carne no meio dos farrapos do casaco e saiu nas corridas, despedindo à toa. — Lomelino dos Reis? Vinha a voz lá de longe, da porta. Duas e meia já eram, o sol espreitava a rir nas grades, o amarelo comia o escuro feio do corredor. Dosreis correu, atrapalhavam-lhe os trapos da roupa. — Esse sacana dos patos nunca mais vem? És tu? Depressa! Com depressa, depressa, batucava também o coração de Lomelino e a vontade de falar na justiça, as queixas que tinha posto no Kam’tuta eram um falso. Dizia Xico Futa: Pode mesmo a gente saber, com a certeza, como é um caso começou, aonde começou, por quê, pra quê, quem? Saber mesmo o que estava se passar no coração da pessoa que faz, que procura, desfaz ou estraga as conversas, as macas? Ou tudo que passa na vida não pode-se-lhe agarrar no princípio, quando chega nesse princípio vê afinal esse mesmo princípio era também o fim doutro princípio e então, se a gente segue assim, para trás ou para a frente, vê que não pode se partir o fio da vida, mesmo que está podre nalgum lado, ele sempre se emenda noutro sítio, cresce, desvia, foge, avança, curva, pára, esconde, aparece... E digo isto, tenho minha razão. As pessoas falam, as gentes que estão nas conversas, que sofrem os casos e as macas contam, e logo ali, ali mesmo, nessa hora em que passa qualquer confusão, cada qual fala a sua verdade e se continuam falar e discutir, a verdade começa a dar fruta, no fim é mesmo uma quinda de verdades e uma quinda de mentiras, que a mentira é já uma hora da verdade ou o contrário mesmo. Garrido Kam’tuta veio na esquadra porque roubou um papagaio. É verdade mesmo. Mas saber ainda o princípio, o meio, o fim dessa verdade, como é então? Num papagaio nada que se come; um papagaio fala um dono, não pode-se vender; um papagaio come muita jinguba e muito milho, um pobre coitado capianguista não gasta o dinheiro que arranja com bicho assim, não dá lucro. Pra quê então roubar ainda um pássaro desses? O fio da vida que mostra o quê, o como das conversas, mesmo que está podre não parte. Puxando-lhe, emendando-lhe, sempre a gente encontra um princípio num sítio qualquer, mesmo que esse princípio é o fim doutro princípio. Os pensamentos, na cabeça das pessoas, têm ainda de começar em qualquer parte, qualquer dia, qualquer caso. Só o que precisa é procurar saber. O papagaio Jacó, velho e doente, foi roubado num mulato coxo, Garrido Fernandes, medroso de mulheres por causa a sua perna aleijada, alcunhado de Kam’tuta. Mas onde começa a estória? Naquilo ele mesmo falou na esquadra quando deu entrada e fez as pazes com Lomelino dos Reis que lhe pôs queixa? Nas partes do auxiliar Zuzé, contando só o que adianta ler na nota de entrega do preso? Em Jacó? É assim como um cajueiro, um pau velho e bom, quando dá sombra e cajus inchados de sumo e os troncos grossos, tortos, recurvados, misturam-se, crescem uns para cima dos outros, nascem-lhes filhotes mais novos, estes fabricam uma teia de aranha em cima dos mais grossos e aí é que as folhas, largas e verdes, ficam depois colocadas, parece são moscas mexendo-se, presas, o vento é que faz. E os frutos vermelhos e amarelos são bocados de sol pendurados. As pessoas passam lá, não lhe ligam, vêem-lhe ali anos e anos, bebem o fresco da sombra, comem o maduro das frutas, os monandengues roubam as folhas a nascer para ferrar suas linhas de pescar e ninguém pensa: como começou este pau? Olhem-lhe bem, tirem as folhas todas: o pau vive. Quem sabe diz o sol dá-lhe comida por ali, mas o pau vive sem folhas. jinguba — amendoim. Subam nele, partam-lhe os paus novos, aqueles em vê, bons para paus-de-fisga, cortem-lhe mesmo todos: a árvore vive sempre com os outros grossos filhos dos troncos mais velhos agarrados ao pai gordo e espetado na terra. Fiquem malucos, chamem o trator ou arranjem as catanas, cortem, serrem, partam, tirem todos os filhos grossos do tronco-pai e depois saiam embora, satisfeitos: o pau de cajus acabou, descobriram o princípio dele. Mas chove a chuva, vem o calor, e um dia de manhã, quando vocês passam no caminho do cajueiro, uns verdes pequenos e envergonhados estão espreitar em todos os lados, em cima do bocado grosso, do tronco-pai. E se nessa hora com a vossa raiva toda de não lhe encontrarem o princípio, vocês vêm e cortam, rasgam, derrubam, arrancam-lhe pela raiz, tiram todas as raízes, saco-dem-lhes, destroem, secam, queimam-lhes mesmo e vêem tudo fugir para o ar feito muitos fumos, preto, cinzento-escuro, cinzento-rola, cinzento- sujo, branco, cor de marfim, não adiantem ficar vaidosos com a mania que partiram o fio da vida, descobriram o princípio do cajueiro... Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tábua de caixote, em frente do candeeiro; deixem cair a cabeça no balcão da quitanda, cheia do peso do vinho ou encham o peito de sal do mar que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um pequeno bocado, no cajueiro. Então, em vez de continuar descer no caminho da raiz à procura do princípio, deixem o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio e vão dar encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido. Mais ainda: se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterrada doutro pau. Nessa hora o trabalho tem de ser o mesmo: derrubar outro cajueiro e outro e outro... É assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem não podem ainda fugir sempre para trás, derrubando os cajueiros todos; nem correr sempre muito já na frente, fazendo nascer mais paus de cajus. É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas. Assim disse Xico Futa. Então podemos falar a raiz do caso da prisão do Kam’tuta foi o Jacó, papagaio mal-educado, mesmo que para trás damos encontro com Inácia, pequena de corpo redondo que ele gostava, ainda que era camuela de carinhos; e, na frente, com Dosreis e João Miguel, pessoas que não lhe ligavam muito e riam as manias do coxo. O resto é o que me contou ele mesmo, Kam’tuta; o que falou o Zuzé, auxiliar, que leu na nota da polícia; mais o que eu posso saber ainda duma pequena como a Inácia e dum papagaio de musseque. Na boca estreita de Garrido Fernandes tudo é por acaso. E as pessoas que lhe ouvem falar sentem mesmo o rapaz não acredita em sim, não acredita em não. Uma vez falou tudo o que ele queria não saía mais certo e tudo o que ele não queria também o caso era o mesmo; só passava-se tudo por acaso. Então, por acaso, vamos lhe encontrar na hora das cinco e tal no dia de ontem desse dia em que agarraram o Lomelino carregando o saco com os patos proibidos, metido na sombra da mandioqueira do quintal da Viúva, esperando Inácia. Não que a pequena tivesse-lhe marcado encontro, nada disso, essa sorte ele não tinha ainda; mas era aí mesmo, com a dona da quitanda do falecido sô Ruas, que a rapariga trabalhava. Garrido Fernandes gostava ir lá de tarde, na hora dos poucos fregueses, para provocar as palavras, mirar bem o corpo redondo dela, toda a hora procurar ganhar coragem para falar o gostar que tinha, a vontade de dizer as coisas bonitas, ficava-lhes inventando de noite, no canto da cubata da madrinha onde estava morar de favor. Porque toda a gente sabia o Garrido gostava a pequena e isso era o riso para todos os outros que queriam apalpar a moça na cara dele, convidar Inácia para ir na cama deles, pôr indiretas que lhe feriam mais que os olhos dela, de onça, brilhantes, mais que a voz mesmo, Inácia queria lhe fazer má mas, até xingando, era bom sentir-lhe. — Katul’o maku, sungadibengu... Era só mentira dela. Garrido nunca que tentou nem tocar com um dedo na pequena, ela punha esses truques só para os amigos lhe gozarem, chamarem-lhe de saliente, conquistador, de suinguista, as miúdas não resistiam no atrevimento das mãos dele... Kam’tuta sofria, mas não eram as coisas que lhe diziam, não. Era ainda porque pensava isso estava doer, mas era na Inácia, fazerem-lhe pouco assim na camuela — avarenta; egoísta; mesquinha. katul’o maku, sungadibengu — Tira as mãos, mulato. frente dela, E por quê? Ora!... Ali, na quitanda, era assim sem lhe ligar; mas na hora do fim da tarde, quando o sol quente está para esconder e o escuro vem com os passos manhosos dele, Inácia gostava ir embaixo da mandioqueira e ficar pôr conversas, deixar ele dizer muitas coisas nunca que tinha-lhes ouvido falar noutros, palavras que lhe descobriam o que não podia ser mas ia ser bom se pudesse ser, viver uma vida como Garrido prometia com ela ele arranjava, nem que se matava num trabalho qualquer, não fazia mal. Mas, depois, já com a tristeza da mentira dessas palavras ela gostava ouvir, pareciam vinho abafado, doce e quente, Inácia começava gozar, xingava-lhe a perna coxa, o medo de ele deitar com as mulheres e, nessa hora, adiantava pôr todas as manias, todas as palavras e idéias a senhora estava lhe ensinar ou ela costumava ouvir, e jurava, parecia ela queria se convencer mesmo, ia se casar mas era com um branco, não ia assim atrasar a raça com mulato qualquer, não pensasse. Garrido fugia embora, semana e semana ficava-lhe rondar, vigiar, sem outra coragem para falar, envergonhado. O corpo virava magro, nem a barba que fazia nem nada, os olhos dele, bonitos olhos azuis da parte do pai, cobriam de um cacimbo feio e, muitos bocados das noites sem dormir, pensava o melhor mesmo era se matar. Mas Inácia não estava má de propósito, adivinhava o sofrimento, chamava-lhe outra vez. Só os monanden-gues, sabedores dos casos, não paravam: zuniam-lhe cada vez pedradas, cada vez insultos, fazendo pouco a perna aleijada: — O Kam’tuta, sung’ó pé! Também quem inventou essa maneira de lhe insultar foi a Inácia: num fim de raiva berrou-lhe assim e toda a gente ficou repetir todos os dias, até o papagaio Jacó, que só falava asneira de quimbundo, aprendeu. E isso é que doía mal no Garrido. Nas pessoas, ele desculpava; nos monas, esquivava as pedradas; nos mais velhos, falava eles tinham coração de jacaré ou calava a boca para não passar maca, não era medo, mas ninguém que aceitava lutar mesmo que lhes provocava; e, então, com a Inácia, ficava parecia era burro mesmo: escondia a cabeça no peito magro e punha cara de miúdo agarrado a fazer um malfeito. Mas a nossa hora chega sempre. O Kam’tuta, sung’ó pé! — O Kam’tuta, puxa o pé! Nesse dia, Kam’tuta tinha-se resolvido. Agarrara uma coragem nova, toda a noite, toda manhã nada que dormiu, só pensando essas conversas para falar na Inácia: ia-lhe convencer de vez para viver com ele, gostar dele, deitar na cama dele, tinha de matar essa cobra enrolada no coração, essa falta de ar que estava lhe tapar nos olhos, no peito, feitiçar-lhe a vida, nada que podia fazer mais. Até tinham-lhe corrido num emprego, serviço de guarda, só ficava pensar a Inácia, a pele dela engraxada, via-lhe brilhar no meio dos fogos da fogueira, os risos dela a estalar na lenha e os capianguistas tinham vindo, carregaram cinco sacos de cimento, nem deu conta do barulho nem nada e o patrão levou-lhe na esquadra, ele é que pagou os casos. Assim, lá estava no fim da tarde e a maca só passava com o papagaio Jacó, bicho ordinário que sempre queria lhe morder e desatava insultar. Todos os dias tinha aquela luta: um lado, sentado nas massuícas, Garrido Fernandes, quileba , magro das razões da alcunha como falavam os monas e as pequenas por ali, arrumando a sua perna aleijada em qualquer lado, parecia era de borracha; do outro lado, nessa hora pendurado no pau de mandioqueira, o papagaio Jacó. De cor cinzenta, sujo de toda a poeira dos anos em cima dele, era mesmo um pássaro velho e mau, só três ou quatro penas encarnadas é que tinha no rabo. E nem merecia olhar- lhes, o bicho deixava aí secar o cocó dele, todo o dia andava passear, coçando os piolhos brancos, daqueles de galinhas, tinha muitos, gostava ir nas capoeiras. Mas isso Kam’tuta alegrava-se só de ver os galos porem-lhe uma surra de bicadas, o coitado tinha de voar embora, atrapalhado, com as asas cortadas. Nessa posição estavam se mirando, raivosos: olho azul, bonito e novo, de Garrido, no fundo da cara magra, espiando; olho amarelo, pequeno, parecia era missanga, no meio dos óculos de penas brancas, do Jacó, colocados no mulato, vigiando as mãos armadas de pequenas pedras. Kam’tuta pensava, conhecia papagaio da Baixa era diferente; tinha até um, numa senhora, assobiava hino nacional e fazia toque de corneta do batalhão e tudo. Quando lembrava esse, até tinha pena do Jacó, ranhoso e se coçando, cheio de bichos. Papagaio louro de bico encarnado có... có... có... có... O pássaro cantava, rematava dois assobios seguidos, de cambular as pequenas, mas sempre com os olhos amarelos bem no mulato, para esquivar as pedrinhas ele estava lhe arrumar. E até refilava com aquela voz de garganta que todos papagaios têm nesses casos. Só que acrescentava, punha mais insultos de quimbundo, até avó e avô ele sabia xingar. Assim distraído, arrumando-lhe as pedrinhas, Garrido nem deu conta a Inácia já estava lá na porta, a espiar, a gozar a luta. De propósito, ela chamou-lhe: — Kam’tuta! Pronto! Jacó larou, sacudindo e abrindo as asas a bater nas folhas de mandioqueira, parecia era acompanhamento de conjunto de farra, esticou pescoço dele, quase pelado, tão velho, e desatou gritar, misturando assobios, insultos, cantigas: O Kam’tuta... tuta... tuta... tuuuu... Sung’ó pé... pé... pé... pééééé... A raiva do bicho, de lhe agarrar no pescoço, cresceu; nessa hora Garrido estava mesmo pensar morar no mus-seque nem para pássaro papagaio é bom, andava ali só à toa, catando os milhos e as jingubas lá dentro na quitanda, bebendo com as galinhas, passear só no chão, na casa, nem poleiro próprio com corrente nem nada, nem gaiola bonita de dormir... Mas o vento soprava de fora, de propósito para desenhar as grossas coxas novas debaixo do vestido de Inácia e Kam’tuta ficou a ver a pequena atravessar no quintal, no andar desenhava-se o corpo redondo, as mamas gordas e direitas nem que mexiam, só os dentes brancos riam nele. — Ih! É você, Garrido? Já chegaste? Nada, nem uma palavra para lhe responder sabia. — Elá!... Não olha-me assim. Fico envergonhada... — Não goza, Inácia... quileba — alto e magro. cambular — aliciar. larar — defecar. Sentou o largo, redondo, duro mataco desenhado no fundo do vestido, Kam’tuta ficou pensar era sempre assim, só um pano em cima da pele, cadavez mesmo cuecas nada... e isso pôs-lhe um arrepio, ficou a correr o corpo todo até na perna aleijada, mas fugiu embora logo mirando os olhos, quietos e amigos, diferentes da provocação desse corpo cheio de sumo. Jacó desatou a xingar-lhe outra vez com os cantares dele, mas Inácia foi lhe dar umas jingubas, falando docinho, parecia até gostava era do bicho. — Então, querido! Pronto ainda! Toma, toma... Você sabe eu gosto de você... Hum! Meu bichinho... Garrido não aguentava essas palavras assim no papagaio, jurava sentia-se roubado, um bicho indecente receber esse amor e ele ali sem nada, até parecia Inácia estava fazer de propósito. Falou isso mesmo, mas a pequena pôs-lhe os olhos mansos nos olhos azuis e só perguntou: — Você pensa isso de mim? Você, que me gostas?! — Não, Inácia! Falei mal, não penso nada. É só porque o bicho é porco! — Porco? Sukua’! Jacó é limpo. Não é, meu amor, meu papagaizinho?... E continuava; a dor crescia no peito de Kam’tuta, ela parecia não percebia estava magoar-lhe lá dentro, doía. Até punha um tremer nas ancas para lhes remexer, roçando a cara dela no cinzento sujo do papagaio. — Inácia, ouve então! Me liga só um bocado! — Um bocado só, juro! Jurou e riu, afastando para levar o Jacó no quintal das galinhas, o bicho estava reclamar água, água, misturando cadavez essa palavra com muitas asneiras. Devagar, maré a encher, Garrido adiantou. Com receio, primeiro coisas à-toa que não mostravam o que ele queria; depois, os casos da vida assim sem descobrir trabalho de trabalhar mesmo, só uns biscates nos amigos, arranjar sola rota, tomba , salto, e quando lhe deixavam, também ia nuns serviços de noite, aí já que adiantava ajuntar umas macutas. E enrolava as palavras para desviar, meter no caminho que queria; Inácia já sabia: o rapaz sempre começava assim, medroso, com receio do quissen-de, mas cinco minutos nem que passavam a conversa já era aquela ele mataco — bunda, nádegas. tomba — remendo no sapato. macuta — moeda antiga da colônia. gostava, tinha estudado noites e dias sem parar, pergunta e resposta de Inácia, podia- lhe intrujar até, fazer ela ir a reboque para onde as conversas eram melhores para ele. — Sente, Garrido! — se lhe tratava de Garrido, já estava aceitar as conversas. — Você fala bem, és mesmo um vigarista, rapaz! Mas se eu ia-lhe aceitar, como é as pessoas iam falar? — Não liga nas pessoas! — Ih! Diziam já, um aleijado mesmo, nem que trabalha nem nada, só no capiango, como é ele vive e faz comer a mulher dele? — Procuro trabalho de trabalhar! — Você sempre fala isso, mês e mês, e até hoje, nada! Pra ser chulo de sua mulher você não quer, não é? — Por acaso não, Inácia, nem pensas nisso! — Mas é assim que iam te falar! Sukua’! Que eu recebia dos outros para você comer, Garrido. Não esquece a sua perna! — Oh! Nem fala a perna, merda! — Já estás disparatar? Sempre que te falo as verdades, você disparata-me logo, não é? — Não zanga, Naxinha, desculpa ainda! Não queria... — Naxinha é a mãe! A voz estava irritada, Kam’tuta sentia já no peito o medo ela ia se zangar. Passavam sempre assim também as conversas. Muito bem que ele aguentava quando falava só as coisas imaginadas de noite; mas depois, quando as conversas vinham nos casos de verdade mesmo, da vida de todos os dias, ele refilava as idéias de Inácia, ela só estava pensar na comida, na casa, no amor não falava, e o fim era sempre o mesmo: ficava ainda com a dor de perder as palavras do Garrido, essas que lhe faziam sonhar e ela não queria aceitar. Então magoava-lhe, e se ele adiantava continuar mesmo que lhe xingava assim, punha-lhe quissende para ele ir embora. Garrido tinha jurado, nessa hora quando veio, ia sair com resposta de sim ou não. Se sim, para dormir na cama dele; se não, nunca mais lhe falar e procurar matar o quissonde que lhe ferrava no peito. Por isso não desistiu logo-logo, continuou a chulo — que explora a mulher, que vive ã custa da mulher. quissonde — formiga vermelha de picada dolorosa. conversa dele, mas mais nada que podia voltar ao princípio. Inácia já estava má, com as falas de meio-riso na boca, provocadora. — Olha até, Garrido! — ainda lhe falava assim, a zanga estava só principiar. — Já te falei uma vez eu vou ser como a minha senhora, ouviste? Uns olhos de cão batido miravam-lhe lá no fundo da cara dele, lisa, da barba feita com cuidado, parecia era monandengue. E esses olhos assim ainda raivavam mais Inácia, faziam-lhe sentir o rapaz era mais melhor que ela, mesmo que estava com aquelas manias de menino que não dormiu com mulher, não sabe nada da vida, pensa pode-se viver é de palavras de amor. Por causa essa razão queria-lhe magoar, envergonhar-lhe como cadavez gostava de fazer. — E olha mais, Kam’tuta... A cabeça dele caiu e a pele lisa ficou cheia de riscos em todos os lados, a fome não enchia as peles e a tristeza punha-lhe velhice, mesmo que era um mais novo. —...aviso-te, enh?! Ficas avisado! Quando eu vou com a minha senhora, você nem que me cumprimenta, ouviste? ‘tás perceber? Nem que t’atreves a cumprimentar! Senão t’insulto mesmo aí no meio da rua! — Pronto, está bem, Inácia. — Cala-te a boca, eu é que falo! Ou você pensa eu vou vestir os vestidos minha senhora me dá embora, vestir sapato de salto, pôr mesmo batom — se eu quero, ponho, ouviu? Ponho! —, para ser ainda cumprimentada por um qualquer à- toa como você? Pensas? Os olhos azuis estavam outra vez colocados na cara dela e mostravam o princípio de um sorriso na boca es-treitinha. Não tinha mais vergonha esse sungaribengo, a gente insulta-lhe e ele fica sorrir com cara não sei de quê, parece é maluco. Também era bom, quente, ver uma amizade assim, nada que lhe acabava, mesmo que ela punha chapadas apostava ele um dia ia voltar. Sentiu, nessa hora, vergonha das palavras que tinha-lhe falado, mas não queria ainda desculpar senão o rapaz ia pensar tinha-lhe convencido. Mas não podia esconder todos os pensamentos, nos grandes olhos tinha muito brilho, cresciam no meio da cara bonita e larga, de pele bem esticada, parecia iam-lhe ocupar toda, tudo, com essa luz que davam. — Pronto, Inácia, desculpa então... Garrido atreveu isso com consentimento dos olhos dela. Inácia não respondeu, ficou olhar só, na cabeça dela estava passar confusão, não sabia mais como é ia lhe tratar nesse homem assim diferente, não se zangava, era fraco, a gente podia lhe insultar e tudo, mas nas palavras dele tinha um bocado de força, talvez se as pessoas fizessem o que ele queria, cadavez ia sair bem, quem sabe? Mas como é ela ia viver então com um aleijado, todo o musseque dali sabia, ele com a vergonha da perna, nunca que tinha-se deitado com mulher, as pessoas iam fazer pouco, uma pequena assim bonita e macia, rija como ela, Inácia Domingas, amigar com um homem à-toa e tantos que lhe queriam? E mais pior mesmo, sem serviço nem patrão. A tarde descia depressa porque era cacimbo, o dia fugia cedo, do frio, do vento a xaxualhar nas folhas. No quintal, Jacó insultava, assobiava, cantava, sempre aos saltos para esquivar as bicadas dos galos. Inácia tinha-se calado, triste, estava só coçar o dedo grande do pé, deixar a cabeça fugir com as palavras do Garrido. — Tem matacanha aí, Inácia? — Ih! Sukua’! Você pensa eu vivo na lixeira? Mas ria, deitada em cima do pé, a raspar com a unha, sentia outra vez vontade de brincar. Esticou a perna na frente da cara dele, falou: — É mesmo, Garrido. Imagina só, onde é que eu apanhei-lhe não sei... — Aqui tem galinha, tem quintal... — Você pode me tirar? Podes? Se você gosta de mim, não custa, mentira? Essa idéia era mesmo daquela Inácia ele gostava olhar só, sem lhe mexer, da pequena que lhe apalpavam na quitanda e sempre esquivava e ria e punha partidas e brincadeiras para todos. Só Garrido é que não, nem ele sentia vontade, nem Inácia tinha coragem para deixar e depois, para desforrar, fazia-lhe pouco. — Dá alfinete, então! — Elá! Mas chega bem aqui! Não vai tirar assim de longe... Chegou mais junto dela e parecia o vento frio do cacimbo tinha ficado quente nessa hora mesmo. — Senta no chão, dá mais jeito, Gagá... Tinha voz dela doce outra vez e os olhos macios. Empurrou-lhe o pé na barriga, com devagar de gato, o largo pé descalço de menina de musseque, mesmo matacanha — espécie de pulga que penetra na pele. em cima do meio das pernas, para pôr cócegas, e um fósforo aceso correu no sangue de Garrido, jindungo, quissondes a morder-lhe, era bom. Para passar a confusão que lhe atacava começou, com toda falta de jeito, a bicar com alfinete, mas a ponta não queria ficar quieta, não acertava na cabeça do bicho. Era uma bitacaia nova, ainda só começava entrar, metade de fora parecia estava espreitar, cocaiar , gozando as pessoas, não era mauindo ainda, não. Por isso mais, comichão estava muita. E a técnica de Kam’tuta, nesses casos, era encostar uma agulha fina na pele e avançar devagar, furar-lhe o corpo um bocado só, pouco, e, depois — tau! —, puxar-lhe. Mas como ia fazer nessa hora em que ele todo tremia, cheio de frio do calor no sangue e a mão quente de Inácia tinha-lhe agarrado na capanga dele para não cair e todo o peito rijo e macio, a boa catinga do corpo maduro dela estavam em cima dele, sentia-lhe entrar em todos os buracos da roupa? Atrapalhado levantou um bocado a cabeça para respirar bem, ver se o quente ia embora, mas isso é que foi mesmo o pior, até a cabeça caiu com o peso do sangue a bater em todos os lados, ngoma de farra dentro das orelhas. Inácia tinha puxado a saia bem em cima dos joelhos redondos e lisos e Garrido sentiu nos olhos a queimar-lhe, a tapar tudo o resto, aquela pele preta, engraxada, luzia no escuro lá dentro das coxas compridas e rijas e esse sentir queria lhe puxar a cabeça mais em cima para espreitar outra vez, mais, era bom aquele branco a chamar lá no fim do escuro todo do corpo dela, Garrido podia jurar não tinha cor mais bonita que aquela, um branco muito lavado lá no fundo da noite da saia, mais escura agora com a noite de verdade que chegava, quem sabe mesmo, com as corridas para tapar o encarnado da cara de Garrido Fernandes. — Ená, Gagá! Não treme então! Segura com a outra mão... Agarrou-lhe no tornozelo bem feito, apertando com carinho. O calor parecia corria nos braços como água da chuva, saía do corpo dele com depressa, para entrar na perna da Inácia, ela até tinha-se abaixado mais fingido era para espiar o trabalho, mas, com a respiração, só as mamas macias faziam festas na cabeça de bitacaia — espécie de pulga que penetra na pele. cocaiar — espreitar. mauindo — saco de ovos da bitacaia. capanga — parte posterior do pescoço, cangote; braço dobrado à volta do pescoço (golpe de luta). ngoma — tambor. monandengue do Garrido. Talvez mesmo, quem sabe?, a bitacaia nessa hora estava gozar os falhanços de Kam’tuta, ele, que era um mestre nos mauindos, não conseguia lhe furar. Verdade que o alfinete estava grosso, mas um como ele, devia trabalhar ainda com qualquer ferramenta à-toa. Sentiu a bitacaia podia morar mesmo lá, pôr ovo, fazer mauindo, nada que lhe interessava já nessa hora; se ia continuar assim com os quissondes a lhe atacar no sangue cadavez mais e a malandra da Inácia a chegar, a encostar, mostrar os segredos do corpo dela, provocar dessa maneira, cadavez podia ainda pensar ela queria dele, ia lhe agarrar ali mesmo, atrás da capoeira, que a noite já prestava, escura que vinha. Mas quem veio, num vôo torto, foi o Jacó. Pousou na dona, desatou bicar o Garrido, estragou-lhe o serviço que queria fazer, deu-lhe berrida até embaixo da mandioqueira. Falei a raiz da estória era o Jacó e é verdade mesmo, porque se não era esse bicho ter todos os carinhos de Inácia, nada que ia suceder, nem o Kam’tuta aceitava o que a pequena pediu-lhe no fim e era uma vergonha, ele já não estava mais monandengue de andar fazer essas habilidades. Mas como é Garrido podia, cheio de vontade pela Inácia, queria-lhe mesmo amigar para acabar a dor no coração e matar os quissondes que andavam-lhe passear no sangue, como é ele ia fazer, se um papagaio velho e sujo, mal-educado, adiantava pôr beijo na boca da pequena e esconder embaixo das pernas dela? A noite estava chegar, mas já morava no coração de Garrido logo na hora a Inácia decidiu acabar mesmo zangar o rapaz com o Jacó. Disse baixinho, quase nem que se ouvia: — Kam’tuta, sunga... Nem precisou acabar. Logo o Jacó abriu a asa e pôs um barulho parecia era riso de pessoa, antes de falar. Cantou: Kam’tuta... tuta... tuta... sung’ó pé... pé... pé... E depois Inácia continuou furar no coração dele. Disse: falhanço — tentativa frustrada. — Tunda!... Jacó não esperou. Mais alto que tudo continuou cantar: Sung’ó pé... tundé... tundé... tundé... sung’ó pé... pé... E lembrou mesmo mais, para acabar a brincadeira: pegou o bago de jinguba no bolso, pôs na boca dela, pediu: — Jacó, Jacó... tira o baguinho! Jacó veio e com o cantar de riso dele, bicou-lhe na boca, tirou-lhe a jinguba. Garrido, era um soco cadavez ele fazia isso. Nem que aguentou mais, pediu: — Inácia! Você me faz pouco, se quiser. Mas não deixa esse rosqueiro te mexer na boca. Um bicho porco! Com cara de menina que não sabe nada, pôs os olhos grandes na cara de Garrido: — Ai? Tem mal? — Tem, Naxa, Nem que refilou lhe chamar como ela não gostava. — Tenho ciúme do bicho, pronto! Já sabe! Não tinha mesmo no mundo cara tão sonsa como de Inácia nessa hora: — Não digas?! Você sente raiva por papagaio me pôr beijo assim?... — Por acaso sim, Inácia, não faz mais! — E se eu digo a ele: Jacó! Jacó! procura o bago... Nessa hora foi só ver o papagaio meter o bico, a cabeça toda no decote largo, procurando a jinguba Inácia tinha deitado lá no meio das mamas gordas que tremiam com o sacudir das asas do pássaro. Garrido nem sabia já o que sentia: se era o quissonde no sangue, o jin-dungo a correr, pensando o peito dela assim bicado devagarinho como Jacó sabia; se era raiva de apertar pescoço nesse bicho ordinário, podia mexer onde ele até tinha vergonha de olhar só. — Também tem ciúme do meu peito, Gagá? — Juro! Por acaso tenho! E raiva no Jacó! tunda! — rua!; sai! Sung’ó pé tundé... tundé... tundé... sung’ó pé... — Puxa o pé... rua... rua... rua... puxa o pé... — E se eu deixo ele andar dentro do vestido, você zanga, Gagá? — Por acaso! Por acaso sou capaz de lhe apertar o pescoço. Juro! Inácia, não faz isso, não faz isso, não me provoca só, Naxa! Mas o Jacó já saía com a cabeça do peito para engolir o bago, tinha-lhe encontrado, a Inácia ria toda, mexia, torcida de cócegas que as penas lhe punham. — Fica quieto, Jacó! Está me pôr comichões... — É os piolhos do fidamãe! — Não tem piolhos o Jacó! Piolho tem você... Jacó... Jacó... vai chover! Nessas palavras então era o cúmulo, ninguém que podia mesmo continuar ali a ser gozado dessa maneira assim, sem respeito. O papagaio desceu devagar e espreitando com a cabeça nos joelhos apertados da Inácia, meteu-lhe embaixo da bainha, começou a andar lá para dentro, para o escuro, largando seus pios e assobios, cantarolando : Vai vir chuva... vai vir chuva... Inácia ria, torcida com cócegas, a cara de raivado do Garrido Fernandes. E quando o rapaz levantou-se devagar para adiantar arrancar com a perna aleijada, feito pouco, triste e envergonhado, Inácia chamou-lhe manso, com todo o açúcar- preto da voz dela: — Gagá! Não me deixa só no escuro... É que o escuro tinha descido já. as luzes começavam piscar em todos os lados, na quitanda já tinha barulho de homens a gastar o dinheiro no vinho, voltando do serviço. Garrido parou, baralhado, não sabia se ficava, se ia embora; se calhar era só para adiantar fazer mais pouco que lhe chamava, a voz era de mentira, aquele Gagá não queria dizer. Mas, devagar, veio sentar-se mais perto dela, pediu: — Primeiro, se você quer eu fico, enxota o fidamãe do Jacó! Inácia aceitou, deu-lhe berrida; o bicho foi embora pelo chão, pesado e torto, parecia era pato marreco, falando os insultos sô Ruas tinha-lhe ensinado e ele nunca esquecia. — Depois, se você quer eu fico para te tomar conta até na hora de vir a tua senhora, deixa ainda te dar um beijo! — Elá! ‘tá saliente!... Nem Kam’tuta mesmo que sabia como é tinha-lhe saído essas palavras na garganta, nada que tinha pensado disso naquela hora, se calhar era o quente do sangue que ensinava a coragem desses pedidos assim. Inácia riu muito, os seus dentes todos de coco ficaram a tremer no escuro, a pôr música nas orelhas de Kam’tuta. — ‘tá bem! Aceito! Atrapalhado, não esperava ela ia dizer sim, Garrido levantou os braços, a cabeça começou trabalhar mais depressa que as mãos e sentiu, mesmo sem lhe tocar, a pele quente das costas que ia abraçar, o macio de sumaúma dos lábios grossos, o molhado quente da boca dela, tudo assim como pensava de noite, os olhos abertos no escuro do seu canto onde dormia e fabricava aventuras que nunca se passavam mais. — Espera ainda! Você pode me pôr um beijo, se você quer te deixo mesmo passar sua mão nas minhas pernas, mas quero troco também... — Diz, diz! Eu faço já! — Juras? — Juro a alma da minha mãe! — Olha então... Eu ouvi que você pode mesmo andar ao contrário... Põe mãos no chão, arruma tua perna aleijada na capanga e anda em volta do quintal para eu te ver ainda! — Não! Uma dor grande, de lhe pôr chapadas, estava nas mãos levantadas prontas para lhe abraçar. — Não, Naxa! Não faz pouco de mim, assim! — Ai?! Fazer pouco, como então? Pra você se mostrar... — Não! Não sou Nuno. E mesmo se eu faço, não é habilidade nada. E só porque sou aleijado, e Deus Nosso Senhor assim é que mandou... — Deixa, pronto!... Você é que sabe, Gagá. Se não queres me pôr um beijo, se não gostas as minhas pernas, é contigo. Mas depois não vem me chamar eu sou camuela consigo, só gosto os outros! Uma vontade de chorar, de berrar, de rasgar aquela cara de miúda sem pecado da Inácia, a olhar-me quieta, com os grandes olhos de fogo, é que tinha. Mas as mãos não aceitavam chapadas, queriam era só abraçar-lhe, amarrar-lhe no corpo estreito dele, esfomeado, cheio de sede. Com as lágrimas quase a chover, baixou a cabeça, estendeu os braços magros e pôs as largas mãos no chão. Nem precisou dar balanço nem nada, o corpo ficou pendurado para baixo, uma perna no ar e a outra, fina e aleijada, enrolou logo no pescoço. Assim quieto, endireitou a cabeça de monandengue. Mirou Inácia sentada, viu a tristeza mesmo, a pena, já estavam chegar, vendo-lhe nessa posição é que parecia ele era meio-homem só. Mas não quis olhar-lhe mais, começou andar. Cada passo das mãos era um espinho no coração, um peso que acrescentava, não deixava ir na zuna e ele queria acabar logo-logo, fugir dessa figura que ele mesmo via dar a volta no quintal com depressa, quase era corrida já, para matar a vergonha, ninguém lhe ver, adiantar receber o prêmio, fugir para longe. — Pronto, já ‘cabei, Naxa... Estava triste, triste, a voz. Azuis, os olhos quase cacimbados. Sem força nos braços para abraçar. Mas o quissonde veio morder outra vez no sangue vendo Inácia assim quieta, derrotada, nem que mexia, só os olhos a mirarem para lá da mandioqueira, já não a rapariga antiga, parecia era uma miúda mesmo. Uma grande ternura cobriu a vergonha toda do Kam’tuta, apagou a tristeza, desculpou as malandrices da Inácia, queria-lhe pôr festas, falar coisas bonitas, prometer, fazer, mas nessa hora só conseguiu abaixar-se sorrindo bom, para um abraço melhor ainda do que queria, sem jindungo no corpo, sem vontade de lhe apertar, de lhe encostar nele, só de pôr brincadeira no cabelo dela, passar a mão na pele redonda dos ombros, repetir mansinho nas orelhas dela as palavras ele sabia ela gostava. E se não tivesse pensado assim, se não estivesse cheio dessa felicidade que vem sempre quando a gente pensa as coisas boas para outra pessoa, tinha pelejado, tinha arreado porrada na Inácia, não fazia mal ela era uma mulher, não havia direito fazer pouco assim um homem. Mas não, a felicidade não deixou. A chapada de Inácia, os gritos da pequena no meio das lágrimas, depois as gargalhadas de mentira, só lhe fizeram ficar mais banzado, de boca aberta, nem a chapada na cara que lhe doeu, os olhos azuis grandes e fundos ficaram mirar espantados, tudo parecia estava cacimbado — molhado, enevoado pelas lágrimas. suceder no meio do fumo da diamba, a Inácia a gritar, xalada, a insultar-lhe correndo para dentro da quitanda: — Sungaribengo de merda! Filho da mãe aleijado! Sem-pernas da tuji! Pensas podes-me comprar com brincadeira de macaco, pensas? Tunda! Tunda! Vai ‘mbora saguim mulato, seu palhaço!... Com devagar, puxando atrás dele a perna aleijada, o coração rebentado, o sangue frio, mais frio que o cacimbo das lágrimas e da noite fechada em cima do musseque, Garrido sentiu ainda muito tempo os assobios, a voz de fazer-pouco do fidamãe do papagaio Jacó, xin-gando-lhe lá de dentro da mandioqueira: Kam’tuta... sung’ó pé... o pé... pé... pé... João Miguel, que lhe chamavam o Via-Rápida, era o cabeça. Ninguém que discutia, verdade de todos, nem pensavam podia ser diferente. Mas o homem de confiança era o cap’verde Lomelino dos Reis por causa só ele é que falava no Kabulu, sem esse branco o negócio não andava mais. E com Garrido Fernandes, o Kam’tuta, eram a quadrilha. Quadrilha à-toa, nunca ninguém que lhe organizara nem nada, e só nasceu assim da precisão de estarem juntos por causa beber juntos e as casas eram perto. Sem mesmo adiantarem combinar, um dia fizeram um assalto numa montra de barbeiro e deram conta Lomelino executou, Via-Rápida ajudou e Kam’tuta atrasou fingindo mijar na parede, a vigiar por causa as patrulhas. Pronto, ficou assim: o cabeça era o João Miguel, ele é que dividiu o dinheiro; quem lhe arranjou foi o Dosreis vendendo o perfume e outras coisas no Kabulu e todos ficaram confiar nele senão não podiam mais trabalhar; Kam’tuta, aleijado, só serviu para avisar. Ficava de vigia e quando os outros queriam nem lhe avisavam nem nada para não atrapalhar se era o caso de agarrar uma berrida. No fim, davam-lhe a parte dele: metade de uma metade, se não ia; uma parte igual dos outros, se lhes acompanhava. Assim, nunca podia pôr queixa deles. A reunião era sempre aí na quitanda do Amaral, oito horas — oito e meia, hora que começavam sair nas cubatas, jantar já na barriga, depois de passar o dia à toa na Baixa, procurando emprego de verdade ou dormindo no quintal quando era dia xalada — maluca; doída. seguinte dum trabalho. João Miguel é que estava sempre o primeiro a chegar e quando Dosreis entrava já o rapaz tinha bebido mais de meio-litro com gasosa como ele gostava. Mas nessa noite dos patos tudo que começou, começou passar ao contrário, parecia já estava se adivinhar era diferente, alguma coisa que ia suceder. Quando o Lomelino chegou, cansado do caminho no Rangel e mais para lá, o João Miguel ainda não tinha aparecido. Perguntou para menino Luís, o empregado, mas ele falou não, o Via-Rápida não tinha estado lá. Nove horas eram quase, cadavez o rapaz tinha ido no cinema com alguma pequena, mas sempre assim ele avisava primeiro. Só que hoje não podia faltar, tinha-lhe deixado um aviso na vizinha Mariquinha, para lhe dar encontro oito e meia no Amaral. Bem, esperar. Sentado no canto deles, Lomelino acendeu o cigarro, mas a cabeça não queria ficar mais quieta, agüentar o jeito de esperar no amigo, também não era tarde ainda. Não, Os pensamentos não aceitavam e a preocupação enchia-lhe pouco-pouco com o virar do tempo. Porque ia ser pena se perdiam essa noite assim escura para fazer o trabalho dos patos do Ramalho da Silva, lá no Marçal. Já andava lhe estudar muito tempo, desde o dia João Miguel descobriu era um pouco fácil de fazer e o lucro certo. Mas lucro certo também só se o Lomelino ajudasse com os conhecimentos dele. Custou a convencer o Kabulu, o homem não gostava esse assunto de criação, só queria as coisas de guardar numa cubata sozinha sem ninguém para lhe tomar conta, bicho que mexe e fala é preciso tratar e sempre chama polícia. Dosreis falou agora as coisas quietas estavam bem guardadas e as patrulhas eram de mais e, depois ainda, nestes tempos, entrar em casa leia é perigoso, as pessoas põem logo tiro e a desculpa é que é terrorista e pronto, os casos ficam arrumados. Voltou então para receber resposta nesse dia, sete horas lá estava, encostado no balcão, bebendo seu meio-litro, fingindo. Sô Kabulu, gordo e encarnado, veio para ele, mas só lhe disse estas palavras: — Carreguem-lhes na casa do Zeca Burro! Melhor. No Zeca Burro conhecia-lhe bem: matador de cabritos roubados para vender a carne, uma vez fizeram-lhe até um negócio dumas cabrinhas que já estavam mesmo velhas e doentes e rendeu. Com ele era canja; o pior era o assunto quem tinha-lhe tratado era o Kabulu e esse gosmeiro é que ia tirar o lucro, apostava meio-litro — vinho. só ia lhes pagar os bicos preço do Kinaxixi menos que metade e depois recebia mais que o dobro no Zeca Burro. E eram mesmo uns patos gordos, não andavam no lixo, vadiar nos musseques, não. Tinha um até, branco quase, que ele tinha-lhe visto bem, esse bicho cadavez ia rebentar se lhe engordavam mais, quatro quilos apostava. Saiu embora na loja do Kabulu, no escuro veio vindo devagar para ganhar tempo e não cansar de mais, a respiração já estava lhe fazer partidas, nesses dias de trabalho o coração acelerava e o sangue, habituado à mangonha do trabalho quieto, corria logo com a idéia do escuro, do serviço, e também pensava cadavez o João Miguel ia refilar por ele não ter-se lembrado mais do Zeca Burro, assim iam perder um lucro de patos gordos. Mas com João Miguel ele aceitava, o menino era mesmo monandengue ainda, vinte e quatro anos só, obedecia-lhe como pai, respeito de mais velho. A não ser o rapaz tinha sonhado outra vez os casos antigos e estava na diamba. Talvez era isso para não estar lá na hora combinada, só porque adiantou fumar. E nem mesmo ao menos o Kam’tuta para lhe acompanhar, ali no sozinho. Mas esse, ele sabia o rapaz agora esses dias só rondava a quitanda da Viúva para ver a Inácia, parecia era um galo com aquela cabeça grande em cima do pescoço fino a arrastar a perna, Deus Nosso Senhor lhe perdoasse, não deve se fazer pouco um aleijado, mas era mesmo parecido um galo o Kam’tuta. — Boas-noites, compadre Dosreis! Era o Via-Rápida e sentou logo parecia nem podia mais com o corpo dele. Ficou olhar, banzado, na cara do Lomelino, parecia nunca tinha-lhe visto mais na vida, os olhos quase fechados, quietos, cheios de encarnado de sangue, respirando devagar, mas com força, sopro de vapor de comboio. Sempre que lhe via assim, Dosreis pensava o rapaz era uma máquina. Não era mais porque o serviço dele era agulheiro, no tempo que estava trabalhar no Cê-Efe-Bê, no Luso, nem das estórias que ele punha falando os casos da sua vida de ferroviário. Mas aqueles olhos assim quietos, vermelhos, pareciam eram mesmo as luzes da locomotiva. A força do vento da respiração, na boca, saía com o fumo do cigarro, e o nariz dele, largo e achatado como a frente da máquina, assobiava nessas horas. Forte e todo encolhido na cadeira, só a cabeça esticada por cima da mesa, parecia estava fazer uma força Kinaxixi — bairro, musseque de Luanda. Cê-Efe-Bê — C. F. B. ou Caminho de Ferro de Benguela. grande de rebocar muitos vagões de minério. Mas a verdade era só que o João Miguel estava chegar mas era de fumar a diamba. E não queria falar. — Estás bom, João? — Bem ‘brigado, mano Dosreis! Silêncio outra vez. Custava engatar a conversa assim com ele, era preciso ainda deixar-lhe sozinho, o veneno da planta derreter no sangue com a velocidade que ele andava e sair embora na respiração. Perigoso até falar, mesmo que quase sempre João Miguel ficava mas é triste porque ele não queria mais fumar, só fumava mesmo quando os casos antigos começavam-lhe arreganhar, não deixavam dormir. — Vai um copo, João? — ‘brigado, vai. O quente era bom dentro dele, a paz, uma vontade de não fazer mesmo nada, só sorrir, sorrir, pôr as coisas boas, cantar. Mas os casos não deixavam, estavam fundos, bem fundos, porque Félix era o grande amigo e lá não chegava o feitiço da diamba. Mesmo que lhe tirava a raiz deles, não conseguia apagar mais o sangue espalhado na linha, nas rodas da máquina, nem aquela figura do Félix, todo estragado, a cabeça do outro lado, dentro das linhas, em cima da brita, e o corpo, o corpo de miúdo ainda, torcido, as pernas, com o peso da roda no pescoço, tinham-se levantado, parecia até ele estava com elas no ar na hora da ginástica do clube, até dava vontade de rir. Não, esse sangue nada que lhe tirava no fundo dos olhos, esse cadáver do Félix falecido assim, matado por ele, ele mesmo, João Miguel. Lembra bem: a 205 vinha devagar, comboio da lenha; o Chaveco, maquinista, pôs um adeus de amigo e o Félix fazia-lhe caretas, abraçado no outro, gozando e avisando-lhe a rir: — Logo nas cinco! Sai treino! E parece mesmo pode ainda ver os risos dos homens no escuro da máquina, o fumo branco que lhes rodeava parecia grande cacimbo, sentir sempre nas orelhas esses risos. E depois?... — Mano Dosreis, este vinho é uma merda! — É igual dos outros, João. — Mas é uma merda! — Já sei o que vais falar... — Pois é! Estou pensar isso mesmo: uma boa via-rápida, um copo bem cheio, a gente bebe essa aguardente, senta no chão, fica com os companheiros, conversa da vida, conversa do serviço, conversa de pequenas, a mutopa aí bem carregada... Aiuê! Saudade, mano! A mu-topa cheinha, tabaco bom, a água a cantar na cabaça, chupa, chupa... Não é essa porcaria da diamba, não é essa merda desse vinho de brancos... E o grande silêncio outra vez, só o arder dos cigarros e o sangue e a voz dos capatazes a correr, o chefe, o guarda-fios, fator, fiel, todos a porem-lhe socos, sacana de negro e mais coisas, bêbado, bandido... Mas quem gostava o Félix mais do que ele, quem? Pois é, mas foi a sua mão, João Miguel, que mandou a 205 contra o comboio do ferro; foi a sua mão que pôs a roda da 205 em cima do pescoço do Félix, menino fraquinho, nem que aguentou a pancada do choque, caiu logo cá embaixo e a máquina, no pequeno arranque na frente, parou-lhe em cima do pescoço. — Não! Não quero mais isto! Não posso, mano Dosreis, não posso... — Calma, então! Olha: vamos ainda lá fora, preciso te falar, assunto sério, temos um serviço... O vento frio do cacimbo corria às gargalhadas com os papéis pelo musseque fora. As luzes da rua, lá mais longe, pareciam estavam derretidas, descia a espuma no chão ou subia no ar como fumo de fogueira que arde bem, sem lenha verde. — Então, arranjaste? — Arranjei. O mesmo. Falou sim, podemos entregar. Só que fica mais longe, não quer lá em casa. Qu’até meia-noite o homem espera. É o Zeca, não sei se lhe conheces... — Zeca Burro? — É ele, ele mesmo; — Não é teu amigo, esse gajo? — Não, nada mesmo, nem que lhe cumprimento... — mentiu Dosreis. — E que o resto é com a gente. — Está bem. Vamos combinar. mutopa — cachimbo indígena. guarda-fios — que toma conta dos fios do telégrafo ao longo da linha férrea. fator — o controlador de bilhetes, das passagens. fiel — almoxarife. Sentia-se o ar fresco e a conversa estava fazer melhor no Via-Rápida. Falava mais direito, guardava aqueles olhos grandes mais abertos, mas na cabeça começava trabalhar bem, todos os porquês e como ele resolvia logo-logo, também conhecia o quintal como a cara dele e o plano era fácil, a casa ficava nuns fundos de cubatas, só beco estreitinho é que tinha para lá, caminho das patrulhas um bocado longe. — E a hora? — Onze e meia é bom. Acabamos-lhe rápido e depois você pode mesmo andar no meio das pessoas que vão sair no cinema... Dosreis estava guardar, com receio, a pergunta mais especial para fazer só no fim. Nesses dias de diamba ninguém que sabia por quê, o João não gostava mais o Garrido; eles, que todos dias eram braço embaixo, braço em cima, falando conversas diferentes das pessoas e das maneiras de viver a vida, até admirava. Mas era mesmo a verdade: sempre que Via-Rápida lembrava Félix não gostava a amizade do Garrido e quase escapava passar luta. — João!... E o Kam’tuta, levamos-lhe? Mal que tinha posto a pergunta o não do rapaz foi alto, com força, via-se não admitia resposta ao contrário. — Mas vê ainda... Ele podia ficar no fim do beco para assobiar as patrulhas... — Não! Não precisa! Eu vou lá; você vigia. Depois você carrega-lhes no saco e pronto. Não quero aleijado agarrado nas minhas pernas! — Deixa então, não se zanga. Cada vez também não lhe levamos noutros casos e o rapaz sempre aceita... — Não, não quero esse coxo da merda, já disse! Até ando a desconfiar ele vai ser é bufo, com aquelas conversas de mudar a vida, para amigar... — Elá, Via! Qu’é isso, então? Pôr falsos assim? Conheço-lhe de miúdo, João, e você é amigo dele também... — Amigo, eu!? Eu só gosto as pessoas inteiras, meio-homem eu não acompanho... — Não pensei falavam as pessoas nas costas, amigos! João não acabou falar, essa voz saiu no escuro, já lá estava à espera, gelou o coração bom do Lomelino, parecia o sangue tinha fugido todo com a vergonha, na- quela hora. No peito de João Miguel é que não: cresceu a raiva, aqueceu a vontade de bater à toa, rasgar-se, arranhar-se em todo o corpo... Puxando a perna, sempre parecia ia ficar atrás, Garrido saiu do escuro da esquina da quitanda e veio, com devagar, a cabeça levantada e os olhos. Dosreis avançou para ele; João Miguel recuou, encostou na parede. — Escuta ainda, Garrido! Eu explico... — Não adianta, amigo Dosreis. Eu ouvi tudo. Na hora que eu cheguei; vocês falavam a hora de atacar e fiquei ali a espiar... João Miguel saltou, raivoso. — Não dizia? Não te dizia? Bufo é que você vai ser! Dosreis aguentou-lhe, meteu no meio, separando com o seu corpo velho. — Não m’insulta só, João! Por acaso sou teu amigo, mas não vou deixar mais que me façam pouco à toa... Jurei! E tinha uma vontade diferente nos olhos azuis do rapaz, Lomelino nunca tinha- lhes visto assim. Parecia até a perna era já boa, a sair direita do calção. Garrido estava todo em pé, o corpo magro levantado, mas o que admirava mais era ainda a calma daquela cara de monandengue, os olhos bem de frente no João Miguel, ele nem lhes aguentou, teve de baixar a grande cabeça de máquina de comboio e o Kam’tuta repetia devagar, cada palavra sua vez: — Todos me fazem pouco, mas acabou, compadre Dosreis! E você ainda, João Miguel, meu amigo! É a você eu quero avisar primeiro; você ganhaste raiva de mim, não te fiz mal. Sempre que vou nos serviços, faço como vocês. Não têm culpas para mim. Quando vieste, já m’encontraste com meu compadre Dosreis. Por que agora eu é que saio? É porque sou aleijado, coxo, meio-homem, como você falou? Não admito mais ninguém me faz pouco. Luto, juro que luto! Nem que você me mata com a porrada, não faz mal... Ouviste? Ouviste, João Miguel? Parecia o rapaz estava maluco mesmo. Sacudiu o Dosreis do caminho, ele deixou-lhe passar, admirado com este Garrido novo, levantado. Mas não tinha mais medo, nada que ia suceder, o João nunca que aceitava pelejar com o Kam’tuta. — Ouve bem! Por acaso você é meu amigo, é por isso eu te aviso, sabes? Não tenho medo, fica sabendo. Nem de você nem de nenhum sacana neste musseque... Sukua’! Aleijado, meio-homem! Olha: você é grande, mas não presta; o seu corpo está crescido, mas o coração é pequeno, está raivoso, cheio de porcarias. — Cala-te a boca! Cala-te a boca, mano Garrido, senão... — Bate, se você é capaz. Arreia! É isso que eu quero com você, não percebeste ainda? Quero pelejar! Ao menos um dia luta com um homem, um que não tem medo. Arreia, bate, se você tem coragem! Direito, no meio da noite, o Garrido Kam’tuta crescia, não estava mais o rapaz torto, sempre a cabeça no peito, escondendo em todos os cantos, fugindo as berridas dos monas que lhe insultavam: Kam’tuta, sung’ó pé!... Sung’ó pé... E João Miguel via nascer na frente dele, outra vez, o Félix. Era ainda o seu amigo que estava lhe falar ali, nascia dentro do Kam’tuta com aquelas frases corajosas que sempre soubera, aquela maneira de ficar ganhar mesmo quando lhe davam uma boa surra de pancada. Fechou as mãos grossas escondendo-lhes nos bolsos, elas queriam sair sozinhas para atacar o Garrido, se ele não ia se calar, não podia mais ouvir, não podia deixar mais entrar aquelas palavras que ele falava e estavam estragar todo o trabalho bom, paciente, da diamba. Não podia sentir assim a verdade a queimar-lhe as orelhas, por dentro, por fora da cabeça, era mesmo melhor fugir senão ia esborrachar o mulato, ele era um fraco no corpo... — Cala o Garrido, Dosreis cala-lhe a boca, senão mato-lhe! — És um cobarde, João! Você tem medo da verdade! Você, no seu coração, tens é um ninho de ratos medrosos. Aceita o que sucedeu, vence essa culpa que você tem. Não fica medroso, não foge da diamba, luta com a dor, luta com a vida, não foge, seu cagunfas, só sabe pôr chapadas e socos nos outros, nos mais fracos, mas contigo mesmo não podes lutar, tens medo... És um merda! Tenho vergonha de ser mais seu amigo! Lomelino correu para lhe agarrar, mas falhou. O mulato mexia parecia tinha feitiço, correu mesmo com a perna parecia já nem era aleijado nem nada, vuzou uma cabeçada no João Miguel. — Deixa-lhe, João! O rapaz está bêbado! cagunfas — medroso; covarde. vuzar — bater com força; arrancar. Mas João Miguel não aceitava, nem mesmo as palavras sempre boas do amigo Dosreis serviam, nessa hora em que a raiva estava nas mãos a torcer dentro dos bolsos, a pensar apertar mesmo o pescoço do mulato, aquele pescoço magro de osso saliente parecia até com o feitio das mãos. Mas, no coração, uma chuva de cacimbo subia, ele sentia-lhe chegar nas janelas dos olhos; nas orelhas dele aquelas palavras que nunca ninguém tinha-se atrevido a falar-lhe, roíam, punham eco em todos os cantos do corpo; e a cabeça pesada, estalava, parecia os ossos eram pequenos para guardar tudo o que estava pensar, tudo o que as falas do Kam’tuta tinha-lhe soltado lá dentro, já ninguém que lhe amarrava mais. Avançou para o Garrido; enxotou com uma só mão o Dosreis, foi bater na parede; depois parou mesmo na frente do mulato, só ficou ouvir-se a respiração assustada. A cabeçada na barriga era nada mesmo, mas aqueles olhos azuis, fundos, numa cara de miúdo, esses é que ele não admitia, não podia-lhes consentir assim arreganha-dores na cara dele, não podiam continuar a dizer tudo assim calados. Levantou a mão fechada, grande, pesada biela de locomotiva, em cima da cabeça do Kam’tuta para lhe esborrachar. — Bate! — falou, cheio de calma, o Garrido. Nada. Silêncio de vento a correr cafucambolando pelo meio das cubatas. — Bate, cobarde! — repetiu-lhe Kam’tuta. O braço grande, pau de imbondeiro levantado no ar e Lomelino rezava para dentro, nada que podia fazer mais nessa hora, para João não lhe deixar cair, era a morte de Garrido. — Bate, se tens coragem! Já tremia a voz de Garrido, mas os olhos eram ainda os mesmos, colados na cara de João Miguel, ele não podia fugir naquela luz, estava preso, amarrado naquela coragem nova dum homem fraco, não precisava mais ter o corpo grande para lhe desafiar assim, mostrar uma pessoa aguenta de frente os casos da vida, quando é preciso. — Deixa o rapaz, Via! Favor... Foi um soco no João, a voz assim a pedir, de Dosreis, doeu mais que tudo, um cafucambolar — dar cambalhotas. imbondeiro — baobá. mais velho como ele não pedia, mandava. A vergonha veio mais depressa, o sangue fugiu todo, a voz rouca um pouco, do Lomelino, é que abaixou o braço, os olhos, todo o grande corpo do João. Com raiva de bater mas era no Lomelino, sem saber ainda o que podia fazer nessa hora, João Miguel desatou fugir no areal, pelo frio adiante, na direção das luzes derretidas no meio do cacimbo, com o Lomelino dos Reis atrás dele. Garrido Kam’tuta virou então no escuro, com devagar, arrastando outra vez a perna aleijada. Toda coragem tinha fugido embora com os amigos e, assim, só foi encostar-se na parede da quitanda sem força para nada. Sentou no chão e desatou chorar com choro silencioso. Na mesma hora que a patrulha dava encontro com o cap’verde Lomelino dos Reis e lhe agarrava com um saco cheio de patos gordos, o Garrido Fernandes Kam’tuta estava roubar o papagaio Jacó. Mas antes sofreu muito, mais do que todos os dias quando deitava no quarto e ficava pensar toda a noite coisas a vida não queria lhe dar por causa ainda desse seu azar da perna aleijada, da paralisia de miúdo. Mais; nas outras vezes não tinha grande confusão, tudo passava-se era só uma linha direita, ele sentia bem o que fazia-lhe sofrer, o que estava-lhe alegrar, e era fácil descobrir assim, de olhos abertos na escuridão, se arranjasse um trabalho de verdade não custava resolver o outro caso de mulher para viver com ela. Mesmo que ele pensava umas coisas boas de mais para o casamento, como lhe duvidava seu amigo João Miguel, dizendo: sim, as mulheres eram boas, um homem não pode viver sem a mulher para lhe acarinhar, para lhe ajudar, para crescer os monas, para alegrar na tristeza, para dividir com ela na alegria, trabalhar embora; mas também — e isso é que Kam’tuta não aceitava acreditar e Via-Rápida falava ele era monandengue, não não sabia a vida — as mulheres são a raiz do nosso sofrimento; mulher fala de mais; o casamento não é só o riso e o quente de deitar de noite para descansar o trabalho dos dias, não é só a felicidade de você ter uma pessoa que lhe olha bem nos olhos e você confia. A vida é muito complicada, sonhar só atrasa ou só adianta mesmo quando você põe no para crescer os monas — criar as crianças. sonho essas mesmas complicações e as coisas boas também, e isso um rapaz como Garrido Fernandes não podia ainda saber, não era burro não, mas exata-mente porque viveu pouco só, a cabeça dele só pode pensar as coisas boas que inventa. Mesmo com todas as conversas, não doía nessas noites pensar assim; se doía era só as partidas da Inácia, a vergonha da perna, o querer amigar com a pequena, um trabalho bom para mudar a vida. Mas nessa noite era mais diferente de todas: dantes não pensava com raiva, não pensava a vingança, tudo ele julgava podia se resolver só por acaso, deixava. Agora, dez horas já passavam, e o choro ainda não queria lhe largar, o coração estava apertado, muitas coisas que tinham acontecido. A partida da Inácia, gozando-lhe com o papagaio Jacó, era uma ferida larga dentro dele, chegou mesmo uma hora pensou até o melhor que era se matar, para quê valia viver assim feito pouco de todos? Depois, essa raiva de si passou na Inácia, imaginou as mãos dele a agarrarem no pescoço negro e macio, apertarem, apertarem, ia olhar-lhe bem na cara dela para lhe ver ficar branca, morrer pouco-pouco, o fogo nos olhos a apagar, a apagar devagar até ficar o escuro. Mas pensando assim, quase que tinham saído as lágrimas, ele sabia depois ia-lhe chorar na campa, as flores que ia-lhe pôr todos os domingos, a polícia não podia mesmo descobrir era ele, todos sabiam Kam’tuta era um fraco, insultavam-lhe e ele nem refilava, só ouvia. E então, no escuro, via mesmo Inácia toda vestida de branco, deitada no caixão e a pele era até mais bonita, só que ninguém tinha-lhe conseguido fechar os olhos, ficaram abertos e grandes como eram viva, mas apagados, vazios do fogo, com cacimbo no lugar. O pior é quando se pensa muito com a raiva, a raiva gasta e acaba. Devagarinho, a dor passou, uma pena grande veio no lugar e quis adiantar dormir com esse perdão na Inácia, mas João Miguel, o grosso punho levantado em cima da cabeça dele, não deixava. Doía também porque Garrido sabia ele era um amigo, o único a quem costumava falar os assuntos sentia dentro dele, mesmo idéia de se matar e tudo. Por isso custava, picavam na cabeça as palavras dele outra vez, que lhe ouvira no escuro, chamar-lhe meio-homem. Até esse, João Miguel, seu amigo, que sempre lhe consolava dizendo o que valia era a cabeça e a cabeça de Garrido era boa, até esse chamara-lhe de aleijado e sem-pernas. E mais: não quis aceitar-lhe no roubo dos patos. Ele, Garrido Fernandes, não foi num roubo de patos! Ele, que tinha aguentado já seis meses na conta de todos por causa um capiango numa estação de serviço! Porem-lhe assim de lado, trapo velho que só presta para ir no lixo. Isso doía, doía muito, como também doíam as palavras que ele mesmo nem sabe como falou no João Miguel, o rapaz não merecia assim, mas naquela hora tudo saiu na boca sem poder parar, não era ele ainda que estava falar, parecia tinha um cazumbi , só xinguilava, só dizia o que ele mandava. E se Via-Rápida se ia zangar de vez com ele? Agora que não podia falar mesmo mais com a Inácia? E também Dosreis, seu amigo de mais muito tempo, respeito para ele era ainda como um pai, nem lhe ligara, nem lhe defendera, só pôs umas palavras fracas e ele mesmo, só ele que podia convencer o João Miguel a lhe levarem também, sem velho Loló o negócio não andava. Por que não fez força? Não arreganhou, não ficou do lado dele, contra Via- Rápida? Todos esses pensamentos soltos na cabeça pediam-lhe para levantar, não se deixar ficar assim ali deitado à toa, esperando por acaso passasse qualquer coisa. As palavras que ele mesmo tinha falado no João Miguel, para lutar, não deixar-se vencer recordou-lhes uma a uma e um frio mais quente é que veio. Sim, senhor, lutar. Mas lutar como, então? Ele, um aleijado, posto de lado num simples roubo de patos, profissão sapateiro mas sem serviço, os outros lhe conheciam, os sô mestres falavam ele era do capiango, não aceitavam dar trabalho nem ao dia, como ia lutar? E se lutasse, lutar com quem então? João Miguel, o Via-Rápida? Não; tinha-lhe deixado naquela hora, não quis-lhe baixar a mão fechada, mas não podia mais falar bem com ele, passava confusão com certeza. E depois também, com o amigo, a luta era outra. Só ia ser lhe acompanhar sempre, falar, ajudar, para ser ainda ajudado, não deixar a diamba tomar conta de vez na cabeça do agulheiro. Lomelino? Dosreis era seu mais velho, seu pai quase — que pai não lhe conhecia, um branco qualquer, à-toa — e também não tinha a culpa toda, ele é que comandava o trabalho, mas o cabeça era mesmo o João. E mais: Lomelino era um mais velho, nem de palavras se pode lutar com mais velho, senão os outros mais novos não vão-lhe respeitar mesmo depois. Inácia? Sim, ela mesmo, vadia, cachorra, lhe fazia pouco sempre, gozava. Mas debaixo desses insultos, as palavras boas que às vezes dava-lhe ou ainda os olhos cazumbi ou canzumbi — alma do outro mundo; espírito. xinguilar — invocar os espíritos. que lhe punha quando ele começava falar a vida boa que sonhava, eram também um peso muito grande e derrotavam os insultos, não deixavam-lhe sentir verdade, ele mesmo era o que a rapariga falava: um fraco. Então, quem? Cada qual era bom e mau; cada qual sozinho não podia lutar com eles, não estava certo. Loló e Via-Rápida tinham-lhe deixado de lado, mas amanhã, sem perigo nenhum, ia receber uma metade da metade do lucro para ele e nunca que João Miguel fazia batota nas contas, esse dinheiro era santo como ele dizia. Quem era o inimigo? O Jacó? Num de repente viu bem o culpado, o bandido era esse bicho velho e mal-educado, mas depois até desatou a rir. Um homem corno ele e o inimigo dele era um bicho, não podia! Mas a verdade é que essa idéia crescia como capim por todos os lados da cabeça e do coração. Não, não podia ser, não era. Verdade que os monas lhe xingavam “kam’tuta, sung’ó pé” de ouvir o pagagaio, mas quem ensinou foi a lnácia, ela é que inventou. Papagaio não pensa, só fala o que ouve, o que estão lhe dizer. E se os monandengues chamavam não era mais maldade, ouviam os mais velhos, ouviam o papagaio gritar assim dessa maneira. O melhor era perdoar o bicho. Mas aquela confiança de andar embaixo do vestido da lnácia, aí onde Garrido nem olhava, também não é inimigo um bicho assim? Um pássaro saliente que recebe mais carinhos que pessoa? Então o inimigo era o Jacó? Não pode. Um pobre bicho, só é mau porque lhe ensinaram, sô Ruas é que fez ele assim malcriado com as asneiras de quimbundo, um coitado nem que lhe limpavam no rabo, as penas sempre sujas, cheio de piolhos de galinhas, não tinha poleiro, dormia na mandioqueira, ninguém que lhe ensinava coisas bonitas, verdade mesmo, ele sozinho assobiava bem, não podia ser ele o inimigo duma pessoa. Mas no escuro do quarto o papagaio Jacó, velho e sujo, apareceu-lhe como a salvação, ele é que ia lhe livrar de muitas coisas, ia-lhe servir ainda para lutar com todos. Era isso, Jacó era a sua arma. Ia acabar com ele, custava torcer o pescoço, mas também já estava velho, coitado, não servia para mais nada. A melhor vingança era essa mesmo. Primeiro: Loló e João Miguel iam ver ele era um bom, não servia só para ficar vigiar nas esquinas. Sozinho, ia roubar um papagaio, bicho que é como pessoa, batota — trapaça. quase que fala; ia lhes mostrar o que ele era, depois haviam de pedir favor para fazer sempre o serviço nas capoeiras e não aceitava. Segundo: também acabava com esses gritos “Kam’ tuta, sung’ó pé”. Se não lhes ouvissem mais, os monandengues iam esquecer; se era preciso até fechava-se no quarto durante umas semanas, desculpava doença, para dar tempo a se esquecerem da alcunha. Terceiro e muito importante mesmo: o fidamãe não ia mais cheirar na Inácia, roubar assim o carinho de pessoa. Ria satisfeito com a idéia dele, a raiva já tinha fugido, uma grande alegria bocado má mordia-lhe na boca toda. Procurou os quedes no escuro, vestiu-lhes; pôs a camisa, saiu na noite, assobiava até; via já a cara da Inácia acordando de manhã sem o papagaio, era bem feito, não ia bicar mais a jinguba na boca bonita dela, não ia mais fazer cócegas nas mamas com as penas do pescoço, procurando os bagos escondidos, não ia mais fugir da chuva, meter embaixo das saias no escuro quente das coxas de Inácia. Nunca mais, o fidamãe. — Sukua’! Eu mesmo, depois, é que sou o papagaio! A voz dele, batida nas paredes, um bocado rouca de todo o tempo calado, assustou-lhe; mas logo-logo riu uma grande gargalhada no escuro; iam ver ainda quem era ele mesmo, o tal Kam’tuta como lhe chamavam, ele, ele mesmo, Garrido Fernandes, mulato por acaso, por acaso a paralisia é que tinha-lhe estragado a perna, mas na cabeça a esperteza era mais que eles todos, de duas pernas! A noite estava feia. Escura, nem uma estrela que espreitava e a lua dormia escondida no meio do fundo dum cacimbo grosso parecia era mesmo chuva. O silêncio tapava ainda mais as cubatas e só as pessoas que viviam ali podiam andar nos estreitos caminhos entre os quintais sem dar encontro nas paredes e nas aduelas , como ia Garrido, avançando devagar, para gozar bem a felicidade tinha chegado na hora em que descobriu o caso era só agarrar o Jacó, torcer o pescoço, fazer-lhe desaparecer. Furando o escuro assobiava e até parecia de propósito mesmo: estava imitar todos os assobios do Jacó, eles tinham ficado na cabeça, A areia chiava debaixo dos quedes — sapatilha de pano e borracha. aduelas — tábuas de barril usadas para formar cercas delimitando o quintal. quedes, a perna aleijada deixava o risco dela, de arrastar o pé, parecia caminho de caracol. Baixinho, no meio dos lábios finos da sua boca estreita, ia inventando; Papagaio louro Seu mal-educado... Andava, continuava a cantiga, ritmo de samba, como ia pensando: Você é bicho burro Vais ser enforcado. No meio do cacimbo, lá no fundo do caminho, começou aparecer a mancha negra da grande mandio-queira do quintal da Viúva. Só então o coração do Garrido bateu com mais força; agora que estava chegar, a alegria fugia, espreitava, mirava em todos os cantos do escuro, avançava mais devagar, cauteloso. Abrir a cancela pequena do fundo do quintal perto das capoeiras foi canja para ele. Conhecia-lhe bem, costumava sair embora ali quando a senhora da Inácia che- gava, ela não gostava o rapaz atravessava dentro de casa, tinha falado na pequena todo o musseque sabia o Garrido era do capiango e até parecia mal assim, uma assimilada como ela, com madrinha branca e tudo, estar ligar para um vagabundo como esse coxo. Nem um barulho que fez quando entrou mas um galo pôs um cócócó pequeno, calando-se depois no silêncio do Garrido. Continuou andar mais calado ainda, punha um pé, levantava o outro devagar, pousava-lhe no chão, colocava aí todo o peso do corpo e começava levantar o outro, assim como tinha-lhe ensinado o Via-Rápida explicando na tropa queriam assim, era o passo de fantasma, inimigo nunca ouvia. O caminho conhecia-lhe bem, não precisava lua, mas nessa hora ela ajudou, rasgou um bocado mais o pano do cacimbo e iluminou o quintal. A mandioqueira estava ali, perto, três passos só mais, mas não queria se apressar, ele gostava a técnica até ao fim, nem um barulho podia fazer, Inácia costumava dormir perto, no quarto pequeno do lado do armazém do carvão. No escuro das folhas não se via nada e a sombra do pau era uma grande nódoa negra no chão vermelho com pouca luz. Dois passos que faltavam só e Kam’tuta adiantou, falou baixinho: — Jacó... Jacó... Para o lado esquerdo, no mais escuro, sentiu um mexer de esteira. Parou, assustado; não voltou ouvir-lhe, era só o medo que punha esses barulhos, tinha era o xaxualhar do vento nas folhas da mandioqueira. — Jacó... Jacó... Olá! Jacozinho... Tocava-lhe já mesmo, o pássaro estava na frente dos dedos, passou com cuidado a mão a fazer festas nas penas poucas do pescoço do papagaio. Sentiu-lhe estremecer, retirar a cabeça de embaixo da asa. Agarrou-lhe com jeito falando mansinho, parecia era mesmo a Inácia: — Jacó! Dá o pé... querido... dá... O burro nem que mexia, satisfeito com as cócegas e o quente das palavras. Kam’tuta guardou-lhe dentro do casaco velho, entre o forro e a camisa, abafou-lhe, sorrindo contente, uma alegria a encher-lhe o corpo. Estava agarrado esse bicho ordinário; amanhã era só torcer o pescoço, pronto: o azar acabava de vez na hora em que ele não falava mais. Marcha-atrás começou recuar no mais escuro para seguir encostado nas aduelas até na porta, tinha-lhe deixado aberta. Pôs atrás a perna aleijada, fez força, depois recuou sem olhar, a outra perna já no ar, procurando, com medo de tocar alguma lata, as massuí-cas eram ali perto. Mas não deu encontro com as pedras, não. Sentiu foi embaixo do quede um redondo mole, gordo, parecia era bicho e essa forma mexeu logo num grande barulho de esteira. Naquele silêncio o Kam’tuta berrou medroso, todas as galinhas desataram a cacarejar, o galo, acordado, a cantar, os gansos, esses, até pareciam malucos e o Garrido, arrastando a perna, coxeou na porta o mais depressa que podia mesmo, segurando com as mãos no casaco para agarrar sempre o Jacó, não ia-lhe largar naquela hora. Mas o papagaio, com o susto dele, tinha acordado bem, punha-lhe unhas e bicadas dentro do peito, atrapalhava-lhe para andar. E foi perto já da cancela da saída, o coração de Garrido gelou, ficou frio, frio mais que o cacimbo da noite, nem vontade de fugir corria no sangue, só as pernas eram sozinhas e continuaram. É que embaixo da mandioqueira ele ouviu bem a voz saliente da Inácia a rir, a falar no homem que estava lá deitado com ela, a dizer: não corre, não tem importância, eu conheço-lhe, é uma brincadeira, amanhã eu recebo o que ele veio tirar... Cheio de raiva, Kam’tuta bateu a cancela, meteu no cacimbo que estava cobrir outra vez a lua, mais grosso. No escuro, a voz de Inácia era o único sopro quente que chegava nas orelhas dele, fugindo: — Kam’tuta, Kam’tut’é! Dorme com o Jacó... Faz-lhe um filho! E o bicho, bem acordado e bem agarrado na mão zangada do Garrido, ainda arreganhava os insultos ele sabia só de ouvir a voz da dona: Kam’tuta... Juta... sung’ó pé...pé...pé... A sorte foi quando o Garrido chegou na esquadra, o Lomelino não estava lá na prisão, tinha saído na visita, senão ia passar luta. Mas assim, quem lhe recebeu foi mesmo o Xico Futa, o amigo de Dosreis conheceu-lhe logo que ele entrou, envergonhado, arrastando a perna devagar para disfarçar dos olhos de todos. Porque polícia é assim: chegaram na casa da madrinha dele, nem que pediram licença nem nada, entraram e perguntaram um rapaz mulato, coxo, Garrido Fernan- des, e quando ele adiantou sair no quarto, a cara cheia de sono, os olhos azuis a piscar com medo da luz da tarde, falaram logo sabiam ele tinha ido com Dosreis, um verdiano, assaltar o quintal de Ramalho da Silva e roubado um saco de patos, o Lomelino é que tinha falado tudo, não adiantava negar, melhor veste a camisa e vamos embora. Mas Garrido lutou: com a ajuda da madrinha falou, pediu, adiantou mostrar todos os sítios da cubata para verem nada ali que era roubado; e ela jurava, nessa noite o menino tinha dormido cedo, chegara até parecia doente com febre, ela mesmo viu-lhe ir no quarto, deitar, sentiu até a tosse e tudo, como é que tinha ido num roubo de patos? — Juro, sô chefe! Eu mesmo ainda lhe perguntei: Gagá, você precisa qualquer coisa, e ele me respondeu: não ‘brigado, só que estava chateado com a vida. Verdade mesmo! É que emprego bom não está encontrar, não lhe aceitam, com a perna... Mas nada, polícia não se convence com as palavras: agarraram já o Garrido nas calças para não tentar se esquivar no quintal e disseram tá-andar. Que tinham uma queixa, o outro é que falou e agora era preciso mesmo lhe levarem para saber a verdade. Nessa hora Garrido ainda estragou mais. Com a mania de se salvar, contou tudo dos casos do roubo do papagaio, saiu embora no quarto, trouxe o cesto onde estava o bicho fechado esperando a hora o mulato ia lhe torcer o pescoço, deitar na lixeira. — Ah, sim!? Seu rosqueiro! Vamos embora! E adiantaram, ali mesmo na cara da madrinha, pôr-lhe uma chapada no pescoço para lhe empurrar no jipe, nem que ligaram mais nas palavras de defesa do Garrido: — Juro, sô chefe! Por acaso a dona viu, ela mesmo disse para eu levar. É minha brincadeira só!... Qual: coração de polícia é de pedra e lhe trouxeram mesmo, até contentes porque se a