Aula - Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais PDF

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This document is a lecture on political science, covering the theory of the state and the formation of national states. It includes discussion of the concept of the state, its elements, and historical processes.

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MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais Prof. Dra. Maria das Graças Rua Ciência Política [Câmara 2023]Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br Teoria do Estado e Formação ‘ dos Estados Nacionais 1 MÓDULO: T...

MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais Prof. Dra. Maria das Graças Rua Ciência Política [Câmara 2023]Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br Teoria do Estado e Formação ‘ dos Estados Nacionais 1 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais Conteúdo O Conceito de Estado .................................................................................................. 3 Elementos Constutivos do Estado Moderno ..................................................................... 4 Origem e evolução do Estado Moderno: os Esatdos da Antiguidade de Estado Moderno ....... 7 Teorias sobre a formação e origem do Estado Moderno .................................................... 7 Antecedentes do Estado Moderno: Os Estados da Antiguidade e o estado Moderno ........... 10 A Cidade-Estado grega .............................................................................................. 12 O Império Romano .................................................................................................... 13 As invasões bárbaras................................................................................................. 14 Antecedentes históricos do Estado Moderno ................................................................. 15 A Idade Média .......................................................................................................... 15 O Feudalismo ........................................................................................................... 17 O sistema estatal ...................................................................................................... 19 Os burgos e a burguesia ............................................................................................ 20 As Cruzadas e o Renascimento ................................................................................... 22 A formação do Estado Moderno: Etapas ....................................................................... 22 Os diferentes processos históricos da formação do Estado Moderno ................................. 26 Portugal ................................................................................................................... 27 França ..................................................................................................................... 28 Inglaterra ................................................................................................................ 29 A construção dos Estados Nacionais no Século XIX ........................................................ 32 Alemanha ................................................................................................................ 33 Itália ....................................................................................................................... 33 Questões Comentadas ............................................................................................... 35 Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 2 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais 1. O CONCEITO DE ESTADO Como sabemos, os homens formam sociedade para satisfazer suas necessidades, das mais básicas até as mais complexas. Precisamos uns dos outros desde o nosso nascimento, para nossa sobrevivência, desenvolvimento e reprodução, até o fim de nossas vidas. Por isso vivemos juntos. E, como somos semelhantes, mas não iguais, estabelecemos regras comuns. Quando os homens vivem em coletividade, sob regras comuns, sem que haja importunação de uns pelos outros e sem uma autoridade que possa impor a obediência às regras comuns, dizemos que se encontram em uma sociedade sem Estado, também chamada de sociedade natural ou estado de natureza1. Quando os homens, pela imposição de um terceiro, pelo costume ou por decisão racional, constituem uma autoridade única encarregada de obrigar a todos os que vivem no território a obedecer às regras comuns e para reprimir e punir os que a violam, temos o que se conhece como sociedade política ou Estado. Seja qual for o processo de sua constituição, o poder centralizado de coerção que se exerce sobre uma coletividade em um território, segundo determinadas regras, é o que define o Estado. O conceito de Estado é, como o conceito de poder, absolutamente central à Ciência Política. Grande parte das discussões na Ciência Política gira em torno de perguntas como: o que é o Estado? Quais as suas características? Sua característica central seria a força que exerce ou a busca do bem comum? Existem diferenças entre os Estados? É uma instituição natural ou artificial? Existe desde o surgimento das comunidades humanas ou é fruto de uma época? Como se originou? Desde a sua origem, exibe as mesmas características ou se transformou? As suas relações com a sociedade incluem igualmente a todos ou privilegiam alguns segmentos sociais? Até onde pode ir o poder do Estado? Existem limites à sua autoridade? É uma instituição única ou abrange várias instituições? A resposta à primeira dessas perguntas é dada por Max Weber (1998), o Estado é um empreendimento institucional de caráter político (porque envolve conflito, poder e força) no qual o aparelho administrativo leva adiante, com êxito, a pretensão do monopólio da 1 Registra-se que não existem evidências empíricas de que algum dia tenha existido, em algum lugar tal estado de natureza, pois mesmo as sociedades tribais conhecidas têm chefes e adotam algum tipo de coerção sobre seus membros. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 3 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais legítima2 coerção física sobre a população em um dado território. Nessa definição está tudo aquilo que, abstratamente, constitui o Estado: um aparelho administrativo (tanto civil quanto militar), que é usado para o exercício da coerção, visando cumprir um dado ordenamento jurídico sobre uma população em um determinado território. A despeito da Ciência Política assumir essa definição, vale registrar que nem todos os autores que se debruçaram sobre o tema o mesmo conjunto de elementos constitutivos. O jurista francês Leon Duguit Duguit, por exemplo, sustenta que o Estado é um...Grupo humano fixado em determinado território, onde os mais fortes impõem aos mais fracos sua vontade. Enquanto a definição weberiana permite identificar, como elementos constitutivos do Estado: governo, poder, povo e território, Duguit se limita a povo, território e poder (como força). A maioria dos autores indica três elementos, sendo dois materiais, o território e o povo, e o terceiro elemento, formal: o poder em alguma das suas manifestações: autoridade, governo ou soberania. Alguns autores diferenciam o poder interno, que se expressa como governo, ou seja, autoridade que se exerce sobre um povo; e poder externo, a soberania, significando o poder máximo de um Estado sobre si mesmo, independente, que não se subordina a nenhum outro tipo de poder. Em ambos os casos, manifesta-se como ordenamento jurídico impositivo. 1.1 Elementos Constitutivos do Estado Moderno São quatro os elementos constitutivos do Estado Moderno. Primeiro, o território, que compreende o solo, subsolo, águas fluviais, lacustres e marítimas, inclusive a plataforma marítima correspondente, espaço aéreo, tanto do seu território vital quanto das suas embaixadas em outros países, além de todo tipo de naves que transitem sob a bandeira de um determinado Estado. Segundo, o povo. Mais que simplesmente “população” 3, povo é um conceito político, referindo-se ao conjunto dos indivíduos que 2 3 Legítima porque é reconhecida como condizente com o benefício da coletividade. População é um conceito demográfico e estatístico, não propriamente político. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 4 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais compartilham um mesmo código de direitos e deveres, sob um mesmo ordenamento jurídico. Terceiro, a soberania4, que significa qualidade máxima do poder social através da qual as normas e decisões elaboradas pelo Estado prevalecem sobre as normas e decisões emanadas de grupos sociais intermediários. A soberania se manifesta em dois diferentes âmbitos. Internamente, a soberania de um Estado traduz a superioridade de suas diretrizes na organização da vida comunitária e se expressa como poder extroverso: o poder que extravasa os limites da organização governamental e se aplica sobre todas as organizações e membros da sociedade em seu conjunto. No âmbito externo, a soberania se manifesta como autodeterminação, ou seja: igualdade de todos os Estados na comunidade internacional. Paulo Bonavides (2004) aponta três elementos que compõem a soberania. Primeiro, é a faculdade de impor unilateralmente aos demais um comando a que eles ficam a dever obediência, ou seja, é um poder extroverso. Segundo, não pode ser limitada no tempo, portanto, é um poder perpétuo. Terceiro, é um poder absoluto pois não está sujeito a condições ou encargos postos por outrem, não recebe ordens ou instruções de ninguém e não é responsável perante nenhum outro poder. O mesmo autor aponta as características da soberania: a)é una e indivisível , pois não pode ser dividida por dois governantes ou por vários órgãos; b)é própria e não delegada porque pertence por direito próprio ao soberano; c)é irrevogável, como fundamento da estabilidade política, pois o povo não tem direito de retirar do seu soberano o poder político que este possui por direito próprio; d)é suprema na ordem interna, significando não admitir outro poder com o qual partilhar a autoridade do Estado; e)é independente na ordem internacional, pois o Estado não depende de nenhum poder supranacional e só se considera vinculado pelas normas de direito internacional resultantes de tratados livremente celebrados ou de costumes voluntariamente aceites. E Governo, que é o quarto elemento constitutivo do Estado. É o corpo decisório que exerce o poder de regrar uma sociedade política. É a instância máxima da administração executiva de um Estado e até de 4 Eventualmente designada como “independência”. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 5 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais uma nação. O Estado é permanente e só se dissolve em caso de guerra civil ou invasão e conquista estrangeira. O governo é transitório, pode se dissolver e mudar por eleição ou por outros processos sucessórios. Nas democracias representativas presidencialistas o chefe de Estado e o chefe de governo são o mesmo indivíduo. Nas democracias representativas parlamentaristas um indivíduo é o chefe de Estado e outro é o chefe de governo. O governo pertence ao Estado, mas o contrário não é verdadeiro, porque o Estado é que é a instância máxima e soberana. Por isso se diz que o Governo é um dos elementos constitutivos da Estado, mas não seria correto afirmar que o Estado é elemento constitutivo do Governo. Não pode existir Estado sem Governo. Mas é possível existir Governo sem Estado5. Quando estão presentes apenas o povo e o governo, sem que haja um território demarcado, tem-se a nação, mas não o Estado. São exemplos de nação: curdos (a maior nação sem território do mundo), os palestinos, os tibetanos, os ciganos, os bascos. Nação um conceito que surgiu a partir do século XVIII designando o pertencimento a um grupo que se diferencia dos demais devido às suas características étnicas, religiosas, sociais e valores culturais e que envolve um sentimento de identidade coletiva constituída por uma história comum. Vale registrar, ainda, que há autores, como Dalmo Dallari, que incluem um elemento adicional do Estado: a finalidade, qual seja, o bem comum. Além das definições de Estado que consideram seus elementos essenciais, existem outras baseadas em critérios jurídicos, econômicos, etc. Um exemplo é a definição apresentada por Marx (e pelo pensamento marxista), para quem o Estado seria “o comitê executivo da burguesia, ou o poder organizado de uma classe para opressão de outra” O conceito repousa, nesse caso, na organização ou institucionalização da violência de classe. Dado que o Estado moderno é um fenômeno histórico, seus elementos constitutivos assumem feições próprias em cada situação concreta, mesmo estando presentes em todos os Estados modernos. O mesmo acontece com e seus componentes funcionais, descritos a seguir. 5 Uma nação sem Governo será classificada como anárquica. Vale lembrar: anarquia significa exatamente ausência de governo ou autogoverno, e não caos. Pode existir governo sem Estado, como no caso de nações sem território. Mas não existe Estado sem governo. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 6 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais 1.2 Componentes Funcionais do Estado Moderno Todas as instituições constitutivas do Estado moderno assumiram características de organizações: conjuntos de indivíduos orientados para objetivos específicos com uma divisão de trabalho racional e uma hierarquia, uma estrutura de comando. O Estado moderno configura-se, assim, como uma complexa estrutura organizacional - ministérios, secretarias, órgãos públicos, exércitos, etc. através da qual exerce o seu poder. Entre as organizações do Estado moderno é possível distinguir dois componentes funcionais permanentes. Primeiro, o aparato de segurança pública, que é o conjunto de todas as organizações encarregadas da repressão, punição e prevenção das transgressões à lei e dos conflitos: Polícias, exércitos, sistema penitenciário, cortes judiciais, conformam o aparato de segurança pública que garante a ordem interna e a defesa externa no território de um Estado. Sem esse aparato de segurança, não há como exercer o monopólio do uso da violência, característica fundamental do Estado. O outro componente funcional é o chamado “quadro administrativo público”, que contemporaneamente se distingue do aparato de segurança pública6, compreendendo o grande conjunto de organizações encarregadas da gestão da coisa pública. 2. ORIGEM E EVOLUÇÃO DO ESTADO MODERNO: Os Estados da Antiguidade e o Estado Moderno 2.1. TEORIAS SOBRE A FORMAÇÃO E ORIGEM DO ESTADO MODERNO Prosseguindo nas indagações sobre o Estado, pergunta-se se o mesmo existe desde o surgimento das comunidades humanas ou se é fruto de uma época? Como se originou? De onde se originou o Estado? Como foi que se formou? Segundo Darcy Azambuja, há três modos pelos quais historicamente se formam os Estados: Originário: em que a formação é inteiramente nova, nasce diretamente da população e do país, sem derivar de outro Estado 6 Max Weber, ao mencionar o quadro administrativo, refere-se indistintamente à burocracia civil e a burocracia militar. Contemporaneamente, atribui-se ao aparato de segurança pública as tarefas de lidar com a ordem interna e a defesa externa e ao quadro administrativo a gestão da coisa pública. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 7 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais preexistente. É decorrência natural da evolução das sociedades humanas. Ex: Franca, Espanha, Portugal, Inglaterra, etc Os Estados originários se formaram em um contexto histórico que já não mais existe. No mundo atual, toda a superfície do globo está dividida entre diversos Estados, sendo praticamente impossível que surja um Estado pelo modo originário. Secundários: quando vários Estados se unem para formar um novo Estado, ou quando um se fraciona para formar outros. Por exemplo, com a derrocada da União Soviética no início dos anos 1990, formaram-se vários Estados. A antiga Tchecoslováquia, por exemplo, fracionou-se em República Tcheca e Eslováquia. Derivados: quando a formação se produz por influências exteriores, de outros Estados. Entre os modos derivados, a colonização é o mais geral e importante. Temos os Estados nas Américas, que se formaram a partir da colonização europeia. Há também os casos de guerras, como o Vietnã, que foi dividido em dois Estados. Israel nasceu de uma convenção nas Nações Unidas. Analisando as teorias sobre a origem dos estados originários, Azambuja distingue as que se baseiam nas doutrinas teocráticas e doutrinas democráticas. - As teorias teocráticas defendiam que o poder e a autoridade têm origem divina. - As teorias democráticas sustentam que a soberania, ou o poder político, reside no povo. Destacam-se, entre as teorias democráticas, as contratualistas. Dalmo Dallari, diferentemente de Azambuja, divide a formação dos Estados em originária, que consistiria de agrupamentos humanos ainda não integrados em qualquer Estado; e derivada, quando a formação de novos Estados ocorre a partir de outros, preexistentes. Portanto, o que Azambuja considera como secundário, para Dallari seria derivado. Examinando as principais teorias sobre a formação originária do Estado, o autor identifica: 1. Teorias que afirmam a formação natural ou espontânea do Estado, não havendo entre elas uma coincidência quanto à causa, mas tendo todas em comum a afirmação de que o Estado se formou naturalmente, não por um ato voluntário; Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 8 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais 2. Teorias que sustentam a formação contratual dos Estados, que compartilham a convicção de que foi a vontade de alguns homens, ou então de todos os homens, que levou à criação do Estado. Para Dallari as teorias não contratualistas compreendem: Teorias da Origem familiar ou patriarcal: o Estado surgiu da ampliação do núcleo fundamental na família. Teorias da Origem em atos de força: o Estado surge da conquista, de atos de violência quando um grupo social mais forte dominou e impôs sua superioridade de força a um grupo mais fraco; Teorias da origem em causas econômicas: o Estado teria se formado para que determinados grupos se aproveitassem dos benefícios da divisão do trabalho, suprir as necessidades de trocas dos indivíduos, integrando-se as diferentes atividades profissionais; Teorias da Origem no desenvolvimento interno da sociedade: o estado seria apenas uma potencialidade, em todas as sociedades humanas, enquanto se permaneceram simples e pouco desenvolvidas. Mas naquelas sociedades que atingiram maior grau de desenvolvimento e e se tornaram mais complexas, o Estado se constituiu por necessidade. Já as teorias contratualistas afirmam que o Estado não surge naturalmente, mas sim de um ato racional de um grupo humano que, insatisfeito com os inconvenientes do estado de natureza, decidiu estabelecer um poder político como forma de instituir a ordem. Assim, por meio de um pacto ou contrato, renunciaram a uma parte de sua liberdade natural, criando um poder político uno com soberania sobre todos os demais. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 9 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais 2.2. ANTECEDENTES DO ESTADO MODERNO: Os Estados da Antiguidade e o Estado Moderno Alguns autores sustentam que o Estado, pelo menos em forma rudimentar, existe desde as comunidades antigas, na forma da CidadeEstado grega ou dos Impérios da Antiguidade, como o egípcio, o romano, etc. Porém, prevalece na Ciência Política o entendimento de que o Estado é uma criação da modernidade7, produto final de fatores demográficos, econômicos, culturais e militares. Os elementos que o originaram situam-se nos tempos mais remotos pois o Estado moderno já vinha se formando pelo menos desde o século IX, num gradual processo de esvaziamento dos poderes dos senhores feudais e de centralização das cortes e dos exércitos nas mãos de um poder central, um monarca que impunha seu poder absoluto sobre o seu território. Nesse período, o Rei concentra todo o poder, administrando o Estado de forma arbitrária. Porém o que conhecemos como Estado “moderno” data de meados do segundo milênio, conforme se formava o que veio a ser denominado “país”. Mais precisamente, considera-se que o Estado Moderno surgiu com a Paz de Westfália, que consiste em uma série de tratados que foram assinados na Alemanha em 1648, pondo fim à guerra dos 30 anos. Através dela foi instituído o moderno sistema de relações internacionais, e este momento é considerado como o instaurador do Estado Moderno, entendido como uma unidade territorial soberana. Portanto, existiram, sim, formas de “Estado” na Antiguidade. Por exemplo, a Cidade-Estado grega, cujo modelo chegou até os dias de hoje expresso pela palavra “polis”. A República romana, conhecida como “civitas” ou “respublica”. Em seus tempos áureos Roma tornouse um império8, como outros anteriormente existentes. Segundo Dalmo Dallari, com pequenas variações, os autores que tratam da evolução do Estado adotaram uma sequência cronológica que compreende as seguintes fases: 7 Esse texto focaliza estritamente o Estado ocidental moderno, que se formou inicialmente na Europa Ocidental e depois se estendeu às Américas. 8 Império deriva do latim imperium, que remete a predomínio, autoridade ou poder de uma instituição política sobre outros. É a denominação dada a um território que é governando por um monarca ou por uma oligarquia, caracterizado, sobretudo, por grandes extensões territoriais, agregando nações e povos que podem ser culturalmente diversos em territórios que nem sempre são geograficamente contínuos. Existem vários exemplos de impérios que foram governados por um líder supremo, muitas vezes considerado uma entidade divina, um deus, como os Faraós no Egito. Alguns dos imperadores mais conhecidos foram Alexandre Magno, Genghis Khan, Carlos Magno e Napoleão Bonaparte. E talvez o mais famoso dos tempos modernos foi o Império Britânico, conhecido como o “Império sobre o qual o Sol nunca se punha”. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 10 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais Estado Antigo, Oriental ou Teocrático seriam às formas de Estado mais recuadas no tempo, que apenas começavam a definir-se entre as antigas civilizações do Oriente propriamente dito ou do Mediterrâneo. A família, a religião e a organização econômica formavam um conjunto confuso, sem distinção entre público e privado, com duas características: a organização unitária e a religiosidade. O Estado Antigo aparece como uma unidade geral, sem divisão interna, nem territorial, nem funcional. A autoridade dos governantes e as normas de comportamento baseavam-se na vontade da divindade; Estado Grego: não era um Estado único, envolvendo toda a civilização helênica, mas várias cidades-Estado, que apresentavam características comuns. O ideal era a autossuficiência, a formação de uma cidade completa, com todos os meios de se sustentar e se defender. Eram sociedades agrárias. Distinguiam os cidadãos, que participavam do governo, e os demais habitantes, inclusive os estrangeiros e os escravos, que representavam a parte mais significativa da força de trabalho. Estado Romano: baseava-se na organização familiar, distinguindo-se os membros das famílias patrícias, compostas pelos descendentes dos fundadores do Estado. Assim como na Grécia, era uma sociedade agrária. Durante muitos séculos, o povo participava diretamente do governo, mas aqui também o número de cidadãos era restrito e grande parte da população respondia pela atividade produtiva sem participação política. Estado Medieval: surgiu com as diversas invasões bárbaras e o esfacelamento do Império Romano. Apesar da presença do Imperador, não havia uma autoridade centralizada. Ao contrário a organização era extremamente fragmentada em uma pluralidade de poderes menores, locais, e a variedade imensa de ordens jurídicas, que formavam um quadro de instabilidade. A economia era de base agrária, organizada nos chamados feudos, uma terra outorgada pelo suserano ao vassalo, onde ele poderia exercer seu poder de forma autônoma. A caracterização histórica desses tipos de Estado e dos processos históricos que desaguaram no Estado Moderno será vista a seguir. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 11 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais 2.2.1. A cidade-Estado grega Aproximadamente em 800 acc., as comunidades agrícolas e pastoris que se distribuíam em diversas aldeias independentes na península balcânica, organizadas como clãs, começaram a formar unidades políticas maiores e mais organizadas. Resultando do aumento da necessidade de defesa, as comunidades dos tempos homéricos passaram a formar acrópoles (cidadelas) em locais mais elevados de uma região, onde se situavam os templos e os palácios dos governantes. A localização mais elevada tinha tanto um valor simbólico, como estratégico, por facilitar sua defesa. Em torno da acrópole crescia a cidade propriamente dita. Existiram muitas cidadesEstados, sendo Atenas e Esparta as maiores e mais importantes. No seu conjunto, as cidades-Estados tiveram uma evolução política semelhante: Começaram como monarquias, depois tornaram-se oligarquias, que foram derrubadas por tiranos (porque usurparam o poder e governavam ilegalmente) Finalmente, nos séculos VI e V formaram-se democracias ou timocracias (que eram governos baseados sobre uma classificação das propriedades para o exercício dos direitos políticos. Atenas não fugiu a essa trajetória. Foi uma monarquia até meados do século VIII a.C. e no século seguinte o Conselho de Nobres (chamado Areópago) aos poucos expropriou o Rei dos seus poderes. Isso ocorreu em resultado da evolução econômica. Inicialmente, a economia de Atenas se baseava em um comércio próspero devido às suas jazidas minerais e seus portos, o que ensejou uma cultura essencialmente urbana. A introdução da cultura da vinha e da oliveira levou ao desenvolvimento da agricultura, à concentração da propriedade da terra e à transformação de muitos dos atenienses em servos9. Criouse um clima de revolta, quando a classe média aderiu à causa dos camponeses para exigir mudanças políticas. Em 594 acc., Sólon assumiu o poder como magistrado, e realizou amplas reformas10, mas sofreu a reação dos nobres (que resistiam à perda dos seus privilégios) e também das classes média e baixa, que continuavam excluídas das 9 Muitos pequenos agricultores acabaram como servos por não conseguirem pagar suas dívidas, já que era possível hipotecar não somente a terra, mas também a família ea si próprio. 10 Entre várias outras se destacaram:1-Criação de um novo Conselho (o Conselho dos Quatrocentos) e admissão de membros da classe média entre seus membros. 2-libertação dos membros das classes inferiores, tornando-os elegíveis para a assembleia. 3-organizaçao de um tribunal supremo pelo sufrágio universal masculino, com poderes para julgar os recursos das decisões dos magistrados.4-cancelamento das hipotecas, proibição da escravidão por dívidas e limitação da quantidade de terra por indivíduo. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 12 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais funções da magistratura11. Seguiu-se um período de tiranos, porém o conflito de classes persistia. Até que Clístenes conquistou o poder com o apoio das massas e reformou radicalmente o governo, sendo considerado o pai da democracia ateniense. As suas reformas se caracterizaram pela inclusão política: conferiu plenos direitos de cidadão a todos os homens livres residentes na região na época; criou um novo Conselho dos Quinhentos que se tornou o principal órgão de governo, com poderes de propor medidas à assembleia e com o controle supremo das funções administrativas e executivas; ampliou os poderes da assembleia12. Mais tarde, sob o governo de Péricles, a assembleia foi ainda mais fortalecida, podendo apresentar projetos de lei, sem prejuízo dos seus poderes de ratificar ou rejeitar as propostas do Conselho. A civilização grega entrou em declínio com as Guerras do Peloponeso, quando Esparta conquistou a supremacia sobre Atenas. 2.2.2. O Império Romano No ano de 27 a.C, antes da civilização grega entrar em decadência começou a se desenvolver uma outra civilização, localizada na península itálica. Seu poder cresceu por mais de seis séculos e formou um império, cujo centro era Roma, e durou até 476 d.C. No sentido Leste-Oeste, o Império Romano se estendeu desde a borda do Oceano Atlântico, na Península Ibérica (hoje Portugal e Espanha) até a região da Ucrânia e Armênia, próxima ao Mar Cáspio. E no sentido norte sul, desde a Grã-Bretanha, no Mar do Norte, cobrindo toda a região da França, Suíça, Áustria, passando pelo Mar Mediterrâneo, até o norte da África, da Mauritânia até o Egito, a Síria, Turquia e a Mesopotâmia no Oriente Médio. É dos romanos que veio a palavra latina “status” -que designava “condição de estabilidade, modo de estar” – para referir-se ao Estado13. A partir do século IV d.C, com a percepção das 11 O cidadão é o indivíduo que participa na decisão e no comando, através das assembleias, dos conselhos e dos tribunais. Havia um órgão que abrangia a totalidade dos cidadãos, Eclésia ou assembleia. Composta por cidadãos do sexo masculino com o serviço militar já cumprido, inscritos nas demos atenienses. A Eclésia possuía funções legislativas e deliberativas: propunha, discutia e aprovava as leis e o ostracismo; designava por eleição ou sorteio, os magistrados e fiscalizava a sua atuação; decidia sobre a guerra ou a paz; negociava e ratifica tratados; controlava as finanças e as obras públicas; julgava crimes políticos. As suas decisões eram tomadas por maioria, em voto direto (sem representação), o que inevitavelmente criava clivagens profundas entre os grupos sociais. 12 Desde aceitar ou rejeitar as propostas do Conselho até declarar guerra e examinar as contas dos magistrados ao fim do seu exercício. 13 É também do pensamento político italiano que provém Maquiavel, que utilizou pela primeira vez a palavra Estado(Status), em sua obra “O Príncipe” – de 1513 – mas não definiu o conceito, nem se deteve sobre sua origem. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 13 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais dificuldades de defesa de um território tão extenso e diferenciado, foi realizada uma reforma administrativa e o Império Romano desdobrouse em duas entidades: o Império Romano do Ocidente (com capital primeiro em Roma, depois em Milão e Ravena), e o Império Romano do Oriente, com capital em Bizâncio, mas tarde denominada Constantinopla. Aos poucos, devido ao seu gigantismo e a problemas internos, o Império Romano entrou em decadência. As lutas internas pelo poder e as invasões bárbaras impuseram a necessidade de manter um grande exército permanentemente em campo, o que levou ao declínio da economia devido aos custos militares crescentes e fez crescer a insatisfação social com o constante aumento de tributos, levando à desagregação doo Império. 2.2.3. As invasões bárbaras As invasões bárbaras, a desordem política e a disseminação do cristianismo foram os principais fatores responsáveis pela crise do Império Romano. Habitando as regiões fronteiriças ao Império Romano, os povos bárbaros14 foram penetrando os territórios de Roma em um processo lento e gradual. Inicialmente, devido ao colapso da organização militar e às constantes guerras civis, os imperadores romanos realizavam acordos, pelos quais os bárbaros ganharam o direito de habitar essas regiões. Em troca, eles deveriam defender a fronteira contra a invasão de outros povos. Porém, nós séculos IV e V esse processo de invasão tornou-se mais conflituoso, intensificado pela pressão dos tártaro-mongóis (hunos) e o que um dia fora o Império Romano fragmentou-se em inúmeros reinos15. Dessa maneira, a Idade Média, além de ser inaugurada pelo estabelecimento dos reinos bárbaros, também ficou marcada pela mistura de instituições e costumes de origem romana e germânica. Com a decadência do Império Romano, ocorreu um processo de ruralização das populações, que não mais podiam empreender atividades comerciais, devido à insegurança decorrente das constantes invasões bárbaras e à crise dos centros urbanos constituídos no auge da civilização greco-romana. Por isso, ocorreu uma forte retração das atividades comerciais, as moedas deixaram de existir e a produção agrícola tornou-se reduzida à subsistência, praticamente sem produção de excedentes. 14 Eram povos assim chamados pelos romanos por viverem fora dos territórios do Império e não falarem latim, também eram conhecidos como germânicos. 15 Reino não significava o mesmo que Estado, pois não tinha um território claramente demarcado. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 14 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais A ruralização da economia afetou diretamente as classes sociais existentes durante o ocaso do Império Romano. Havia, então, uma ampla classe de escravos16e plebeus, que veio a compor, junto com os povos germânicos, uma camada de camponeses17que se consolidou como a principal força de trabalho nos feudos formados mais tarde. 2.3. Antecedentes históricos do Estado Moderno O Estado moderno consiste em um conjunto de instituições resultantes do declínio do proto-Estado feudal, surgido na Idade Média. A Idade Média é o período histórico que vai do século V ao XV, iniciado em 476, quando os bárbaros germânicos invadiram e derrubaram o Império Romano do Ocidente e encerrado em 1453 com a conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos. Durante esse período de 1000 anos, realizou-se uma complexa fusão de valores culturais romanos e germânicos, dando origem à civilização ocidental e ao Estado moderno. 2.3.1. A Idade Média A Idade Média é o período intermediário da divisão clássica da História ocidental em três períodos: a Antiguidade, Idade Média18 e Idade Moderna. A Idade Média é subdividida em Alta Idade Média(século V até século X d.C.)e Baixa Idade Média. Durante a Alta Idade Média continuam os processos de despovoamento, regressão urbana, e invasões bárbaras, iniciadas na Antiguidade Tardia. A vida urbana sofreu um declínio acentuado a partir da queda do Império Romano. Embora as cidades italianas continuassem a ser povoadas, o número de habitantes diminuiu drasticamente. Na Europa do Norte, as cidades também se contraíram, embora a instituição de novos reinos muitas vezes proporcionasse o crescimento das cidades escolhidas para capital 16 Composta por povos vencidos em guerras, pessoas que se tornaram escravos em pagamento a suas dívidas, etc. 17 Trabalhando em regime de servidão, o camponês estava atrelado à vida rural devido à insegurança e à relação pessoal (vassalagem) estabelecida com o senhor feudal. 18 A data consensual para o início da Idade Média é 476 d.C quando foi deposto o último imperador romano do Ocidente. Na Europa considera-se normalmente o fim da Idade Média no ano 1500, embora não haja um consenso universal sobre a data. Podem ser considerados como eventos de transição para a Idade Moderna: a primeira viagem de Cristóvão Colombo às Américas em 1492, a conquista de Constantinopla pelos Turcos em 1453, ou a Reforma Protestante em 1517. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 15 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais Os bárbaros formaram novos reinos, apoiando-se na estrutura do Império Romano do Ocidente19. Por isso, embora tenha havido alterações significativas nas estruturas políticas e sociais, a ruptura com a Antiguidade não foi completa e a maior parte dos novos reinos incorporou muitas das instituições romanas pré-existentes. Na Europa ocidental, grande parte das antigas famílias das elites romanas desapareceu, ao mesmo tempo que outras se envolviam cada vez mais com assuntos religiosos e menos com matérias seculares. O cristianismo disseminou-se pela Europa ocidental e a Igreja Católica assumiu grande poder político. Um dos elementos centrais da estrutura social formada por essa época era a relação de suserania-vassalagem, na qual o vassalo oferece ao senhor ou suserano, fidelidade e trabalho em troca de proteção e um lugar no sistema de produção. Essa relação não se dava apenas entre diferentes camadas sociais. Dentro da própria nobreza, existiam relações de suserania e vassalagem, pelas quais eram concedidas, por um nobre maior, terras ou oportunidades econômicas para exploração por um nobre menor, em troca da sua vassalagem e fidelidade. Divididos por diferentes títulos, os nobres poderiam ser responsáveis desde a administração de um feudo até a cobrança de taxas ou a proteção militar de uma determinada propriedade20. Nesse sistema de suserania-vassalagem, o rei era o suserano mais elevado e mais poderoso, a quem todos os nobres prestavam vassalagem. Afirmavam-se as relações de dependência pessoal, garantindo aos suseranos o contínuo aumento do seu poder de coerção, através do apoio armado que recebiam de seus vassalos. Ao longo da Alta Idade Média, esse quadro político se consolidou, afirmando-se o poder local dos senhores de terras. A Baixa Idade Média, iniciou-se depois do ano 1000, quando a Europa passou por um acentuado crescimento demográfico e pelo renascimento do comércio, à medida que inovações técnicas e 19 Durante os séculos VII e VIII, os Francos estabeleceram um império que dominou grande parte da Europa ocidental até ao século IX, que foi derrubado pelas invasões dos Vikings do norte, Magiares de leste e Sarracenos do sul. 20 A relação de hierarquia dos títulos de nobreza é muito variada. Na maioria das monarquias tradicionais (Espanha, Portugal, França, Reino Unido, Bélgica, Dinamarca, Suécia, Noruega, etc.), segue-se esta relação de hierarquia: Arquiduque; Grão-duque; Duque; Marquês; Conde; Visconde; Barão; Senhor; Baronete; Cavaleiro; Escudeiro Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 16 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais agrícolas permitem uma maior produtividade de solos e colheitas mais abundantes, originando excedentes. Nesse período se consolidaram as duas estruturas sociais que dominaram a Europa até o século XIV: o “senhorialismo” – a organização de camponeses em aldeias que pagavam impostos e prestavam vassalagem a um nobre – e o “feudalismo” — uma estrutura econômica e política hierárquica, na qual os cavalheiros e outros nobres de estatuto inferior prestavam serviço militar aos seus senhores, recebendo como compensação uma propriedade senhorial e o direito a cobrar impostos e aplicar a sua lei em determinado território. Ou seja: definitivamente estava consolidado um sistema de poder privado, local, vinculado econômica e politicamente em uma rede de lealdades pessoais de base estamental. 2.3.1.1- O Feudalismo Na Baixa Idade Média, o feudalismo se caracterizava por uma organização social bem demarcada: o clero exercia as funções religiosas, os nobres exerciam as funções militares e os servos produziam os meios de subsistência e pagavam os tributos. A economia era essencialmente agrária, portanto a terra era a maior riqueza e a base econômica do sistema feudal. Porém, a terra não era mercadoria, não podendo ser comprada ou vendida porque estava associada ao status, destacando-se como atributo do título de nobreza. Da mesma forma, o trabalho não era resultante de um contrato livre e não era assalariado; apenas correspondia a um conjunto de deveres associados a condições de status. O senhor feudal pertencia à classe nobiliárquica ou nobreza que, juntamente com a Igreja, era a detentora exclusiva das terras. Embora inicialmente não fosse proprietária, a nobreza detinha os direitos de exploração e tributação de grande parte das terras agrícolas. Ao longo dos séculos XI e XII, estas terras, ou feudos, tornam-se hereditárias. Em muitas regiões, a dificuldade em dividi-las pelos herdeiros fez com que passassem a ser herdadas apenas pelo primogênito – o filho homem mais velho21. O domínio da nobreza durante este período deve-se em grande parte ao controle das terras agrícolas e dos castelos, ao serviço militar 21 O direito de primogenitura era uma das instituições feudais. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 17 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais na cavalaria pesada, à manutenção da ordem dentro dos seus feudos e às várias isenções de impostos ou obrigações de que desfrutavam em troca dos serviços prestados ao Rei ou à Igreja. Ao mesmo tempo em que a economia e as relações sociopolíticas se transformavam, crescia importância da Igreja. O clero entraria em acordo com os reis e a nobreza com o intuito de expandir o ideário cristão. A conversão da nobreza permitiu que os clérigos interferissem nas questões políticas22. O feudalismo descentralizou fortemente o poder político, na medida em que o poder público centralizado dos tempos áureos do Império romano cedeu lugar a uma grande quantidade de reinos, de limites territoriais imprecisos, subdivididos em territórios privados dos senhores feudais, que exerciam o poder localmente, ou seja, sobre aqueles que se viviam sob seus domínios. Na prática, a autoridade exercida pelo senhor feudal era superior à dos reis, que não tinham poder de interferência direta sobre as regras e imposições de um senhor feudal no interior do seu território (feudo).O monarca era a autoridade máxima, mas era apenas uma figura simbólica porque eram os senhores feudais que controlavam diretamente a vida em seus feudos, detinham o poder militar, o poder de aplicar a justiça, de cobrar tributos e o direito de cunhar suas próprias moedas. Na Idade Média não existia a noção de emprego. A relação trabalhista da época era a relação senhor-servo. A servidão foi uma forma peculiar da organização do trabalho rural na sociedade feudal, especificamente associada ao “senhorialismo”. Os servos obtinham o direito a cultivar e habitar as terras de determinada família nobre mediante o pagamento de uma renda na forma de trabalho, gêneros ou moeda. Em troca, recebiam proteção económica e militar. O servo tinha direito a cultivar a terra mas não era seu proprietário. Como a terra era o principal meio de subsistência, o servo ficava preso ao senhor feudal, devendo-lhe trabalho forçado, fidelidade, obediência e obrigações pessoais, além da renda e dos impostos que pagava. Os servos podiam executar, ainda, diversos trabalhos relacionados 23 com agricultura , transporte (por terra e por rio),artesanato e manufatura. 22 Muitas vezes um rei ou um senhor feudal doava terras para a Igreja em sinal de sua devoção religiosa. Dessa forma, a Igreja também se tornou uma grande “senhora feudal”. 23 Por exemplo, na sociedade feudal os direitos e deveres de um nobre eram diferentes dos direitos e deveres de um servo. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 18 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais A servidão24 era o status legal e econômico dos camponeses ("servos") no feudalismo, especialmente no âmbito do sistema econômico da "senhoria" (direitos feudais sobre a terra). Os servos eram, principalmente (mas não exclusivamente)trabalhadores rurais presos à terra, que formavam a classe social mais baixa da sociedade feudal. Os servos podiam ser homens livres, ex- escravos ou camponeses sem terra, que se tornaram servos por vontade própria ou por terem sido obrigados a isso. A servidão não era o mesmo que escravidão, pois os servos não eram considerados propriedade e não podiam ser comprados, nem vendidos. Entre os séculos X e XI, ocorreu um grande crescimento demográfico devido à melhoria das técnicas de produção agrícola existentes, mas isso resultou em demanda por novas terras, que foram atendidas com a extensão da área cultivável a regiões de florestas. Isso, todavia, não foi suficiente para assegurar alimentos à população crescente e, já no século XIII, a região passou por uma séria crise de abastecimento. Em meados do século XIV, a falta de alimentos somada ao rápido crescimento dos aglomerados urbanos, nos quais não havia condições de saúde e saneamento, propiciou uma das mais graves epidemias a atingir a população da Europa – a peste negra – que dizimou 1/3 da população.Com isso, houve uma forte redução na mão de obra, que levou ao recrudescimento das obrigações feudais. O resultado foi uma sucessão de revoltas camponesas em diversos pontos da Europa e o questionamento do sistema feudal. 2.3.1.2- O sistema estamental Historicamente, os estamentos caracterizaram a sociedade feudal durante a Idade Média. O sistema de estamentos ou sistema estamental era um tipo de estratificação social reconhecido por lei, segundo o qual cada homem estava obrigado a seguir um estilo de vida específico, geralmente ligado ao conceito de honra, predeterminado pelo seu nascimento. Nesse sistema, a identidade de 24 A servidão evoluiu com a instabilidade do Império Romano nos séculos III e IV d.C., quando diversos pequenos proprietários passaram a vender suas terras para os grandes senhores de terras e a empregarse nos latifúndios como arrendatários, em troca de proteção. A servidão disseminou-se na Europa no século X e tornou-se a forma predominante de organização do trabalho agrário europeu durante toda a Idade Média. Sobreviveu na Inglaterra até o século XVII, na França até a Revolução Francesa (1789) e, na maioria dos países europeus, até o início do século XIX. A servidão na Rússia durou até 1861, tendo sido o último país do mundo a libertar seus servos. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 19 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais cada um definia-se não pela sua condição de indivíduo, mas pela sua inserção estamental. Cada estrato(também chamado ordem, estado, camada ou estamento) deveria obedecer a um código próprio de direitos e deveres. E, embora a lei não oferecesse previsão de mudança de status social, ela também não a tornava impossível, como no sistema de castas. Por exemplo, um servo poderia se tornar um pequeno comerciante ou um membro do clero. Além disso, geralmente havia sub- estratificações dentro dos estamentos25 Assim, a sociedade se organizava como um triângulo no qual os estamentos eram dispostos conforme a seguinte hierarquia: rei, clero, senhores nobres e, finalmente, plebeus. Os estamentos eram também conhecidos como as Três Ordens ou Três Estados: oratores (Clero), bellatores (nobres guerreiros) e laboratores(plebeus, trabalhadores, servos) O clero, no topo da pirâmide, logo abaixo do rei, era composto pelos homens da igreja, fundamentais não apenas para a manutenção do poder ideológico do ponto de vista religioso, mas porque desempenhavam um papel estratégico e fundamental para o apoio e manutenção da ordem estabelecida. Logo abaixo estavam os nobres, um estamento de guerreiros que tinham por função a defesa do reino em batalhas. Os nobres, enquanto grupo, tinham o controle dos feudos, a posse da terra, e procuravam se casar entre si, de modo a manter sua linhagem. Mas os títulos de nobreza e o reconhecimento geral de que eram superiores aos plebeus também dependiam da anuência do rei, o qual condecorava os homens que considerasse merecedores, concedendo-lhes títulos que se faziam acompanhar de terras. Finalmente, os plebeus eram os servos, categoria que incluía os camponeses, artesãos, vilões26, mercadores, etc 25 Em Portugal, por exemplo, o clero dividia-se entre os que fazem vida no século e o que a fazem debaixo de uma regra monástica; a nobreza, divide-se, consoante a riqueza e as funções, em ricos-homens, fidalgos e cavaleiros; os plebeus dividiam-se em variadíssimos sub-estratos, conforme a ocupação e a riqueza. 26 Vilão era, na Idade Média, uma pessoa que não pertencia à nobreza feudal, que habitava em vilas. Vale lembrar que o trabalhador do feudo recebia o nome de servo, e que havia vários graus de servidão; os vilões eram aqueles servos mais próximos do senhor feudal, pelo qual recebiam maiores privilégios pessoais e econômicos e tinham menos deveres. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 20 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais 2.3.1.3- Os burgos e a burguesia No século X, o feudalismo atingiu o seu auge tornando-se uma forma de organização vigente em boa parte do continente europeu. A partir do século seguinte, o aprimoramento das técnicas de produção agrícola e o crescimento populacional proporcionaram melhores condições para o reavivamento das atividades comerciais. A população urbana teve um crescimento notável durante os séculos XII e XIII, dando origem a cidades, que reuniam grandes contingentes populacionais, embora ao longo de todo o período seja provável que nunca tenham excedido os 10% da população total. Durante o período feudal tanto o campo como as cidades eram dominados pelo senhor feudal. Os burgos pequenas cidades protegidas por muros, que funcionavam como centros de comércio - surgiram na Baixa Idade Média, na época da decadência feudal. Os burgos desenvolveram-se pelo processo de troca de produtos entre um feudo e outro. Os habitantes dos burgos – os burgueses- eram, geralmente, artesãos e mercadores. Na Baixa Idade Média, quando as cidades começaram a se formar e crescer, artesãos e comerciantes começaram a emergir como uma força econômica. Eles formaram as guildas, que eram associações e companhias que tinham o objetivo de promover o comércio e seus próprios interesses. Essas pessoas eram os burgueses originais. No século XI, as cidades já exibiam uma grande influência econômica. Assim, os burgueses começaram a lutar pela sua autonomia em relação ao feudo, surgindo assim, o movimento comunal. Inicialmente, os senhores feudais começaram a vender seus direitos: mediante um pagamento as cidades passavam a ser chamadas de cidades francas ou cidades livres, que eram livres do domínio senhorial. Essas cidades independentes começaram a ser governadas pelos burgueses mais ricos, que estabeleciam as leis de aplicação local, cobravam os impostos, e controlavam a milícia urbana. Porém, muitos senhores feudais não aceitaram tais acordos, e desencadeou-se o conflito entre nobres e burgueses, vindo a beneficiar o Rei, cujo poder aumentava à medida em que a nobreza era desempoderada. Nesse processo, tanto na França como na Inglaterra, os burgueses aliaram-se ao Rei contra a nobreza, e o poder central impôs-se ao poder local. Em outras regiões, como a Itália e a Alemanha, os burgueses não se tornaram tão fortalecidos, prevalecendo o poder local contra o poder central. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 21 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais 2.3.2. As Cruzadas e o Renascimento As Cruzadas, anunciadas pela primeira vez em 1095, representam a tentativa da cristandade em recuperar dos muçulmanos o domínio sobre a Terra Santa, tendo chegado a conquistar alguns territórios cristãos no Médio Oriente. Estendendo-se até o final do século XIII (1270), as oito Cruzadas foram um fracasso em seu objetivo de conquistar a Terra Santa para os cristãos. Custaram muito caro para a nobreza europeia, causaram o enfraquecimento dos senhores feudais, fortaleceram o poder real e possibilitaram a expansão do comércio e o enriquecimento da burguesia. Além disso, o contato com o Oriente favoreceu o desenvolvimento de novas ideias e da vida cultural. Uma das consequências das Cruzadas foi o desencadeamento de um conjunto de transformações na cultura, sociedade, economia, política e religião, que veio a ser conhecido como Renascimento, Renascentismo ou simplesmente Renascença. Ocorrido aproximadamente entre fins do século XIV e início do século XVII, o Renascimento representa um ponto crucial na transição do feudalismo para o capitalismo e na ruptura com as estruturas medievais, especialmente pelo desenvolvimento do humanismo e do conceito de indivíduo. 2.4. A formação do Estado Moderno: Etapas A formação do Estado moderno foi um processo multissecular (iniciado na Inglaterra no século IX e consolidado entre os séculos XVI e XVIII) de expropriação do poder dos nobres feudais e da concentração e centralização do poder político primeiro, no Rei; mais tarde, numa instituição, a Coroa (Estado). O Proto-Estado feudal, ao contrário do Estado Moderno, era uma estrutura policêntrica caracterizada pelo exercício acumulativo das diversas funções diretivas por parte das mesmas pessoas e pela fragmentação do poder em pequenos agregados sociais. Nessa comunidade política policêntrica (feudos) o poder local do senhor feudal era combinado com o poder universal da Igreja, que monopolizava o conhecimento e a legitimação pela revelação. O Estado Moderno surge justamente em oposição a essa fragmentação Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 22 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais do poder, quando o monarca concentra o poder dentro do território, impondo-se como soberano, aos poucos unificando as leis, as cortes de justiça e os exércitos. Bobbio afirma que O Estado moderno significava precisamente (...)a instauração de um nível diferente da vida social, a delimitação de uma esfera rigidamente separada de relações sociais, gerenciada exclusivamente de uma forma política. Norberto Bobbio distingue o Proto-Estado Feudal do Estado Estamental, 27sustentando que na organização política foram se formando órgãos colegiados que reuniam indivíduos possuidores da mesma posição social (os estamentos)dotados de direitos e privilégios que, através das assembleias deliberantes como os parlamentos, faziam valer contra o detentor do poder que vinha se concentrando e tentando expropriá-los. Esta sociedade por camadas era caracterizada pela força dos antigos grupos feudais, os nobres, que controlavam a terra e a população e, por isso, ainda detinham muito poder e lutavam para limitar a atuação do príncipe, já que este, num primeiro momento, dependia das categorias ou camadas sociais para criar e manter o quadro administrativo e um exército permanente porque seus próprios recursos ainda não eram suficientes para isso. Esse processo foi marcado pela tensão entre, de um lado, a expropriação dos poderes privados locais e a gradual eliminação dos privilégios, inclusive fiscais, da nobreza; e, de outro, a necessidade do soberano de obter apoio da esfera financeira e extrair da burguesia os recursos para criar e manter seu quadro administrativo e um exército permanente. Segundo Bobbio: Daí resultou a absoluta necessidade do príncipe de recorrer à ajuda do "país", por meio de suas expressões políticas e sociais: as categorias sociais reunidas em assembleia. Tal ajuda financeira era subordinada a um prévio “conselho” das próprias camadas sociais, em torno dos fins para os quais o príncipe era obrigado a solicitar sua ajuda financeira. Junte-se a isso a posição de força dessas camadas sociais, que detinham participação nos mais altos cargos administrativos e políticos que aos poucos iam surgindo para acompanhar o crescimento da dimensão estatal. Isso constituía um aspecto contraditório em relação à tendência do Estado Moderno, centralizadora e monopolista do poder. O desenvolvimento do Estado moderno devia orientar-se contra as categorias sociais, em razão da 27 Uma sociedade estamental é uma “ordem de status” baseada em “prestígio social” para qualificar positiva ou negativamente os grupos sociais. Uma sociedade dividida em estamentos diferencia-se de uma sociedade dividida em classes sociais porque, nesta, o critério de separação das classes é econômico, é a posse ou não de riqueza, de um bem. Já nos estamentos, o critério é status adscrito, é o pertencimento a determinado grupo por nascimento. A razão de ser dos estamentos, portanto, é a desigualdade calcada na diferenciação da honra pessoal, no exclusivismo social. Câmara dos Deputados Ciência Política - [Pós-Edital 2023] - Prof. Dra. Maria das Graças Rua - www.igepp.com.br ‘ 23 MÓDULO: Teoria do Estado e Formação dos Estados Nacionais eliminação do seu poder político e administrativo. Pouco a pouco, o príncipe ganhou poder, em detrimento das camadas sociais; e superou a dependência de financiamento por estas camadas e eliminou o "direito de aprovação dos impostos" dos grupos sociais, inventando modos e canais de arrecadação das contribuições controladas e administradas diretamente por ele. Segundo Bobbio: Esse processo foi possível, (...) graças à progressiva conquista, por parte do príncipe e de seu aparelho administrativo, da esfera financeira, à qual estava intimamente ligada a esfera econômica do país. Isso pôde acontecer, em primeiro lugar, graças ao apoio que o príncipe facilmente encontrou, na sua luta contra os privilégios, até fiscais, da mais importante das categorias sociais: a nobreza. Esse apoio veio da parte dos estratos mais empenhados da população e particularmente da burguesia urbana, na mira de uma distribuição dos encargos fiscais mais justa entre as várias forças do país e, também, de uma ativa política de defesa, de sustentação e de estímulo do príncipe em relação à ati

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