LIBRAS: Que Língua É Essa? - PDF
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Audrei Gesser
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Este livro explora a língua de sinais LIBRAS, focando as crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade surda. A autora argumenta sobre a natureza linguística e cultural da LIBRAS, com base na sua experiência e pesquisa. O livro discute e analisa vários aspectos desta língua.
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Audrei Gesser LIBRAS? que língua é essa? CRENÇAS E PRECONCEITOS EM TORNO DA LÍNGUA DE SINAIS E DA REALIDADE SURDA De um ideal precário à articulação do óbvio que ainda precisa ser dito PEDRO M. GARCEZ celebrado sociólogo Erving Goffma...
Audrei Gesser LIBRAS? que língua é essa? CRENÇAS E PRECONCEITOS EM TORNO DA LÍNGUA DE SINAIS E DA REALIDADE SURDA De um ideal precário à articulação do óbvio que ainda precisa ser dito PEDRO M. GARCEZ celebrado sociólogo Erving Goffman, na madureza de sua obra final, articula o ideal de todo palestrante de que a platéia esteja de fato engajada na escuta do que ele diz pelo que diz, e que assim seja levada bem além do auditório para os cenários e ocasi- ões no mundo onde o tema de que trata se faz vividamente relevante. Além de ser um ideal, esse é ainda um ideal precário, por- que escutar é bem mais que ouvir. Foi num encontro de sala de aula em meados da já distante década de 1990 que, hoje sei, fui escutado, e o meu ideal precário tomou contornos definidos. Tratava da natureza da linguagem natural humana, me dirigindo a ingressantes no mestrado em inglês da Universidade Federal de Santa Catarina, quando surgiu a questão — fascinante e ainda incrivelmente desconhecida da platéia — de que as línguas de sinais são línguas naturais tão humanas quanto as demais e que não se limitam a um código restrito de transposição das letras do alfabeto. Tive indícios de ter sido escutado logo quando se apresentou diante de mim uma aluna com sua curiosidade, que resulta na presente obra. De um ensaio sobre as questões suscitadas pela discussão na disciplina, ela seguiu para localizar os espaços antes invisíveis na universidade, 8 LIBRAS? QUE LINGUA É ESSA? onde a LIBRAS poderia estar disponível, aí encontrando a própria língua, seus usuários protagonistas, os surdos, bem como pais e educadores de surdos, e uma prosaica gente como a gente, interessada em conceber um mundo feito também por quem, sem ouvir, pode escutar. 0 percurso não parou aí, e Audrei engajou-se em pesquisa sistemática que indagava como se organizaria uma aula de LIBRAS como língua adicional para pais e educadores de crianças surdas. O trabalho mostrou cenas de sala de aula, como a que tenho registrada na memória, do professor surdo virado para a lousa, de costas para a turma, à espera de atenção para ser escutado. Aprendemos todos a ver como era preciso que esses aprendizes ouvintes antes de tudo construíssem um entendimento do que seria uma língua nessa até então insuspeitada modalidade espaciovi- sual. Em meio a isso, Audrei visitava escolas e se aproximava das comunidades surdas, de Campinas, SP a Washington, DC. Nessas cidades, as reflexões no IEL-Unicamp sobre as diversas comu- nidades sociolinguisticamente complexas no Brasil e a convivência em meio a uma comunidade acadêmica protagonizada por surdos na Universidade Gallaudet ampliaram o universo de escutas proveitosas da autora, amadurecido em sua tese de doutorado sobre as identidades em jogo quando ouvintes aprendem LIBRAS. Por isso, é mais que oportuno que ela venha a público nesta obra para dizer um pouco do que, como ela mesma afirma na introdução, é o óbvio que ainda precisa ser dito para que mais ouvintes tenham conhecimento do rico universo humano que se faz nas línguas de sinais, com as línguas de sinais, e particularmente com a Língua Brasileira de Sinais, essa LIBRAS que nos toca de perto, se soubermos escutar para vê-la. É grande a satisfação de ter sido escutado naquela tarde na UFSC e de ter participado do início do percurso que se revela aqui para tantos quantos venham a escutar. PORTO ALEGRE, AGOSTO DE 2009. Introdução "Nenhuma opinião, verdadeira ou falsa, mas contrária à opinião dominante e geral, estabeleceu-se no mundo instantaneamente e com base numa demonstração lúcida e palpável, mas à força de repetições e, portanto, de hábito" (LEOPARDIA IBRAS É língua." Foi este o título escolhido para a palestra apresentada por uma linguista em um evento cujo público alvo era o estudante do curso de letras. Uma professora que trabalha na área da surdez, mencionando o título, fez o seguinte comentário: "De novo? Achei que essa questão já estava resolvida!" Foi esse episódio que me veio à mente no momento mesmo em que co- mecei a reler este livro, então já rematado, e que me fez recomeçar justamente a partir desse protesto. De fato, o comentário faz sentido, e a sensação é mesmo a de um discurso repetitivo. Ainda é preciso afirmar que LIBRAS é língua? Essa pergunta me faz pensar: na década de 1960, foi conferido à língua de sinais o status linguístico, e, ainda hoje, mais de quarenta anos passados, continuamos a afirmar e reafirmar essa legitimidade. A sensação é mesmo a de um discurso repetitivo. Entretanto, para a grande maioria, trata-se de uma questão alheia, e pode aparecer como uma novidade que causa certo impacto e surpresa: Não adianta, ésempre a mesma coisa. Quando estamos em um evento que fala para quem está fora do meio da surdez, tudo é novidade mesmo! As pessoas ficam espan- tadas quando tomam conhecimento, e para quem está dentro da área o discurso é sempre a mesma coisa, fica esta coisa batida, e nós ficamos nos repetindo... Esse comentário põe em palavras minha própria surpresa. Uma surpresa "de dentro", que reclama também agora essa mesma repetição. O que vemos é que o discurso aparentemente "gasto" faz-se necessário, precisando ser repetido inúmeras vezes para que a constituição social dessa língua minoritária ocorra, ou seja, para chegarmos à legitimação e ao reconhecimento, por parte da sociedade como um todo, de que a língua de sinais É uma língua. Certamente a marca linguística não é a única questão nas discussões sobre a surdez, mas é a legitimidade da língua que confere ao surdo alguma "libertação" e distanciamento dos moldes e representações até então exclusivamente patológicos. Tornar visível a língua desvia a concepção da surdez 10 LIBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? como deficiência — vinculada às lacunas na cognição e no pensamento — para uma concepção da surdez como diferença linguística e cultural. Qual é, pois, o objetivo de escrever este livro? Em primeiro lugar, é criar um espaço em que esse tipo de discussão seja pensado. De forma mais geral, o desejo do livro origina-se de reflexões sobre algumas questões relativas à área da surdez, pensando especificamente a relação do ouvinte com esse outro mundo. 0 momento parece oportuno e particularmente pertinente, na medida em que decisões políticas têm propiciado um olhar diferenciado para as minorias linguísticas no Brasil. Percebe-se que os discursos sobre o surdo, a língua de sinais e a surdez, de uma forma ampliada, "abrem-se" para dois mundos desconhecidos entre si: o do surdo em relação ao mundo ouvinte e o do ouvinte em relação ao mundo surdo. 0 conteúdo aqui esboçado pode alcançar diferentes leitores: surdos, ouvintes, leigos, profissionais da surdez, estudantes, professores ou simples- mente curiosos. Várias são as preocupações aqui delineadas. A principal é a de ilustrar falas recorrentes e repetitivas advindas de algumas situações de interação face a face com/entre surdos e ouvintes para trazer à tona algumas crenças, preconceitos e questionamentos em torno da língua de sinais e da realidade surda. Essa discussão é crucial, pois na e através da linguagem estamos constantemente construindo representações, crenças e significados afirmados, consumidos, naturalizados e disseminados na sociedade, nos espaços escolares e familiares, muitas vezes como "normas" e "verdades absolutas”. 0 leitor encontrará neste livro manifestações discursivas organizadas em três capítulos sob forma de perguntas ou afirmações que venho registrando e acumulando — por meio de conversas formais e informais — nas minhas idas e vindas em contextos de ensino de LIBRAS para ouvintes, em eventos acadêmicos e em interações cotidianas. 0 leitor poderá vislumbrar no livro um ponto de partida para evocar o JREpensar de algumas crenças compartilhadas, práticas, conceitos e posturas à luz de algumas transformações que marcam a área da surdez na atualidade. Ou seja, o que se espera é poder promover um direcionamento para um novo olhar, uma nova forma de narrar a(s) realidade(s) surda(s}. Ao recuperar, no título, a fala de um pai que confessa seu estranhamento em relação à língua do filho surdo, ao dizer " LIBRAS? Que língua é essa?" quero flagrar o total desconhecimento dessa realidade linguística, tanto por parte daqueles que convivem de perto com a surdez, quanto por parte da sociedade ouvinte de maneira geral. Além disso, propõe-se um espaço de articulação em que questões similares possam ser pensadas e, sem evitar seu estranhamento, tornadas mais familiares. Essa foi a forma encontrada para também sensibilizar ouvintes sobre um mundo surdo desconhecido e complexo. Como disse o poeta Leopardi, "à força de repetições, e, portanto, de hábito", podem ser criadas oportunidades para reflexões e mudanças sobre algumas opiniões e também crenças daqueles que não estão ou nunca estiveram em contato com o surdo, a língua de sinais e a surdez. cada vez que uma mãe surda segura seu bebê em seu peito e sinaliza para ele" (HARLAN LANE/ A língua de sinais é universal? ma das crenças mais recorrentes quando se fala em língua de sinais é que ela é uni- versal. Uma vez que essa universalidade está ancorada na ideia de que toda língua de sinais é um "código" simplificado apre- endido e transmitido aos surdos de forma geral, é muito comum pensar que todos os surdos falam a mesma língua em qualquer parte do mundo. Ora, sabemos que nas co- munidades de línguas orais, cada país, por exemplo, tem sua(s) própria(s) língua(s). Embora se possa traçar um his- tórico das origens e apontar possíveis parentescos e semelhanças no ní- vel estrutural das línguas humanas (sejam elas orais ou de sinais), alguns fatores favorecem a diversificação e a mudança da língua dentro de uma comunidade linguística, como, por exemplo, a extensão e a descontinui- dade territorial, além dos contatos com outras línguas. Com a língua de sinais não é diferente: nos Estados Unidos, os surdos "falam" a língua americana de sinais; na França, a língua francesa de 12 LIBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? sinais; no Japão, a língua japonesa de sinais; no Brasil, a língua brasileira de sinais, e assim por diante. Vejamos abaixo a diferença do sinal "mãe" em 4 diferentes línguas de sinais: Em qualquer lugar em que haja surdos interagindo, haverá línguas de sinais. Podemos dizer que o que é universal é o impulso dos indivíduos para a comunicação e, no caso dos surdos, esse impulso é sinalizado. A língua dos surdos não pode ser considerada universal, dado que não funciona como um "decalque" ou "rótulo" que possa ser colado e utilizado por todos os surdos de todas as sociedades de maneira uniforme e sem influências de uso. Na pergunta sobre universalidade, está também implícita uma tendência a simplificar a riqueza linguística, sugerindo que talvez para os surdos fosse mais fácil se todos usassem uma língua única, uniforme. 0 paralelo é inevitável: e no caso de nossa língua oral, essa perspectiva se mantém? Mesmo que, do ponto de vista prático, tal uniformidade fosse desejável, seria possível a existência, nos cinco continentes, de uma língua que, além de única, permanecesse sempre a mesma? A língua de sinais é artificial? Crença. A língua de sinais dos surdos é natural, pois evoluiu como parte de um grupo cultural do povo surdo. Consideram-se "artificiais" as línguas construídas e estabelecidas por um grupo de indivíduos com algum propósito específico. 0 esperanto1 (língua oral) e o gestuno (língua de sinais) são 1 Atualmente, a língua auxiliar planejada mais falada é o esperanto. 0 russo Ludwik Lejzer Za- menhof, oftalmologista e filólogo, publicou, em 1887, a versão inicial do idioma, com o objetivo de A LINGUA DE SINAIS 13 exemplos de línguas "artificiais"2, cujo objetivo maior é estabelecer a comu- nicação internacional. Esse tipo de língua funciona como uma língua auxiliar ou franca. 0 gestuno, também conhecido como língua de sinais internacional, é, da mesma forma que o esperanto, uma língua construída, planejada. O nome é de origem italiana e significa "unidade em língua de sinais". Foi mencionada pela primeira vez no Congresso Mundial na Federação Mundial dos Surdos (World Federation of the Deaf - WFD) em 1951. Em meados da década de 1970, o comitê da Comissão de Unificação de Sinais propunha um sistema padronizado de sinais internacionais, tendo como critério a seleção de sinais mais compreensíveis, que facilitassem o aprendizado, a partir da integração das diversas línguas de sinais. A comunidade surda, de forma geral, não considera o gestuno uma língua "real" uma vez que foi inventada e adaptada. Atualmente, entretanto, cursos são oferecidos, e os adeptos do movimento gestunista divulgam os sinais internacionais em conferências mundiais dos surdos (Moody, 1987; Supalla & Webb, 1995; Jones, 2001). A língua de sinais tem gramática? Absolutamente. 0 reconhecimento linguístico tem marca nos estudos descritivos do linguista americano William Stokoe em 1960. No tocante às línguas orais, as investigações vêm acontecendo há muito mais tempo, já que em 1660 (ou seja, trezentos anos antes) desenvolveu-se uma "teoria de língua em que as estruturas e categorias gramaticais podiam ser associadas a padrões lógicos universais de pensamento" (Crystal, 2000: 204), postulada na Gramática de Port-Royal3. As línguas de sinais, criar uma língua de aprendizagem muito fácil, que funcionasse como língua franca internacional para os povos de todos os cantos do mundo. Sabe-se, entretanto, que nenhuma nação adotou o esperanto como sua língua, mas registra-se um uso por uma comunidade de mais de 1 milhão de falantes. A língua é empregada em várias situações e os adeptos do movimento esperantista implementam e desenvolvem cursos do esperanto em alguns sistemas de educação (Santiago, 1992). 2 Os seguidores do movimento esperantista não utilizam o termo "artificial’', pois acreditam que há, sim, aspectos naturais na comunicação no esperanto, e preferem termos como linguagem planejada ou auxiliar para defini-lo. Eles argumentam que as linguagens naturais também têm “certa artificialidade", quando se pensa nas medidas normativas (gramáticas normativas) que postulam regras para as línguas de uma forma geral. Trata-se de uma questão conceituai, polêmica e em constante debate (Santiago, 1992). 3 Este nome é dado a um grupo de estudiosos do século XVII que seguia as ideias de René Descartes. Port-Royal era um convento, ao sul de Versailles, na França. Insatisfeitos com o mé 14 LIBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? como se vê, vieram a ser contempladas cientificamente apenas nos últimos quarenta anos: antes, "sinal não era visto, mesmo pelos sinalizadores, como uma língua verdadeira, com sua própria gramática" (Sacks, 1990: 76). Ao descrever os níveis fonológicos4 e morfológicos da língua americana de sinais (ASL daqui por diante), Stokoe apontou três parâmetros que constituem os sinais e nomeou-os: configuração de mão (CM); ponto de articulação (PA) OU locação (L), delimitado no desenho por um círculo; e movimento (M), cuja direção é indicada por uma seta. O exemplo a seguir ilustra esses três parâmetros no sinal "certeza”, realizado em LIBRAS: Desenho adaptado com base em Capovilla & Raphael (2004:194). A partir da década de 1970, os linguistas Robbin Battison (1974), Edward S. Klima & Ursulla Bellugi (1979) conduziram estudos mais aprofundados sobre a gramática da ASL, especificamente sobre os aspectos fonológicos, descrevendo um quarto parâmetro: a orientação da palma da mão (o). Ficou demonstrado que dois sinais com os mesmos outros três parâmetros iguais (CM, L, M) poderiam mudar de significado de acordo com a orientação todo das gramáticas, e na busca de rigor científico, a Gramática de Port-Royal é considerada o auge da orientação lógica nos estudos. Noam Chomsky tem difundido as ideias dessa escola de pensamento e classifica-a como "linguística cartesiana”, fazendo "paralelos entre as ideias do grupo e sua própria concepção da relação entre a língua e a mente” (Crystal, 1988: 204). 4 A fonologia das línguas de sinais foi inicialmente referida por Stokoe como quirologia [quir- do grego, significa mão), e querema para o correspondente de fonema. Entretanto, esses termos não vingaram. Na literatura, fonética e fonologia continuam sendo usados para falar das unidades mínimas das línguas de sinais. A LÍNGUA DE SINAIS 15 da mão. Esse contraste de dois itens lexicais com base em um único componente recebe, em linguística, o nome de "par mínimo". Nas línguas orais, por exemplo, pata e rata se diferenciam significativamente pela alteração de um único fonema: a substituição do /p/ por /r/. No nível lexical, temos em LIBRAS pares mínimos como os sinais grátis e amarelo (que se opõem quanto à CM), churrascaria e provocar (diferenciados pelo M), ter e Alemanha (quanto à L): Oposição de CM: Oposição de L Retirado e adaptado de Capovilla & Raphael (2001:174-1242). 16 LIBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? Podemos testar os pares mínimos com várias outras palavras, mas vejamos a seguir uma ocorrência em LIBRAS no sinal “ajudar", em que a orientação da palma da mão faz a distinção de significado, sendo validada, portanto, como mais um parâmetro: Desenho adaptado da Enciclopédia de Capovilla & Raphael (2004:169-190). 0 exemplo ilustra a diferença marcada entre o sentido em "eu ajudo X" e em "X ajuda a mimVários outros verbos fazem a flexão verbal dependendo da orientação da palma da mão: respeitar, responder, telefonar, avisar etc. Esse parâmetro não serve apenas para marcar a flexão do verbo, mas também para a marcação, por exemplo, de negativas como em "querer" e "não querer", "saber" e "não saber", "gostar" e "não gostar"...5. Os sinais também podem ser realizados com uma ou duas mãos. Vejamos primeiro o exemplo da composição, a partir da segmentação dos quatro parâmetros, do sinal "conhecimento" em LIBRAS (uma mão apenas): 5 Para uma leitura mais detalhada sobre a estrutura linguística da LIBRAS, cf. Ferreira Brito (1995), Quadros & Karnopp (2004), Xavier (2006), Leite (2008); e da ASL, cf. Stokoe (1960), Friedman (1977), Klima & Bellugi (1979), Liddell (1984) e Liddell & Johnson (1986). A LÍNGUA DE SINAIS 17 Orientação da Configuração Locação Movimento palma da mão (D (M) da mão (CM) (o) f, ^^ PARA 0 LADO [CONTRALATERA L] Desenho adaptado com base em Capovilla & Raphael (2004:194). A configuração de mão diz respeito à forma da mão — na palavra "co- nhecimento", um sinal realizado com uma mão em numeral "4" ou na forma. A orientação da palma da mão indica que os sinais têm direção e que sua inversão, em alguns sinais, pode alterar o significado do sinal. A orientação é a direção que a palma da mão aponta na realização do sinal — e no caso de "conhecimento" para o lado direito (contralateral). A locação refere-se ao lugar, podendo ser realizado em alguma parte do corpo, e no exemplo podemos verificar que ocorre em frente ao queixo. Finalmente, o movimento, que pode ou não estar presente nos sinais. No caso de "conhecimento" a lateral do dedo indicador bate próximo ao lado direito do queixo. Vejamos, a seguir, a compo- sição dos quatro parâmetros do sinal "verdade", realizado com as duas mãos: As mãos não são o único veículo usado nas línguas de sinais para produzir informação linguística. Os surdos fazem uso extensivo de marcadores não manuais. Diferentes dos traços paralinguísticos das línguas 18 LIBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? orais (entonação, velocidade, ritmo, sotaque, expressões faciais, hesitações, entre outros), nas línguas de sinais, as expressões faciais (movimento de cabeça, olhos, boca, sobrancelha etc.) são elementos gramaticais que compõem a estrutura da língua; por exemplo, na marcação de formas sintáticas e atuação como componente lexical6: A partir da análise desses parâmetros, podemos perceber que as línguas orais e as línguas de sinais são similares em seu nível estrutural, ou 6 Essas expressões não manuais, na função sintática, podem ser as perguntas retóricas, orações relativas, topicalizações. Na constituição de componentes lexicais, funcionam como uma referência específica ou como uma referência pronominal, uma partícula negativa, um advérbio, um modificador ou uma marca de aspecto" (Ferreira Brito, 1995: 240). A LINGUA DE SINAIS 19 seja, são formadas a partir de unidades simples que, combinadas, formam unidades mais complexas. Como observa Noam Chomsky, todas as línguas funcionam como sistemas combinatórios discretos: "Sentenças e frases são construídas de palavras; palavras são construídas a partir de morfemas; e morfemas, por sua vez, são construídos a partir de fonemas" (Pinker, 1995:162). Em que, então, as línguas orais e de sinais diferem? Diferem quanto à forma como as combinações das unidades são construídas. Enquanto as línguas de sinais, de uma maneira geral (mas não exclusiva!), incorporam as unidades simultaneamente; as línguas orais tendem a organizá-las sequencialmente/Iinearmente7. A explicação para essa diferença primária se dá devido ao canal de comunicação em que cada língua se estrutura (visual-gestual x vocal-auditivo), pois essas características ficam mais salientes em uma língua do que em outra (Ferreira Brito, 1995; Wilcox & Wilcox, 1997). As investigações linguísticas apontam e descrevem a existência de características linguístico-estruturais que marcam as línguas humanas naturais. A crença, ainda muito forte na sociedade ouvinte, de que a língua de sinais dos surdos não tem gramática está ancorada na crença de que falamos a seguir: a de que elas não passariam de mímicas e pantomimas. A língua dos surdos é mímica? Falso. Para demonstrar a diferença entre a mímica e os sinais, Klima & Bellugi (1979) conduziram um estudo a partir da observação de narrativas que necessitariam de pantomimas durante a contação da história. Nesse estudo, a narrativa estudada foi "0 unicórnio no jardim" de James Thurber. Nela foram constatadas "invenções" de sinais para a palavra "camisa de força" — em inglês straitjacket. Embora, em alguns momentos, 7 No início dos anos 1980, entretanto, há formulações de alguns linguistas quanto à incorporação muito evidente da sequencialidade na fonologia da ASL. 0 mesmo é verdadeiro em LIBRAS (cf. Wilcox & Wilcox, 1997; Klima & Bellugi, 1979; Ferreira-Brito, 1995; Quadros, 1997a). 20 UBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? os surdos usuários de ASL lançassem mão desse recurso para sinalizar o conceito, e cada sinal tivesse um jeito, foi possível constatar que, no an- damento da história, e mesmo em situações de sua recontagem, o conceito supracitado na sinalização continuava icônico. Entretanto, as investigações mostraram que houve uma simplificação e uma estilização nos movimentos — os sinais pareciam mais sistematizados e convencionados. Veja abaixo a progressão da pantomima em (a) para o sinal "inventado" em (b): Na sequência, os pesquisadores procuraram estabelecer um critério específico para fazer a distinção entre ASL e pantomimas. Para tanto, in- vestigaram dez indivíduos não sinalizadores para demonstrar em gestos algumas palavras do inglês. Veja o exemplo da palavra "ovo" (retirado de Klima & Bellugi, 1979:17): (b)Tipo de redução do sinal A LÍNGUA DE SINAIS 21 (1) Pantomima de "ovo" (2) Sinal de "ovo" em ASL Constatou-se que, para o exemplo acima, as pantomimas observadas ti- nham muitas possibilidades, variando de um indivíduo para outro; enquanto na língua americana de sinais permanecia apenas uma variedade, ou seja, a variedade legitimada e convencionada pelo grupo de usuários estudados. Outra diferença é que as pantomimas ou mímicas — uma vez que tentavam representar o objeto tal como existe na realidade — eram muito mais deta- lhadas, comparadas aos sinais americanos, levando muito mais tempo para sua realização. A pantomima quer fazer com que você veja o "objeto", enquanto o sinal quer que você veja o símbolo convencionado para esse objeto. Quando me perguntam, entretanto, se a língua de sinais é mímica, entendo que está implícito nessa pergunta um preconceito muito grave, que vai além da discussão sobre a legitimidade linguística ou mesmo sobre quaisquer relações que ela possa ter (ou não) com a língua de sinais. Está associada a essa pergunta a ideia que muitos ouvintes têm sobre os surdos: uma visão embasada na anormalidade, segundo a qual o máximo que o surdo consegue expressar é uma forma pantomímica indecifrável e somente compreensível entre eles. Não à toa, as nomeações pejorativas anormal, deficiente, débil mental, mudo, surdo- mudo, mudinho têm sido equivocadamente atribuídas a esses indivíduos8. A língua de sinais tem todas as características linguísticas de qualquer língua humana natural. É necessário que nós, indivíduos de uma cultura de língua oral, entendamos que o canal comunicativo diferente Cf. a discussão do capítulo 2. 22 LIBRAS? QUE LINGUA É ESSA? (visual-gestual) que o surdo usa para se comunicar não anula a existência de uma língua tão natural, complexa e genuína como é a língua de sinais. A esse respeito quero salientar três definições encontradas no Dicionário didático de português (Biderman, 1998: 630-645): mímica s.f. mí-mi-ca. Expressão de idéias, palavras ou sentimentos através de gestos expressivos que acompanham ou substituem a fala. Os mudos usam mímica para comunicarem suas idéias. Durante o piquenique a turma fez várias brincadeiras; uma delas foi o jogo de mímica.// pl: mímicas, [ênfase minha] mudez s.f. mu-dez. Qualidade daquele que é mudo, de quem não fala. Muitas vezes, a mudez é provocada por problemas de audição.// Não se usa no pl./ adj: mudo/ cf: surdez. mudo adj. mu-do. 1. Que não fala por problemas físicos ou psicológicos... As definições inter-relacionadas acima perpetuam as ideias de que os surdos não têm língua, e os desdobramentos dessas definições contribuem para que acreditemos que eles não podem produzir fala inteligível e de que não têm cordas vocais. Os surdos são fisicamente e psicologicamente normais: aqueles que têm o seu aparato vocal intacto [que nada tem a ver com a perda auditiva) podem ser oralizados9 e falar a língua oral, se assim desejarem. Entretanto, o que deve ficar registrado é a forma pela qual constantemente se atribui à língua de sinais um status menor, inferior e teatral, quando definido e comparado à mímica. É possível expressar conceitos abstratos na língua de sinais? Claro que sim! Novamente, a pressuposição de que não se consegue expressar ideias ou conceitos abstratos está firmada na crença de que a língua de sinais é limitada, simplificada, e não passa de um código primitivo, mímica, pantomima e gesto. No Dicionário de linguística e fonética, por exemplo, gestos são considerados traços paralinguísticos ou extralin- guísticos das línguas orais: 9 Oralização é um treinamento, com orientação de fonoaudiólogos, para que uma pessoa surda possa produzir os sons vocais da língua oral. Essa prática é realizada juntamente com a prática de leitura labial. A LÍNGUA DE SINAIS 23 Em seu sentido mais amplo, o termo se refere a qualquer coisa do mundo (que não seja a LÍNGUA) em relação à qual a língua está sendo usada — a "situação extralinguística”. A expressão "traços extralinguísticos" pode significar quaisquer propriedades de tais situações, ou, em termos mais específicos, propriedades da comunicação que não são claramente analisáveis em termos LINGUÍSTICOS (gestos, tom de voz etc.). Alguns linguistas nomeiam a primeira classe de traços como METALINGUÍSTICOS; outros nomeiam a segunda classe como PARALINGUÍSTICOS (Crystal, 2000:105-106). Para nos desvincularmos da acepção exposta acima, devemos entender que sinais não são gestos. Pelo menos não se pensarmos gestos de acordo com a definição anterior. Assim, é correto afirmar que as pessoas que falam línguas de sinais expressam sentimentos, emoções e quaisquer ideias ou conceitos abstratos. Tal como os falantes de línguas orais, os falantes de línguas de sinais podem discutir filosofia, política, literatura, assuntos cotidianos etc. nessa língua, além de transitar por diversos gêneros discursivos, criar poesias, fazer apresentações acadêmicas, peças teatrais, contar e inventar histórias e piadas, por exemplo. Emmanuelle Laborrit, surda francesa, em seu belíssimo livro O voo da gaivota, afirma: Os sinais podem ser agressivos, diplomáticos, poéticos, filosóficos, matemáticos: tudo pode ser expresso por meio de sinais, sem perda nenhuma de conteúdo. É uma língua exclusivamente icônica? Crença. Há uma tendência em pensar assim, e essa visão relaciona-se com o fato de a língua de sinais ser uma língua de modalidade espaciovisual; ou seja, a língua, quando sinalizada, fica mais "palpável", "visível". Nesse sentido, relações entre forma e significado parecem ser mais questionadas. Essa associação incorre, muitas vezes, em cairmos no risco de reforçar a crença de que a língua de sinais seria apenas uma representação pantomímica — o que não procede, pois, como argumenta Ferreira Brito (1995:108), "a iconi- cidade é utilizada [na língua de sinais] de forma convencional e sistemática". Embora exista um grau elevado de sinais icônicos (beber; árvore, casa, avião...), é importante destacar que essa característica não é exclusiva das línguas de sinais. As línguas orais incorporam também essa ca 24 LIBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? racterística. Podemos verificá-la no clássico exemplo das onomatopéias como pingue-pongue, ziguezague, tique-taque, zum-zum —- cujas formas representam, de acordo com cada língua, o significado. Além disso, mesmo sinais mais icônicos tendem a se diferenciar de uma língua de sinais para outra, o que nos remete ao fato de a língua ser um fenômeno convencional mantido por um "acordo coletivo tácito" entre os falantes de uma determinada comunidade [Saussure, 1995). Ainda amarrada a essa crença está o que Wilcox & Wilcox (1997: 6) destacam em seu livro: a de que as línguas de sinais seriam mais conceituais do que as línguas orais. Na verdade, todas as línguas são conceituais, a diferença é de que forma cada língua "empacota os conceitos em unidades linguísticas". A metáfora do "pacote" isto é, o modo como cada língua dá forma aos conceitos em unidades linguísticas, ilustra bem a questão: quem de nós já não se perguntou, por exemplo, por que uma palavra, em dada língua, quando traduzida para outra, pode ficar muito maior em seu tamanho? Ou mesmo uma sentença, ou texto? Em alemão, o sintagma nominal a associação dos fabricantes de copos de suco de laranja tem a seguinte forma: die Orangensaftglashersteller- vereinigung. Em LIBRAS, a pergunta que horas são? é a sinalização apenas da palavra nome com expressão facial marcando a pergunta: Isso ocorre porque o conteúdo e a informação nas palavras de certas línguas são "empacotadas" distintamente. Não significa dizer, entretanto, que uma ou outra língua seria simplificada por ter "pacotes menores" e não ne- cessitar, por exemplo, de conjunções, preposições ou flexões verbais em sua A LINGUA DE SINAIS 25 estrutura10. 0 inglês, se comparado ao português, tem uma construção distinta na conjugação dos verbos, mas isso não significa dizer que uma língua seja simplificada e outra complexa. 0 mesmo serve para as línguas de sinais. Afinal, a complexidade é inerente a todas as línguas humanas e naturais. A língua de sinais é um código secreto dos surdos? Os surdos foram privados de se comunicarem em sua língua natural du- rante séculos. Vários estudos têm apontado a difícil relação dos surdos com a língua oral majoritária e com a sociedade ouvinte. Escolas, profissionais da saúde, e familiares de surdos têm seguido uma tradição de negação do uso dos sinais. Groce (1985), por exemplo, oferece-nos um panorama das atitudes dos ouvintes em relação à surdez, apontando que, por séculos, os surdos não tinham respeitados os seus direitos e reconhecidas suas responsabilidades, mesmo depois de receberem educação. Padden & Humphries (1988) mostram que as escolas, em sua grande maioria, proibiam o uso da língua de sinais para a comunicação entre os surdos, forçando-os a falar e a fazer leitura labial. Quando desobedeciam, eram castigados fisicamente, e tinham as mãos amarradas dentro das salas de aula. 0 desenho da surda Betty G. Miller denuncia a proibição da língua americana de sinais nas escolas de surdos: Betty G. Miller, Ameslan Prohibited, 1972. 10 Essa discussão tem implicações para a tradução, especificamente pensando a tradução da LIBRAS para o português e vice-versa. 26 LIBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? A maioria dos surdos foi educada em mosteiros, asilos ou escolas em regime de internato. Eles migravam para essas instituições, vistas como única possibilidade de receber instrução. Lane , por exemplo, dedica um livro para contar um pouco da história dos surdos nos Estados Unidos, mostrando que na batalha entre "manualistas" e "oralistas", a língua — ainda que banida muito mais do que valorizada — e seus falantes — muito mais oprimidos e discriminados do que os indivíduos ouvintes — resistiram. Embora essas situações sejam retratadas em obras publicadas no exterior, no Brasil, a trajetória dos surdos não foi muito diferente (Reis, 1992; Rocha, 1997). Dentre algumas narrativas históricas, conta-se que a sinalização era vista como um "código secreto"11, mesmo entre os surdos, pois era usada às escondidas, por causa de sua proibição. Na perspectiva de tantos outros, a língua era vista como algo exótico, obsceno e extremamente agressivo, já que o surdo expunha demais o corpo ao sinalizar (Wright, 1969; Lane, 1984; Sacks, 1990; Bayton, 1996). Várias implicações sociais, políticas, educacionais, psicológicas e lin- guísticas decorrem dessa proibição. Porém, o que a história nos mostra é que a língua de sinais, diferentemente da maioria das línguas minoritárias, não morreu e não morrerá porque, enquanto tivermos dois surdos compar- tilhando o mesmo espaço físico, haverá sinais. Essa é a ironia da tentativa desenfreada de coibir seu uso: o agrupamento nos internatos que pregavam o oralismo a todo custo serviu para os surdos se identificarem como pares constituintes de um grupo, passando a usar, disseminar e reforçar um even- tual sentimento de valorização dos sinais e da identidade cultural surda. Outro apelo pejorativo e muito distorcido são algumas referências e comparações da língua dos surdos com a comunicação dos chimpanzés12. Lane (1984: 77) retoma em sua discussão que uma das questões filosóficas centrais no Iluminismo era especular sobre "o que nos tornaria humanos". De Aristóteles a Descartes, a resposta era consensual: falar uma língua. Nesse cenário, "as crianças surdas e selvagens eram, todavia, um complicador 11 Na Idade Média [476 d.C-1453), na Itália, os monges beneditinos empregavam uma forma secreta de sinais para se comunicarem entre si, a fim de não violar o rígido voto de silêncio [Lane, 1984; Sacks, 1990). 12 As obras de Wright [1969), Lane [1984), Groce [1985) e Sacks [1990) relatam algumas formas pejorativas associadas às línguas dos surdos. A LÍNGUA DE SINAIS 27 para essa definição de homem, já que os surdos eram pensados como sem língua e as crianças feras eram invariavelmente mudas". A história tem relatado esse e tantos outros equívocos e injustiças cometidos com os surdos... Linguisticamente, pode-se afirmar que a língua de sinais É língua porque apresenta características presentes em outras línguas naturais e, essenciaímente, por que é humana. Sabe-se que todos os seres vivos podem ter um sistema de comunicação. As pesquisas mostram a forma como as abelhas se comunicam, o sofisticado sistema de comunicação dos golfinhos e de tantos outros mamíferos; contudo, só os homens possuem língua (Akmajian et alii, 1995). Essa é, sem dúvida, uma das características que nos distinguem das outras espécies. Então, a resposta para a pergunta dos filósofos turva o olhar, pois o foco para a resposta está voltado para a definição que se tinha de língua na época, isto é, se a língua de sinais não é língua, então os surdos não falam, logo, não são humanos... A língua de sinais, como já vimos, tem uma gramática própria e se apresenta estruturada em todos os níveis, como as línguas orais: fonoló- gico, morfológico, sintático e semântico. Além disso, podemos encontrar nela outras características: a produtividade/criatividade, a flexibilidade, a descontinuidade e a arbitrariedade. A primeira diz respeito à possibilidade de combinar unidades, de forma ilimitada, para formar novos elementos. Por exemplo, os sons das línguas orais podem ser combinados de várias formas para a produção de novos conceitos. 0 mesmo para a produtividade de palavras e sentenças. Por isso falamos do processo criativo nas línguas: podemos falar diversas coisas de diversas formas a partir das regras de cada língua; regras que determinam a posição que cada elemento pode ocupar — por exemplo: podemos dizer "o menino caiu", mas não podemos dizer "menino o caiu", porque as regras do português não permitem. O mesmo se aplica aos sinais. A flexibilidade se refere à mobilidade visível nos diversos usos de uma língua. A língua é versátil e, por isso mesmo, podemos falar do passado, presente, futuro; discutir, ameaçar, prometer etc. Em relação à descontinuidade, tomem-se como exemplo as diferenças mínimas na forma 28 LIBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? entre duas palavras; diferenças mínimas, mas que acarretariam mudança no significado, como em maca e mala (alterando apenas um fonema), ou em LIBRAS grátis e amarelo (alterando apenas um parâmetro, a CM). Entretanto, quando contextualizadas, podem ter seu sentido inferido, mesmo que haja um erro ou troca de fonemas/queremas por parte de quem fala ou sinaliza. Por isso, mesmo reconhecendo o valor específico em cada fonema ou parâmetro, a contextualização nos ajuda muito, e é ela que nos faz compreender a diferença de significado, por exemplo, em palavras homônimas na língua oral e na língua de sinais. Quanto à arbitrariedade, dizer que as línguas têm essa característica é dizer que as línguas são convencionadas e regidas por regras específicas. Nesse sentido, não é possível saber o significado de uma palavra somente a partir de sua forma ou representação linguística. Na língua portuguesa, não há relação entre a forma e o significado da palavra "conhecimento”, da mesma forma que não há essa relação na LIBRAS. A exceção seria o caso das onomatopéias (Akmajian etalii, 1995; Quadros & Karnopp, 2004). A língua de sinais é o alfabeto manual? De forma alguma. O alfabeto manual, utilizado para soletrar manual- mente as palavras (também referido como soletramento digital ou datilo- logia), é apenas um recurso utilizado por falantes da língua de sinais. Não é uma língua, e sim um código de representação das letras alfabéticas: ALFABETO GREGO a (3 Y ô £ ALFABETO ROMANO A B C D E ALFABETO MANUAL ABCDE A LÍNGUA DE SINAIS 29 BRAILE Acreditar que a língua de sinais é o alfabeto manual é fixar-se na ideia de que a língua de sinais é limitada, já que a única forma de expressão comunicativa seria uma adaptação das letras realizadas manualmente, convencionadas e representadas a partir da língua oral. Imaginemos, por exemplo, quanto tempo levaria um surdo para falar uma sentença ou, ampliando bem a questão, ter uma conversa filosófica, se utilizasse apenas o soletramento manual? Travar uma conversa dentro deste enquadre s-o-l-e-t-r-a-d-o s-e-r-i-a c-a-n-s-a-t-i-v-o e m-o- n-ó-t-o-n-o-(-u-f-a-l)13. Entretanto, é importante que se diga que o alfabeto manual tem uma função na interação entre os usuários da língua de sinais. Lança-se mão desse recurso para soletrar nomes próprios de pessoas ou lugares, siglas, e algum vocábulo não existente na língua de sinais que ainda não tenha sinal: povo (inglês: people, folk, crowd, multitude): s.m. Conjunto de pessoas que compõem uma tribo, raça ou nação. Conjunto de habitantes de um país, de uma região, cidade, vila ou aldeia. EXJ o povo saiu em procissão, homenageando o santo padroeiro da cidade. Soletrar Ç O, VO. Vocábulo retirado de Capovilla & Raphael (2004:112). 13 Agradeço ao professor Dr. Pedro M. Garcez que, em uma disciplina de introdução aos estudos linguísticos do mestrado em letras/inglês, em 1997, pontuou essa questão. Lembro-me de que na época todos os alunos [incluindo eu] ficaram surpresos em ouvir falar da legitimidade linguística da língua de sinais, e nosso conhecimento começou a ser construído quando o professor nos fez refletir sobre essa observação. 30 LIBRAS? QUE LINGUA É ESSA? Além disso, os usuários de língua de sinais fazem, em algumas situações, empréstimos da grafia da língua oral, recorrendo à datilologia para realizar sinais de pontuação (tais como, vírgulas, ponto final, ponto de interrogação, sinais matemáticos etc.) que, na maioria das vezes, são desenhados no ar. O mesmo pode ocorrer com as preposições ou outras classes de palavras. Entretanto, soletrar não é um meio com um fim em si mesmo. Palavras comumente soletradas podem e de fato são substituídas por um sinal. Assim, podemos afirmar que esse recurso funciona potencialmente nas interações para incorporar sinais a partir do entendimento conceituai entre os interlocutores — uma vez vez apreendida a ideia, convencionam-se os sinais para substituir a datilologia de um dado vocábulo, por exemplo. No Brasil, o alfabeto manual é composto de 27 formatos (contando o grafema ç que é a configuração de mão da letra c com movimento trêmulo). Cada formato da mão corresponde a uma letra do alfabeto do português brasileiro: Pode-se dizer também que no uso do alfabeto manual alguns elementos linguísticos são "reapropriados” pelos usuários, ou seja, há pa- A LINGUA DE SINAIS 31 lavras que são soletradas de forma a se ajustarem às restrições da língua de sinais. Esse processo é natural em todas as línguas de contato. A língua portuguesa, por exemplo, incorpora ou ajusta o termo delet do inglês: utiliza a terminação no infinitivo -ar ao dizer deletar (e segue na mesma direção na conjugação em delet ei, delet amos e assim por diante). Esse fenômeno está intimamente relacionado ao uso. Quadros & Karnopp (2004: 91) ilustram essa questão no alfabeto manual verificando o advérbio nunca (soletrado n-c-a ou n- u-n). O mesmo ocorre na realização da conjunção se (soletrada s-i) e no uso do verbo ser/estar, no presente do indicativo, conjugado na terceira pessoa do singular _é_ (soletrado apenas o movimento de acento agudo no ar com a afirmação positiva da cabeça). Por ser uma convenção, o alfabeto manual se configura de uma forma específica nas línguas de sinais de cada país. O alfabeto manual britânico, por exemplo, é feito com as duas mãos: BRITÂNICO AMERICANO SUECO âB tu # ^ % AD 4 ft* $ te, $ 1 £ WJ ¥ Ifrdk& % % % o/P Rü {f^\ " W 1 fl te ^ ^ $ Aû Lfo ífx |jv $ wit-ê ’ tf ~l2 ^ A ^ õ Fonte: http://f99.middlebury.edu/RU232A/STUDENTS/elefther/alplTcharts.htm. Existe também o alfabeto manual para surdos-cegos. Da mesma forma que o soletramento do manual britânico, os indivíduos usam as duas mãos para soletrar as palavras, com a diferença crucial de que os surdos- -cegos precisam pegar na mão do interlocutor para tatear o sinal: 32 LIBRAS? QUE LINGUA É ESSA? É importante ressaltar que o soletramento, tanto na sua forma receptiva (do ponto de vista de quem lê) quanto produtiva (do ponto de vista de quem realiza), supõe/implica letramento. 0 soletrante que não for alfabetizado (escrita/leitura) na língua oral de sua comunidade de fala, por exemplo, terá as mesmas dificuldades de um indíviduo iletrado para lançar mão deste uso: Desenho retirado e adaptado de Capovilla & Raphaël (2004:117-163). A LÍNGUA DE SINAIS 33 É nesse sentido que as crianças surdas, ainda em processo de alfabe- tização da escrita da língua oral, poderão ter também dificuldade com essa habilidade. Mais uma prova para desconstruir a crença de que a língua de sinais pudesse ser o alfabeto manual/datilologia, afinal, para ser compre- endido e realizado o abecedário precisa ser ensinado formalmente. A língua de sinais é uma versão sinalizada da língua oral? Insistimos em que a língua de sinais não é a datilologia ou mímica (como muitos podem pensar), também não é universal (igual em todos os países), muito menos artificial (uma língua inventada). Ligada a essas crenças, vem a seguinte indagação: então, seria a língua de sinais uma "adaptação" das línguas orais? Ou, dito de outra forma, seria a LIBRAS um português sinalizado, por exemplo? Não. A língua de sinais tem estrutura própria, e é autônoma, ou seja, independente de qualquer língua oral em sua concepção linguística. Edu- cacionalmente, o uso do português sinalizado tem sido alvo de muitas críticas, porque se insere na filosofia do bimodalismo. Dentro dessa visão, encara-se a língua de sinais como um meio para se atingir um fim, ou seja, um recurso para ensinar a falar uma língua oral (no Brasil, o português), funcionando como um amálgama dos sinais e de fala. Ferreira Brito (1993), por exemplo, fala da impossibilidade de preservar as estruturas das duas línguas usando a língua de sinais para falar a língua oral. No nível lexical, por exemplo, sinais como língua e nada ilustram a questão (cf. figura abaixo). Além disso, Sacks (1990), entre outros, critica a proposta bimo- dal, pois, embora preconize uma tentativa de facilitar a aprendizagem da estrutura da língua oral pelo surdo, ela funciona como uma "pseudolíngua intermediária", afirma. 34 LIBRAS? QUE LINGUA É ESSA? Vejamos essa questão, no entanto, do ponto de vista da sociolinguística. 0 fato de a comunidade surda ser a única comunidade que, em qualquer país, está inserida na e cercada pela comunidade majoritária ouvinte faz com que as línguas de sinais estejam em contato direto com as línguas orais locais. Nessa coabitação linguística, é natural ocorrerem empréstimos, mesclas e hibridismos. A relação entre as línguas, entretanto, não é, nem nunca foi neutra ou simétrica. Como no caso de quaisquer outras línguas que estão em contato, há sempre em jogo questões de poder e as decorrentes situações de conflito14. Em estudos sobre comunidades indígenas, Maher observa que a relação entre línguas com status distintos funciona como um 14 A sociolinguística de periferia (Hammel & Sierra, 1983) e a sociolinguística interacional (Ribeiro & Garcez, 2002) apontam, em suas investigações sobre comunidades bilíngues, que a relação entre as línguas e seus falantes é sempre conflituosa e assimétrica. Portanto, distan- ciam-se da visão da sociolinguística tradicional, que distingue apenas as diferenças funcionais, dentro de uma língua, entre variedades em contato: refere-se à variedade alta [high variety), usada em ambientes formais, e à variedade baixa [low variety), usada em situações informais! Essa distinção por si só não ilumina a questão para entender, por exemplo, como e por que as línguas são socialmente diferenciadas, conforme afirmou Ferguson na década de 1950. A LÍNGUA DE SINAIS 35 "jogo de ocupação linguística onde a língua dominante tenta 'abocanhar' a língua dominada" (p. 22). A metáfora ilustra bem como o português acaba se sobrepondo à língua de sinais nas interações entre surdos e ouvintes, por exemplo. É facilmente demonstrável que há marcas de imposição da estrutura do português em alguns "falares" sinalizados, especialmente nas mãos dos ouvintes [Gesser, 2006). Mas, por que isso ocorre? A motivação para a ocorrência das marcas estruturais do português na sinalização, e mesmo na comunicação simultânea15 no caso do sinalizador ouvinte brasileiro, acontece por várias razões: pode ser um movimento em direção ao uso de uma única língua, no caso, a LIBRAS; OU pode ser, ainda, o uso de uma forma "híbrida" funcionar como uma estratégia utilizada por alguns ouvintes que estão iniciando o contato e a aprendizagem da língua de sinais — sendo a fala oral inerente à cultura dos ouvintes (Gesser, 1999) e, portanto, tão difícil desvencilhar-se dela. Em muitos outros momentos, todavia, o português sinalizado pode ser o reflexo de uma ideologia e, então, há que averiguar mais de perto para saber se esses usos, se esses falares são ou não uma última tentativa, um último grito da maioria ouvinte para rejeitar e banir a língua de sinais dos surdos (Gesser, 2006; 2007). Acredito ser esse último sentimento que, remetido às filosofias oralista e bimodal, paira no ar, e evoca mal-estar quando se fala em português sinalizado entre usuários da LIBRAS. A língua de sinais tem suas origens históricas na língua oral? Essa pressuposição está relacionada à anterior e, da mesma forma, não passa de uma ficção. Cada língua de sinais tem suas influências e raízes históricas a partir de línguas de sinais específicas. Há poucos documentos registrados por surdos, e sobre os surdos, que possam fornecer informações sobre a origem e o desenvolvimento das línguas de sinais 15 Comunicação simultânea é — como o nome sugere — o uso simultâneo das duas modalidades (oral e sinal) na expressão linguística. Critica-se muito esse uso, uma vez que se acredita que os sinais são suprimidos em favor da língua oral. 36 LIBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? entre surdos. Mas Wilcox & Wilcox (1997) argumentam que há dois tipos de evidência que mostram o uso natural da língua pelos surdos. O primeiro é o relatado em uma pequena ilha comunitária nos arredores da costa de Massachusetts, Estados Unidos, chamada de Martha's Vineyard, onde uma elevada incidência hereditária da surdez foi observada entre os séculos XVII e meados do século XX. No livro Everyone Here Spoke Sign Language, Nora Groce (1985) dedica-se a descrever essa rara situação na ilha. A autora conta a história dos surdos nessa comunidade, mostrando que os primeiros habitantes da ilha vinham da Inglaterra e falavam algum tipo de língua de sinais. Estavam tão integrados ao dia a dia da ilha que não se consideravam nem eram considerados deficientes ou um grupo à parte. Até os dias de hoje, essa ilha é conhecida como a única comunidade bilíngue na qual tanto os ouvintes como os surdos usam sinais na mesma proporção que a língua inglesa em todos os âmbitos da interação cotidiana. 0 segundo tipo de evidência vem da França, e está relatada em um livro escrito em 1779 por um surdo chamado Pierre Desloges. 0 livro se intitula Observations of a Deaf-Mute, e o autor escreveu-o para defender sua própria língua contra aqueles que achavam que os sinais deviam ser banidos (Wilcox & Wilcox, 1997). Tanto a língua americana de sinais (american sign language - ASL) quanto a língua brasileira de sinais (LIBRAS)16 têm suas origens na língua francesa de sinais. No caso americano, o protestante americano Thomas Hopkins Gallaudet decidiu viajar para a Europa17, a fim de buscar ajuda para Alice Cogswell, uma garotinha surda de 8 anos, filha de seu vizinho. Depois de algumas tentativas com os oralistas franceses, Gallaudet desistiu de seguir esse caminho, visto que não confiava no método empregado para oralizar crianças surdas. Foi então que contatou o surdo francês Lau- 16 De acordo com Rocha (1997), a língua brasileira de sinais padrão é referida como LIBRAS. Essa denominação foi estabelecida em assembléia por membros da Federação Nacional de Educação e Integração do Surdo (FENEIS) em outubro de 1993, e tem sido reconhecida pela Federação Mundial dos Surdos (WDF), pelo Ministério da Educação (MEC) e por educadores e cientistas do campo. A LIBRAS foi oficializada pelo Senado Federal em abril de 2002. 17 No cenário francês do século XVIII, duas figuras oponentes marcam dois caminhos distintos: Jacob Rodrigues Pereire (considerado o principal fundador do oralismo) e o Abade 1'Epée (seguidor do manualismo), que deixou pupilos como Abade Sicard (ouvinte), Jean Massieu (surdo) e Laurent Clerc (surdo). Os dois educaram crianças surdas dentro de suas respectivas filosofias, e estas se espalharam pela Europa no século XIX (Lane, 1984). A LÍNGUA DE SINAIS 37 rent Clerc. Na França, ficou muitos meses aprendendo a língua francesa de sinais, e então teve a ideia de convidar Clerc para ir morar nos Estados Unidos, para que eles abrissem a primeira escola para surdos. A escola foi inaugurada em 1817 e tinha o nome de: The Connecticut Asylum for the Education and Instruction of the Deaf and Dumb18. Os surdos de todos os cantos do país migraram para a escola, enquanto, com o passar dos anos, outras escolas iam sendo abertas em diferentes regiões. O filho de Gallaudet, chamado Edward, fundou, em 1864, a Gallaudet University. Embora os sinais americanos tenham raízes nos sinais franceses, a ASL também sofreu influências dos sinais dos índios locais. Essa combinação formou a ASL moderna (Lane, 1984; Bayton, 1996; Wilcox & Wilcox, 1997). Da mesma forma que na ASL, na LIBRAS também se observa algum tipo de influência dos sinais franceses. Em 1855, um surdo francês chamado Ernest Huet chegou ao Brasil, com o apoio do Imperador dom Pedro II, para criar a primeira escola para surdos brasileiros19. De acordo com os registros históricos disponíveis (Reis, 1992), não está claro por que dom Pedro II estava interessado na fundação da escola. Rocha (1997: 53) especula sobre pelo menos duas possibilidades: uma seria a possibilidade de a princesa Isabel ter uma criança surda; e a outra teria relação com uma visita do imperador à Universidade Gallaudet (EUA) para discutir a fundação de uma escola similar no Brasil. 0 fato é que em setembro de 1857 foi fundado o Instituto Nacional de Educação de Surdo (INES), no Rio de Janeiro, no mesmo endereço em que se localiza até hoje. Durante anos, o INES tem sido o centro de referência e de formação dos indivíduos surdos. Embora, naquela época, as pessoas não fizessem menção à LIBRAS, sinais eram privilegiados na educação das crianças. Huet trabalhou também na formação de outros dois professores, conhecidos como os irmãos La Pena, que ajudavam na instrução dos surdos. A escola passou por mudanças radicais com a saída de Huet (então com sérios problemas financeiros e conflitos familiares) e com a entrada na administração de um médico chamado Tobias Rabello Leite (de 1868 até sua morte em 1896)20. 18 Posteriormente, o nome da escola mudou para American Asylum at Hatford for the Education and Instruction of the Deaf and Dumb. 19 Embora a primeira escola para surdos date do ano de fundação com a chegada de Huet em 1855, a primeira tentativa foi feita em 1835, quando o deputado Cornélio Ferreira apresentou à Assembléia um estatuto para estabelecer os objetivos de professores primários na educação dos surdos e dos cegos (Reis, 1992: 57). 20 0 diretor Leite parecia compreender que o método oral não era essencial aos surdos, en- 38 UBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? Outro fato importante nesse processo foi o Congresso de Milão, em 1880, que, em função do impacto mundial de sua decisão em favor das filosofias e métodos oralistas a qualquer custo, afetou a educação dos surdos em todas as partes do mundo. No Brasil, a ideia do oralismo começou a ser disseminada em 1911, e a superintendente do INES, Ana Rímoli de Faria Doria, que acatou a filosofia, separava os surdos mais velhos dos mais novos para evitar o contato e uso de língua de sinais. Outra figura nesse cenário foi Ivete Vasconcellos, que, inspirada na abordagem da comunicação total, influenciada pela Universidade Gallaudet, defendia que fala, gestos, pantomima e sinais deveriam ser empregados na formação dos indivíduos surdos. Muitas críticas foram feitas a essa filosofia, mas o debate propiciava um repensar de tudo o que fora feito em termos linguísticos e educacionais. Na década de 1980, fundou- se a FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos]. Três amigos surdos encabeçaram a fundação da instituição — Ana Regina S. Campello21, Fernando M. Valverde e Antônio C. Abreu —, significando um grande avanço em favor da defesa dos direitos dos surdos. Em resumo, a origem da LIBRAS está intimamente ligada ao processo de escolarização dos surdos, e mesmo que nas instâncias educacionais a língua legítima dos surdos tenha sido banida em muitos momentos, os surdos sempre a utilizaram entre si. O contato do professor surdo francês Huet com os alunos brasileiros proporcionou, em grande medida, vários empréstimos linguísticos da língua francesa de sinais para a LIBRAS. Entretanto, é importante dizer que a coabitação da maioria das línguas de sinais com as línguas orais faz com que empréstimos, alternâncias e trocas linguísticas aconteçam, inevitavelmente. Mas isso não quer dizer que as línguas de sinais tenham suas origens ou raízes históricas nas línguas orais. A relação é justamente inversa: na história da evolução do homem, constata-se que o uso de sinais pelas mãos como forma de comunicação pelo homem é anterior ao da fala vocal — uma das evidências linguísticas para afirmar que o homem tem uma capacidade inata, instintiva para desenvolver linguagem22. tretanto, sua compreensão da situação como um todo era limitada: em relação à capacidade intelectual humana, argumentava, por exemplo, que somente 15% dos surdos congênitos tinham inteligência suficiente para se tornarem letrados, enquanto apenas 65% de surdos acidentais teriam a mesma inteligência comparados aos ouvintes (Leite, 1882 apud Reis, 1992). 21 Ana Regina é doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 22 0 linguista John Lyons (1987: 38-39) relata: "A língua pode, a princípio, ter evoluído a partir de um sistema gestual numa época em que os ancestrais dos homens adotavam a postura A LÍNGUA DE SINAIS 39 A LIBRAS 'falada' no Brasil apresenta uma unidade?23 Crença. Em todas as línguas humanas, há variedade e diversidade. 0 sociolinguista Marcos Bagno faz uma bela discussão em torno da des- construção de alguns mitos sobre a língua portuguesa em seu famoso livro Preconceito linguístico — o que é, como se faz, escrito em 1999 e, desde então, seguidamente reeditado. Segundo o pesquisador, o mito da "unidade linguística do Brasil" é o maior e mais sério de todos, pois está presente no discurso não somente da população, mas de muitos intelectuais. A escola, por exemplo, tem se apropriado desse mito, tornando-o natural. Uma vez naturalizado, deixa de ser crença e passa a funcionar como um princípio normalizador, impondo sua norma linguística como se ela fosse, de fato, a língua comum a todos os 160 milhões de brasileiros, independente de sua idade, de sua origem geográfica, de sua situação socioeconômica, de seu grau de escolarização etc. (Bagno, 1999:15). A língua portuguesa é "uma unidade que se constitui de muitas va- riedades" (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1998: 29 apud Bagno, 1999: 19). Portanto, dizer que todos os brasileiros falam o mesmo português é uma inverdade, na mesma proporção em que é inverdade dizer que todos os surdos usam a mesma LIBRAS. Afirmar essa unidade é negar a variedade das línguas, quando de fato nenhuma língua é uniforme, homogênea. A variação pode ocorrer nos níveis fonológico (pronúncia), morfológico (palavras) e sintático (sentenças) e estão ligadas aos fatores sociais de idade, gênero, raça, educação e situação geográfica. Assim, os surdos adultos e adolescentes variam em seus sinais, da mesma forma vertical [homo erectus] liberando com isso as mãos, o cérebro aumentando de tamanho e adquirindo potencial para a especialização de complexas funções de processamento no hemisfério dominante". Chamo a atenção para a afirmação nessa questão da modalidade para a linguagem, pois, adiante, o autor deixa explícita a limitação da comunicação gestual dos nossos ancestrais. Não há referência na obra às línguas de sinais dos surdos. 23 Relação estabelecida com o mito "a língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente", de Marcos Bagno. As asserções que tenho ouvido de muitos ouvintes sobre essa questão têm o mesmo teor, então achei interessante retomar a questão fazendo um paralelo com a discussão, muito apropriada, de Bagno (1999). 40 LIBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? que os surdos cearenses, paranaenses, cariocas...24. Quem já não ouviu alguém dizer "esses sinais são 'antigos', do tempo dos avós!” ou ainda, "naquele lugar se fala diferente". Essa diferença não deve ser encarada como erro, entretanto: Na ilustração, é possível constatar que a variação lexical ocorre em diferentes estados (como a comparação do sinal faculdade usado no Rio e em São Paulo] e também dentro de um mesmo estado, a depender da comunidade de fala de cada região (como nos exemplos da palavra espanhol em São Paulo]. Esse tema é importante porque, em algumas situações, alguns sinalizadores da língua de sinais resistem a aceitar a diversidade e acabam dizendo algo como "esse sinal é errado" ou "esse sinal não existe", quando de fato se trata de variantes da língua (Gesser, 2006: 176]. A língua de sinais, ao passar, literalmente, "de mão em mão", adquire novos 24 Entre essas variedades, entretanto, sempre haverá uma relação [não neutra, assimétrica e conflituosa) que torna uma variedade mais prestigiosa que outra. Esse valor é atribuído socialmente, em função de fatores como área geográfica, status social, idade, gênero etc. Mas é certamente a variedade ensinada na escola, associada à escrita, que tem o status de língua padrão (ou norma culta). A LÍNGUA DE SINAIS 41 "sotaques" empresta e incorpora novos sinais, mescla-se com outras lín- guas em contato, adquire novas roupagens. 0 fenômeno da variação e da diversidade está presente em todas as línguas vivas, em movimento. É justamente nas práticas sociais de uso da linguagem entre surdo/surdo e surdo/ouvinte que é possível enxergar o multilinguismo (variedades des- prestigiadas em sinais, em português, em combinação de modalidades], as marcas da heterogeneidade nos sinais dos surdos-cegos, dos índios, dos ouvintes familiares (ou não] de surdos, dos surdos catarinenses, paulistas, pernambucanos..., ou seja, as várias línguas em LIBRAS25. 25 Ao falar de várias línguas em LIBRAS estou fazendo um paralelo com a discussão em César & Cavalcanti [2007) sobre o multilinguismo em português no Brasil. Cf. discussão em Gesser [2006: 56-65). 42 LIBRAS? QUE LÍNGUA É ESSA? A língua de sinais é uma língua ágrafa? Não, mas, até bem pouco tempo, a língua de sinais era considerada uma língua sem escrita. A escrita de qualquer língua é um sistema de representação, uma convenção da realidade extremamente sofisticada, que se constitui num conjunto de símbolos de segunda ordem, sejam as línguas verbais ou de sinais: Escrita pictográfica