A Prática Etnográfica na Pesquisa Educacional - PDF
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Universidade Federal de Uberlândia
Guilherme Fernando Schnekenberg, Guilherme Saramago de Oliveira, Eduardo Brandão Lima Junior
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Este artigo discute a contribuição da etnografia como prática de pesquisa em Educação, analisando estudos de antropólogos fundadores e teorias do campo da Educação. Ele aborda a operacionalização da etnografia, estabelecendo um diálogo entre a antropologia e a educação. O artigo busca trazer a perspectiva dos sujeitos pesquisados, utilizando a etnografia como metodologia.
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ARTIGO ORIGINAL ______________________________ A PRÁTICA ETNOGRÁFICA NA PESQUISA EDUCACIONAL: APONTAMENTOS PRIMORDIAIS DA RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E ANTROPOLOGIA Guilherme Fernan...
ARTIGO ORIGINAL ______________________________ A PRÁTICA ETNOGRÁFICA NA PESQUISA EDUCACIONAL: APONTAMENTOS PRIMORDIAIS DA RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E ANTROPOLOGIA Guilherme Fernando Schnekenberg 1 Guilherme Saramago de Oliveira2 Eduardo Brandão Lima Junior3 Se o foco de interesse dos etnógrafos é a descrição da cultura (práticas, hábitos, crenças, valores, linguagens, significados) de um grupo social, a preocupação central dos estudiosos da educação é com o processo educativo. Existe, pois, uma diferença de enfoque nessas duas áreas, o que faz com que certos requisitos da etnografia não sejam – nem necessitem ser – cumpridos pelos investigadores das questões educacionais. [...] O que se tem feito, pois, é uma adaptação da etnografia à educação, o que me leva a concluir que fazemos estudos do tipo etnográfico e não etnografia no seu sentido estrito (ANDRÉ, 1995, p. 28). Resumo: Neste artigo, se discute a contribuição da etnografia como prática de pesquisa em Educação. Para isso, partiu-se de uma revisão modesta sobre o trabalho de campo, a partir de antropólogos considerados fundadores e de outros importantes pesquisadores da área que abordam a etnografia e seu desenvolvimento. Além deste campo, também foram sistematizadas algumas das reflexões teórico-metodológicas sobre etnografia feitas advindas do próprio campo da Educação. Entre os dois, há diversas convergências que devem ser consideradas para estabelecer o diálogo entre as duas áreas e o desenvolvimento ainda mais qualificado das etnografias sobre educação. Dada essa fundamentação teórica, tratou-se também da operacionalização da etnografia, como forma de qualificar a abordagem dada a etnografia. Palavras-chave: Pesquisa em Educação. Etnografia. Metodologia de Pesquisa. Abstract: In this paper, the contribution of ethnography as a research practice in Education is discussed. To this end, a modest review of fieldwork was started, based on anthropologists considered to be founders and other important researchers in the field who approach ethnography and its development. In addition to this field, some of the theoretical-methodological reflections on ethnography made from the field of Education were systematized. Between the two, there are several convergences that 1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia. 2 Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia. 3 Mestrando em Educação. Universidade Federal de Uberlândia. Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 A prática etnográfica na pesquisa educacional must be considered to establish the dialogue between the two areas and the even more qualified development of ethnographies on education. Given this theoretical foundation, it was also about the operationalization of ethnography, as a way to qualify the approach given to ethnography. Keywords: Education Research. Ethnography. Research Methodology. 1. Introdução “Quem pode fazer etnografia?” Essa é uma indagação que tem tomado parte do debate sobre pesquisas etnográficas em educação – ou, pelo menos, tem sido base para importantes reflexões metodológicas para as investigações na área. Já com cerca de cem anos, esta forma de fazer pesquisa é uma contribuição da Antropologia que foi incorporada por outras disciplinas das Ciências Humanas, mas não apenas delas. Assim, a discussão metodológica sobre a etnografia foi levada a uma diversidade de rumos dentro e fora da área de origem. Inicia-se este artigo com aquela questão provocativa, não para fazer o julgamento acerca da autoridade sobre esta forma de prática de pesquisa, mas para fazer uma incursão inicial nas discussões indispensáveis à elaboração de boas pesquisas acadêmicas. Nossa intenção é apontar algumas pistas já levantadas por outras pesquisadoras e pesquisadores experientes em fazer etnografia, uma vez que a discussão sobre a prática da pesquisa em geral faz parte da própria contribuição acadêmica apresentada à comunidade científica. Para dar uma definição prévia, que nos permita caminhar pelas diferentes caracterizações dadas por diferentes autores e autoras do campo, pode-se pensar a etnografia de maneira mais generalista. Trata-se de uma forma de fazer pesquisa que exige o contato de um pesquisador com um grupo, instituição, comunidade ou sociedade. A partir desse contato, o etnógrafo descreve ou narra sua experiência para falar sobre a cultura que investigou, contrastando as práticas e os discursos dos sujeitos que observou com as teorias de sua própria sociedade. Ao trabalhar diretamente com a diferença, um pesquisador precisa ter em mente as categorias de relativismo e de cultura, mesmo ao trabalhar com uma alteridade pouco extremada, o que é o caso de um pesquisador estudar instituições de sua própria cultura. Além dos instrumentos corriqueiros mais básicos, como o diário de campo, habilidades indispensáveis, como certa simpatia, e o domínio de técnicas 17 Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 SCHNEKENBERG, G. F.; OLIVEIRA, G. S.; JUNIOR, E. B. L. elaboradas, como a observação-participante, há também uma preocupação teórica fundamental. Fazer etnografia exige um diálogo não apenas com “o outro” investigado, mas também com outros estudiosos de investigações feitas anteriormente. Pensando em todas estas questões, apresenta-se aqui um breve levantamento sobre como essa questão tem sido encarada pelos campos da Antropologia e da Educação. Para isso, no primeiro tópico, será revisado o histórico da etnografia nas pesquisas em Antropologia, a partir de contribuições sistemáticas sobre a etnografia. Aqui, discute-se essa prática de pesquisa como uma herança da Antropologia e a indispensabilidade da localização das investigações teóricas em um quadro teórico mais amplo. No segundo tópico, esse levantamento é proposto com uma ênfase maior nas pesquisas do campo educacional. Com isso, começa a ficar um pouco mais nítido como tem se dado esta incorporação desde as investigações mais clássicas até a atualidade. Tendo passado pelas discussões mais gerais e apresentado um balanço modesto sobre o campo, no quarto tópico discute-se mais detidamente as características e os processos da etnografia. Como proposto por Peirano (2014), muito mais que um método, essa forma de investigação passa por tarefas práticas e teóricas importantes. Estas questões essenciais da etnografia permitem contribuições importantes e impõem desafios específicos no campo da Educação – questões que são tema de nosso quinto tópico. Dissertando sobre as fundamentações teóricas e o desenvolvimento da etnografia, nosso objetivo é reunir apontamentos para vários de seus sentidos na pesquisa acadêmica. Iniciando pelos estudos fundadores e discutindo as pesquisas mais atuais, trata-se de um importante debate a ser enfrentando pelos dois campos envolvidos. Todos esses aspectos são recuperados em nossas considerações finais, para sistematizar pontuadamente as questões que nos parecem relevantes para o avanço das pesquisas. Antes disso, precisa-se revisitar a etnografia desde as primeiras experiências. 2. Um breve histórico da etnografia segundo antropólogos e antropólogas Na introdução, levanta-se uma questão implícita, e indispensável, do tema que é tratado neste texto. A intenção não é estabelecer um monopólio da etnografia. Porém, antes de discutir como a etnografia pode ser usada na pesquisa em educação, é fundamental pensar sobre o que ela é. Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 A prática etnográfica na pesquisa educacional Para isso, primeiro é retomado seu surgimento no início do século XX. Até pouco antes disso, as pesquisas sobre a cultura de outras sociedades se baseavam no relato de viajantes ou na experiência dos próprios autores dos que considera-se os textos iniciais da Antropologia. Com Bronislaw Malinowski, o projeto de estar com os “nativos” era posto pela primeira vez em prática, evidenciando a importância do contato para se investigar uma sociedade. Ao retornar das Ilhas Trobriandesas, este antropólogo publicou em 1922 o texto “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, no qual apresentou não simplesmente uma descrição da sociedade que estudou, mas uma contribuição teórica à compreensão da diferença. Na anterior “Antropologia de gabinete”, os estudiosos dispensavam a presença em campo, ou, quando muito, reuniam os “selvagens” estudados para inquerir sobre diversas questões e chegar a uma conclusão. Malinowski critica a criação de inventários de dados etnográficos sem uma interpretação mais ampla preocupada com a totalidade da vida social: [...] o etnógrafo que se propõe estudar apenas a religião, ou somente a tecnologia, ou ainda exclusivamente a organização social, estabelece um campo de pesquisa artificial e acaba por prejudicar seriamente seu trabalho (MALINOWSKI, 1978, p. 24). Neste trecho, percebe-se a discussão teórica que é feita pelo antropólogo. Considerado um autor funcionalista, Malinowski se ancorava em uma reflexão teórica sobre o funcionamento orgânico de uma sociedade. Portanto, dos seus primórdios, já se pode falar de um necessário diálogo com as investigações anteriores – que Malinowski também apresentou com os evolucionistas. Além disso, da própria experiência etnográfica em si, e na reflexão que Malinowski (1978, p. 21) fez sobre ela, também já se pode encontrar a necessidade de um contato íntimo com os sujeitos estudados, percebendo como “[...] é enorme a diferença” entre isto e um contato efetivo. Para o autor, este é “[...] um dos requisitos preliminares essenciais à realização e ao bom êxito da pesquisa de campo” (MALINOWSKI, 1978, p. 22). Lançadas as bases da etnografia, elas vêm a contribuir com todo o escopo de pesquisas em Ciências Humanas, e não apenas na incorporação por outras disciplinas. Segundo Triviños (1987, p. 120), a etnografia abre as portas para que também sejam usados dados qualitativos em pesquisa científica, pois observa-se que “[...] muitas 19 Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 SCHNEKENBERG, G. F.; OLIVEIRA, G. S.; JUNIOR, E. B. L. informações sobre a vida dos povos não podem ser quantificadas e precisavam ser interpretadas de forma muito mais ampla que circunscrita ao simples dado objetivo”. Além do funcionalismo (herdeiro do positivismo), Triviños (1987) marca a importância do marxismo e da fenomenologia para o crescimento do interesse nas abordagens qualitativas a partir da década de 70. Apesar dos limites do funcionalismo, é preciso marcar a origem da pesquisa qualitativa nessa corrente científica, da qual extraímos reflexões teóricas e metodológicas rigorosas. Ainda, a pesquisa qualitativa em geral e a etnografia são essencialmente ligadas ao método compreensivo, dando espaço para a compreensão dos sentidos que sujeitos dão a suas ações e fenômenos históricos. Neste ponto, volta-se à Antropologia para discorrer sobre as contribuições da etnografia. Deixando para trás a matriz positivista/funcionalista, é na antropologia interpretativa que se constata uma valorização ainda maior dos sentidos que os sujeitos dão a suas ações. Em Geertz (2012), a Cultura é vista como uma teia de significados. Ou seja, o objeto de estudo do antropólogo é precisamente os sentidos que os homens dão a sua experiência social. É partindo disso que Geertz (2012) desenvolve sua contribuição relativa à etnografia como descrição densa. Este antropólogo usa a piscadela como um exemplo de prática que pode ser observado e relatado na etnografia – mas o significado que tem essa ação está relacionado a diversas normas, costumes, posturas. Portanto, a etnografia é muito mais que uma descrição das práticas de uma sociedade e uma listagem de suas crenças. Trazer à tona a densidade de cada um dos aparentemente mais simples gestos é o diferencial da etnografia. É nas miudezas das práticas e relações sociais que o antropólogo vai entrando em contato com a Cultura para poder descrevê-la. Para Geertz (2009), o “estar lá” é indispensável porque promove a interação entre pesquisador e a cultura que investiga. Se fazer presentemente observador de cada uma das piscadelas – que podem ser muito mais que simples piscadelas – é a base do contato que vai ser apresentado no texto etnográfico. Na redação, ao “estar aqui”, o antropólogo descreve a “outra” cultura, de acordo com seus próprios olhos. Além disso, aqui fica ainda mais lúcida a importância do conceito de Cultura com qual se produz uma etnografia. Essencialmente, esta prática envolve apresentar a cultura de uma sociedade. Quando se parte da noção interpretativa, então, o relato Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 A prática etnográfica na pesquisa educacional etnográfico descreve os sentidos que indivíduos atribuem a suas experiências. Se há a recuperação de um conceito de cultura mais funcionalista, ou seja, que pensa em termos de totalidade social e fatos sociais, essa mesma cultura é vista como um todo agregado que não pode ser atribuído pelos indivíduos. Essa preocupação com o conceito de Cultura é chave para compreender o papel da teoria e do diálogo com outras etnografias em uma investigação desse tipo. Como bem apontado por Peirano (2014) em Etnografia não é método, tal prática não pode abrir mão do diálogo com outras etnografias. Para ela, a própria história da antropologia é fonte teórica inseparável – o que seria, ao menos genericamente, dizer que é necessário dialogar com uma revisão bibliográfica em pesquisas de quaisquer áreas. Peirano (2014, p. 385) é incisiva ao afirmar que não se pode abrir mão do debate com outros autores, afinal “[...] a antropologia é comparativa por definição”. De todo modo, o motivo que rege a etnografia traz indagações que já têm um caráter teórico por si só. São teóricas não simplesmente devido ao caráter científico de compreender ou explicar a Cultura, porque promovem o diálogo entre a teoria acumulada da disciplina etnográfica. Mas são teóricas, também, porque trata-se de estabelecer uma nova narrativa sobre as narrativas dos próprios sujeitos. Nesse caso, parecem convergir as ideias de Geertz (2009) e de Peirano (2014) quanto à etnografia como contato/diálogo entre pesquisadores e sujeitos. A partir desse encontro cultural, o antropólogo vai apresentando uma nova teoria, que compara si mesma às teorias que os investigados têm sobre suas próprias práticas. Em outro texto, Peirano (1995, p. 42) retoma Evans-Pritchard para falar do antropólogo como um tradutor: “[...] a teoria que ele propôs é resultado do “confronto””. Assim, o trabalho etnográfico exige uma sensibilidade para este diálogo. Poderia-se recorrer a perspectivas ainda mais ousadas, como a de Wagner (2010) quando diz que a cultura é uma invenção dos antropólogos, de quando falam sobre o outro, em comparação a si mesmo, ambos dotados de uma cultura. Já que se busca melhor precisar a etnografia antes de discutir sua incorporação pela educação, pode-se recuperar o antropólogo José Guilherme Cantos Magnani (2009, p. 135), para o qual esta prática é “[...] uma forma muito especial de operar em que o pesquisador entra em contato com o universo dos pesquisados e compartilha seu horizonte [...] [para] comparar suas próprias teorias com as deles”. Em resumo, a 21 Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 SCHNEKENBERG, G. F.; OLIVEIRA, G. S.; JUNIOR, E. B. L. tradição da antropologia e o essencial da discussão geral sobre a etnografia apresenta o encontro cultural como requisito de tal prática investigativa. Para Magnani (2009, p. 18), ainda, é necessária uma atenção e uma perspectiva especiais: “[...] olhar de perto e de dentro, mas a partir dos arranjos dos próprios atores sociais”. Com isso, o antropólogo nos diz que é preciso relativizar nossa própria perspectiva. Hoje, é consenso na Antropologia que a disciplina não se pratica sem relativizar as hierarquias entre culturas e sociedades. Por mais que isso não seja equivalente a assumir como aceitável toda e qualquer prática cultural, uma antropóloga precisa ser capaz de colocar em perspectiva sua própria cultura e a cultura que investiga. Ou seja, uma postura de relativismo cultural. Pereira (2017, p. 278) discute a questão da familiaridade com a cultura etnografada. Na hora de estudar em uma escola, é importante “[...] ter em mente que nem tudo que é familiar é conhecido”. Ao trabalhar com uma alteridade menos extrema, o antropólogo precisa estranhar o que parece natural, bem como o inverso, tornar familiar aquilo que lhe é diferente, que não é devidamente conhecido. Nesse sentido, o relativismo aparece novamente como importante ferramenta que qualifica as investigações em educação. A relativização é uma das partes chave para o estudo de outras culturas, assim como são outros conceitos necessários à compreensão do objeto da área. A alteridade é premissa básica do conhecimento antropológico (OLIVEIRA, 2013). Essas contribuições e os desafios para a etnografia nas investigações educacionais já foram apontadas por pesquisadores das Ciências Sociais (OLIVEIRA, 2020; PEREIRA, 2017) e, também, por pesquisadoras da Educação que se dedicaram à incorporação da etnografia em seus estudos. A seguir, serão analisadas estas discussões sobre etnografia vindas da educação e/ou voltadas às pesquisas nesta área de conhecimento. 3. Para quê a etnografia nos estudos em educação? O tópico anterior foi encerrado mencionando-se as pesquisas e reflexões que aproximam Educação e etnografia ou Educação e Antropologia. Antes de discutir a produção advinda da educação, mais uma vez recupera-se a Antropologia em trajeto mais ou menos cronológico. Ao concluir essa “linha”, ela será colocada em diálogo com as discussões teóricas originárias da educação, para, por último, apresentar um retrato atual das pesquisas. Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 A prática etnográfica na pesquisa educacional Para continuar, então, a fundamentação com a Antropologia, pode-se olhar de novo para as primeiras décadas de consolidação das Ciências Sociais. Embora algumas vezes a educação pareça um objeto de estudo negligenciado pela área, de alguma forma ela sempre apareceu nas pesquisas. Apesar disso, em 2015, a coletânea Horizontes das Ciências Sociais, organizada pela Associação Nacional dos Pós-graduandos da área não incluiu um capítulo sobre a educação (PEREIRA, 2017). Infelizmente, “[...] a antropologia contemporânea não tem a educação como seu campo privilegiado” (PEREIRA, 2017, p. 151). Em Émile Durkheim, pai da Sociologia, a educação aparece com importância inestimável no processo de socialização, essencial para o ser humano. Desde então ela continua aparecendo mesmo que tangencialmente ou como agenda de pesquisa sempre em aberto, afinal, o fenômeno educacional é “naturalmente” um fenômeno social. Além disso, Durkheim admite também a socialização através de instituições que não exclusivamente a educação escolar. Nas pesquisas de Margaret Mead, essa possibilidade ganha um pouco mais de concretude. Na década de 20, nos Estados Unidos, a antropóloga publicou seu estudo sobre Coming of Age in Samoa, o processo de deixar de ser criança para ser um adulto nas ilhas samoanas. Em que pese a possibilidade de suas conclusões auxiliarem na construção da alteridade metodológica pelos e pelas pesquisadoras em educação, não serão abordados seus achados. Porém, isso revela a importância da juventude/categorias geracionais para a Antropologia, e deste também como um fenômeno educacional (MATTOS, 2011). Pereira (2017) também recupera um estudioso da Antropologia para falar dessa relação. A ideia de pedagogia da afirmação, baseada nos rituais em que se afirma que um membro está pronto para fazer parte da vida adulta, também é um fenômeno de interesse da intersecção entre Antropologia e Educação. Isto quer dizer que, mesmo com limites, a educação sempre foi objeto de estudo da Antropologia. Na tendência de primar pela alteridade mais extremada, vários estudos sobre educação se voltaram aos processos educativos em sociedades indígenas e quilombolas, desenvolvidos dentro dos programas de pós-graduação em Antropologia, consolidados a partir de 60 e 70 no Brasil (PEIRANO, 2000). Quanto à educação escolar urbana, a etnografia aparece em alguns estudos da Nova Sociologia da Educação na década de 70. A maior visibilidade só apareceu mais 23 Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 SCHNEKENBERG, G. F.; OLIVEIRA, G. S.; JUNIOR, E. B. L. tarde, a partir dos anos 90, com as diferentes agendas de pesquisas de programas de pesquisa em Antropologia e em Educação no Brasil (OLIVEIRA, 2020). Por isso, então, Amurabi Oliveira defendeu, em 2020, que já há um campo desenvolvido na interface entre as duas áreas, e um reavivamento do debate hoje em dia. Este pesquisador aponta, entretanto, para possíveis problemas da incorporação da etnografia pela Educação, bem como do diálogo da própria Antropologia com aquele campo. Ele reconhece a prática educativa, com suas especificidades, como uma prática cultural que pode ser objeto de etnografia por parte de investigadoras em Educação (OLIVEIRA, 2020). Entretanto, salienta no debate a visão de Marli André, segundo a qual existe a etnografia e estudos do tipo etnográfico (ANDRÉ, 1995; OLIVEIRA, 2020). Conforme apontado por Oliveira (2020), a etnografia sempre é uma interpretação. Com efeito, fica impossível enxergar seja a prática etnográfica sejam estudos de tipo etnográficos como meros instrumentos de coletas de dados. Como apontado também por outros autores das Ciências Sociais, a etnografia exige um diálogo teórico, enquanto outras pensadoras, como André (1995), parecem alargar a noção de etnografia para tratar de outros tipos de pesquisas que consideram “etnográficos”. Se forem consideradas novamente para reflexões recentes da Antropologia sobre o uso da etnografia em investigações sobre a educação, se constatará em geral uma preocupação com esses modos de sua incorporação. Para Pereira (2017), há problema vindos de ambos os “lados” dessa interface: o perigo de uma instrumentalização excessiva e descontextualizada da etnografia em outras áreas, bem como uma presunção e perspectiva de hierarquia por parte da Antropologia. Este autor trata da etnografia como um elo entre duas culturas, portanto, um exercício de conhecer o outro e produzir uma linha de contato na alteridade. Mesmo assim, Pereira (2017, p. 162) afirma que quanto se trata de etnografias na escola, algumas das mais importante não vêm da própria Antropologia. Ele cita Willis e McLaren para demonstrar como estudiosos de outras áreas também conseguem prestar atenção às minúcias do cotidiano e os “[...] inesperados arranjos produzidos pelos atores sociais”. Da mesma forma, o autor menciona como a etnografia tem sido utilizada em campos como a saúde, as políticas públicas e a publicidade, descartando o monopólio antropológico sobre a etnografia. Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 A prática etnográfica na pesquisa educacional A abordagem precisa da Antropologia acerca da etnografia é um ponto importante para que o campo da Educação possa realmente incorporá-la em suas pesquisas. Segundo Pereira (2017, p. 157), “A etnografia é um procedimento intelectual de produção de um conhecimento específico, intersubjetivo, orientado por referências teóricas específicas e densas”. Ao que nos parece, dois pontos importantes aparecem aqui: o quanto é indispensável o diálogo teórico com outras monografias, e caráter de encontro cultural que um etnógrafo sente ao construir sua pesquisa. Portanto, é importante que uma etnografia faça uma incursão pelo significado que os sujeitos dão às suas práticas cotidianas. As pesquisadoras advindas do campo da Educação não deixam de ter tais preocupações de rigor epistemológico. Na verdade, ao abordar a tarefa do etnógrafo, André (1995) revela similaridades com as definições da Antropologia: se aproximar ao significado ou à compreensão dos participantes da pesquisa é a marca especial desta forma de pesquisa. A autora revela o que Oliveira (2020) chamou de visão bem particular sobre o assunto, ao apresentar a “pesquisa do tipo etnográfico” classificação na qual encaixa metodologias distintas como o estudo de caso e a pesquisa-ação. Para André (1995), se tratam de investigações que fazem coleta de dados qualitativos a partir da pesquisa de campo, que fazem um relato etnográfico do processo educativo a partir de uma “descrição cultural”. O enfoque no processo educativo, segundo André (1995), tira pré-requisitos de uma etnografia preocupada com o fenômeno da cultura. Com esse tratamento, a autora (1995, p. 22) afirma que em Educação se usam técnicas em geral associadas à etnografia, como a observação participante, a entrevista e a análise de documentos. Para ela, pesquisadores dessa área não fazem etnografia, mas uma “[...] pesquisa de tipo etnográfico”. Ainda assim, a autora não deixa de se preocupar com o caráter de diálogo vivido nessas práticas de pesquisa e do forte papel do próprio pesquisador como principal instrumento da pesquisa. Ao apresentar um retrato da discussão sobre a etnografia da prática escolar, André (1995) relata algumas de suas próprias pesquisas, durante as quais se inspirou naquela discussão metodológica. Aqui, ela é um dos exemplos de pesquisadoras que se interessaram pela etnografia e pela discussão sobre cultura escolar entre as décadas de 80 e 90. Suas investigações se voltaram sobre o fracasso escolar em escolas públicas, 25 Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 SCHNEKENBERG, G. F.; OLIVEIRA, G. S.; JUNIOR, E. B. L. o desempenho de professoras de reconhecido sucesso e a própria experiência de formação de professores em serviço. Ainda no campo da educação, uma antropóloga de formação também cita pontos críticos dos usos da Antropologia neste campo. Conforme Dauster (2004), não se pode reduzir a etnografia a uma técnica de pesquisa, dissociada das opções teórico- metodológicas que devem ser feitas nesta prática investigativa. Envolvida com a formação de pesquisadores no campo da educação, a professora também defende a necessidade de apropriação de autores e textos antropológicos. Um dos desafios desta apropriação é o próprio caráter das pesquisas em educação é o caráter normativo que algumas das investigações costumam assumir. Como, então, produzir um conhecimento descentrado, a partir da alteridade com base no relativismo cultural? Para ela, essa contribuição importante da Antropologia é construída quando se busca o “ponto de vista do “outro” nos seus termos” (DAUSTER, 2004, p. 203). Ao construir o conhecimento atento e sensível aos sujeitos investigados na etnografia, uma pesquisadora da Educação deve buscar assumir novas posturas e relações para o contato com o “outro”. A tarefa do etnógrafo, independente da área, é o de apreender os significados das práticas e discursos dados pelos próprios sujeitos, indo muito além da descrição empírica factual (DAUSTER, 2004). Esse contato, encontro, diálogo cultural também aparece em reflexões mais recentes sobre o uso da etnografia em educação. Em prefácio ao livro organizado por duas referências na área interseccional (Carmen Mattos e Paula Castro), Senna (2011, p. 5) apresenta a etnografia como um “[...] plano de conflito entre excluídos, de um lado, e intelectuais, de outro”. Dessa forma, este interlocutor daquelas pesquisadoras marca a etnografia como uma investigação preocupada em apreender o “outro” a partir de novos referenciais. No livro acima citado, Mattos (2011) pontua, novamente, a necessidade do diálogo com a teoria, mesmo apresentando a etnografia como método indutivo, ou seja, que se preocupa em partir da própria comunidade para estabelecer relações compreensivas. A autora discute a importância que têm os recursos etnográficos para a pesquisa em educação: instrumentos de análise (observação-participante, história de vida) e formas de análise (análise documental, análise de discurso). Entretanto, não Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 A prática etnográfica na pesquisa educacional deixa de ver esta prática de pesquisa como um processo que envolve outros princípios teóricos. Ao apresentar uma revisão da etnografia educacional atualmente, Mattos (2011) faz um resumo de seu principal ponto crítico: o desconhecimento dos princípios básicos da etnografia. Segundo a autora, até mesmo para garantir a fidedignidade dos dados, é necessário um cuidado para que a pesquisa não se torna uma simulação etnográfica. Entre outros princípios caros à etnógrafa, estão a descrição densa, o método indutivo, a linha da pesquisa dada pelos dados. Além disso, um dos pontos chave que já foi citado, o olhar relativizador que o pesquisador deve ter (MATTOS, 2011). Assim, ao que nos parece, as reflexões teórico-metodológicas da Antropologia e da Educação convergem no concernente à etnografia. Tais reflexões são bastante comuns entre as etnografias escolares disponíveis, como as de Gomes (2015), Costa e Mattos (2015), e de Barros e Mattos (2015). Também há pesquisas etnográficas sobre educação em livros como Etnografia e Educação: relatos de pesquisa, novamente organizado por Mattos e por Fontoura (2008). Mesmo quando se trata de pesquisas que não se propõe como etnografias, a relação direta que têm com o campo leva a uma discussão bastante detida nos princípios teórico-metodológicos incorporados de outra área acadêmica. Para nós, a qualidade de tais pesquisa revelam a contribuição que também é apresentada à etnografia pelo campo da Educação, não cabendo qualquer tentativa de monopolização da abordagem. Para Mattos (2011, p. 29), “[...] qualquer pesquisador culturalmente sensível” pode fazer etnografia. Dada a série de discussões que são aqui colocadas sobre teoria em Antropologia, é imprescindível a noção de etnografia como diálogo cultural, contato intenso com os sujeitos investigados, é preciso qualificar o que é estar culturalmente sensível. Sensibilidade se assemelha ao processo artesanal de imaginação etnográfica proposta por Borges e Castro (2019) e/ou ao instinto etnográfico que estranha aspectos do cotidiano sem hora para ser acionado? (PEIRANO, 2014) Colocar isso em questão não é discordar da afirmação. Antes, é apontar na mesma direção que a autora, para a necessidade de apreensão teórica das contribuições do campo e, ainda mais, de um olhar capaz de estranhar a cultura. Além 27 Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 SCHNEKENBERG, G. F.; OLIVEIRA, G. S.; JUNIOR, E. B. L. disso, a etnografia traz junto instrumentos e métodos que podem ser úteis na pesquisa em educação, que será discutida no tópico a seguir. 4. Sensibilidade cultural, técnica, método e etnografia Assim como não se trata de decidir a quem é permitido fazer etnografia, também “[...] não se trata de transformar o profissional da Educação em antropólogo” (DAUSTER, 2004, p. 204). Desde o início deste texto, foi tratado da impossibilidade, entretanto, de fazer etnografia sem uma noção de cultura, um olhar de relativismo cultural e um cuidado com a narrativa dos próprios sujeitos investigados. Como afirmado por Peirano (2014) no título de um de seus artigos, Etnografia não é método. Para iniciar uma sistematização das questões básicas que qualquer etnógrafo deve enfrentar, considera-se este texto uma leitura indispensável para não antropólogos. Essa classificação de nós (antropólogos) e os outros faz parte de uma discussão basilar da Antropologia. Nesse sentido, as contribuições de Peirano (2014) também devem ser aproveitadas pelos “nativos” da área. Segundo Peirano (2014, p. 383), “[...] etnografia não é método, toda etnografia é também teoria”. Ou seja, qualquer trabalho etnográfico dialoga com a bibliografia pertinente ao objeto de estudo. Além deste, o diálogo entre pesquisador e sujeitos pesquisados também é fundamental, criando novos arranjos, que não são próprios dos sujeitos – se constrói um novo arranjo a partir deles – e nem próprios do investigador, que agora trabalha com novos referentes (MAGNANI, 2002). A sensibilidade cultural faz parte do olhar próprio da Antropologia, que deve ser apropriado para compreender culturas, objeto de investigação do campo. Em resumo, trabalhar com uma perspectiva capaz de relativizar é importante para trabalhar com a alteridade, seja ela extremada, por culturas presentes do outro lado do mundo em relação ao etnógrafo, seja ela relativa, nas instituições ocidentais que fazem parte do repertório do pesquisador. É importante, como citado em Da Matta (1978), estranhar o que nos é familiar e tornar próximo o que nos é exótico – parte fundamental do ofício do etnógrafo, ou do anthropological blues. Também, isso aparece em Pereira (2017), ao recuperar a noção de Imaginação Etnográfica de Paul Willis. Inspirada pela noção de Imaginação Sociológica de Charles Wright Mills, tal noção cumpre com a função de estabelecer as conexões entre indivíduos e estruturas, com atenção para a cultura cotidiana. Aqui, defende-se um Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 A prática etnográfica na pesquisa educacional cuidado em olhar como os diferentes membros e grupos de uma sociedade se apropriam da cultura de uma sociedade determinada. Além desse olhar, o próprio inventário conceitual do campo é importante para a etnografia. Em grande medida, a postura do pesquisador, essencialmente indutiva, deve ser sensível aos conceitos e categorias que os próprios sujeitos lhe fornecem durante a experiência etnográfica. De outro lado, o conceito de Cultura com o qual se nutre a visão do etnógrafo vai abrir possibilidades e limitar sua investigação. Nesse sentido, as opções teórico-metodológicas devem ser feitas com rigor e lucidez. Além da questão da perspectiva, há habilidades das quais um pretenso etnógrafo não pode abrir mão de desenvolver, caso ainda não as tenha. Num sentido além do relativismo, é necessário ter alguma empatia para com os sujeitos investigados. Para saber quando fazer uma pergunta, pedir uma informação ou agir como participante dentro da observação, o etnógrafo precisa de certa flexibilidade e habilidade comunicacional. Tais questões são fundamentais ao utilizar o método da observação- participante. Também originada da própria etnografia, a ideia de observar e participar foi desenvolvida por vários antropólogos e antropólogas e pesquisadoras de outras áreas. Para cumprir bem com a descrição densa, é necessário correr da polícia com os nativos que participam de uma rinha de galo. Essa participação, expressa aqui de maneira cômica, faz parte fundamental da Antropologia desde que Geertz (2012) conquistou o que se pode chamar de confiança dos sujeitos investigados, e o consequente acesso mais detido em seus dados. Como já apontado anteriormente, há uma série de fenômenos que não poderiam ser obtidos através de documentos ou de perguntas feitas no tempo determinado de uma entrevista (MINAYO, 2009). Em toda sua tradição institucionalizada, a Antropologia foi praticada com a presença in locus, ou, em um termo famoso, com prática de campo. Além destas, as pesquisas etnográficas utilizam outras técnicas, como a história de vida (MATTOS, 2011), a análise de parentesco, principalmente entre os estruturalistas e os estrutural-funcionalistas, a entrevista, que faz parte do próprio diálogo construído no campo. Mas o principal companheiro do etnógrafo, depois dos próprios “nativos” (MALINOWSKI, 1978), é o diário de campo, usado pelo que é considerado pai da etnografia. Ao construir um diário, o pesquisador recolhe 29 Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 SCHNEKENBERG, G. F.; OLIVEIRA, G. S.; JUNIOR, E. B. L. sistematicamente suas impressões, dados, conversas, análises desde o início, ajudando-o a organizar os dados que coletou. Nesse sentido, o diário é o principal instrumento da pesquisa etnográfica. Apesar de se tratar de um processo indutivo, necessariamente flexível às questões que a própria prática de campo vai apresentando à etnógrafa, o trabalho de pesquisa também deve ter seu planejamento, de forma que um pesquisador não faça uma observação completamente difusa. Para Angrosino (2009), há alguns passos importantes a serem traçados de partida: a seleção do cenário, uma escolha de participantes, eventos, comportamentos e interações a serem observadas. Mesmo assim, isso não retira uma das grandes contribuições do trabalho de campo etnográfico, que é justamente estar aberto às narrativas dos próprios sujeitos investigados. Ao fim de todo esse processo contrastivo, o etnógrafo precisa apresentar um relatório final. O texto da etnografia – expresso no “estar aqui” de Geertz (2009) – deve estabelecer uma narrativa que sistematize a “teoria” desenvolvida. É aqui que se faz a descrição da cultura investigada, com todos os cuidados teórico-metodológicos discutidos neste artigo. Ao “estar aqui” depois de “estar lá”, após olhar e ouvir, isto é, depois da abertura de seus horizontes semânticos pelo campo, o etnógrafo faz a escrita final apresentando os novos arranjos que foram construídos (OLIVEIRA, 2013). Neste momento, o investigador já terá passado pela maioria dos desafios que são colocados nesse tipo de pesquisa. Em pesquisas educacionais, há alguns problemas específicos a serem enfrentados, e que serão tratadas no próximo tópico. 5. Desafios e possibilidades da pesquisa etnográfica (em educação) De maneira geral, foi discutida a questão da perspectiva relativista e da apropriação teórica que deve ser feita pelos pesquisadores que se aventuram na etnografia, mesmo sem ter origens de formação no campo da Antropologia. Dauster (2004) já apontou esses pontos ao discutir a orientação de pesquisas etnográficas. As formas de pensar indispensáveis à etnografia não são apreendidas de imediato pelos pesquisadores iniciantes na etnografia, que devem aprender a articular conceitos, perspectivas, e, sobretudo, estabelecer um diálogo cultural para o qual não foram especificamente formados. Nesse caminho, o desafio de novas leituras e de construir um diálogo com outras etnografias é um dos obstáculos – não trata-se de limites, mas de questões transponíveis através da dedicação do trabalho intelectual. É a partir dessa Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 A prática etnográfica na pesquisa educacional apropriação que se constrói a habilidade de sistematizar o contato entre as “teorias” das sociedades ocidentais e as “teorias” dos nativos. No caso da educação, é necessário trabalhar com uma alteridade relativa, uma teia de significados bem mais próxima que compreender outras sociedades (OLIVEIRA, 2020). Aqui, o anthropological blues (DA MATTA, 1978) aparece novamente, fazendo o caminho inverso ao que era feito no início da tradição da Antropologia. É preciso ter em mente que “[...] nem tudo que é familiar é conhecido” (OLIVEIRA, 2013, p. 276), e por isso mesmo é passível de ser pesquisado. Nesta direção, a escola oferece uma série de eventos e estruturas que precisam ser compreendidas a fundo. A contribuição da Antropologia Interpretativa é pungente: perceber como os diferentes agentes da escola dão sentido a ela pode trazer novos caminhos para todo o campo de pesquisas em Educação. Além disso, a etnografia nos ajuda a localizar melhor instituições, grupos, faixas geracionais, práticas que são dadas como naturais. Se conhecer o público de estudantes é princípio da teoria e da política educacional atualmente, a etnografia nos ajuda a tornar menos abstratos os sujeitos que participam da escola (OLIVEIRA, 2020). Tratando de questões mais procedimentais, pode-se voltar a Mattos para recordar dos problemas de tempo envolvidos em fazer uma pesquisa dessa envergadura em instituições escolares (2011). Esse desafio não é apenas para os pesquisadores de fora da Antropologia, já que a institucionalização da pesquisa atualmente exige prazos com os quais nem sempre é possível todo o tempo necessário ao contato cultural prolongado. Especificamente na educação em geral e na escola especificamente, nem sempre há boas condições de acesso aos participantes e à instituição em si para captar de maneira densa os sentidos envolvidos pela cultura escolar. Mattos (2011) alerta para o quanto o tempo disponível pode ser curto para fazer, de fato, uma pesquisa etnográfica. O perigo é de reproduzir, em acúmulo com as dificuldades teóricas, conceituais e de perspectiva, a descrição da cultural como um inventário de práticas e costumes de uma instituição, grupo ou sociedade. Afinal, captar a cultura que permeia a escola não é uma simples tarefa de observação e coleta técnicas de dados, mas estabelecer um diálogo, e, aí sim, fazer uma etnografia. Porque, novamente conforme Oliveira (2020, p. 7-8), há um desafio de compreender uma “[...] cultura escolar” e a “[...] cultura da escola”. A duplicidade dessa 31 Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 SCHNEKENBERG, G. F.; OLIVEIRA, G. S.; JUNIOR, E. B. L. preocupação reside no fato de que há uma maneira de colocar em prática e atribuir significados aos conhecimentos e afazeres escolares, que Oliveira (2020) designou como cultura escolar. Portanto, trata-se uma instituição própria da e específica dentro da sociedade moderna, com uma lógica especial de funcionamento. Indo mais ao encontro do particular, há que se olhar e escutar como essa “cultura escolar” é operacionalizada dentro de cada escola específica, ou seja, dentro de suas singularidades. Os termos empíricos através dos quais a cultura é praticada são outra preocupação que um etnógrafo deve ter para melhor compreender a escola como fenômeno cultural (OLIVEIRA, 2020). Partindo de todos esses questionamentos, fica evidente a riqueza de detalhes densos que a etnografia pode nos ajudar a enxergar. Mesmo os desafios desta prática investigativa permitem aberturas que ainda devem ser enfrentadas a longo prazo de maneira a enriquecer tanto o campo da Educação como da Antropologia. 6. Considerações Finais Na discussão que foi apresentada até aqui, algumas das questões da relação entre dois campos acadêmicos se destacaram: a Antropologia e a Educação. A aproximação entre ambas não é necessariamente tensa, mas é repleta de lacunas devido às tradições envolvidas e de armadilhas da disputa acadêmica por legitimidade e reserva de objeto de investigação. Como foi pontuado diversas vezes ao longo do texto, não foi encontrados fundamentos para afirmar um monopólio da Antropologia sobre a etnografia. Recuperar a tradição científica dentro da qual a etnografia foi desenvolvida é importante não para seguir as regras colocadas pelo campo, mas para que se compreenda quais trajetos já foram feitos e quais passos podem ser dados num futuro próximo. Ao marcar a importância do contato com a teoria e outras etnografias, não se intentou postular a necessidade de prestar tributações à Antropologia. Em um “diálogo” com esta disciplina, foram também apresentadas importantes contribuições que partiram especificamente do campo da Educação. No quatro teórico que foi desenhado, aparecem mais antropólogos porque a discussão mais recente sobre etnografias em Educação faz pesquisas mais focalizadas em seus próprios objetos do que preocupadas com o todo da cultura. Mesmo assim, como foi afirmado acima, as Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p.16-35/2021 A prática etnográfica na pesquisa educacional pesquisas advindas da Educação não deixam de realizar reflexões teórico- metodológicas importantes sobre a etnografia. Discutiu-se, também, a perspectiva, os métodos, técnicas e instrumentos “etnográficos” que podem ser usados em uma pesquisa deste tipo. Mais que informativo ou instrutivo, essa abordagem qualifica melhor a prática de pesquisa que foi objeto de nossa análise ao longo do artigo. Por isso, também foram abordados os desafios e possibilidades específicas da etnografia sobre a educação, demonstrando a riqueza oferecida pelo diálogo entre os dois campos. É precisamente, e também de uma maneira cheia de significados, nesse diálogo que reside a grande teia de possibilidades para a pesquisa etnográfica em Educação. Ao entrar em contato com um campo diferente, qualquer que ele seja, aprende-se a enxergar as coisas de novas formas, que muito mais enriquecem do que nos fazem abandonar preceitos acadêmicos. Nesse sentido, se adensar na discussão feita pelos dois campos certamente possibilita debates que nem um nem outro fariam sozinhos. Referências ANDRÉ, Marli E. D. A. Etnografia da Prática Escolar. Campinas, SP: Papirus, 1995. ANGROSINO, Michael. Etnografia e observação participante. Porto Alegre, RS: Artmed, 2009. BARROS, T. P.; MATTOS, C. L. G. Relevância do “objeto” nos estudos sobre tecnologia digital e pesquisa etnográfica: análise de conteúdo. In: MATTOS, C. L. G.; BORGES, L. P. C.; CASTRO, P. A.; FAGUNDES, T. B. (Org.). Pesquisas em Educação: a produção do Núcleo de Etnografia em Educação (NetEDU). Rio de Janeiro, RJ: EDUERJ, 2015. p.179- 187. BORGES, L. P. C.; CASTRO, P. A. A Etnografia da escola: entrelaçando vozes, sujeitos, conhecimentos e culturas. Rev. 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