Procura-se um Coração - Lucia Seixas PDF

Summary

This is a fictional story about a teenager dealing with family issues and relationships. The main character reflects on the changes in her family dynamic and her personal life. The author shares a glimpse into a coming-of-age narrative centered around the emotional complexities of adolescence.

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Sumário Capa Folha de rosto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 Ficha catalográfica Agora está tudo bem. Finalmente eu decidi: vou fazer Psicologia mesmo. Já combinei com...

Sumário Capa Folha de rosto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 Ficha catalográfica Agora está tudo bem. Finalmente eu decidi: vou fazer Psicologia mesmo. Já combinei com a Júlia, e este ano nós vamos estudar pelo menos três horas por dia depois da aula. Uma semana na minha casa, a outra na dela. Minha mãe também está ótima. Continua tomando remédios, se tratando, isso vai ser pra sempre. Mas voltou a dar aulas, está tentando um mestrado na universidade e anda falando até em alugar uma sala para abrir seu próprio curso de inglês. Às vezes eu fico pensando em tudo o que aconteceu na minha casa no ano passado e nem acredito que acabou. Agora está tudo bem, como antes. Ou quase como antes. É que minha mãe não mora mais na minha casa. No início, foi bem estranho. Era meu pai quem havia saído de casa das outras vezes. Mas, da última vez, ela resolveu diferente. Não sei quanto tempo isso vai durar, mas tem sido bom. A casa está até mais sossegada. Mamãe está morando com minha avó, e durante a semana a gente se encontra pelo menos três vezes, geralmente numa lanchonete perto da minha escola. Eu, ela e meu irmão. Nós conversamos, rimos, é sempre muito bom. E meus pais continuam se vendo, saindo juntos de vez em quando, como se fossem dois namorados. Acho que um não vive sem o outro mesmo. Tem horas em que eu sinto muita falta da minha mãe. Quando chego da escola, queria que ela estivesse em casa, como antes, vendo o almoço, arrumando tudo, correndo para não se atrasar para o trabalho. Mas então eu lembro que ela está bem, feliz, recuperando um tempo muito importante que ela perdera quando ficou grávida e teve que parar tudo para cuidar de mim. Ela estava então com a idade que eu tenho hoje, 16 anos. Acho que, no fundo, minha mãe teve muito medo de morrer sem ter vivido a sua adolescência. E, depois do transplante que precisou fazer no ano passado, ela resolveu viver isso. Eu entendo. E tenho certeza de que meu irmão também entende. E a gente gosta dela de qualquer jeito. 1 Foi na saída de uma festa, no ano passado, que eu tive o primeiro sinal de que alguma coisa estranha estava acontecendo na minha casa. Eram três horas da manhã e eu já havia chamado a galera para ir embora. Meu pai pegaria a gente naquela noite. Ele era o mais pontual de todos os pais e, se dizia que estaria na porta da festa às três horas, podia contar que quinze para as três ele já estaria lá, esperando por nós dentro do carro, ouvindo seus CDs. Mas naquela noite ele não apareceu. E ficamos nós quatro, eu, Júlia, Dani e Marcinha, esperando, sem saber o que fazer. Ninguém atendia o telefone lá em casa e o celular do meu pai caía na caixa postal. Não havia mais ônibus àquela hora. E era muito chão para andar até em casa. — Vamos ligar pra sua mãe, Lela! — Não adianta, Júlia, ela está sem celular. — E se a gente pegasse uma carona? — Vamos esperar mais um pouco, às vezes aconteceu algum problema no carro e ele já está chegando. Como o pai era meu, todo mundo concordou. Resolvemos esperar mais um pouco. — Quem sabe furou um pneu, Lela? É, podia ser. Sentamos na beira da calçada. E nada. Quase meia hora depois, passou por nós um amigo do irmão da Dani, sozinho no carro, e ofereceu carona. Fiquei na dúvida, mas a Júlia achou melhor a gente aproveitar. Tentei ligar de novo para o celular do meu pai. Fora de área. Entrei no carro e fomos embora. A carona foi ótima, me deixou na porta do meu prédio. Entrei correndo. Chico, o porteiro, roncava baixinho e nem me viu entrar. Ele era legal, trabalhava ali no prédio havia pelo menos uns dez anos. Só tinha o defeito de querer saber demais da vida dos outros. Pelo menos, ele não ia perguntar por que eu estava chegando àquela hora, sozinha. Abri a porta de casa com cuidado. Papai estava dormindo no sofá. No dia seguinte, acordei bem cedo. Era domingo. Alguém estava fazendo barulho na cozinha. Levantei e fui até lá. Era o meu pai, fazendo café. — Oi, pai! O que é que te deu ontem? — Ontem? — Você não foi pegar a gente na festa! Era a sua vez… Esqueceu? Meu pai colocou a mão na cabeça: — Minha filha, desculpe… Mas… você me avisou? — Claro, pai. Eu te avisei na sexta de manhã, quando você estava saindo, não lembra? — Não, não lembro. E como é que vocês voltaram da festa? — A gente pegou uma carona, sem problemas. Mas o que foi que te deu? — Ah, Lela, aconteceu tanta coisa esses dias. Eu acabei esquecendo… Desculpa, filha. — Eu liguei aqui pra casa, pro seu celular, ninguém atendia. — Eu e sua mãe saímos pra conversar, eu devo ter esquecido o celular. — Mas o que foi que aconteceu, pai? — Nada, filha, depois a gente conversa. “Depois a gente conversa.” Aquela frase era quase uma senha. Meu pai sempre falava aquilo quando queria fugir de um assunto. Pedro entrou na cozinha e recebeu do meu pai, que estava saindo, um afago rápido na cabeça. — Tudo bem por aqui, Lela? Papai tá estranho… — Você sabe se aconteceu alguma coisa aqui ontem de noite? — Não sei de nada, eu fui numa festa ontem e dormi na casa do Rodrigo. — Papai dormiu no sofá — contei. — Será que vem outra crise por aí? Fiz que não sabia. Nem me importava. Se fosse uma separação, não seria a primeira. Meus pais sempre se gostaram muito, mas vinham brigando cada vez mais. Chegaram a se separar duas vezes. A primeira separação durou uma semana, mas a segunda, quase um mês. Tomei meu café rápido, tinha um churrasco me esperando. — Tá com pressa, Lela? — Vou pra casa da Marcinha. É aniversário dela, a galera da escola vai estar toda lá. Por que eu fui contar? Pedro quis ir comigo de qualquer maneira. Desde o início do ano, ele havia cismado com a Dani. Aonde eu ia, ele queria ir junto, para encontrar com ela. — Pedro, a Dani nem sabe que você existe, cara. E ela é pelo menos um ano mais velha do que você, ou mais. Acho que ela tem 16 anos! — Mas nem parece. E eu sou mais alto do que ela. E essa história de ser mais novo ou mais velho não tem mais nada a ver, Lela. — Tá bom, mas dessa vez não vai dar pra você ir, o.k.? Não posso levar ninguém no churrasco, só entra com convite. Fica pra próxima. Prometo. Pedro disse que tudo bem, ele tinha mesmo outro lugar para ir. Mas me fez prometer arranjar um encontro dele com a Dani. Coloquei na mochila tudo o que eu ia precisar: toalha, protetor solar, uma camiseta, o presente que eu havia comprado para a Marcinha — um superestojo com pincéis de maquiagem. Programa na casa da Marcinha era sempre para o dia inteiro. Ela morava em frente à praia e tinha uma piscina enorme em casa. Quando eu estava saindo, minha mãe me chamou no quarto. Pediu que eu não chegasse tarde, por causa da aula na segunda- feira. Mas havia algo mais: ela queria conversar comigo e com o Pedro naquela noite. Tinha algo muito importante para nos dizer. Parecia mesmo outra separação. Mas deixei pra lá e resolvi que aquilo não ia estragar o meu dia. Além disso, era bem possível que os dois já tivessem feito as pazes quando eu voltasse para casa. E minha mãe nem ia lembrar que ela tinha uma coisa séria pra conversar com a gente naquela noite. 2 Júlia foi a primeira que me viu chegar na casa da Marcinha. Veio correndo falar comigo: — Ele já chegou, Lela, olha só! Júlia me levou para olhar a praia, pelo muro da casa da Marcinha. Olhei. E lá estava o Biel, um menino que estudava com a gente na escola. Sabe aquele cara que faz qualquer coisa pra aparecer? Era ele. Conhecia todo mundo e andava sempre rodeado de gente. Era supergato, com certeza. Bem moreno, alto, olhos castanhos, quase verdes. Mas um gato meio convencido demais para o meu gosto. Lá estava ele, tirando uma onda de lutador de jiu-jítsu com outros caras. A Júlia olhava para o Biel como se estivesse vendo um deus. — E qual é a novidade? — perguntei para Júlia. — Você não sabia que ele ia estar aqui? Esse cara nunca perde uma boca-livre. Júlia era minha melhor amiga e eu torcia por ela. Mas daquela vez, não. Como é que uma menina tão legal podia gostar de um cara daquele! Mas, como dizem, o amor é cego. E surdo! Júlia parecia que nem me ouvia. Falava comigo sem tirar os olhos do Biel: — Depois do churrasco vai ter um forró perto da escola. O Bruno me disse que o Biel vai. Vamos? — Não, amanhã tem aula cedo, meu pai não vai deixar. E minha mãe tem um “assunto importante” pra tratar comigo e com o Pedro de noite. — O que é? Bronca? — Dessa vez não. Eu acho que ela está querendo se separar do meu pai. — De novo? — Pois é, de novo. — Foi por isso que seu pai não apareceu ontem pra buscar a gente? — Deve ter sido. Crise braba entre os dois. Você aguenta? Júlia sabia como era. Os pais dela também haviam se separado. Mas foi uma vez só, quando ela era pequena. — Mas não dá mesmo pra você ir com a gente no forró, Lela? — Não, acho que não. Aliás, você também não gosta tanto de forró assim. Você vai por causa do Biel, não é? — Claro! Hoje a gente vai ficar de novo, garanto. — Sabe, Júlia, eu não consigo entender o que você viu nesse cara. Ele é tão bobão… Olha lá, tirando onda com os outros. Júlia olhou e suspirou. — E eu querendo tanto que ele tirasse uma onda comigo… Olha só, Lela… Era hora de procurar o resto da turma. Quando a Júlia cismava com o Biel, não queria saber de mais nada. — Onde estão a Dani e a Marcinha? As duas estavam saindo da casa. Dei um beijo na Marcinha e entreguei o presente que havia levado. Ela abriu e adorou. Maquiagem era uma coisa que ela amava. Fomos todas juntas para a praia. Ficamos lá a manhã toda, conversando, enquanto os meninos jogavam bola. Mais tarde, alguém gritou da varanda que o churrasco já estava quase pronto. Fomos todos para a piscina, esperar lá. Pouco tempo depois, o churrasco estava servido. Eu, Júlia e Dani fomos para a fila da carne, de prato na mão. Mas Júlia não ficou nem dois minutos com a gente. Quando Biel chegou, ela saiu de fininho, deu a volta por trás da varanda e entrou no final da fila, bem atrás da turma do Biel. Eu e Dani ficamos olhando para a Júlia, toda simpática, puxando papo com ele. — O amor é lindo, não? — disse Dani, olhando para os dois. — Lindo, cego, surdo e burro — eu respondi. E a gente riu muito. A Júlia devia ser a garota mais apaixonada do mundo… 3 Eram quase oito horas da noite quando cheguei em casa. Minha mãe estava no quarto do Pedro, trabalhando no computador. Quando me viu, levantou e me deu um abraço apertado. — Mãe, o que foi? Alguma coisa séria? — Não, filha, não é nada sério, é só uma conversa importante que a gente precisa ter. — Então eu vou tomar um banho rápido, tá bom? — Tá bom, enquanto isso eu preparo um sanduíche pra você, quer? — Não, mãe, comi demais na casa da Marcinha, não quero nada agora. — Então vai tomar logo o seu banho que seu pai e o Pedro já estão chegando. Nós vamos conversar todos juntos. A campainha tocou quando eu estava colocando a minha roupa no quarto. Fui abrir a porta, mas minha mãe já estava na sala. Era minha avó Helena que havia chegado. — Mãe, você por aqui a essa hora? — E qual é o problema, Ana? Agora tenho que avisar que venho visitar vocês? — perguntou minha avó, sempre brincalhona. Ela passou por minha mãe, puxou minha mão e sentamos no sofá. — Não é isso, mãe. É que eu não estava esperando ninguém aqui em casa hoje. Minha avó mal ouviu o que minha mãe dizia. Virou-se para mim e espremeu meu rosto com as mãos, dizendo que eu estava a cada dia mais bonita. Minha avó sempre fazia isso comigo, era supercoruja. — Eu fui ao cinema aqui perto com umas amigas e pensei: vou lá ver se os meus netinhos não querem ir comer uma pizza. Vamos? Eu tentei dizer que queria, mas minha mãe não deixou: — Não, mãe! Hoje a gente tem um assunto sério pra tratar aqui em casa. Eu e o Artur precisamos muito conversar com a Manuela e o Pedro. E, pensando bem, é até bom que a senhora esteja aqui, assim fica sabendo de uma vez. A porta da sala abriu-se, com meu pai e meu irmão. — Vó, que bom que você está aqui! — disse Pedro. — Tá sumida, hein? — Eu vim convidar vocês para uma pizza. Vamos? Minha mãe elevou um pouco o tom de voz, o que não era bom sinal. — Mãe, eu acabei de dizer que a gente tem um assunto sério pra tratar, lembra? Dá pra respeitar? Minha mãe não gostava nem um pouco quando a gente não prestava atenção ao que ela dizia. Aliás, esse era um defeito bem chato dela: queria que todo mundo lhe obedecesse, com ou sem vontade. E quando se tratava de arrumar o quarto, era pior. Tinha que ser na hora que ela queria, nunca na hora que a gente achava melhor. Vovó sentiu o clima. Respirou fundo e disse: — Vamos então ao tal “assunto sério” da noite. Mamãe começou: — Pois bem. Eu e o Artur temos uma coisa importante para dizer a vocês. Ficamos aguardando, sentados e quietos. — Manuela, Pedro, mamãe. Eu e o Artur estivemos pensando muito durante esses últimos meses, avaliando nossas vidas, e resolvemos que… que… não dá certo mesmo e… bem, a gente resolveu se separar definitivamente. Pedro olhou para mim como quem diz “lá vem mamãe de novo”. Minha avó continuou com a ironia: — Ah, é? E definitivamente até quando? — Mãe, eu estou falando sério… — Está? Como da outra vez? Ana, tenha paciência! — disse minha avó, levantando-se do sofá. — Vocês dois se dão tão bem, se gostam tanto! Ninguém pode querer se separar assim, toda vez que acontece uma briguinha! — Eu falo isso pra ela todo dia, dona Helena — disse meu pai, levantando-se também. — Mas sua filha é uma cabeça-dura, a senhora sabe melhor do que eu! Minha mãe não gostou de ver minha avó e meu pai contra a vontade dela: — Artur, me respeite, por favor, nós já conversamos sobre isso! — Nós conversamos, não! Você resolveu! Mas você não pode querer que eu concorde com todas as suas loucuras! — Você está me chamando de louca? — perguntou minha mãe. Antes que meu pai respondesse, ela foi para o quarto. Ele foi atrás e os dois começaram a discutir. Minha avó sentou-se novamente no sofá, entre mim e Pedro. Fazia tempo que ela não nos via e queria saber das novidades, dos “namoricos”, como dizia. Pedro contou que estava a fim da Dani, uma amiga minha da escola, e me perguntou se ela tinha ido ao churrasco. Eu disse que sim. E contei que a Dani estava ficando com um cara da minha sala. Mas o Pedro não se abalou nem um pouco, achava que tinha a maior chance. Minha avó tentava me convencer a ajudar o Pedro. Ela também achava que não havia nada de mais no fato de ele namorar uma menina mais velha. Estava até na moda! Ela lembrou que o Pedro ia fazer aniversário e perguntou por que eu não convidava a Dani. Meu irmão achou a ideia ótima. Não ia ser festa de verdade, só um bolinho, mas podia ser legal. Pedro estava começando a me prometer alguma coisa se eu convidasse mesmo a Dani para o aniversário dele quando meus pais apareceram novamente na sala. Minha mãe perguntou se podíamos continuar a conversa. Minha avó levantou-se e pegou sua bolsa. — Bem, se a separação de vocês dois era a grande novidade da noite, para mim a conversa acabou, eu me considero informada. Agora eu vou indo. E vocês, crianças, querem comer uma pizza lá embaixo ou não? Eu e Pedro levantamos, queríamos ir. — Você vem com a gente, Ana? Minha mãe disse que não e voltou correndo para o quarto. Meu pai sentou no sofá e baixou a cabeça. Vovó sentou ao lado dele: — Artur, o que é que está acontecendo? — A senhora não imagina como eu gosto da sua filha, dona Helena. — Imagino, sim. Mas você tem que mudar, Artur. Você sabe que eu nunca me meti na vida de vocês, mas você tem que ter mais pulso com a Ana. — Ela não tem se cuidado direito. Aquela frase acionou um alarme dentro de mim. Minha mãe tinha um problema no coração, havia muitos anos. Uma coisa séria, que ela estava sempre tratando. — Ana tem tomado os remédios? — perguntou minha avó. — Tem. Pelo menos ela diz que está fazendo tudo como o médico mandou. Mas a senhora conhece sua filha. Se a gente pergunta muito, ela se zanga. — E os exames que ela fez no mês passado? — Eu acho que não estão nada bons. A porta do quarto da minha mãe abriu-se. Ela passou no corredor em direção à cozinha. Depois voltou para a sala e disse que ia conosco comer pizza. Que esperássemos só mais um minuto, para ela trocar de roupa. 4 Hora da saída na escola. No portão, a confusão de sempre. Eu abria caminho com minha bicicleta. Meu humor não era dos melhores. A noite de domingo ainda estava na minha cabeça. Meu pai não foi comer pizza com a gente. Ficou em casa, sozinho. Com certeza, magoado com minha mãe. Mas ela foi, bem normal, como se nada tivesse acontecido. Minha avó ficou calada quase o tempo todo. Ela sempre ficava muito zangada quando minha mãe falava em se separar. E dizia que um dia meu pai ia cansar daquelas crises e ir embora para sempre. Mas acho que naquele dia minha avó estava quieta por outro motivo. Devia estar preocupada com os tais exames da minha mãe. Como eu também estava. — Ei, Lela! Era Júlia. Eu já estava na rua quando ela me chamou. — Esqueceu que eu vou almoçar na sua casa pra gente estudar? Eu havia esquecido mesmo. Minha cabeça ainda estava naquela conversa estranha sobre os exames da minha mãe. Júlia subiu na bicicleta e fomos para minha casa. Entramos pela sala no mesmo instante em que meus pais entravam pela cozinha, voltando da feira. Minha mãe falava alto, zangada, colocando as sacolas em cima da mesa: — Eu não sei como você nunca apanhou de alguém, Artur. O que é que tem o homem escrever “lima da peça” na barraca dele? Você não entendeu que é lima-da-pérsia? — O que é isso, Ana? Será que você não percebe que as pessoas gostam de ser corrigidas? Todo mundo quer aprender a escrever direito! — Sim, mas você precisa parar de barraca em barraca na feira toda vez que encontra alguma coisa escrita errada? O que é que você tem com isso? O homem não tá vendendo de qualquer jeito? Eu e Júlia estávamos na sala, esperando a discussão acabar. Júlia achava graça. A gente era amiga há tanto tempo que ela até já conhecia as brigas lá de casa. Meu pai era professor de literatura e não se conformava quando via alguma coisa escrita errada. Minha mãe continuava: — Olha só a hora! As crianças já estão chegando da escola e o almoço nem está pronto! Onde já se viu alguém fazer feira e dar aula de Português ao mesmo tempo? Se as pessoas querem escrever com erro, o problema é delas! — É por isso que as coisas estão como estão. Ninguém dá valor à própria língua, escreve tudo de qualquer jeito, fala tudo de qualquer jeito — disse meu pai, saindo da cozinha. — Oi, meninas! Já chegaram? O almoço ainda vai demorar um pouquinho, disse ele. Minha mãe chegou depois e abriu um sorriso quando me viu com a Júlia. Deu um beijo em cada uma de nós, e disse baixinho ao meu pai, antes de voltar para a cozinha: — Eu quero que a língua portuguesa se dane, entendeu? — É claro que ela não está nem aí para a língua portuguesa. É professora de inglês!… Quer mais que todo mundo esqueça que nasceu no Brasil, que aqui se fala português… Meu pai adorava o português, achava que era a língua mais bonita do mundo. E tinha até certa implicância com os estrangeirismos. Ele era a única pessoa que eu conhecia que acessava um “sítio” na internet. — Hellooooo!!!!!! Era o Pedro, entrando em casa. — Chegou o colonizado da casa! — disse meu pai. — Ih, tô vendo que o clima por aqui não melhorou, né? Meu pai nem respondeu. Júlia e eu fomos para o meu quarto e fechamos a porta. — A coisa aqui tá quente mesmo, hein? — Pois é. Ontem, iam se separar, hoje foram fazer feira juntos. Aí voltam e brigam de novo. — Então o papo sério de ontem era isso? Eles vão se separar? — Pelo visto, sim. Eu nem sei mais… Júlia tentou me animar: — Lela, não liga, não! Isso passa. Todo mundo vê que os dois se gostam. Eles já se separaram antes e voltaram, não é? Com certeza vão fazer as pazes logo dessa vez também. — Eu sei, eu sei. Mas não é isso que está me preocupando, não. — O que é? — Nada, não. Deixa pra lá. Júlia sentou na minha cama e abraçou meu travesseiro: — Lela, sua mãe ainda tem aquela mania de ficar com você aqui no quarto enquanto você se arruma? Tinha. Era uma das coisas que ela mais gostava de fazer. Toda vez que eu ia me arrumar pra sair, ela ia para o meu quarto. E ficava vendo eu me vestir, me pentear. — Ela continua com essa mania, sim, Ju. Mas sabe que eu gosto? Minha mãe vivia correndo, trabalhando no curso, fazendo tradução, dando aula particular. Mas naqueles momentos, quando ficávamos nós duas no meu quarto, a gente conversava. Eu contava as coisas que aconteciam comigo e ela me contava como era quando ela tinha a minha idade. — Pois minha mãe, quando eu estou me arrumando para sair, a única coisa que faz é criticar tudo que eu ponho! — Minha mãe também dá palpite, mas a gente se entende bem nessa hora. Eu acho que ela curte ficar olhando eu me arrumar pra sair porque ela quase não fez isso na vida. Quando eu nasci, ela era muito nova. Alguém bateu na porta. Era Pedro. Com certeza, para falar da Dani. Não deu outra: — E aí, vocês vão estudar hoje de tarde? Quem mais vem? — Ninguém, Pedro, só eu e sua irmã. Por quê? Quer estudar com a gente? — Não, Júlia, obrigado. Eu prefiro jogar bola. — E se a Dani viesse? — Aí eu preferia estudar com vocês. Os dois riram. Pedro não desistia e queria de todo jeito que a Júlia também o ajudasse com a Dani. — Pedro, se enxerga, cara! Ela nem lembra que você existe… e tá ficando com um cara lá da escola, eu já te disse… — E daí, Lela? Eu não sou nem um pouquinho ciumento. Eu só preciso de uma chance e te garanto que ela gama no gostosão aqui… — Gostosão, não! Gostosinho… Até a Júlia implicava com o Pedro, mas ele não se convencia: — Júlia, você tá sabendo que quinta-feira é meu aniversário, não é? Você traz a Dani? Eu vou chamar uma galera, vai ser legal. — E por que você mesmo não liga pra ela? — Porque ela vai achar estranho, Ju! Tem que ser uma coisa assim, natural, sabe? Você chama, como quem não quer nada, pede a ela pra te fazer companhia… e aqui em casa eu dou meu jeito. — E desde quando eu preciso de companhia pra vir aqui na sua casa, Pedro? — Ah, inventa qualquer coisa, Júlia… Diz que você tá com medo de andar sozinha na rua, sei lá… Coitado, pensei. Pedro ia quebrar a cara com a Dani. Mas se ele queria tentar, que tentasse. Meu pai bateu na porta. O almoço estava pronto. 5 Júlia me chamou para uma volta de bicicleta de tarde. Era uma coisa que eu adorava fazer, mas, naquele dia, não tinha vontade. Júlia insistiu. Disse que estaria na porta do prédio dela me esperando. Levantei da cama, troquei de roupa e saí. — Vai passear, Lela? Vai aqui por perto? Era o Chico, gritando da portaria, enquanto eu passava pelo portão da garagem. Era impressionante como ele tinha de saber aonde todo mundo ia. — Vou dar uma voltinha por aí, Chico. Tinha gente no prédio que reclamava do Chico com meu pai, que era o síndico. Mas meu pai sempre dizia que as qualidades dele eram maiores que os defeitos. O prédio era antigo e ele sabia consertar tudo o que quebrava. Além disso, o fato de ele ser tão participativo, segundo meu pai, era até positivo. Nosso prédio era pequeno, os moradores eram quase todos velhinhos e era bom ter alguém tomando conta deles. Saí pensando no Chico, eu gostava dele. Passei pelo prédio da Júlia, ela estava sentada na calçada esperando-me. Subiu na bicicleta dela e fomos, pela rua, até a praia. Tinha pouca gente no calçadão, andamos uma do lado da outra. Júlia logo emplacou o seu assunto preferido, o Biel. Para ela, ele não tinha defeito. Júlia não cansava de dizer como ele beijava bem, como era gato, inteligente… — Alto lá, Júlia! Agora também você tá pegando pesado. Inteligente? Esse cara inteligente? Desde quando? E começamos nós duas a discutir mais uma vez sobre o Biel. Eu dizendo que ele era um idiota, e Júlia tentando me convencer de que ele era maravilhoso. — Lela, o Biel é assim porque a escola que a gente estuda não sabe lidar com ele, entende? — Tá bom. Quer dizer que o cara não quer nada, vive zoando na aula e a culpa agora é da escola? — Não é questão de culpa, Lela. Você nunca ouviu dizer que alunos superdotados não conseguem se adaptar nas escolas normais? As aulas ficam chatas pra quem é inteligente demais e por isso eles acabam extravasando na bagunça, entende? — Foi sua mãe que te falou isso, não foi? — Foi. Ela trabalha com esse tipo de inteligência especial no consultório dela. Resolvi mudar de assunto, mas não foi preciso. — Lela, você está vendo o que eu estou vendo? Era o Daniel, chegando perto de nós, correndo na praia. Fazia mais de um mês que eu não encontrava com ele, desde que o nosso namoro havia terminado. — O que é que eu faço? Paro ou finjo que não vi? — perguntei para Júlia. — Passa por cima — respondeu ela, que não gostava nem um pouco do Daniel. Fomos nos aproximando, Daniel chegando cada vez mais perto, até que ele segurou no guidom da minha bicicleta. Júlia não parou. Disse que me encontrava depois e seguiu em frente. — Eu queria mesmo muito te encontrar, Lela. Faz tempo que a gente não se vê… — Pois é. — Vamos sentar um pouco? Meu coração estava disparando, mas eu tentava disfarçar: — Não dá, Daniel, a Ju está me esperando, a gente estava levando um papo supersério, sabe… — Então pode ser outro dia, posso te ligar? — Não, eu vou entrar em prova agora na escola, deixa que depois eu te ligo, tá bom? Daniel concordou, deu-me um beijo rápido e seguiu adiante. Saí atrás da Júlia. Ela estava me esperando um pouco adiante. — E então, como foi? — Não sei ainda, ele disse que quer me ver. — E você vai entrar na dele de novo, Lela? — Vamos andar, Ju, olha pra frente… 6 — Pedro, vou ver uma coisinha rápida aqui no computador, o.k.? — Não demora, daqui a pouco eu vou ter que entrar aí. Aquele era um problema a ser resolvido na minha vida. Desde o dia em que meu pai comprou um computador, começou a briga para ver onde ele ia ficar. Na sala não podia, por causa da televisão. E nos quartos, só no do Pedro tinha espaço. Mas com isso o Pedro achava que era o dono do computador! Eu queria conversar mais com a Júlia sobre o Daniel. Ela não era aquele tipo de amiga que ficava dando força só para agradar. Falava sempre o que achava, era supersincera. E eu estava precisando muito da sinceridade dela. Daniel havia sido meu primeiro namorado sério. No início, era ótimo, mas depois ele começou a implicar com as minhas amizades, não queria que eu saísse com mais ninguém, só com ele. Começamos a brigar por causa disso e o namoro acabou. Não posso dizer que foi fácil, porque não foi. Daniel havia sido o primeiro cara de quem eu gostei de verdade, nós namoramos por quase oito meses! — Lela, lembra a Ju do meu aniversário amanhã, se você falar com ela. — Só isso? — Não, pergunta se ela já chamou a Dani. Manuela (provas semana que vem): Tá fazendo o q? Júlia (nada como um dia depois do outro): Nada. Minha mãe saiu, tô sozinha em casa Manuela (provas semana que vem): sorte a sua. Daqui a pouco o Pedro me expulsa daqui Júlia (nada como um dia depois do outro): Pensando no Daniel? Manuela (provas semana que vem): + ou - Júlia (nada como um dia depois do outro): Sim ou não? Manuela (provas semana que vem): Sim Júlia (nada como um dia depois do outro): Vc sbe o q eu penso disso Manuela (provas semana que vem): Sei Júlia (nada como um dia depois do outro): Roubada Manuela (provas semana que vem): Tb acho Júlia (nada como um dia depois do outro): Então sai dessa Manuela (provas semana que vem): Mas não é só isso Júlia (nada como um dia depois do outro): O q é? Manuela (provas semana que vem): Nada Júlia (nada como um dia depois do outro): Não quer contar? Manuela (provas semana que vem): Não é nada Júlia (nada como um dia depois do outro): Mas você anda estranha Manuela (provas semana que vem): Nada d+. Amanhã a gente se vê. O Pedro quer saber se vc convidou a Dani pro niver dele Júlia (nada como um dia depois do outro): Já falei, ela vai comigo Manuela (provas semana que vem): Bj Júlia (nada como um dia depois do outro): Bj Ouvi minha mãe me chamar. Fui até seu quarto. Ela estava sentada na cama e puxou-me para sentar ao seu lado. Queria conversar, ver como eu estava. — Eu estou normal, mãe. E você? Minha mãe suspirou fundo, antes de responder: — Lela, tem coisas que a gente tem que aceitar, porque não dá para entender. Eu tenho certeza que você, quando for maior, vai me entender. Às vezes, só o amor não basta para sustentar uma relação. Eu e seu pai precisamos ficar um pouco afastados agora. Esperei para ver se minha mãe ia falar sobre o coração dela, mas logo perdi as esperanças. Aquele era um assunto que ela evitava a qualquer custo. — E você, minha filha, como é que vai? A gente mal tem tido tempo de conversar… — Tá tudo bem, mãe, não se preocupa comigo. Dei um beijo nela e fui para o meu quarto, sem sono para dormir. Ouvi meu pai chegando em casa, e nada mais aconteceu. 7 O aniversário do Pedro foi ótimo. Só para os amigos, como ele queria. Foi bom juntar a minha galera com a dele. Júlia veio com a Dani e a Marcinha. Todo mundo se entendeu superbem. Sueli, que trabalhava lá em casa, fez um bolo supergostoso e uns salgadinhos. A festa só não foi até mais tarde porque tinha aula no dia seguinte. Dani gostou dos amigos do Pedro e os dois conversaram um tempão. Depois, ela me disse que ia mandar umas músicas para ele. Pedro gostava das mesmas bandas que ela! Pelo que eu conhecia do meu irmão, podia apostar que ele havia inventado que gostava daquelas músicas estranhas que a Dani curtia só para ficar conversando com ela. Se havia uma coisa que o Pedro sabia fazer muito bem era enrolar as pessoas. Meus pais só apareceram na sala na hora de cortar o bolo. Parecia que estava tudo normal entre eles, mas eu sabia que, com aqueles dois, nem tudo era como parecia. Quando todos foram embora, meu pai foi até o meu quarto. — O que foi, pai? — Lela, aquela conversa no domingo, com a sua mãe, lembra? — Claro, pai, aquele lance da separação. Eu pensei que vocês tinham deixado isso pra lá. — Bem, sua mãe diz que precisa repensar a vida dela. — Repensar a vida dela? — Pois é, minha filha. — Mas você disse pra vovó que ela não está bem. O que é que ela tem? Pedro entrou no quarto. Meu pai queria conversar com nós dois. Mas não quis falar muito sobre minha mãe. Disse que queria falar dele. Queria que a gente entendesse que nunca deixaria de estar ao nosso lado, mesmo morando em outro lugar. — Eu amanhã cedo vou para a casa da sua tia Laís, mas vou ligar todo dia e passar aqui sempre que puder. Qualquer coisa que vocês precisarem, eu estou lá. Daqui a uns meses, vou arrumar um canto pra morar e aí vocês vão poder passar uns dias na minha casa. Eu vou fazer um quarto bem legal para vocês dois. Acho que vai ser bom, não é? Pedro, quando viu meu pai sério demais, começou a brincar: — Pai, lembra que você teve uma conversa igualzinha a essa com a gente há pouco tempo? Não levou um mês e você estava de volta… Meu pai ficou sem graça, mas queria que a gente o levasse a sério. — Eu sei que isso é difícil agora, mas, quando vocês crescerem, vão entender… — Pai, para de falar como se a gente fosse criança. Pedro fez 15 anos hoje… — Bem, eu só queria dizer mesmo que eu vou estar sempre aqui com vocês. Daquilo eu tinha certeza. Meu pai não conseguia ficar um dia sequer longe da gente. Ele ainda conversou um pouco mais, disse que nas férias poderíamos fazer uma viagem, os três, e que no final de semana seguinte viria nos buscar para irmos ao cinema. Depois levantou e foi embora. Pedro se aboletou na minha cama. Queria saber se a Dani tinha falado alguma coisa sobre ele para mim. — Não, Pedro, não falou nada demais. Só que ela vai mandar umas músicas pra você… Ou você vai mandar uma música pra ela… Sei lá. — Pô, Lela, conta o que ela disse! — Ela disse só isso, Pedro. Agora se manda e me deixa dormir, amanhã tem aula cedo. — Mas a Dani está ficando mesmo com aquele tal cara que você falou? — Não, Pedro, acho que ela não anda mais ficando com ninguém. Eu vou ver isso e depois te falo, o.k.? Se você sair da minha cama rápido! 8 Acordei no meio da noite, com barulho em casa. Fui ver o que estava acontecendo e encontrei meus pais na sala, prontos para sair. — O que foi que aconteceu? Aonde vocês estão indo? Meu pai estava aflito: — Sua mãe não está se sentindo bem e o médico quer dar uma olhadinha nela. Mas isso não é nada, você pode voltar para a cama. — Mas… o que foi que aconteceu? Eu posso ir também, pai? — Não, não, Lela. Volta pra cama. E liga o seu despertador. E chama o Pedro na hora de ir para a aula. A gente já volta. — Mas você liga pra mim? — Ligo, prometo. Os dois saíram. Eu sentei no sofá. Pensei em ligar para minha avó, mas depois achei melhor não, ela poderia ficar assustada. Fiquei sem saber o que fazer. A televisão. Sempre distrai nessas horas. Liguei e fiquei vendo um filme, sem prestar muita atenção. Não sei quanto tempo depois Pedro me sacudiu, perguntando o que eu estava fazendo ali. Eu havia dormido no sofá. O telefone tocou, fui correndo atender. Era meu pai. Estava ligando para ver se a gente já tinha acordado para ir pra aula. — Aula? Que aula, pai? Você acha que eu tenho cabeça para ir a aula hoje, com mamãe assim? Como ela está? Onde vocês estão? Minha mãe estava bem e logo eles estariam em casa. Por isso, segundo meu pai, não havia motivo para que faltássemos à escola. — Tá bom, pai. Mas ela está bem mesmo? Papai garantiu-me que sim. Desliguei o telefone, aliviada. Eram quase sete horas. Contei a Pedro o que havia acontecido. Eu me arrumei rápido e saímos juntos, atrasados. As horas nunca demoraram tanto a passar como naquele dia. Nos intervalos das aulas, eu ligava para ter alguma notícia. Ninguém atendia na minha casa, nem no celular do meu pai. Quando a aula acabou, meu pai ligou para o meu celular. Eles chegariam logo depois do almoço, só estavam esperando o resultado de uns exames. Fui para casa. Abri a porta, não havia ninguém. Não era todo dia que Sueli trabalhava lá em casa. Sueli era uma amigona, sempre de alto astral. Trabalhava com a gente desde que eu tinha uns três anos, eu acho. Ela adorava dizer que já havia trocado muita fralda minha e do Pedro. Resolvi começar a fazer uma comida. Até que me virei bem no fogão. Isso eu havia herdado da minha mãe. Ela tinha talento pra cozinhar e nunca se apertava: abria a geladeira, pegava o que tinha lá dentro e inventava um prato novo, sempre gostoso. O único problema era quando a gente pedia para ela fazer o prato de novo. Nunca saía igual. Fiz como via minha mãe fazer: abri a geladeira, peguei o que tinha lá e fiz um almoço — uma salada e uma omelete de carne assada picada — que ficou muito bom. Pedro chegou e comemos juntos. Quando acabávamos de comer, alguém abriu a porta da sala. Pedro e eu corremos. Eram nossos pais, com vovó. — E então, mãe, tá tudo bem agora? — perguntou Pedro. — Tá tudo bem, meu filho, tudo bem. — Mas aconteceu alguma coisa de novo com aquele problema? — perguntou Pedro. Ele sabia que minha mãe não gostava nada de falar sobre o coração dela. Mas eu não aguentava mais de aflição: — Você vai ter que operar o coração, mãe? — Vai, vai operar, sim — respondeu papai. Minha avó sentou-se no sofá. — E quando vai ser? — continuou Pedro. — O médico disse que sua mãe precisa fazer um transplante de coração. Ela tem que entrar numa fila, para esperar uma doação. Papai soltou aquela frase como se aquilo fosse muito normal, como se dissesse que minha mãe ia precisar tomar um comprimido para dor de cabeça. Eu sentei no sofá, ao lado da vovó. Não conseguia falar nada. Mas Pedro continuava com as perguntas dele: — E quando você vai operar, mãe? — Ninguém sabe, filho. Tem que esperar. Mamãe estava quieta, mas não parecia preocupada. Ao contrário, parecia bem tranquila. Ela me deu um beijo, deu outro no Pedro e virou-se para meu pai: — Artur, obrigada por tudo. Você é um grande amigo. Eu te telefono pra gente conversar depois — disse minha mãe, indo para o seu quarto. Pedro foi atrás dela. Vovó virou-se para o meu pai: — Por que é que a Ana vai te telefonar? Não me diga que você vai sair dessa casa agora? — A Ana não quer que esse problema mude nada na vida da gente. Ela disse que nós já havíamos decidido pela separação antes. Ou melhor, ela havia decidido pela separação antes. Vovó perdeu a paciência: — Mas isso é uma loucura, meu Deus! Isso é hora de se separar, Artur? A Ana vai ter que fazer uma cirurgia muito complicada e… — Eu sei, dona Helena, eu sei. Mas acho melhor deixar como está. Vamos deixar a poeira assentar. — Você é mesmo um santo, meu filho. Acho que é esse o seu problema: paciência demais. A Ana merecia um marido daqueles horrorosos, que vivesse aprontando. Assim como o pai dela, que Deus o tenha! Papai não queria ir embora, qualquer um podia ver. Mas ele sabia que contrariar a minha mãe seria pior. — Bem, vou pegar minha mala — disse meu pai. Vovó levantou do sofá, decidida: — E eu vou pra casa fazer a mala e vir pra cá. A Ana não pode ficar sozinha. — Então eu vou junto com você, vó! — Não, Lela, fica aqui com sua mãe. E vai arrumando um cantinho para mim no seu quarto. Eu volto logo. 9 No dia seguinte, a aula se arrastou novamente. Por mais que eu tentasse, não conseguia me concentrar. De uma hora para outra, tudo havia mudado na minha vida. Meu pai não morava mais com a gente, minha mãe precisava de um coração novo… Eu não imaginava que o problema que ela tinha poderia ser tão grave. Júlia percebeu que algo estava errado comigo. Eu contava tudo para ela, mas daquela vez eu não tinha vontade de falar. Na hora da saída, Júlia insistiu. Queria saber por que eu estava estranha. Não dava pra esconder nada da Júlia, ela me conhecia melhor do que ninguém. Prometi que conversaríamos mais tarde e fui embora. Quando cheguei em casa, Sueli estava na cozinha, arrumando o almoço. Perguntei por minha mãe. Soube que ela havia saído, mas já ia chegar. Tinha ido ao curso de inglês para acertar umas coisas. — Você tá bem, Lela? — Tudo bem — falei. — Sua vó está lá no quarto, tentando arrumar um cantinho para colocar as roupas dela no seu armário. Vai ser bom ter dona Helena por aqui uns tempos, enquanto sua mãe não fica boa. Então Sueli já sabia o que estava acontecendo. Vovó surgiu na cozinha: — Oi, minha filha, já chegou? Vai tomar um banho que daqui a pouco o almoço está na mesa. Fui para o banheiro e de lá fiquei ouvindo a conversa das duas. Sueli estava tentando animar minha avó: — Não fica assim, dona Helena, vai dar tudo certo, a senhora vai ver. E não adianta nada a senhora ficar nessa aflição toda. — E ainda mais essa história de separação, Sueli, vê se é hora pra isso! — Mas por isso a senhora não se preocupe, dona Helena, isso é bobagem, passa logo. Aqueles dois se gostam de verdade. Melhor a senhora não se preocupar com essa história de separação, senão daqui a pouco “seu sistema fica nervoso” e aí é pior… Se meu pai estivesse em casa, ia começar mais uma “aula” na cozinha. Ele não se conformava com o tal “sistema que ficava nervoso” da Sueli. E nunca deixava passar: “Ninguém tem sistema calmo ou nervoso, Sueli! Tem sistema nervoso! É uma coisa só!” Sueli vivia falando coisas engraçadas. Ela não se importava quando meu pai a corrigia, até gostava. Mas o tal do “sistema que ficava nervoso”, isso não tinha jeito. Me deu muita saudade do meu pai naquele momento. Era como se fizesse muito tempo que eu não o via. Júlia me chamou no celular, de tardinha. Ela e Dani estavam no calçadão da praia, queriam que eu fosse até lá. Pedro me ouviu falar o nome da Dani. — Vou com você, Lela, tá quase de noite, te faço companhia. Minha avó achou a ideia muito boa. — Leva ele, Lela, é sempre bom andar com alguém, as ruas estão muito perigosas. — Vó, não são nem seis e meia. E o Pedro não quer me fazer companhia, ele quer encontrar com a Dani. — Mas aí eu aproveito e te faço companhia… — Não preciso de irmãozinho mais novo para andar comigo na rua! — Mas eu vou, você querendo ou não, irmãzinha. E você não pode me impedir… Pedro sabia como me irritar. — Por que você não liga um dia pra Dani, chama ela pra sair e vê o que ela vai te responder? — Ainda não chegou o momento para isso. Além de tudo, o Pedro era metido a entender de mulheres. Peguei minha bolsa e saí, com Pedro atrás de mim. No calçadão, vi logo a Dani e a Júlia, conversando com dois meninos que eu nunca havia visto. Dani nem reparou que o Pedro estava atrás de mim. — Lela, que demora… Conhece Tiago e Leo? São meus amigos do inglês. Fiquei conhecendo o Tiago e o Leo. Começamos a conversar e o Pedro ficou do meu lado, quieto. Mas logo, logo começou a falar e quando vi ele já era o que mais falava. Eu tinha que reconhecer, meu irmão sabia marcar presença. Tinha assunto pra qualquer lugar, qualquer pessoa e todo mundo acabava gostando dele. Ficou tarde e fomos embora, eu, Pedro e Júlia. Dani e os amigos ficaram mais um pouco. No caminho para casa, Júlia queria conversar comigo. Ela sabia que não era muito fácil arrancar as coisas de mim. — Lela, que cara é essa? — Nada. — É o Daniel, não é? Olha, você não acha que é fácil o cara encontrar com você depois de um tempão e dizer que estava pensando em te ligar? Depois de tudo que aconteceu entre vocês, se ele quisesse mesmo ligar, já tinha ligado! — Você acha que ele só lembrou de mim porque me encontrou… — Acho. E além do mais, você não tinha esquecido esse cara? — Tinha, mas foi bom ver ele. Talvez eu esteja precisando de alguma coisa nova na minha vida. — Então, mais um motivo pra você mandar esse cara andar. Ele está longe de ser uma coisa nova na sua vida. — Tá certo, Ju. Você tem razão. 10 Minha mãe tirou uma licença no curso de inglês, havia muita coisa para ser vista. Ela agora tinha outro médico, o doutor Eduardo, especializado em transplantes de coração. Era ele quem ia fazer a cirurgia, quando chegasse o momento. Havia uma consulta marcada com o doutor Eduardo naquela tarde para minha mãe. Quando ela e minha avó estavam saindo de casa, papai apareceu. Vovó fez cara de surpresa, mas eu vi logo que aquilo havia sido combinado entre os dois. Minha mãe fez questão de mostrar que não havia ficado muito satisfeita com a chegada do meu pai. No final, saíram os três juntos para o médico. Fui para o meu quarto, tinha um monte de coisas da escola pra fazer. Já eram quase seis horas quando meus pais e minha avó voltaram. Sueli ainda estava em casa, havia resolvido esperar comigo e com o Pedro. — E então, seu Artur, como foi por lá? Eles pareciam bem cansados. — Tudo bem, a Ana já está na fila de espera, agora é só aguardar. — Fila? Mas que fila, seu Artur? — Existe uma fila em que as pessoas têm que entrar quando precisam de um órgão novo — explicou meu pai para Sueli. Sueli continuou olhando para o meu pai, esperando mais alguma coisa. — É uma fila de espera, Sueli, com os nomes das pessoas que precisam de um órgão. Para cada órgão tem uma fila, uma lista. Quando um paciente precisa de um transplante, o médico coloca o nome dele numa lista para aguardar uma doação. Cada vez que uma pessoa morre e doa seus órgãos, a primeira pessoa da fila é operada e… — Mas quanto tempo leva isso, seu Artur? Minha mãe colocou o ponto final no assunto: — O tempo que for preciso, Sueli. A gente não tem como saber isso. Agora vamos falar do que interessa. Lela, quando começam mesmo as provas? E você, Pedro, fez o dever de inglês? Naquela noite, no quarto, minha avó e eu conversamos muito tempo antes de dormir. Eu queria saber tanta coisa… Por que minha mãe tinha que entrar numa fila para fazer um transplante? Quanto tempo aquilo ia demorar? — Lela, o médico não falou muita coisa além do que você ouviu, e acho mesmo que não é hora de ficar fazendo perguntas pra sua mãe, você sabe que ela não gosta. A gente vai ficar sabendo de tudo no momento certo. Uma ideia veio-me à cabeça. Pulei da cama e acendi a luz. Vovó cobriu os olhos com as mãos. — Que é isso, Lela? — Vó, vamos olhar na internet? Deve ter alguma coisa lá. Vem comigo? — Agora? Não está muito tarde, minha filha? Fomos para o quarto do Pedro e acendemos a luz. Ele levou um susto: — O que vocês duas estão fazendo aqui? — A gente vai ver uma coisa na internet. — Mas não dava pra esperar até amanhã? Não, não dava. Ligamos o computador, acessamos um site de busca e teclamos: transplante de órgãos. Muitos sites surgiram. Sinal de que havia muita informação, muito o que fazer. Escolhemos um deles e entramos. Depois outro, e outro. Pedro levantou da cama. Lemos tudo que pudemos, até tarde. Cansamos e fomos dormir. 11 Acordei no sábado sem vontade de levantar da cama. Precisar de um transplante no Brasil era quase uma sentença de morte. Havia milhares de pessoas esperando por um órgão. Poucos hospitais faziam as cirurgias. Nem todas as famílias permitiam que os órgãos de seus parentes mortos fossem doados. Poucos médicos informavam aos centros de transplantes quando acontecia uma morte, para que os órgãos da pessoa morta pudessem ser retirados e transplantados em outras pessoas. Havia coisas boas também. O Brasil tinha uma das leis de transplantes mais avançadas do mundo. E, com ela, a distribuição dos órgãos havia sido democratizada. Pobre ou rico, todos tinham que entrar na lista de espera para receber o órgão e fazer o transplante. Antes da lei, só quem tinha dinheiro podia fazer a operação. Mas, apesar disso, as dificuldades ainda eram enormes. Quem morasse nas regiões Sul e Sudeste do país tinha mais chances. Mas no Norte ou no Nordeste quase não havia hospitais que faziam transplantes! Olhei para o relógio, deitada na cama. Eram mais de nove horas. Minha mãe abriu a porta do meu quarto devagar. Fechei os olhos. — Lela, vou sair com sua avó, ver um sapato aqui perto. Quer vir? Pensei em fingir estar acordando naquele momento, mas desisti. Mamãe esperou uns instantes, fechou a porta e saiu. Vovó abriu a porta logo depois. Ela ficou um tempinho parada, olhando-me. Depois disse: — Lela, a Júlia ligou. Disse que está vindo pra cá. Será que eu fingia que estava dormindo tão mal assim? Esperei que mamãe e vovó saíssem. Assim que ouvi a porta da sala se fechar, levantei e fui tomar café. Júlia chegou logo depois e fomos para o meu quarto. Contei para ela tudo o que estava acontecendo. Foi bom desabafar. Júlia levou um susto. Mas logo se lembrou de um primo de um primo do seu pai, que havia feito um transplante de rim e estava muito bem. Parece que um tio havia sido o doador. Eu havia lido sobre isso na internet. Alguns órgãos, como os rins e a medula óssea, podiam ser doados de pessoas vivas. Mas não era o caso de minha mãe. Júlia queria me animar. Falou, falou, até não ter mais o que dizer. Ficamos quietas, deitadas na minha cama. — Sabe, Lela, você andava tão estranha esses dias que eu cheguei a pensar que você estava escondendo alguma coisa de mim. Que estava a fim de alguém e não queria me contar. — O quê? — Eu pensei que você estivesse a fim de alguém e não queria me contar… — Eu? A fim de quem? — Ah, sei lá, Lela, do Bruno, do Biel… — Quem? Ah, você só pode estar brincando, Júlia. — Tá bom, desculpa, Lela. Bobeira minha. E seu pai, como é que está segurando essa barra? Contei da separação. Júlia não acreditou: — Lela, desculpa, mas sua mãe tá dando muita bobeira. Seu pai é um gato e ela vai deixar ele solto por aí desse jeito! Pedro entrou no meu quarto. Sem bater, como sempre. Lá vinha ele falar da Dani. Queria saber se ela tinha falado alguma coisa sobre ele pra Júlia. — Sabe que sim? Pedro se encheu de esperanças. — E o que foi que ela disse? Conta, Ju… — Que você nem parecia que estava fazendo 15 anos. — É? — É. Ela jurava que você estava fazendo 12! Pedro trocou uns socos com a Júlia, de brincadeira. Depois foi embora, tinha futebol. Júlia convidou-me para almoçar na casa dela. Resolvi ir e deixei um recado para minha mãe na mesa da cozinha. Foi bom almoçar na casa da Júlia. Depois fomos ao cinema. Cheguei à noitinha e fui para o meu quarto. Não tinha vontade de falar com ninguém lá em casa. Bateram na porta. Era minha mãe. Ela entrou e sentou-se na minha cama. E eu me senti muito estranha ao seu lado. Só uma vez eu tinha me sentido assim. Foi na primeira vez que transei, com o Daniel. Não sei como, mas mamãe desconfiou de alguma coisa e veio conversar comigo, no dia seguinte. Entrou no assunto do meu namoro. Havia alguma coisa que eu queria contar para ela? Mamãe sempre conversava comigo sobre sexo, camisinha e essas coisas. Quando eu fiquei menstruada pela primeira vez, ela me deu um livro bem legal, sobre corpo e gravidez. E também me explicou como tudo acontecia. Disse que um dia eu iria conhecer um garoto e ter vontade de ficar sozinha com ele, de fazer carinho, de conhecer o seu corpo e deixar que ele conhecesse o meu também. Mamãe queria muito que eu contasse a ela quando acontecesse comigo. Eu prometi que contaria. Mas aconteceu e eu não contei. Não sei bem o porquê, mas não contei. Eu estava me sentindo como naquele dia, como se estivesse escondendo alguma coisa importante dela. — Você quer me perguntar alguma coisa, Lela? Eu queria, sim. Queria perguntar como ela estava se sentindo, se estava com medo. Queria perguntar o que ia acontecer com a gente. E no fundo, queria pedir para ela parar com aquela história de separação. Mas não consegui. Abracei mamãe e chorei tudo que eu queria chorar. 12 O domingo foi bom, diferente. Vovó foi até o seu apartamento para ver como estavam suas plantinhas, suas coisas. Ficamos apenas Pedro, minha mãe e eu em casa. Há muito tempo aquilo não acontecia. Eu sempre tinha um monte de coisas pra fazer nos finais de semana. E Pedro também. Até que pintaram uns programas, mas a gente acabou em casa. Ficamos a manhã inteira conversando sobre o livro de contos infantis em inglês, para crianças, que mamãe queria escrever. Era um projeto antigo e, com a licença que havia tirado do trabalho, ela teria tempo de sobra para realizar. — Mais uma pra disputar o meu computador… — Seu computador? Se liga, Pedro! — Não vai ter briga por computador, não, eu gosto de escrever de manhã, quando vocês estão na escola. — Ah, bom, assim tudo bem! Pedro adorava se fazer de dono do computador lá de casa, para implicar comigo. Mas eu não estava com vontade de brigar, aquele dia. O telefone tocou, Pedro atendeu. Era minha avó querendo saber como estávamos. De tarde, mamãe nos chamou para arrumar a estante da sala. Havia muito tempo que ela queria fazer aquilo e a gente estava sempre fugindo. Mamãe queria saber quais os livros e os jogos que não queríamos mais, para que pudesse dar para alguém. Acabamos achando um quebra-cabeça enorme, um presente que o Pedro havia ganho quando fez 13 anos, mas que ele nunca tinha tido coragem de montar. Ficamos os três na mesa da cozinha, conversando e montando as peças. Quando percebemos, já era de noite. Não havia nada para comer em casa e resolvemos fazer uma sopa. Quando estávamos jantando, o telefone tocou de novo. Fui atender. Era vovó, perguntando se já havíamos comido alguma coisa e avisando que ainda ia demorar um pouco para chegar. Fomos para a cama da minha mãe e deitamos juntinhos, como fazíamos quando éramos crianças, vendo um filme na televisão. Mamãe adormeceu. Fiquei ainda um bom tempo ali, olhando para ela, pensando. Havia tempos que não tínhamos um dia inteiro tão bom com ela. Só faltou mesmo meu pai aparecer lá em casa. Mas… talvez tenha sido melhor assim… — Pedro! — chamei baixinho. — Hã? — Desliga a TV. — O.k. Pedro desligou a TV e continuamos deitados na cama, com mamãe dormindo entre nós. — Pedro! — chamei baixinho. — Que foi? — Você notou como mamãe ficava quando o telefone tocava hoje, querendo saber quem era? — Eu? — É. Percebeu? — Eu? — É! Você não notou? — Não. Por quê? — Bem, deixa pra lá. — Fala, Lela… — Eu acho que ela estava esperando que papai aparecesse ou telefonasse… — Mas então a gente podia ter ligado pro papai, dizer para ele aparecer assim como quem não queria nada… — Não, Pedro. Pensando bem, foi muito bom ele não ter aparecido. Quem sabe se ela se sentir sozinha, sem ele sempre do lado, não acaba de vez com essa história de separação? — É, pode ser. Ficamos um bom tempo em silêncio. — Pedro! — Fala… — Você não vai dormir no seu quarto? — E você, não vai para o seu? — Não, vou dormir aqui mesmo. — Eu também. — Então, te acordo amanhã cedo pra aula. — O.k. 13 Não acreditei quando olhei para o quadro de giz. Vítor, o professor de Português, havia escrito em letras bem grandes o tema da redação que ele queria que fizéssemos na aula: “Você doaria os seus órgãos?”. — Quero uma abertura, um desenvolvimento da ideia e uma conclusão. Entre 25 e 40 linhas. Vocês têm 30 minutos. Olhei para Júlia. Aquilo era ideia dela? Júlia estava tão surpresa quanto eu. Levantei e saí da sala. Desci as escadas e fui para a cantina. Sentei em um banco, segurando-me para não chorar. Vi o Vítor chegando, com a Júlia. — Manuela, desculpe, eu não sabia. A Júlia acabou de me contar o que está acontecendo na sua casa. Eu estava sem graça por ter saído da sala correndo: — Tudo bem, não foi nada. — Olha, Lela, você não precisa fazer a redação — disse Vítor, sentando-se do meu lado. — E, se quiser, eu dispenso você da aula hoje. Você vai para casa, se acalma um pouco. Quer? Eu não sabia o que responder para o Vítor. Eu não queria escrever sobre transplante de órgãos. Já estava tão difícil pensar sobre aquilo… Mas comecei a pensar na turma, no que eles escreveriam. Será que alguém ali não doaria os seus órgãos? Disse ao Vítor que não se incomodasse e desculpei-me por ter saído da sala daquele jeito. Aceitei a sugestão dele e fui para casa. Aquela já era a última aula, e eu não ia mesmo fazer mais nada de importante. Em casa, vovó e mamãe estavam conversando no quarto dela. Sueli estava na cozinha, esperando o Pedro e eu para almoçar. Comi pouco e fui logo para o meu quarto. Deitei na cama e fiquei ali, sozinha, ouvindo o barulho da casa. Era estranho perceber como tudo continuava igual, apesar de tudo. Dava até para fazer de conta que nada havia acontecido. Minha avó estava só passando um dia conosco, como fazia de vez em quando. Mamãe estava conversando com ela e se arrumando no quarto, para ir para o trabalho. Meu pai ia chegar a qualquer momento, almoçar correndo e voltar para a faculdade. Eu tinha um monte de coisas para estudar, mas faltava vontade. Tomei coragem e peguei um livro que precisava ler logo, para fazer um trabalho em grupo. Acabei pegando no sono. Quando acordei, a casa estava em silêncio. Minha mãe estava dormindo no quarto. Encontrei minha avó na sala, sentada numa cadeira, mexendo em uma caixinha de papelão. — Já acordou? Pensei que ia dormir direto até amanhã de manhã! — O que é que a senhora está fazendo? — Senta aqui do meu lado, minha filha. Puxei uma cadeira e sentei. Vovó estava arrumando um pequeno oratório em cima de uma mesinha pequena, num canto da sala. Ela tinha na caixa um monte de santos, que ia colocando em cima da mesinha. — Quem são esses, vó? — Esse é São Judas Tadeu, essa é Santa Luzia… — E esses dois aqui? — São Cosme e São Damião. Eu soube que eles são os padroeiros dos transplantes. — São? — Eu também não sabia. Eles eram irmãos gêmeos, médicos, que tratavam das pessoas sem cobrar nada. E, pelo que se conta, os dois foram os primeiros a fazer um transplante no mundo. Tiraram a perna de uma pessoa que havia morrido e colocaram ela em outra que estava doente. Existe até um quadro famoso com essa imagem de Cosme e Damião fazendo a cirurgia. — E o transplante deu certo? — Isso eu não sei, minha filha. O que eu sei é que os dois tiveram um fim muito triste. Acabaram mortos e decapitados. E viraram santos, os santos protetores dos médicos. Vovó arrumava os santos um ao lado do outro com cuidado, deixando lugar para uma vela no centro. — Você tá com medo, vó? Minha avó era uma grande otimista: — Não, Lela, claro que não. Daqui a pouco tudo vai se resolver, você vai ver. — Como você pode ter tanta certeza? — Porque eu sei que vai dar tudo certo, minha filha. E você também tem que pensar assim. Lela, você tem rezado? — Eu? — É, minha filha. Não tem, não é? Pois reze, converse com Deus, pense nele, confie. Você vai ver como vai se sentir melhor. É, podia ser. Dei um beijo na minha avó e voltei para o meu quarto. Eu ainda tinha que acabar de ler um livro. 14 O sábado estava ótimo para uma praia. Júlia passou lá em casa. Ela conversava com minha mãe enquanto eu trocava de roupa. Quando cheguei na cozinha, as duas estavam rindo. — Lela, já imaginou se ainda fosse igual ao tempo da sua mãe? Para dar um beijo, tinha que estar namorando!!! — Ah, mas não pensem que era tão ruim, não, meninas. Acho até que era melhor do que agora, tinha mais graça. — Eu duvido. Imagina, Lela, ficar esperando um tempão pra beijar… Minha mãe ria. Ela gostava muito da Júlia e achava que nós parecíamos muito uma com a outra. Tínhamos a mesma altura, o mesmo jeito de vestir e o cabelo parecido. Só que o meu era mais comprido. Júlia nunca conseguia deixar o dela crescer muito. Dizia que não tinha paciência para cuidar de cabelo. Aliás, ela não tinha muita paciência para nada. Mas o que eu mais gostava na Júlia é que ela não tinha frescura, nada era problema para ela. Ao contrário de mim, que complicava um pouco as coisas. — Tia, a Lela já te contou que encontrou com o Daniel outro dia? — Não, não contou. — Pois é, eu estou aqui convencendo a Lela a não começar a se ligar nesse cara de novo. Eu não estou certa, tia? — Certíssima — disse minha mãe para Júlia. Depois, virou-se para mim: — Lela, por que você não me contou isso? Era estranho ver minha mãe tão interessada num assunto como aquele quando tanta coisa mais grave estava acontecendo na vida dela. Não sabia o que responder, mas minha mãe parecia que lia meus pensamentos: — Lela, minha filha, nós já conversamos sobre tudo o que está acontecendo e a gente tem que continuar a viver do mesmo jeito de sempre. E, quando você quiser me contar alguma coisa, conversar, eu estou aqui, como eu sempre estive. Lembra aquilo que nós conversamos sempre? Como é que eu poderia esquecer? Como é que eu poderia esquecer que eu tinha uma mãe que desde cedo conversava comigo abertamente sobre sexo e esperava que ela fosse a primeira a saber quando eu tivesse a minha primeira transa? Às vezes eu queria que a minha mãe nunca conversasse comigo sobre namoro, sexo e essas coisas. Eu entendia as razões dela. Ela não queria que eu repetisse o que ela fez, que acabasse engravidando antes da hora. E, como minha avó nunca havia conversado com ela sobre sexo, ela achava que tinha que conversar comigo. — Tá bom, mãe, mas eu não quis conversar justamente porque eu não quero mais falar sobre o Daniel. Para mim, ele é passado, acabou. — Que bom que você pensa assim, minha filha, fico contente. Júlia puxou-me pelo braço, deu um beijo em minha mãe. Saímos para a praia. No elevador, ela quis saber como minha mãe estava. — Não sei te dizer, Ju. Ela está bem, mas quase não sai mais de casa, fica mais tempo deitada na cama, descansando. Por isso eu não gosto muito de conversar com ela sobre os meus problemas. — Principalmente quando o problema é o Daniel, não é? Júlia sabia que não ter contado para minha mãe sobre o que havia acontecido comigo e com o Daniel era algo que me incomodava muito. — Conta logo para ela, Lela, você vai se sentir muito melhor. — Um dia. Um dia eu conto. Deixa passar toda essa confusão. O elevador chegou. Chico, como de costume, perguntou aonde estávamos indo. — Aonde você acha que nós vamos assim, de biquíni? — perguntou de volta Júlia. — Na praia? — Isso mesmo, Chico, acertou! Parabéns — disse Júlia. — E sua mãe, Lela, como vai? Faz tempo que eu não a vejo por aqui. — Ela tá bem, Chico, tá tudo ótimo, o.k.? Tchau! — Tchau, e boa praia pra vocês! 15 Vítor anunciou na sala a entrega das redações que havíamos feito. — Como é que foram as notas? — perguntou Bruno. — Não foram. Essas redações não valeram nota. Alívio geral. — Puxa, Vítor, você podia ter avisado que não valia nota. Eu caprichei tanto — disse Biel, como se fosse verdade. — Eu não dei nota para a redação porque nem todo mundo fez — disse Vítor, olhando rapidamente para mim. — Mas eu descobri muitas coisas interessantes, lendo o que vocês escreveram. — Descobriu que a gente não sabe escrever? — perguntou Biel. A galera riu. Todo mundo sempre ria das gracinhas dele. Mas Vítor não estava muito para brincadeiras naquele dia: — Também. Mas descobri uma coisa mais grave. Ninguém aqui entende nada sobre doação de órgãos. — E tem que entender por quê? — perguntou Biel. — Ah, Vítor, esse tema de transplante é muito chato! — Ah, você acha? E por acaso você sabe se vai ou não doar os seus órgãos quando morrer? Aliás, algum de vocês já parou pra pensar nesse assunto? Mônica, a melhor aluna da sala, disse que era doadora: — Lá em casa a gente já conversou muito sobre isso. Todo mundo é doador. Vítor perguntou se alguém mais tinha uma posição sobre o assunto. Bruno levantou a mão. — Eu não sei se eu sou. Biel fez a gracinha: — Ou é ou não é, Bruno, decide logo! Vai que acontece alguma coisa, e aí? Só não pode doar o seu cérebro, porque esse não serve pra nada… Todo mundo achou graça, como sempre, mas Vítor tratou de cortar logo a onda do Biel: — Em primeiro lugar, ninguém pode doar o cérebro e, em segundo lugar, esse é um assunto bem sério, sabia? — Deixa ele, professor — disse Bruno. — Ele tem inveja porque eu sou mais inteligente que ele… A turma inteira riu. Bruno não era exatamente burro, mas era daqueles que custavam a entender as coisas. Se fosse uma piada, então, ele era sempre o último a entender. Biel já ia provocar ele novamente, mas Vítor não deixou: — Atenção, gente, vamos fazer o seguinte. Cada um de vocês vai fazer uma pesquisa sobre esse tema e depois nós vamos fazer uma nova redação. — Mas, Vítor, por que falar desse negócio tão chato agora? Aqui ninguém está precisando de um órgão. Pelo menos eu não estou! — disse Biel. A turma riu novamente. Mas Vítor ficou sério, esperando o silêncio. Senti que ele olhava para mim. — Você não está precisando, Biel, e isso é muito bom. Mas será mesmo que a gente precisa viver um problema pra tomar uma posição sobre ele? — Não. Mas se a gente for tomar conhecimento de todos os problemas do mundo, não vai fazer outra coisa, né? Novos risinhos. Vítor estava olhando para mim novamente, senti que ele queria minha autorização para falar. Eu queria muito ver o Biel engolir aquelas gracinhas. Concordei com um movimento de cabeça, dizendo a Vítor que ele podia contar sobre minha mãe. — Pois o problema em questão está mais perto de você do que você imagina, Gabriel. Aqui mesmo na turma existe uma pessoa que está vivendo esse problema em casa. Silêncio. Vítor continuou: — A Manuela tem alguém na família precisando de um transplante de órgão. Todos olharam para mim. — Você quer contar o que está acontecendo, Manuela? Foi difícil falar, mas consegui: — Não tem muito mais o que dizer. Minha mãe tem um problema no coração, e agora a única solução é um transplante. Ela está na fila, esperando por um doador. Ninguém disse mais nada. O sinal da escola tocou, ninguém se mexeu. Até que Vítor disse: — Bem, então está combinado. Vocês vão pesquisar sobre esse tema e na aula que vem teremos uma nova redação. Dessa vez valendo nota. Agora podem ir. 16 Naquele dia não tivemos a última aula. Era a final do campeonato de futsal entre as escolas. Eu quis ir para casa mais cedo, mas Júlia me carregou para a quadra. Ela achava que eu tinha que me divertir, em vez de ir para casa ficar pensando no transplante da minha mãe. Mas a Júlia vendo o Biel jogar não me divertia, só me irritava. Ele jogava de um jeito superviolento, e ela achava que ele estava sempre certo. Até que saiu uma briga. Um jogador do outro time partiu para cima do Biel. Júlia levantou e quis ir até lá. Eu não deixei: — Ficou louca, Júlia? Tem juiz pra que nesse jogo? Os professores entraram na quadra para apartar a briga, mas não foi fácil. Biel e o outro garoto acabaram expulsos e saíram da quadra xingando um ao outro. — É impressionante o que esse cara faz pra aparecer, não é? — Lela, dá um tempo. O Biel tava supercerto! — Tá bom, desculpe. Ele é um herói, tá bom assim? Júlia nem respondeu. Eu achei melhor ir embora. Meu humor não estava mesmo dos melhores. Quando cheguei perto do meu prédio, vi o carro do meu pai estacionado. Fazia algum tempo que ele não aparecia lá em casa. Apenas ligava todos os dias, para falar comigo e com o Pedro. Quando entrei, ele estava na cozinha conversando com a Sueli. — Não, seu Artur, já está tudo combinado com dona Helena. Eu venho trabalhar todos os dias até a Ana ficar boa. — Sueli, Ana tem que tomar muitos remédios, tem que fazer dieta especial, nós não temos como… Sueli interrompeu meu pai, colocando um ponto final na história: — Seu Artur, eu não vou mais discutir isso com o senhor. Eu venho trabalhar todos os dias e pronto. Além do mais, as coisas estão melhorando pra mim, eu não estou precisando ganhar mais dinheiro agora. — Que bom, Sueli! — Pois então, seu Artur! O Lázaro está comprando um carrinho, vai poder pegar muito mais trabalho. O senhor lembra quanta madame que chamava ele pra consertar máquina de lavar e ele não ia porque era muito longe? — Lembro, claro! — Pois é. Agora ele vai poder consertar máquina de lavar em qualquer bairro da cidade! — E desde quando o Lázaro sabe consertar máquina de lavar? Papai adorava implicar com a Sueli, falando que o marido dela era péssimo mecânico. Desde a primeira vez que ele foi na nossa casa, papai achou que ele não entendia nada de máquina de lavar. Tinha até certa razão. Todo mês a máquina quebrava. De tanto ir lá em casa, acabou namorando a Sueli e casando com ela. — Seu Artur, que culpa tem o Lázaro se aquela máquina tinha mais de 20 anos? O senhor que comprasse uma máquina nova! — E não foi o que eu fiz? Mas, se ele era tão bom mecânico mesmo, então só tem uma explicação: você quebrava a máquina pra ele voltar toda hora aqui em casa. — Já vai o senhor começar a implicar comigo de novo… Era bom ouvir aquela conversa, eu sempre ria muito com os dois. Mas papai logo voltou a falar sério: — Sueli, você agora tem suas coisas, sua casa pra cuidar. A gente não tem como aumentar seu salário e… Mas Sueli estava mesmo decidida: — De jeito nenhum, seu Artur. De jeito nenhum. E me faz o favor de não falar mais em dinheiro comigo. E dá licença, que eu tenho que arrumar o almoço para as crianças… Meu pai viu que seria difícil convencer Sueli. Perguntei se ele ficaria para almoçar conosco. — Eu hoje não posso, minha filha, passei aqui só para conversar com a Sueli. — Você não vai ver a mamãe? Ela está lá no quarto. — Não, eu estou com um pouco de pressa. Ela está bem, não está? — Está. — Então eu já vou. Diz para o seu irmão que eu não pude esperar. Depois eu combino um dia para a gente sair, tá bom? Papai foi embora. — Esquisito, não? — O quê, Sueli? — Seu pai vem aqui e nem vai lá falar com sua mãe… — Deixa ele, Sueli, deixa ele. Acho que pela primeira vez ele está agindo certo com ela. 17 O transplante de minha mãe virou assunto entre os professores da minha turma. Tudo era motivo para falar dele, em qualquer aula. Grupos sanguíneos? Era um critério fundamental nos transplantes, pois o doador e o receptor precisavam ter o mesmo tipo de sangue. Porcentagem? Lá vinha alguma coisa sobre doação de órgãos. Se num país desenvolvido se conseguia obter por ano até 40 doadores por milhão de habitantes, e no Brasil a taxa era de apenas 3,7 doadores por milhão de habitantes, qual era a porcentagem de aproveitamento de órgãos em cada país? De certa forma eu gostava daquilo tudo. Era sinal de que as pessoas estavam se importando, uma forma de solidariedade. Mas nem sempre eu pensava assim. Principalmente porque, de tudo o que se falava, a conclusão era uma só: era muito difícil esperar por um transplante no Brasil, os problemas eram muitos. Mas aconteceu algo muito bom um dia. No intervalo da aula, a Marta, uma menina da minha sala, veio falar comigo. Ela era superinteligente, tinha sempre as melhores notas, mas não falava com quase ninguém, só com outras duas meninas tão fechadas quanto ela. Era uma turminha que, se faltasse uma semana à aula, ninguém percebia. Era a primeira vez que a gente conversava. Fomos sentar num canto da sala, e Marta começou a me contar uma história que aconteceu de verdade, na sua família. A história era assim: um primo do pai dela, que morava no Paraná, tinha um filho com um problema no coração. Durante muito tempo o menino cuidou do problema, até que os médicos não puderam fazer mais nada. Só um transplante poderia salvar a sua vida. Foi tudo muito triste, até porque o menino acabou morrendo, com 14 anos. Ele não conseguiu um coração novo a tempo. Mas, antes de ele entrar na fila de transplantes, enquanto estava doente, aconteceu uma coisa incrível. Uma prima dele, do outro lado da família, que morava no Nordeste, sofreu um acidente de carro e morreu. Com 15 anos. Os pais dessa prima fizeram de tudo para doar os órgãos da filha. Mas não conseguiram. No hospital onde ela havia morrido, ninguém sabia o que tinha que fazer para doar um órgão. A história não podia ser mais triste. Mas não havia acabado. O primo do pai da Marta havia se tornado quase um especialista em transplantes do coração, porque, para tentar salvar o filho, começou a estudar o assunto a fundo. E depois que tudo acabou, ele resolveu usar o que tinha aprendido para conscientizar as pessoas sobre a importância de doar órgãos e fundou uma ONG para isso. Marta deu-me o nome da ONG: Adote. Disse que a história estava no site da organização. Fiquei de olhar na internet quando chegasse em casa. Acabei enviando naquele dia mesmo um e-mail para o primo do pai da Marta, dizendo que eu havia acabado de conhecer a história dele. Contei o que estava acontecendo com a minha mãe. Logo recebi uma resposta, muito bacana, que me deixou mais animada. Ainda bem que existiam pessoas assim no mundo, sempre dispostas a ajudar os outros, apesar de passarem por tantas coisas difíceis. Logo depois, contei para a Marta que eu havia me correspondido com o primo do pai dela e conversamos mais um tempão no intervalo da aula. Eu mudei a ideia que tinha sobre a Marta e sobre as duas amigas esquisitas dela, que a galera chamava de “três mosqueteiras”. Sabe aquelas pessoas que a gente nem tenta se aproximar porque acha que elas não têm nada a ver? Pois é, às vezes elas têm tudo a ver. 18 Eu chegava em casa querendo conversar sobre as coisas que ficava sabendo a respeito de transplantes na escola. Às vezes, parecia que aquilo era a única coisa que eu podia fazer. A última que a Marta havia me contado era genial: havia olimpíadas para transplantados! E o Brasil já havia conseguido ganhar várias medalhas nessas olimpíadas! Eu sabia que minha mãe não gostava muito de conversar sobre o transplante. Mas a Sueli adorava todas as novidades que eu contava. Por isso, era com ela e com a minha avó que eu acabava conversando mais, na cozinha. — Mas, como é que levam um órgão de um lugar para o outro, Lela? Como é que pode pegar um coração e levar assim, de qualquer jeito? — Não é assim de qualquer jeito, Sueli. Existe uma caixa térmica especial que conserva o órgão em temperatura baixa. É assim que ele sai do doador e chega até a pessoa que vai ser transplantada. — Mas eu só não entendo uma coisa… — Que coisa, Sueli? — Como é que pode ser tão difícil conseguir um órgão se morre tanta gente por dia? Hoje mesmo deu no rádio que morreram cinco na guerra do tráfico essa madrugada. Como é que pode? — Mas não basta morrer, Sueli, a família de quem morre tem que autorizar a retirada dos órgãos. — Mas será que isso é tão complicado assim, meu Deus? — É, Sueli, é muito complicado, porque ninguém conversa sobre isso, ninguém diz para a família se quer ou não que seus órgãos sejam doados. Você, por exemplo, sabe se o Lázaro quer doar os órgãos dele? — Ah, eu acho que todo mundo doa… — Mas achar não vale, Sueli, tem que saber. Pedro abriu a porta da cozinha. Ele estava uma fera: — Eu juro que nunca vi na minha vida um cara tão fofoqueiro como esse porteiro. — O que é que o Chico aprontou dessa vez? — perguntou Sueli. — Esse cara quer saber tudo da vida de todo mundo! Imagina que ele hoje veio me perguntar por que papai não dormia mais aqui em casa… Sueli ficou indignada: — Não acredito! Mas esse Chico não toma jeito mesmo. Eu, se morasse aqui nesse prédio, pedia para o síndico mandar ele embora. — Você esqueceu que papai é o síndico daqui, Sueli? — eu disse. — É mesmo. Então esquece. Não dá para imaginar seu pai mandando ninguém embora. Mas esse Chico é demais mesmo… Acredita que outro dia ele me perguntou, assim muito com jeito, por que sua mãe tava tão sumida? — E você respondeu o quê? — quis saber meu irmão. — Eu disse qualquer coisa… que ela tava viajando… E que ele não tinha nada a ver com a vida de ninguém, sei lá… um desaforo desses. — Deixa esse cara comigo… Quando Pedro falava daquele jeito, era porque estava pensando em aprontar alguma. Não gostei. O Chico, mesmo sendo fofoqueiro, era gente boa. — O que é que você tá pensando, Pedro? — Nada, não, Lela. Depois eu te conto. 19 Papai tocou a campainha. Era um sábado de tardinha. Ele havia combinado dar uma volta comigo e com o Pedro, fazer um lanche na rua. Foi minha mãe quem atendeu a porta. Vovó fez sinal para que Pedro e eu fôssemos com ela para o quarto, para que eles ficassem sozinhos. Mas minha mãe pediu que ficássemos. Disse que não tinha nada para falar em particular com meu pai. Mamãe era mesmo inacreditável. Com certeza, ela estava zangada porque meu pai não estava indo lá em casa nem telefonando toda hora. Ou seja, estava fazendo exatamente o que ela havia pedido a ele que fizesse. — Você já pediu para prolongarem a sua licença no trabalho, Ana? — Ainda não é preciso, Artur. E pode deixar que eu mesma resolvo isso. Papai ficou chateado: — O.k., como você quiser. Eu vou indo. Crianças, vocês vêm comigo? Papai abriu a porta de casa para sair, mas mamãe não deixou: — Artur, desculpa, eu não quis ser grosseira com você. Por que você não lancha aqui com as crianças? Pronto. Ela havia segurado no braço dele. Papai desmontou completamente. Ficou todo animado: — Bem, então eu vou preparar uma pizza, tudo bem? Minha mãe respondeu com um sorriso e meu pai foi para a cozinha. Vovó tinha toda razão, meu pai não aprendia nunca a lidar com minha mãe. — Ana, a geladeira tá vazia. Você não quer que eu faça umas compras? — Artur, por favor, se a geladeira está cheia ou vazia, isso não é mais um problema seu. Eu resolvo, tá bom? Minha mãe ainda não estava satisfeita. E começou a virar o jogo de novo, com certeza para castigar meu pai pela indiferença dele, que já havia ido pelos ares: — Mas você tem que se poupar, Ana! Eu posso muito bem continuar a fazer o supermercado aqui de casa… Se você quiser, eu venho aqui todo dia e tomo conta dessas coisas pra você, não me custa nada fazer isso. — Mas eu não estou inválida, nem morri. Eu não vou parar a minha vida por causa dessa porcaria de transplante, entendeu? Meu pai olhou para minha mãe por um tempo, até que sentou no sofá. E ficou ali, com a cabeça abaixada entre as mãos. Tive pena do meu pai. Ele não merecia aquilo. Minha mãe com certeza devia estar satisfeita de ainda ter o poder de mexer tanto com o meu pai. Mas quando olhei para ela, não havia satisfação alguma em seu rosto. Ela estava sofrendo também. Achei até que ia correr pro meu pai, pedir desculpas, beijar ele. Mas ela não fez tanto. — Tá bom, Artur, vai fazer as compras. Se isso vai deixar você mais tranquilo, pode ir. Meu pai levantou-se, sem olhar para ela. Chamou Pedro e os dois saíram. Voltaram logo depois, cheios de sacolas. Lanchamos juntos, sem muito o que dizer. Papai foi embora logo depois. Conversei até tarde com minha avó aquela noite. Ela me contou coisas que eu não sabia sobre minha mãe. — Sua mãe foi estudar inglês porque o maior sonho dela era conhecer o mundo, trabalhar em alguma coisa em que ela pudesse estar sempre viajando. — E por que ela não fez isso? — Porque as coisas aconteceram de outra maneira. — Ela engravidou de mim, não foi? — Foi. E aí ela resolveu criar você primeiro e depois realizar o sonho dela. — Mas aí veio o Pedro. — Sim, mas não pense que sua mãe ficou infeliz por causa disso. — Eu sei, vó. Mas eu queria muito que ela realizasse os sonhos dela, sabia? — Mas os sonhos da gente também mudam. Imagine se não mudassem… — E agora chega esse transplante, para complicar ainda mais tudo. E ela ainda resolve se separar do papai… — Não se preocupe, Lela, daqui a pouco os dois se ajeitam de novo. Eles se amam. Agora, vamos dormir. Boa noite, minha filha. — Boa noite, vó. 20 Sueli chamou-me da cozinha. Ela havia feito um prato de brigadeiro para mim e para o Pedro. Uma vez por semana ela fazia isso, porque sabia que a gente adorava. — Vem correndo, que o Pedro já está comendo tudo! Quando sentei à mesa, alguém bateu na porta da cozinha. Era Chico, com um envelope na mão. — Carta para vocês! — Obrigada. Quanta delicadeza… — disse Sueli. — É que eu vim ver um probleminha aqui no botão do elevador e aproveitei para entregar essa correspondência. Me dá um copo d’água? Sueli abriu caminho para Chico entrar na cozinha e fechou a porta. Encheu um copo de água para ele. — E então, como é que vão as coisas por aqui? — perguntou Chico. — Vão bem… Por quê? — perguntei. — Por nada, por nada — respondeu Chico, espichando o olhar para a sala. Pedro estava estranhamente quieto. — E a avó de vocês, mudou mesmo para cá? Sueli virou-se para a pia, resmungando sobre a bisbilhotice de Chico: — E depois dizem que mulher é que gosta de fofoca… Pedro olhou para mim e piscou um olho. Depois, chamou o Chico para se sentar ao lado dele na mesa. E falou bem baixinho: — Chico, você já sabe, não é? — Se eu sei? O quê? — Então você ainda não sabe? — Mas do que é que você está falando, Pedrão? — Bem, eu vou te contar. Mas você promete que não conta pra ninguém? — Claro! Confia em mim, cara! — Então tá. Eu vou te contar. É que minha avó ganhou na Mega Sena. — O quê? Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Deu-me uma vontade de rir, mas Pedro fez-me sinal para ficar quieta. — Xiiiii… fala baixo, Chico! — disse Pedro. — Ninguém aqui do prédio pode saber. — Mas ela ganhou sozinha? — Quase… — Então é por isso que ela veio morar aqui? Ela tá com medo de ser sequestrada. É isso? — Isso, Chico! Entendeu agora? — Entendi. E é por isso que sua mãe foi para a Europa? — Europa? — perguntei. Pedro virou-se para mim: — Eu contei para o Chico que mamãe foi dar um passeio na Europa, fazer umas compras, por isso ela anda sumida. Chico estava ansioso: — Mas… quanto foi que a sua vó ganhou, Pedrão? — Isso é assunto confidencial, Chico, a gente não pode falar nada. Só estou contando para você porque eu sei que é uma pessoa de confiança! Pedro se levantou e foi empurrando Chico para a porta. — Bem, então agora você já sabe de tudo. Vai lá pra baixo e olha a sua responsabilidade, hein? Muita atenção na portaria. Qualquer coisa suspeita, você corre e vem me avisar. Chico saiu meio à força. Ainda queria perguntar um monte de coisas, com certeza. Pedro fechou a porta e disse: — Gente, nós agora vamos ter o melhor porteiro do mundo! 21 Minha mãe praticamente não saía mais de casa. Acordava cedo e ia para o quarto do Pedro, escrever seu livro de histórias no computador. Parava na hora do almoço, comia um pouco e depois ia descansar. Acabava sempre pegando no sono, mas não dormia muito tempo. Lia um pouco, às vezes chegava uma visita. De noite, assistia à televisão na sala, mas não era todo dia. Ela estava mais magra, abatida. Mas se esforçava para parecer bem. No início, mamãe aproveitou o tempo livre em casa para arrumar as gavetas do meu quarto, do quarto do Pedro, da sala, da casa toda. Eu nunca consegui entender o porquê, mas minha mãe adorava arrumar gavetas. Quando não tinha o que fazer em casa, começava a abrir os armários, para ver se encontrava alguma gaveta bagunçada. Quando não tinha mais gaveta para arrumar, decidia atacar as estantes da sala. Essa era a única hora em que eu via meu pai se enfezar. Ele reclamava que, depois que ela arrumava a estante, não conseguia encontrar mais livro algum. Com o tempo, mamãe foi ficando menos agitada, se cansava fácil. As coisas da casa estavam por conta da minha avó. Ela acordava cedo e ajudava Sueli a fazer a comida, arrumar os quartos, molhar as plantas. E sempre perguntava para mim e para o Pedro como iam os estudos. Bastava nos ver chegando e dizia: “E então, crianças, tudo bem na escola?”. Uma noite ficamos, Pedro, minha avó e eu no quarto com minha mãe. Quando já íamos dormir, a campainha tocou. — Quem será a essa hora? — disse minha avó. — Eu vou lá ver. Fui abrir a porta da sala. Era meu pai. Minha avó chegou logo atrás: — Perdeu sua chave, Artur? — Eu não tenho mais a chave desta casa, dona Helena. Minha avó fez um gesto de impaciência e saiu da sala. Ela não se conformava com aquela situação. — Pai, e a operação? Já tem alguma previsão? — Não, meu amor, nada ainda. E sua mãe? — Está no quarto. Você vai lá falar com ela? — Não, não vou não. Eu só passei para combinar de comprar os tênis que vocês estão precisando. Fala com seu irmão que eu passo aqui amanhã depois da aula. Você pode? Aquela história estava difícil de engolir. Para combinar de sair com a gente, meu pai poderia ter telefonado. Mas fingi não ter percebido que ele estava querendo ver minha mãe e por isso havia arriscado aquela ida lá em casa. — Então tá bom, pai. A gente espera você amanhã. No dia seguinte, na hora combinada, meu pai passou em casa e saímos para comprar os tênis. Depois, ele nos deixou em casa. Não precisava, porque nós já estávamos bem grandinhos para andar sozinhos na rua. Mas papai disse que queria subir para ver as notas do boletim do Pedro, que não estavam muito boas. Aquela parecia mais uma desculpa para ver mamãe. Ou, então, ele podia estar preocupado de verdade, achando que as notas ruins do Pedro tinham a ver com tudo o que estava acontecendo lá em casa. Se fosse isso, com certeza ia chamar a gente para uma daquelas longas conversas sobre a vida, o futuro e tudo mais. Apertamos o botão do elevador. Chico, como sempre, espichou o ouvido. Meu pai estava falando sério com o Pedro: — Meu filho, isso que está acontecendo não tem que mudar em nada a nossa vida. Tudo tem que continuar como antes. Chico se levantou e veio em nossa direção. Tremi. Ele olhou para os lados e falou bem baixinho para o meu pai: — Eu concordo com o senhor, seu Artur. O melhor a fazer é continuar vivendo como se nada tivesse acontecido, para não levantar suspeitas. O que não falta é malandro por aí. — O quê? — perguntou meu pai. Olhei para o Pedro. Chico com certeza estava falando do dinheiro da vovó, do prêmio da Mega Sena. O elevador chegou e empurramos meu pai para dentro. A porta fechou, mas Chico continuou falando com o meu pai: — O senhor pode contar comigo, seu Artur. Se depender de mim, ninguém vai saber de nada. E fique tranquilo que eu estou sempre ligado aqui na portaria!!!! Papai não entendeu nada: — Esse Chico tá ficando completamente louco. Vocês dois entenderam alguma coisa? O que é que ninguém vai saber? Pensei rápido: — Ah, vai ver que ele estava falando de mamãe. Ele deve achar que alguém vai querer namorar com ela quando souber que vocês se separaram de novo… Pedro olhou para mim e piscou o olho. Em casa, ele e papai foram ver o boletim. Mamãe estava dormindo. Ele foi embora sem encontrar com ela. 22 Finalmente conheci o doutor Eduardo, o novo médico de mamãe. Quando abri a porta de casa, ele estava se despedindo de minha avó. Devia ter a idade dela, mais ou menos. Muito simpático. Quanta coisa eu queria perguntar pra ele… Não podia perder aquela oportunidade. — O senhor já está indo? Posso ir com o senhor até lá embaixo? Ele disse que sim. Entramos no elevador. — Você é a Manuela, não é? — É, sou eu. O elevador chegou ao térreo. Doutor Eduardo abriu a porta para mim e depois se sentou no sofá da entrada do prédio. Sentei ao seu lado. Chico estava na calçada molhando as plantas, para minha sorte. Se estivesse na portaria, com certeza ia querer ouvir a conversa. — O que é que você quer saber? Quis perguntar se mamãe receberia logo um coração novo, quantas pessoas havia na fila antes dela, quanto tempo ela podia esperar, quantos transplantes de coração ele fazia por semana… Eram muitas perguntas e eu não sabia por onde começar. — Você quer saber quando sua mãe vai ser operada, não é? Respondi que sim. Ele me fez então outra pergunta: — Você sabia que na Central de Transplantes aqui da cidade há funcionários que passam o dia ligando para os hospitais? Eu não sabia. — Sabe para quê? Para encontrar doadores de órgãos nas UTIs e emergências dos hospitais. — Telefonam pra isso? — Telefonam. Não é nada fácil encontrar doadores de órgãos, sabia? Mostrei ao doutor Eduardo que eu já conhecia algumas daquelas questões. Mas gente procurando órgãos pelo telefone? Nunca poderia imaginar que aquele trabalho existia. Ficar ligando para os hospitais, procurando gente que está morta ou quase morrendo… Doutor Eduardo me contou que o Brasil, apesar de ter uma lei muito moderna sobre os transplantes, ainda tinha muito que avançar na questão. Em alguns países, ninguém precisava esperar muito para fazer a cirurgia. Na Espanha, por exemplo, um programa de formação de coordenadores de transplantes para trabalhar dentro dos hospitais fez com que aumentasse muito o número de transplantes. Conversamos mais um pouco, mas fiquei sem saber quando seria o transplante de mamãe. Entendi que, aquela resposta, nem o doutor Eduardo podia me dar. Minha mãe precisou ir para o hospital naquela madrugada. Ela não andava bem e por isso o médico havia estado lá em casa. Ele fez algumas recomendações, receitou um remédio, mas não adiantou. Bem de manhãzinha, mamãe acordou dizendo que não estava se sentindo muito bem. Minha avó pediu que eu ligasse para o meu pai, sem que minha mãe visse. Ele chegou rápido e os três foram para o hospital. Ainda era muito cedo para começar a me arrumar para a escola e o sono havia ido embora. Cansei de rolar na cama e fui para a sala. Tinha medo que minha mãe não voltasse para casa daquela vez. Sentei e fiquei olhando para o pequeno oratório em cima da mesinha. Acabei dormindo no sofá e acordei com o barulho do telefone. Era o meu pai. Mamãe estava bem, mas ficaria um pouco mais no hospital. Já passava muito das sete horas, não dava mais para pegar a primeira aula. Mas meu pai me fez prometer que iríamos para a segunda aula. — Lela, não tem motivo algum para você não ir para a escola agora. Sua mãe está bem, o doutor Eduardo disse que o que ela teve foi uma reação ao remédio que ele recomendou ontem, mas agora ele já deu outro. A gente está só esperando ela acordar para ir pra casa. — Ela está bem mesmo? Jura, pai? — Está ótima, confia em mim. Acordei o Pedro e fomos para o colégio, pegar a segunda aula. 23 O sinal já havia tocado avisando o fim do intervalo, mas o professor não aparecia na sala. Começamos a conversar, para passar o tempo. Júlia estava do meu lado quando Biel passou por nós. — E aí, Biel, tudo bom? Ele respondeu com um simples aceno de cabeça. Júlia suspirou, como sempre. — Nossa, esse cara é tudo de bom. Preferi não comentar. Vítor surgiu na sala e todos foram se ajeitando em seus lugares. Antes de começar a aula, ele se aproximou de mim e perguntou como ia minha mãe. Eu disse que estava tudo na mesma, sem novidades. Vítor sempre pedia notícias. Naquele dia, mais uma vez, começamos a falar sobre transplantes. Um cara de uma banda de rock havia morrido num acidente em São Paulo e seus órgãos haviam sido doados. Eu não sabia de nada, mas Vítor contou como tudo aconteceu. E depois comentou como era importante a cobertura da mídia. Quando uma pessoa famosa morria e doava seus órgãos, o número de doações sempre aumentava. Marcinha lembrou que não havia campanhas na televisão sobre doação de órgãos: — Se tivesse, professor, as pessoas com certeza iriam doar mais órgãos e haveria mais transplantes. — Mas há campanhas de vez em quando — disse Vítor. — Mas devia haver sempre, não é, professor? Vítor teve uma ideia: — É isso, pessoal. Hoje nós vamos criar uma frase para uma campanha de doação de órgãos. O que vocês acham? Todo mundo gostou da ideia. Aliás, todo mundo gostava de qualquer coisa que fosse um pouco diferente de uma aula. E o Vítor também gostava muito de inventar novidades, para motivar a turma, como ele dizia. Formamos grupos de dois, de três e até de seis alunos. Vítor era assim, deixava tudo por conta da gente. Júlia conseguiu que o queridinho dela ficasse no nosso grupo. Éramos a Dani, a Marcinha, o Bruno, o Biel, ela e eu. Tudo bem, até que ele tinha boas ideias, isso não dava pra negar. Olhei para o fundo da sala. Lá estavam as “três mosqueteiras” arrastando as carteiras para formar um grupo. Era incrível como aquelas meninas não conseguiam se entrosar com o resto da turma… Mas também, pensei, todo mundo sempre as deixava de lado. E, quando podiam, até tiravam onda com elas porque só queriam saber de estudar. Resolvi chamar as três para o nosso grupo. Elas olharam uma para a outra e resolveram aceitar. Arrastaram suas carteiras até nós. Chegaram caladas, mas em pouco tempo foram perdendo a timidez e dando ideias. Tudo funcionou muito bem. Às vezes, um de nós começava uma frase e o outro terminava. No final, tínhamos várias: “Dê uma chance à vida. Doe seus órgãos.” “Doação de órgãos. Um sentido para a morte.” Gostei mais da frase da Ana Paula, amiga da Marta: “Viva após a morte. Doe seus órgãos”. Para mim, aquela era a melhor. — Vítor, como é que a gente faz quando tem mais de uma frase boa no grupo? — perguntou Júlia. — Vamos fazer o seguinte, para facilitar: cada grupo terá que apresentar uma frase apenas. Depois, nós todos vamos escolher a melhor, por votação. Alguém reclamou, com razão: — Mas Vítor, aí a frase do grupo maior vai ganhar! — Vamos ver. Eu acho que todo mundo aqui vai saber reconhecer a melhor frase, mesmo que ela seja de outro grupo. E esse trabalho não vale nota. Escolham as frases de vocês e depois a gente vota, o.k.? 24 “Transforme sua vida, transforme sua morte. Doe órgãos.” Li a frase para vovó. Ela gostou: — Bacana, Lela. Quem fez? — Foi um menino lá da minha sala, o Alexandre. A gente fez um trabalho em grupo para criar frases para uma campanha de doação de órgãos. A dele ganhou. Muito legal, né? Vovó disse que aquilo era muito legal mesmo. Nós estávamos jantando na cozinha. Alguém tocou a campainha, Pedro foi atender. Era papai. Minha avó havia pedido para ele pegar uns exames no laboratório. Repeti a frase do Alexandre para ele e contei o que havíamos feito na aula. Peguei meu caderno da mochila e li para ele as outras frases que fizemos na aula. Sueli, que estava preparando uma sopa para a janta, achou que as frases eram muito curtas: — Não tem que dizer também que tem um monte de gente na fila esperando um órgão, pra todo mundo ficar sabendo? Você não disse que quase ninguém sabe disso, Lela? — Sueli, a frase tem que ser curta, de impacto, muito concreta — disse meu pai. — Pra todo mundo guardar na cabeça e pensar sobre ela, entende? Resolvi interromper a “aula” que papai já estava começando a dar para Sueli: — Pai, o meu grupo fez uma frase que eu achei até mais legal. Olha só: “Viva após a morte. Doe seus órgãos.” Não é legal? Mas o pessoal achou que a frase do Alexandre era a melhor. — As duas são muito boas, Lela. Mas que aula interessante essa, hein? Senti papai tão empolgado que aproveitei para saber como iam as coisas: — E mamãe, pai, está tudo bem mesmo, não está? Você tem conversado com o doutor Eduardo? Ele já tem ideia do dia da operação? Papai fez o que fazia sempre que o Pedro ou eu começávamos a perguntar sobre o transplante. Disse o seu “depois a gente conversa”. Entregou os exames para minha avó e saiu. Ainda tinha que ir à faculdade dar aula. Não deixei que ele fosse embora. Até na escola todo dia se falava no transplante de mamãe. Mas, lá em casa, nem uma palavra. Nós nunca sabíamos de nada. Chamei o Pedro e levei papai para o meu quarto. — Pai, a gente queria conversar com você. — Sobre o quê, minha filha? — Sobre o que você acha que pode ser, pai? Aquilo já estava me irritando. Por acaso não estava acontecendo nada de anormal lá em casa? — Pai, o Pedro e eu queríamos que você contasse pra gente o que está acontecendo de verdade, como está a situação de mamãe. Papai não estava muito disposto a falar. Pedro insistiu: — Pai, quando vai ser o transplante? — Não sei, filho. Pode demorar ou não, depende de tanta coisa… — Mas depende do quê? Não tem uma fila? — Qual o número da mamãe agora, pai? — perguntei. — Ela agora já está mais na frente da fila. Senti um alívio. Muita gente já havia sido operada então! Achei que aquele pesadelo estava perto de acabar, até que Pedro perguntou: — Mas

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