Etapas e estratégias de intervenção comunitária na psicologia (PDF)

Summary

This document discusses stages and strategies for community intervention in psychology, focusing on facilitation techniques and the role of popular groups. It explores the transformation and integration of individuals and communities, highlighting different stages of the process, from oppression to autonomy. The text analyzes the dynamics of popular groups, addressing issues like leadership, communication, and social change.

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55 Capítulo 6 TÉCNICAS DE FACILITAÇÃO ! O d SER HUMANO é um ser de relação, de interação, necessita o...

55 Capítulo 6 TÉCNICAS DE FACILITAÇÃO ! O d SER HUMANO é um ser de relação, de interação, necessita o outros para sobreviver e desenvolver-se. Daí a importância s do grupo social, um espaço da sociedade capaz de gerar encon- tro e renovação do indivíduo, do próprio grupo e da coletividade maior. É um lugar onde é possível aprender a tecer relações es- táveis e nutritivas, interagindo, confiando, apoiando, comparti- lhando, confrontando, amando e buscando realizar metas de vida pessoal e coletiva. O grupo é, também, uma matriz da espécie e da vida revestida de uma forma cultural; lugar onde se entrela- çam o micro e o macrossocial. Um espaço da individualidade e, ao mesmo tempo, da coletividade. Do ponto de vista de uma sociedade de classes, temos de con- vir que o grupo expressa a organização socioideológica da socie- dade em que se encontra e, se esta for marcada por relações de dominação, possivelmente haverá a tendência do grupo em re- produzir essas relações autoritárias e individualistas. Essa é uma questão que deve ser considerada na facilitação dos grupos po- pulares. Os grupos sociais a que pertencemos são estruturas de relação que, a partir da prática, elaboram em nós tendênci- 183 16 cezar wagner cap. 6.p65 183 25/8/2008, 17:29 56 184 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O as afetivas, estéticas, conceituais e de ação, as quais nos le- vam a dar uma resposta coerente aos problemas que se nos apresentam em relação a outros homens e à Natureza. É o sujeito coletivo, o grupo social, quem elabora essas tendên- cias... Essas tendências têm dois caminhos possíveis: um para a reestruturação da sociedade, para sua renovação, e o outro, pelo contrário, para a consolidação das formas sociais dominantes, para sua conservação (Quiroga, 1982, p. 12). Encontramos grupos os mais variados, desde grupos de na- tureza institucional, como a família, até os que se formam de maneira casual e por pouco tempo, como um grupo de turistas. Temos grupos populares, profissionais, políticos, sindicais, espor- tivos, artísticos, sexuais, de usuários da saúde, de lazer, de de- pendentes de drogas, de prostitutas, de traficantes, de estudo, de assaltantes e outros. Temos grandes e pequenos grupos, per- manentes e temporários, primários e secundários, mas, de qual- quer forma, todos eles constituem-se como proteção, orienta- ção e aprendizado dos indivíduos em meio à coletividade, seja para destruir ou transformá-los para melhor. Dentre os diversos tipos de grupo, o grupo popular é básico nos trabalhos de desenvolvimento social e de Saúde Comunitá- ria, em virtude de sua capacidade de transformar e integrar o indivíduo e a comunidade. Como qualquer outro tipo de grupo, contém interações face a face, diretas, e pode propiciar o apare- cimento de um clima sociopsicológico favorável à construção do conhecimento crítico, ao desenvolvimento humano, à mudança social e ao cuidado ambiental. O grupo popular, considerado em Psicologia Comunitária e Saúde Comunitária, é um grupo de moradores de uma comuni- dade, lugar de interação e expressão de significados e sentimen- tos coletivos e individuais, de identificação e do conhecer e re- fletir sobre o modo de vida pessoal e do lugar. Nele se criam e se recriam condutas sociais e ambientais positivas, práticas de vida, libertação e cidadania. Enfim, o grupo popular pode ser um es- paço social de construção de novos sentidos de vida e de realiza- ção comunitária. 16 cezar wagner cap. 6.p65 184 25/8/2008, 17:29 57 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 185 A proposta de atuar com grupos populares, no próprio local de moradia dos participantes, prende-se ao fato de ser o meio comunitário a raiz que nutre a vida dos moradores e dos seus grupos, os quais se movem em um processo de interação, identi- ficação e pertença, características de uma identidade social de lugar. Vemos na vida dos grupos de moradores um processo de grande importância com o propósito de contribuir para o opri- mido romper com sua trajetória de vida sofrida e explorada, in- dividualizada, cuja desembocadura é o fatalismo, fome, infec- ção, prisão, loucura ou morte por assassinato. No grupo popular são facilitados processos sociais e huma- nos próprios do grupo e de cada participante, decorrentes da his- tória e do modo de vida do lugar e do morador, implicando isso a dinâmica interna do grupo, o processo existencial de cada par- ticipante e a relação do grupo e de cada participante com o modo de vida da comunidade. O processo interno do grupo diz respeito aos componentes de organização e desenvolvimento dos participantes e do pró- prio grupo. Implica a sustentação e apoio socioemocional, a su- peração de crise e outros problemas existenciais, o fortalecimento de interações psicológicas nutritivas, a comunicação aberta, o compromisso e a responsabilidade com as decisões e ações do grupo, a participação efetiva e a formação de uma individualida- de saudável e crítica. Por outro lado, a relação do grupo com a comunidade diz respeito às relações intergrupais de busca de resolução dos problemas coletivos e potenciação do lugar, signi- fica a cooperação entre os grupos de moradores para o desen- volvimento da vida comunitária. Existem diversos tipos de grupos populares e todos eles são importantes no desenvolvimento dos moradores. Estes procu- ram os grupos que estejam de acordo com seus interesses e ne- cessidades, como: teatro, música, oração, esporte, festa, política, mutirão, produção, etc. Esses grupos têm importante papel na construção da saúde da comunidade e representam espaços po- tenciais de crescimento pessoal, familiar e comunitário. Além desses grupos populares outros podem ser formados, como os grupos de usuários dos serviços locais de saúde e assistência so- 16 cezar wagner cap. 6.p65 185 25/8/2008, 17:29 58 186 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O cial. Não pretendemos aqui descartar, em Saúde Comunitária, o atendimento ambulatorial individual, pois reconhecemos seu papel no processo de recuperação da saúde do morador. Entre- tanto, damos prioridade à interação social, ao processo grupal como condição básica para a construção da saúde da comuni- dade e de cada morador. Segundo Góis (2005), o grupo popular pode apresentar em sua dinâmica certas fases que devem ser compreendidas e con- sideradas na facilitação do seu processo de desenvolvimento. Vejamos cada uma delas: 1. Contexto de opressão e exploração, indivíduos individuali- zados e dependentes * Relação de dependência entre profissional e morador, cada um espera que o outro atue em seu benefício * Presença de lideranças assistencialistas/paternalistas * Maior freqüência de consciência semi-intransitiva ou má- gica * Fase grupal ausente ou de agregação * Expressão de necessidades pessoais de forma individuali- zada e confusa 2. Problematização do modo de vida da comunidade * Aumento da interação profissional-morador, possibilitan- do o início de diálogo entre eles * Presença de lideranças comunitárias consultivas * Maior freqüência de consciência mágica e transitiva ingê- nua * Fase grupal radial, centrada no profissional e na liderança * Expressão de necessidades individuais claras e de necessi- dades coletivas de satisfação imediata. 3. Surgimento da ação reivindicatória/o protesto/a participa- ção popular * Diálogo-problematizador mais presente * Maior expressão e busca de associação * Presença de lideranças consultivas e participativas * Maior freqüência de consciência transitiva ingênua e críti- 16 cezar wagner cap. 6.p65 186 25/8/2008, 17:29 59 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 187 ca * Fase grupal de intercâmbios * Percepção mais clara das necessidades do grupo e da co- munidade 4. Aumento da capacidade de mobilização social e luta * Emergência de novas lideranças, integração das diferenças e decisão por consenso. Diminuição do medo e elevação da auto-estima e coragem * Presença de lideranças participativas e educadoras (anima- dores populares) * Maior freqüência de consciência transitiva crítica e históri- ca; * Fase grupal integrativa e comunitária * Integração entre necessidades individuais e necessidades do grupo e da comunidade 5. Construção de um contexto de educação e autonomia * Educação permanente, desenvolvimento do processo de liderança * Aceitação de novas lideranças e ampliação dos objetivos além do grupo e do ato reivindicatório, em busca do contro- le do sistema de ação histórica da comunidade * Aceitação de que todos os membros são lideranças no pró- prio grupo (direção colegiada) * Presença de lideranças educadoras (animadoras, revoluci- onárias) * Maior freqüência de consciência histórica e pedagógica * Fase grupal comunitária e política * Percepção das necessidades da sociedade e sua integração com as necessidades da comunidade, do grupo e do mora- dor * Aquisição de uma prática revolucionária e articulação com os movimentos sociais. A facilitação de grupos populares exige certos conhecimen- tos sobre a vida da comunidade e de seus grupos, bem como métodos e técnicas de facilitação, de como lidar com seu proces- so, torná-lo favorável ao crescimento do grupo e de seus própri- 16 cezar wagner cap. 6.p65 187 25/8/2008, 17:29 60 188 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O os participantes, de como criar condições para que seja capaz de influir no contexto da comunidade e da sociedade como um todo. Para se trabalhar com grupos populares e mesmo com aten- dimentos individualizados ou outras ações de saúde, podemos lançar mão de inúmeras abordagens, técnicas e práticas de faci- litação e de atendimento, obviamente visando à construção da saúde da comunidade e de cada morador. Vejamos algumas: cír- culo de cultura, círculo de encontro, roda de conversa, reunião de quarteirão, sarau literário, história de vida, contar estória, caminhada comunitária, comissão ativa, ginástica, expressão corporal, grupo de lazer, grupo de criatividade, grupos de hiper- tensos e de diabéticos, grupo de prevenção de gravidez na ado- lescência, grupo de gestantes, grupo de saúde bucal, alfabetiza- ção de adultos, grupo comunitário de produção, útero, mutirão, biodança, psicodrama público, sociodrama, teatro do oprimido, teatro de rua, cinema na comunidade, sociopoética, terapia co- munitária, terapia familiar, ioga, meditação, grupo de auto-aju- da, grupo de poliqueixosos, grupo de idosos, arte-identidade, arte-educação, arte-terapia, teatro do oprimido, intervenção de crise, terapia breve, consulta médica, entrevista de ajuda, mas- sagem terapêutica, estimulação cognitiva em grupo, rela- xamento/regressão, terapia da respiração, visita domiciliar, gru- po de retorno psiquiátrico ambulatorial, uso de medicamentos, acupuntura, tai chi chuan, chás medicinais, acompanhamento terapêutico, cuidadores comunitários, exercício físico e alimen- tação, informes de saúde, seminários/palestras, programa de saúde em rádio comunitária, encontros de juventude, espaço cultural na comunidade, capoeira/outros esportes, proteção à mulher e à criança ameaçada e maltratada, ação jurídica popu- lar e acompanhamento de jovens em liberdade assistida. A seguir, descreveremos algumas desse leque de possibili- dades, as quais podem ser utilizadas de acordo com o enfoque biocêntrico da saúde, levando-se em consideração seus objeti- vos, a situação dos participantes, os procedimentos e as distintas situações com as quais os profissionais se deparam no cotidiano do lugar e que estão relacionadas com a saúde dos moradores e a cultura local. O importante não é a abordagem ou a técnica em 16 cezar wagner cap. 6.p65 188 25/8/2008, 17:29 61 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 189 si, mas sim o sentido de sua utilização na perspectiva de uma práxis de vida, libertação e cidadania. C Í RC U L O D E C U LT U R A Processo de grupo popular desenvolvido por Paulo Freire como espaço reflexivo e participativo, adequado à alfabetização de adultos. Posteriormente, passou a ser utilizado para outros tipos de ação popular baseada no método Ver-Julgar-Agir da Teo- logia da Libertação, favorecendo a discussão democrática e a conscientização. Parte do princípio de que a democracia se constrói dentro de um aprendizado que se realiza por meio de uma educação pro- blematizadora, crítica e de inserção em um mundo real. Con- trapõe-se à educação bancária, depositadora de conhecimento sem reflexão, sem pergunta. Por isso, o encontro entre os que aprendem transformando o mundo em que vivem é o encontro dialógico próprio do aprendizado da libertação. Cada indivíduo, no círculo, frente a frente com os outros, vai dizendo sua palavra e ouvindo a dos demais, atento, receptivo e integrado com o que se vive e o que se pretende construir. O diálogo é este encontro dos homens mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proi- bindo que este assalto desumano continue. Se é dizendo com que, “pronunciando” o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ga- nham significação enquanto homens. Por isso, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode redu- zir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, 16 cezar wagner cap. 6.p65 189 25/8/2008, 17:29 62 190 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O nem tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes. Não é também discussão guerreira, polêmica, entre sujeitos que não aspiram a com- prometer-se com a pronúncia do mundo, nem com buscar a verdade, mas com impor a sua. Porque é encontro de ho- mens que pronunciam o mundo, não deve ser doação de pronunciar de uns a outros. É um ato de criação. Daí que não possa ser manhoso instrumento de que lance mão um sujei- to para conquista do outro. A conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de um pelo outro. Conquista do mundo para a libertação dos homens (Freire, 1979, p. 93). O círculo de cultura faz parte do eixo metodológico que parte de uma educação como prática de libertação. Círculo quer dizer o modo como as pessoas estão sentadas fazendo a palavra “circu- lar” por entre todas, estando cada uma em pé de igualdade para falar e ouvir atentamente. Cultura, porque todos ali têm um conhe- cimento e uma experiência de vida, fazem parte daquele lugar; pensam, agem, criam e têm algo a dizer para os outros, contribuin- do para o conhecimento coletivo e a transformação da realidade. O círculo de cultura é coordenado por um agente externo ou interno, chamado de animador, responsável por organizar as fi- chas de cultura e as palavras geradoras, estímulos culturais le- vantados no cotidiano geral do oprimido (fichas de cultura) e dos participantes (palavras geradoras). Estas são extraídas do universo vocabular dos participantes. São palavras que refletem a reali- dade opressora e o modo de vida do lugar. Servem para a pro- blematização da vida que levam, das condições de opressão e dos modos de ação para transformá-las. Aparecem combinadas a fotos ou gravuras que as expressam visualmente, ligando a re- flexão às condições concretas de vida dos moradores participan- tes. Excetuando o objetivo de alfabetização, as fichas e as pala- vras são utilizadas, em Psicologia Comunitária e Saúde Comuni- tária, com os mesmos objetivos: a integração do grupo, o apro- fundamento da consciência, a problematização da saúde, a descoberta do sujeito do mundo e o desenvolvimento comuni- 16 cezar wagner cap. 6.p65 190 25/8/2008, 17:29 63 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 191 tário. O método educativo de Paulo Freire tem como finalida- de conscientizar os oprimidos da realidade da opressão. Cri- ticamente conscientes dela, então, serão capazes de realiza- rem a ação para a superação das realidades opressoras e se libertarem como sujeitos do próprio processo libertador. O método tem, pois, nos oprimidos os sujeitos da pró- pria libertação. A luta é, assim, deles. O importante é que lutem como homens (sujeitos) e não como “coisas” (obje- tos). Segundo o nosso autor, eles, os oprimidos, não podem comparecer à luta quase como “coisas”, para depois serem homens. Devem reconhecer que são homens destruídos. Somente assim serão capazes de se libertarem como pesso- as. Assim, pois, segundo Paulo Freire, “a luta por esta recons- trução começa no auto-reconhecimento de homens destru- ídos”. Este reconhecimento é dado pelo método psicossocial libertador, como no-lo propõe Freire e no qual os oprimidos percebem como estão sendo, isto é, “menos” para lutarem para o que devem ser, isto é, “ser mais”, mais pessoas para realizarem a sua vocação histórica (Simões Jorge, 1981, p. 27). Criado inicialmente para atender ao processo grupal do mé- todo de alfabetização proposto por Paulo Freire, o autor e Ruth Cavalcante, em 1981, adaptaram o círculo de cultura a inúmeras situações e objetivos, trabalhando nele temas variados da reali- dade social e humana, visando à construção coletiva do conhe- cimento, o desenvolvimento humano, a mudança social e o cui- dado ambiental. Usamos o círculo de cultura como um processo de grupo em distintas atividades, no ensino-aprendizagem, no desenvolvimento de grupos de trabalho, na ação básica de saú- de, na educação ambiental e no desenvolvimento comunitário. Atuamos com ele na sala de aula, no setor de trabalho, na clíni- ca, nos quarteirões, nas associações comunitárias, sindicatos e outros lugares. Uma de suas tantas variações é a roda de conversa, proposta pela Pastoral da Criança e largamente usada no trabalho comu- 16 cezar wagner cap. 6.p65 191 25/8/2008, 17:29 64 192 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O nitário com o objetivo inicial de trabalhar a sexualidade e a afe- tividade na comunidade. Entendemos que a palavra “roda” é mais chamativa que a palavra “círculo”, mas não podemos ficar inventando a roda, mas sim adequando-a às diversas situações, mencionando a sua ori- gem, no caso, o círculo de cultura e todo o pensar paulofreiriano que o fundamenta, pois não estamos diante somente de uma técnica grupal, mas diante de uma nova concepção a respeito da construção do conhecimento e da consciência, da educação e da transformação social. CÍRCULO DE ENCONTRO É um processo de grupo incluído no processo de desenvolvi- mento dos grupos populares. Foi criado pelo autor em 1982, a partir das contribuições de Paulo Freire, Carl Rogers e Rolando Toro. O círculo quer dizer a distribuição das pessoas na forma de círculo, face-a-face, como no círculo de cultura. Encontro significa estar em profundidade com o outro, em seu momento existencial, em seu fluxo interior, como no grupo de encontro. É também estar presente no coletivo, numa prática comunitária (pela fala profunda, o diálogo e o gesto), na qual os participantes se enten- dem e se ajudam, identificam-se uns com os outros, comparti- lham suas existências, seus sofrimentos, enfermidades e sonhos. No encontro, a palavra e o gesto expressam a vida de cada um. O círculo de encontro é um processo de grupo em que os participantes lidam com as condições sociopsicológicas do grupo e a transformação delas. Diz respeito às interações internas e externas do grupo e o modo de compreender e lidar com elas em suas dimensões política e sociopsicológica. Trabalha-se nele o diálogo libertador, o discurso reflexivo, a história e o drama coletivo e individual, a integração grupal, a circulação de idéias e informações, a desinibição, as angústias e o companheirismo, a expressão corporal, o apoio socioemocional, a expectativa de futuro e o cotidiano de cada um. Em Saúde Comunitária, pode ser usado também para facili- tar os processos de vida dos moradores portadores de hiperten- são, diabetes ou os que estão em programas de redução de da- 16 cezar wagner cap. 6.p65 192 25/8/2008, 17:29 65 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 193 nos e em situação de crise. R O D A D E Q UA R T E I R Ã O Processo de grupo baseado no círculo de cultura e voltado para a integração e desenvolvimento de moradores de um quar- teirão. Visa trabalhar a vizinhança em suas necessidades comuns de resolução de problemas, convivência afetiva, percepção do cotidiano da rua e o potencial de realização de atividades relaci- onadas com cultura, ecologia, esporte, saúde, trabalho, educa- ção, moradia e outros temas que surgem no desenrolar do pro- cesso grupal. Este é rico de conversações, reflexões, brincadeiras, festas e dramatizações que mostram a história e o cotidiano da comunidade e do quarteirão. Pretendemos com a roda de quarteirão fortalecer o senti- mento de vizinhança, a solidariedade e a cooperação entre os moradores, mais a vontade coletiva de lutar em favor de sua co- munidade. Resulta isso em ações que se estendem para objeti- vos maiores da comunidade, não ficando elas somente nas ne- cessidades e limites do quarteirão. Precisamos atentar para o fato de que não se pode fazer, de imediato, a roda em qualquer casa da rua, pois a maior presença dos moradores vai se dando quando o local coincide com a casa de um morador reconhecido na rua como alguém que colabora com os vizinhos. RODA DE HISTÓRIAS DE VIDA Método conhecido em pesquisa qualitativa assume aqui pa- pel importante na facilitação do processo individual e de grupo, pois se entende que narrar ou contar a sua história de vida per- mite que o contador se recrie e recrie o grupo. Quando o narrador começa a falar, sua fala aos poucos vai desenhando com clareza no clima de atenção do grupo a jorna- da, sua história, seus caminhos e momentos, seu nascimento, sua infância e adolescência, sua vida adulta e velhice, suas buscas, sonhos, sofrimentos, medos, frustrações, desamparos, situações engraçadas e tristes, alegrias, amizades, amor, prazer, descober- tas, incertezas, coragem de seguir adiante. O grupo escuta, presta 16 cezar wagner cap. 6.p65 193 25/8/2008, 17:29 66 194 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O muita atenção e identifica-se com o narrador, se solidariza, per- manece num silêncio que é de curiosidade e consideração com quem narra sua história de vida. Há muita empatia e aceitação, há espontaneidade no falar e no ouvir, uma cumplicidade existencial entre os participantes que, em roda, sentados no chão ou em cadeiras e bancos, vão compartilhando suas existências, o projeto de vida, desvelando a si no ato de revelar sua história para o grupo, os caminhos por onde já passou e o olhar que tem para diante, sua visão de futu- ro. Cada história leva de vinte a trinta minutos, algumas mais e outras menos, não há um tempo preestabelecido, mas fica claro no início que é importante cuidar do tempo, para que cada par- ticipante tenha a sua vez naquela sessão ou em outra. Às vezes o grupo fica o dia inteiro contando histórias de vida, quando o lo- cal é apropriado a isso e os participantes decidem estar por todo o dia compartilhando de suas histórias. O que o facilitador faz é convidar e encorajar os participantes a contarem suas histórias de vida, escutar, perguntar muito pouco e, em certos momen- tos, permanecer numa escuta ativa, cuidar do grupo e, também, contar sua história de vida. C O N TA R E S T Ó R I A De modo geral as crianças, jovens, adultos e idosos, letrados e não letrados, gostam de ouvir estórias, boas e bem contadas estórias. Estórias de ficção, de dramas, de boatos, de assombra- ção e estórias sobre pessoas, lugares e povos. Gostam de saber das estórias e também das do próprio lugar onde vivem o dia-a- dia, do que se passou ali há muito tempo ou recentemente. Todos os povos têm e gostam de contar e ouvir estórias, em volta da fogueira, na sala, na calçada, na praça, em vários luga- res, sentados em roda, atentos, ouvindo, vendo e sentindo o con- tador com sua fala, entonação, silêncios, expressões e gestos, tudo contribuindo para os ouvintes mergulharem no mundo da ima- ginação e dos sentimentos, das belas palavras, como é comum se dizer no povo guarani quando as palavras são profundas, car- regadas de sentimentos e fazem sentido para a vida deles. Con- tar estórias é uma arte, o contador de estória é um artista e as 16 cezar wagner cap. 6.p65 194 25/8/2008, 17:29 67 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 195 estórias produzem um bem-estar individual e grupal. No meio popular, um dos lugares adequados para contar es- tórias é o quarteirão, na calçada ou, quando não há, numa área em frente à casa de alguém que os vizinhos apreciam. Pode-se levar um contador de estória de fora e, também, procurar iden- tificar quem da comunidade sabe contar estórias. Assim, se va- loriza o contador de estória do lugar e se criam laços entre ele e os moradores dos diversos quarteirões por onde ele passa. O conta- dor de es-tória que mora na própria comunidade pode ser um agente de integração dos quarteirões e de desenvolvimento da comunidade, um facilitador cultural e de saúde do lugar, medi- ante o interesse e envolvimento despertado por suas estórias nos moradores. Contar estória faz parte da tradição oral, da transmissão e re- criação da cultura e da existência humana. Contar estória é uma forma de resistir e enfrentar com idéias e sentimentos coletivos despertados e recriados pelas estórias nos próprios ouvintes que, também, dialogam, se emocionam, perguntam, comentam alguma passagem, no momento, com o contador e com os outros ouvintes. Segundo Pacheco et al. (2006, p. 41), do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô, oong de Lençóis, Bahia, o ato de contar es- tória releva a tradição oral e a vida do povo oprimido. Reconhecer a tradição oral é considerar que o patrimô- nio cultural brasileiro não se reduz ao que está escrito nos livros e, portanto, não é propriedade das pessoas alfabetiza- das ou letradas. É considerar que o patrimônio cultural é tam- bém formado por um tesouro vivo de bens imateriais que são transmitidos oralmente de geração em geração em di- versas áreas do conhecimento, não apenas nas artes e na re- ligião. Existe um sistema de educação informal, uma cultura que resiste ao ciclo intergeracional da pobreza. CAMINHADA COMUNITÁRIA Andar pela comunidade é muito mais do que simplesmente passar pelos lugares, é olhar para cada ponto, cada lugar, cada morador, cada situação que se apresenta no local da andança, 16 cezar wagner cap. 6.p65 195 25/8/2008, 17:29 68 196 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O com um olhar sensível e perceptivo. Um olhar que une o etno- gráfico ao psicológico, um olhar etnopsicológico alicerçado no compromisso social, um olhar amigo que busca compreender a comunidade do ponto de vista científico, vivencial e solidário. A caminhada comunitária é um andar realizado em grupo, no qual se juntam para caminhar pelas ruas da comunidade profissionais de saúde e moradores, com o fim de conhecer os lo- cais, as pessoas, ver situações, ouvir estórias, saber da história do lugar, dar-se a conhecer e estabelecer laços de convivência, estar mais dentro e por dentro do cotidiano do lugar. A caminhada comunitária quer dizer um andar coletivo visando olhar junto, compreender junto e atuar junto. À medida que caminham conversam, trocam impressões, co- mentam, perguntam, sentem cada momento, se assustam, riem, param em algum lugar, conversam com outros moradores, se esclarecem sobre as situações e locais, conhecem e convivem. O próprio morador que caminha junto descobre coisas que não co- nhecia da comunidade, conversa com pessoas que antes não conhecia. É importante caminhar em diversos momentos e horários, ora pela manhã, ora pela tarde e outras vezes pela noite, cami- nhar durante a semana e durante os fins-de-semana. Assim, pode-se realmente conhecer o cotidiano da comunidade, suas atividades e modos de estar em cada momento da semana ou período do dia. Tanto para o profissional de saúde como para o morador que participa da caminhada comunitária, esta gera um pertencer e um sentido maior da vida da comunidade, um conhecimento impossível de se obter ficando dentro de um posto de saúde, de casa, ou andando pelo lugar sem prestar devida e profunda aten- ção, só possível numa postura vivencial e etnográfica de interes- se genuíno, compromisso social e solidariedade. C O M I S S Ã O A T I VA Em geral, as atividades comunitárias, quaisquer que sejam, necessitam de pequenos grupos formados em reuniões, como as comissões ativas, com a finalidade de que o encaminhamento 16 cezar wagner cap. 6.p65 196 25/8/2008, 17:29 69 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 197 das decisões tomadas nas reuniões e assembléias comunitárias possa ser realizado. As comissões têm a responsabilidade de pôr em prática as decisões da comunidade, funcionando como coordenações dos trabalhos que precisam ser realizados, no sentido de atrair, ori- entar e organizar os moradores em torno de uma ou mais ações específicas, como: convidar os moradores para reunião; organi- zar mutirão; divulgar as atividades comunitárias; preparar ato público contra a violência; organizar festa ou passeio; represen- tar a comunidade em algum órgão público; participar de reuni- ões em outras comunidades; fazer o levantamento histórico do lugar; participar de pesquisa-ação-participante; distribuir folhe- tos de alguma luta ou pregar cartazes; e participar do orçamento participativo. GRUPO COMUNITÁRIO DE PRODUÇÃO As comunidades, em geral, procuram saídas econômicas para seus problemas. É comum nas reuniões temas como padaria, horta, confecção, casa de farinha e outros apresentados como respostas a um conjunto de necessidades dos moradores. É óbvio o nível de carência do povo oprimido. Falta tudo. Desse modo, as pessoas procuram beneficiar-se com algum tipo de atividade pro- dutiva que venha gerar ou aumentar a renda familiar. Nessa direção os órgãos públicos de ação social, as entidades filantrópicas nacionais e estrangeiras, as igrejas e mesmo as uni- versidades, procuram contribuir com as comunidades mediante projetos de atividades produtivas. São respostas imediatas para necessidades que precisam de satisfação imediata por meio do trabalho solidário. Quando esses projetos surgem no processo de construção da vida comunitária, de ações-participantes ou de pesquisas-parti- cipantes, num certo nível do processo de realização e desenvol- vimento das atividades comunitárias, eles são de extrema valia. Atendem à necessidade imediata, razão do projeto, e impulsio- nam à participação e mobilização dos moradores em outras ati- vidades produtivas e associativas. Faltando essas condições, que surgem num certo momento do trabalho comunitário, os prejuí- 16 cezar wagner cap. 6.p65 197 25/8/2008, 17:29 70 198 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O zos são grandes, pois geram conflitos e desconfianças, práticas individualistas e às vezes corruptas. É necessário compreender o processo grupal, como o que se encontra descrito no início do Capítulo 6, onde tratamos das fa- ses da dinâmica do grupo popular. Entendemos que os projetos devem chegar, quando de fora para dentro da comunidade, no momento do surgimento da ação reivindicatória, o protesto e a participação mais clara e efetiva dos moradores (fase 3 do pro- cesso grupal). Quando isso não ocorre, é possível que o grupo popular formado não consiga construir o significado comunitá- rio e a mobilização social pretendida pelo projeto, o qual, mui- tas vezes, por isso, tende a se acabar, ser abandonado pelos mo- radores por causa do individualismo, de conflitos mal superados ou do seu controle excessivo por uma liderança para usufruto próprio, geralmente em parceria com algum vereador ou depu- tado. MUTIRÃO Forma de ação-participante empregada por comunidades para resolver problemas específicos que exigem trabalho coletivo, reduzindo esforços, custo e tempo dos moradores. Visa integrar as pessoas em atividades comunitárias que resolvam problemas concretos e imediatos, beneficiando um morador, dois, alguns ou toda a coletividade, tais como preparar a terra de um deles para plantio; consertar ou construir casas para alguns morado- res; construir açudes ou limpar o mato das praças; construir de- zenas de moradias ou casas de farinha; cavar poço ou cacimba; construir grupos escolares ou postos de saúde; limpar as mar- gens do riacho; tirar o lixo das ruas ou a água estagnada, entre outras atividades comunitárias. A comunidade assume desde a definição do problema a re- solver imediatamente e o planejamento da ação até a execução e sua avaliação, pois isoladamente os moradores não poderiam realizar tal ação, em razão de os recursos e do tempo disponíveis de cada um não serem suficientes quando individualizados. UTERO — UNIDADE DE TRABALHO 16 cezar wagner cap. 6.p65 198 25/8/2008, 17:29 71 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 199 E M P R E E N D E D O R I S M O O R I E N TA D O E Vários estudos apontam para a dificuldade que a população jovem (quinze a vinte e quatro anos) está vivendo ao procurar engajar-se no mercado de trabalho. Há um paradoxo ao tentar obter a primeira experiência de trabalho formal, pois um dos principais requisitos para o trabalho vem sendo a experiência anterior. Tal configuração implica aumento do trabalho infor- mal, cujas condições em que se realiza colaboram apenas para o aumento da vulnerabilidade e risco do segmento jovem da po- pulação pobre. Diante dessa situação, temos os problemas agravados e mais evidenciados no âmbito municipal, por ser este o lugar mais ime- diato e concreto da vivência do jovem, onde ele deseja construir sua vida e realizar seus sonhos. Atualmente, em vez de tratar a questão da juventude como problema social, muitos municípios passam a incentivar a participação dos jovens por considerá-los capazes e responsáveis pela construção coletiva de suas vidas. Em tal situação, o Instituto Paulo Freire de Estudos Psicosso- ciais, por intermédio de uma equipe de profissionais (Nara Diogo, Eveline Chagas, Fábio Porto, Íris Bomfim e Rozane Alencar) sob a orientação e supervisão do autor, desenvolveu uma proposta na forma de um modelo a ser adaptado à realidade de cada municí- pio. Esse modelo, o Utero — Unidade de Trabalho e Empreende- dorismo Orientado — caracteriza-se pela permanente capacita- ção e fomento ao empreendedorismo jovem, baseando-se na lógica da economia solidária, no fortalecimento dos grupos pro- dutivos locais e na formação de parcerias com diversas institui- ções, fomentando a criação e execução de ações geradoras de trabalho e renda para os jovens (IPF, 2005). No Utero os jovens podem participar de diversos espaços, cha- mados laboratórios (Laboratório de Crescimento Pessoal, Labora- tório de Competências para o Trabalho e Laboratório de Criação de Empreendimentos), onde vão desenvolver suas competências pessoais, sociais e laborais, bem como suas habilidades de gestão e construir seu projeto de vida. Há também a preparação de grupos de jovens que desejam associar-se, ou grupos produtivos já existen- tes, para o processo de incubação do empreendimento, gerando 16 cezar wagner cap. 6.p65 199 25/8/2008, 17:29 72 200 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O também um banco de idéias a respeito de possíveis empreendi- mentos com diferenciais mercadológicos. Prevê ainda a articula- ção com instituições responsáveis por oportunidades de trabalho, que atuam na intermediação dessa mão-de-obra, facilitando o processo de busca do primeiro emprego. Propõe-se fomentar o voluntariado e o estágio como formas adequadas ao jovem para que possa adquirir experiência e conhecer atividades profissionais. A metodologia utilizada pautou-se no método dialógico-vi- vencial desenvolvido por Góis em 1984, por compreender que o processo de aprendizagem não acontece de modo mecânico, por transferência de conhecimentos, mas decorre fundamentalmen- te da interação entre pessoas diferentes dentro de um contexto propício à participação, à reflexão e à afetividade. Compreendemos também que o cultivo de um ambiente de participação e encontro é necessário para desenvolver habilidades e competências exigidas não somente pelo mercado de trabalho, mas para a construção de uma sociedade mais justa e solidária. Desse modo, é possível construir um conhecimento com significa- do coletivo, com base na experiência acumulada de cada jovem en- volvido no processo. Para tanto são utilizados instrumentos como o círculo de cultura, círculo de encontro, jogos criativos, recursos artísticos, Biodança, Sociodrama, Arte-identidade, entre outros. O Utero visa fomentar o empreendedorismo solidário e forta- lecer a relação dos jovens com o mundo do trabalho, contribuin- do para sua formação humana e social, mediante a estimulação do autoconhecimento e da auto-estima do jovem, buscando a integração de suas experiências de vida na construção de suas identidades como atores sociais; auxiliar o processo de tomada de decisões e a facilitação de experiências mobilizadoras de de- senvolvimento, colaborando com a construção do sujeito do tra- balho; estimular, preparar e criar novos negócios baseados na economia solidária e no desenvolvimento local, gerando condi- ções prévias para uma ação mais objetiva da atividade de incuba- ção de empreendimentos; gerar informações sobre juventude e trabalho no município; e articular parcerias com instituições lo- cais, visando à criação e execução de ações geradoras de trabalho e renda para os jovens. 16 cezar wagner cap. 6.p65 200 25/8/2008, 17:29 73 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 201 No ano de 2006, a proposta do Utero deu a Eveline Chagas Lemos, psicóloga e assistente social do Instituto Paulo Freire do Ceará, hoje trabalhando na rede de saúde mental de Fortaleza, o Prêmio Juventude pelo segundo lugar obtido na categoria gra- duação. A proposta foi escolhida entre 287 trabalhos analisados por comissões julgadoras formadas por parceria entre a Secreta- ria Nacional de Juventude da Secretaria-Geral da Presidência da República, o Ministério da Ciência e Tecnologia e o Conselho Na- cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Este último selecionou os trabalhos entre artigos científicos e reda- ções com base nos seguintes critérios: consistência do artigo e da redação em relação à temática escolhida; impactos dos resul- tados esperados e benefícios potenciais para o avanço do conhe- cimento em relação à temática e à promoção de políticas públi- cas; originalidade da abordagem; e qualidade do texto quanto ao conteúdo e quanto à forma de apresentação (adaptação de um texto do Projeto Utero, de Nara Diogo e Fábio Porto, 2004, realiza- da por Góis, 2006). BIODANÇA Proposta de desenvolvimento humano criada em 1965 pelo chileno Rolando Toro. Concebe o indivíduo como ser biocêntri- co, quer dizer, orientado pela vida. Toro (1991) a define como “Um sistema de integração afetiva, renovação orgânica e re- aprendizagem das funções originárias da vida”. Integração afeti- va significa a integração sutil e plena entre percepção, motrici- dade, afetividade e funções viscerais, considerando a afetividade como núcleo integrador; Renovação orgânica é a manutenção dos processos de renovação e regulação das funções biológicas, gerando mais neguentropia e mais complexidade; Re-aprendi- zagem das funções originárias da vida significa a expressão e for- talecimento de estilos de viver e não de adoecer. O objetivo da Biodança é a criação de um processo grupal favorável à expressão e fortalecimento da identidade-amor, me- diante vivências de vitalidade, sexualidade, criatividade, afetivi- dade e transcendência, que veremos a seguir. 16 cezar wagner cap. 6.p65 201 25/8/2008, 17:29 74 202 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O Vitalidade É o impulso vital e a capacidade de mover-se com potência no mundo, com combatividade e regulação. A tônica é a so- brevivência e a construção de uma individualidade a mais da espécie — a ontogênese emergindo da filogênese e se abrindo à construção de caminhos próprios de diferencia- ção e integração. A força, o ímpeto, a energia vital, o vigor e a consistência biológica e existencial são manifestações da vitalidade. É a potência, a coragem e a ousadia de viver. Toro (1991) considera como índices de vitalidade: tole- rância ao esforço, vitalidade do movimento, estabilidade neu- rovegetativa, potência dos instintos, resposta imunológica, resistência ao estresse, elasticidade das artérias, plenitude da onda eletrocardiográfica e pressão arterial, plenitude da onda respiratória, estado nutricional, respiração, temperatura cor- poral e capacidade de luta (ataque e fuga). Sexualidade A sexualidade natural leva o animal a buscar companheiro(a) para o acasalamento, com “jogos de sedução” que envolvem danças, cores, sons, cheiros, cantos, grunhidos e outros meios. Entretanto, a sexualidade humana vai além desse limite, pois difere da sexualidade de outros animais em virtude de sua complexidade cultural. No ser humano, a sensualidade e a genitalidade, os dois aspectos da sexualidade, ganham refina- mentos estéticos, lúdicos e afetivos, onde não só a reprodução e a perpetuação da espécie estão em jogo, senão também o prazer, a possibilidade de amar e ser amado, a continuidade do mundo cultural e a presença do ser no mundo. O padrão biológico sexual da espécie é superado na própria vivência da sexualidade. Toro (1991) considera como índices de sexualidade: eros indiferenciado, capacidade de oferecer contato, busca de con- tato, ausência de culpabilidade, capacidade de feedback eró- tico, compressão-descompressão progressiva, sedução, ex- pressão do desejo, sensibilidade às carícias, euforia dionisíaca, sensibilização corporal, sensualidade, genitalização, calor 16 cezar wagner cap. 6.p65 202 25/8/2008, 17:29 75 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 203 erótico, capacidade para assumir o próprio padrão de res- posta sexual, erotismo diferenciado e capacidade de obter prazer. Criatividade Criar significa transformar, inovar, crescer, mudar a si e ao mundo, ato que se origina no processo criativo que abrange tanto o Universo em evolução (nebulosas galáxias, estrelas, planetas), como a divisão, renovação e integração celulares, e as formas mais sensíveis e complexas da criação humana, por exemplo, uma sonata, uma pintura ou, até mesmo, um conhecimento ou uma tecnologia. Toro (ibidem) enfoca o desenvolvimento da criatividade passando por quatro etapas de um processo complexo que envolve a expressão primal pela liberação da voz e do movi- mento, a integração yin-yang, a comunicação expressiva e a elaboração criativa plena. Afetividade Sua origem encontra-se na afinidade entre os elementos, no tropismo, na ressonância ecológica e na atratividade cósmi- ca. A afetividade humana, ou vivência da afetividade, surge dessa instância antiga, como as demais vivências, para trans- formar-se em expressão humana de carinho, ternura, ami- zade, intimidade com o outro, proteção e solidariedade. É a fonte da ética, o caminho pelo qual o ser humano constrói com os outros uma sociedade democrática e amorosa — de cidadãos. Transcendência O ser humano tem a capacidade de abrir-se à vivência do todo, de sentir-se maior, portanto, criatura e criador, partici- pante de uma tessitura cósmica complexa e sagrada — Bio- cêntrica. Ele é capaz de ir além de seus limites comuns e abarcar circuitos de totalidade por meio do aumento de sua permeabilidade Eu-Universo. Nesse diálogo de silêncio se aprofunda na harmonia e na relação mística com o Cosmos. 16 cezar wagner cap. 6.p65 203 25/8/2008, 17:29 76 204 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O Facilitando a expressão dessas vivências por um método gru- pal que integra música, dança e vivência, a Biodança cria um es- paço de encontro, em que os participantes conversam sobre suas vidas, dançam e fortalecem um modo de viver baseado numa nova sensibilidade perante a vida. A preocupação imediata é fa- cilitar a expressão da identidade pessoal. Seguindo uma linha de ação cujo centro é a vivência de cada um em conexão com ele mesmo, com outro ou com vários outros, mediante exercícios semi-estruturados demonstrados pelo facilitador, às vezes só ou com a colaboração de um ou mais participantes, e realizados por todos os participantes, são deflagradas vivências profundas de integração nas áreas da vitalidade, sexualidade, criatividade, afe- tividade e transcendência. Denominamos esse espaço de sessão de Biodança, lugar no qual é concentrada com profundidade uma gama de gestos e sen- timentos vividos no cotidiano de forma muitas vezes superficial, reprimida, esparsa e racionalizada. A sessão contém situações de movimento, expressão e comunicação (dança), propiciado- ras da deflagração de potenciais de vida existentes em cada par- ticipante. A dança começa na forma de exercícios, ou melhor, movimentos sensíveis, integrados e com sentidos de vida. Depois ganha contornos próprios dentro da estrutura de movimento do participante. A estrutura dos exercícios é semi-aberta, favorecen- do ao participante encontrar, a partir daí, seus gestos singulares e profundos, sem reproduzir o seu jeitão encouraçado (corporal) comum de se mover e de viver. Os exercícios resgatam gestos de vida encontrados no cotidiano de cada pessoa e nas experiênci- as dos diver-sos povos em diferentes épocas de suas histórias. Por meio deles busca-se estimular vivências de vinculação a si mesmo, à espécie e ao universo. O grupo de Biodança facilita um clima de confiança e aber- tura propiciado pela presença suave, terna, receptiva e disponí- vel dos participantes em viver essa nova maneira de expressar a vida, permitindo com isso a cada um conectar-se, cada vez mais, com a sua própria identidade e com a do outro. Esse processo grupal realiza-se em duas fases: uma verbal e outra vivencial. A 16 cezar wagner cap. 6.p65 204 25/8/2008, 17:29 77 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 205 fase verbal ocorre no início e abarca, aproximadamente, um terço do tempo de duração do processo do grupo; o tempo restante, os dois terços, é para a dança, momento de intensificação das vivências. Na parte verbal, os participantes estão descalços e sentados em círculo, no chão. Usam roupas leves e descontraídas. Nesse momento a dinâmica é dialógica e acontece de alguns modos, como o compartilhar de histórias de vida e de momentos exis- tenciais. São experiências vividas no próprio grupo, como desco- bertas, mudanças, prazer, coragem, alegria, medo, angústia, difi- culdade de movimentação, encontros etc. O participante expõe o que pensa e sente, enquanto outros fazem comentários ou mes- mo, em alguns momentos de maior intensidade emocional, al- guém identificado existencialmente com o instante de quem fala o abraça com carinho. Na intimidade verbal posturas propiciado- ras de encontro e crescimento, como congruência, aceitação e empatia (Rogers, 1977), são consideradas e estimuladas no grupo. Na parte vivencial, quando os participantes retornam de um breve intervalo, após a parte verbal, são convidados pelo facili- tador a formarem uma roda, de mãos dadas e em pé. Nesse ins- tante, o facilitador comenta os exercícios e, depois, convida os participantes a dançar com um exercício, que pode ser uma roda de iniciação ou outro. É estimulado o movimento, a expressão, a comunicação e o encontro entre eles. Ao final da sessão, o facili- tador a encerra, em geral, com uma roda de celebração, com abraços afetivos e alegres, ou com danças euforizantes. São cele- brados os instantes vividos no grupo, o encontro vivido entre eles. Nessa fase, a expressão da identidade pessoal e do grupo vai intensificando-se progressivamente, por meio das vivências de vitalidade, sexualidade, criatividade, afetividade e transcendên- cia. No meio popular, empregamos a Biodança de uma maneira teórica e metodologicamente adequada aos participantes, ao modo de vida do lugar e à subjetividade social da comunidade. A essa adequação denominamos de Biodança Comunitária, uma forma de se trabalhar com Biodança a partir da Educação Bio- 16 cezar wagner cap. 6.p65 205 25/8/2008, 17:29 78 206 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O cêntrica e da Saúde Comunitária. É importante frisar que a Biodança não é uma psicoterapia de grupo, mas um processo de grupo com efeitos terapêuticos (Ribeiro, 2005). Nós a entendemos como uma pedagogia do vi- ver que tem muito que contribuir com a saúde dos moradores e com a própria Saúde Comunitária. Psicodrama e Sociodrama O Psicodrama e o Sociodrama de Jacob Levy Moreno (1889- 1974) representam uma ruptura com o modelo terapêutico vi- gente em sua época, levando para o social a responsabilidade de curar seus membros. Ele troca a figura do terapeuta institucio- nalizado por quem tem liberdade de ação nas praças, nas ruas, nos auditórios e nos teatros (diretor). Traz a alegria à psiquiatria e enfatiza a importância do jogo na vida de todos nós. A base da teoria de Moreno é dialógica, sendo assim, o Eu só poderá en- contrar-se por meio de um outro, do Tu e nunca por meio de si mesmo. Moreno ressalta a importância da espontaneidade e da criati- vidade na formação do ser humano, estando estas característi- cas presentes desde a sua infância. No entanto, o convívio social é fator determinante para que esses elementos se percam paula- tinamente, fazendo que as relações se tornem empobrecidas e a pessoa adoeça. A busca da “cura” é o encontro do ser com sua espontaneidade e criatividade, no ato de criar. A gênese social do ser humano conduz seu prognóstico de cura social: o homem deve ser curado pela sociedade, já que foi ela a responsável por sua desarmonia. É importante, ainda, ressaltar o jogo nesse processo. A atitude lúdica conduziu Moreno ao teatro da improvisação e depois ao teatro terapêutico, alcançando seu cume na inversão de papéis, no Psicodrama e Sociodrama. O jogo seria o princípio da autocu- ra e da terapia de grupo. O Psicodrama surgiu do jogo, como fenô- 1 O Encontro é um fenômeno télico. O processo fundamental de tele é a reciprocidade mesmo que esta seja no campo da atração, da rejeição ou da indife- rença. O que importa é a percepção sincera da relação partindo para uma relação espontânea e criativa. 16 cezar wagner cap. 6.p65 206 25/8/2008, 17:29 79 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 207 meno ligado à espontaneidade e à criatividade. O lúdico é tam- bém responsável pelo resgate desses elementos na busca do En- contro, promovendo a experiência catártica e integradora. O que faz a diferença após o fim do “jogo dramático” é a possibilidade de a pessoa se ver capaz de novas realizações, de se sentir mais forte e poderosa em relação ao passado ou ao futuro atormentador. As técnicas teatrais nortearam e precederam o Psicodrama e o Sociodrama. Moreno soube aproveitar muito bem os termos técnicos do teatro como os conceitos de papel e catarse (liberta- ção de algo que incomoda; ressignificação) e sua obra se desen- volve no trabalho das relações entre as pessoas, no desenvolvi- mento de papéis e contrapapéis. O Psicodrama e o Sociodrama são métodos semelhantes com focos diferenciados: no Psicodrama a atenção do diretor e de seus ajudantes está centrada no indivíduo e em sua problemática par- ticular representada pelo próprio drama. No Sociodrama o foco principal está voltado para o grupo. São trabalhados temas sociais representados e tratados por meio do drama. Nesse processo to- dos são responsáveis e capazes de se curarem e contribuírem na cura de outros, acontecendo o Encontro1 através das relações mais verdadeiras sejam elas de atração, rejeição ou indiferença. O Psicodrama coloca o psiquismo e seus problemas em cena, considerando que a estrutura social do psiquismo individual veio originalmente do grupo. Os episódios mais marcantes e dramáti- cos aparecem aos participantes, após profunda dramatização, como algo conhecido e familiar, como seu próprio eu. Mostra às pessoas a própria identidade, seu eu, como um espelho. O pro- blema de um indivíduo é geralmente dividido pelos membros do grupo inteiro. O indivíduo transforma-se em um represen- tante em ação e o grupo lhe deixa espontaneamente “espaço” para que possa agir e criar. Um ou outro membro do grupo pode estar igualmente envolvido em um contrapapel e entrar em uma cena para representar sua parte. À medida que os problemas são mostrados ao grupo, os es- pectadores são afetados pelos atos psicodramáticos ao encon- trarem afinidades entre seus próprios contextos de papéis e o contexto do papel desempenhado pelo sujeito central (protago- 16 cezar wagner cap. 6.p65 207 25/8/2008, 17:29 80 208 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O nista). O público espera que o diretor alcance cada indivíduo em sua própria esfera, separado dos outros. Pela ação, representa- ção do seu próprio drama, o protagonista consegue libertar-se de traumas do passado, na vivência do presente, conseguindo então preparar-se para viver um futuro sem medo, pois pode an- tecipá-lo no palco psicodramático. No Sociodrama, por sua vez, o verdadeiro sujeito da ação é o próprio grupo. Ele não é limitado por um número específico de indivíduos, podendo conter desde pessoas que estejam vivendo em determinado lugar a um grupo específico de professores. Su- põe que o grupo formado pela platéia já está organizado pelos papéis culturais e sociais que, em algum grau, são compartilha- dos por todos os portadores da cultura, na medida em que todo o grupo é que deve subir ao palco. Moreno enfatiza a possibilidade de se educar e curar por meio dos papéis, considerando que a pessoa é constituída como um feixe de papéis, não podendo tomar a construção de um papel como um evento isolado e inédito. Cada um relaciona-se aos ou- tros, adotados ao longo do processo de desenvolvimento da pes- soa na sociedade. Os papéis, cujas dinâmicas são semelhantes, formam um agrupamento ou “cacho” tomando formas de atua- ção idênticas. Quando trabalhado o papel de um desses agrupa- mentos, os demais estão sendo organizados ao mesmo tempo, o que permite dizer que o papel destacado ou que expressa a de- manda do sociodrama será organizador dos demais e da atua- ção do sujeito como ator social (ser no mundo). O “papel” é uma experiência interpessoal e só pode ser vivi- do e observado na relação. Determinados papéis podem estar bem desenvolvidos e outros em desenvolvimento. O papel só pode atualizar-se na interação com os participantes do grupo, com seus pares e complementares. O Sociodrama explora e trata concomitantemente os confli- tos que aparecem entre ordens culturais distintas e, tendo a ca- pacidade de ao mesmo tempo e pela mesma ação, empreender a mudança de atitude dos membros de uma cultura em relação aos membros de outra. Pode alcançar grupos grandes de pessoas em que os conflitos interculturais e as tensões estejam adorme- 16 cezar wagner cap. 6.p65 208 25/8/2008, 17:29 81 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 209 cidos ou nas preliminares de um confronto aberto. Psicodrama e Sociodrama são, portanto, métodos ativos, compostos por: cinco instrumentos — cenário/palco, diretor, ego-auxiliar, protagonista e público/platéia; três etapas — aque- cimento, dramatização e compartilhamento e três contextos — social, grupal e dramático; e podem ser definidos como métodos que penetram a verdade da alma através da ação. As técnicas mais usadas nas sessões são: o duplo, o espelho, o solilóquio e a inversão de papéis. Como metodologia, a função primordial do palco é alargar a realidade de cada um que nele sobe para dramatizar seu mundo e os componentes que o limitam de alguma maneira. Nele, as coisas acontecem muito mais rapidamente do que na vida real; o tempo é intensificado, fazendo que as coisas comecem e ter- minem dentro do tempo e espaço a elas destinadas. Nesse cená- rio o diretor assume a “direção da cena”, em que a pessoa que está sendo trabalhada é o protagonista. O diretor tem três fun- ções: produtor, conselheiro e analista. Os egos-auxiliares, por sua vez, são fundamentais neste processo, por contribuírem com o diretor em investigações de cenas, desempenho de contrapapel, dentre outras funções. Eles podem ser pessoas (terapeutas) es- colhidas pelo diretor ou escolhidas da platéia, que participa do trabalho psicodramático ou sociodramático. O público/platéia é constituído pelos demais integrantes do grupo que não estão na cena atual, podendo participar/contribuir com o protagonista, eventualmente. Quanto às etapas: o aquecimento inicial da sessão é muito importante para que o protagonista consiga ser ele mesmo naquele momento, para que traga sua real história de vida. Ele pode ser de dois tipos: o inespecífico — utilizado no início para fazer emergir o(s) protagonista(s) dentro do grupo; e o específi- co — subseqüente, que facilita a “entrada em cena” do(s) pro- tagonista(s). Com isso, a cena é dramatizada e o grupo partilha com o protagonista suas vivências e seus sentimentos em rela- ção aos conteúdos trazidos por ele. Esse compartilhamento tem também função de acolhimento e cumplicidade do grupo quan- to ao exposto, de forma que a pessoa perceba que outros tam- 16 cezar wagner cap. 6.p65 209 25/8/2008, 17:29 82 210 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O bém já viveram/experienciaram situações semelhantes. Ao final, são feitos comentários, que são os assinalamentos do ocorrido na sessão. Quanto aos contextos, pode-se classificar como social o mais amplo, em que a pessoa se insere em uma sociedade com seus vários papéis; filho, colega, marido, chefe, etc. O contexto grupal relaciona-se ao grupo delimitado pelas pessoas que se reúnem para elaborar um trabalho psicodramático ou sociodramático. E, finalmente, o contexto dramático está relacionado ao espaço específico da dramatização dentro do grupo. É importante estar atento para que esses contextos não se misturem, especialmen- te no que se refere ao papel dramatizado. Ao sair para o grupo, a pessoa também “deixa” seus personagens na cena, voltando para o contexto grupal. A atualização dessa teoria, que foi criada há quase um sécu- lo, se faz em cada nova recriação vivida em momentos de En- contro, propiciados pelas mais diversificadas vivências dramáti- cas. Esse processo tem-se mostrado particularmente eficaz no trabalho com as comunidades, pela oportunidade de vivência de papéis e ressignificação de posturas, pela discussão e demo- cratização de responsabilidades e, sobretudo, pela catarse cole- tiva, em que questões sociais, de valores (axiodrama), como tam- bém pessoais podem ser tratadas eticamente de forma ativa e eficaz. Relato de um Caso Tipo de Trabalho: Sociodrama. Grupo trabalhado: trinta esta- giários vinculados ao programa de estágio de uma prefeitura da Região Metropolitana de Fortaleza-Ce. Tempo: duas horas. Etapas: Aquecimento: antes do início do trabalho, foi explicado, em linhas gerais, como funciona o método sociopsicodramático. Em seguida, foi realizado o aquecimento do grupo: todos se movi- mentavam na tenda montada ao ar livre, e observavam os ou- tros participantes, com uma música ao fundo. A seguir os parti- cipantes refletiram sobre o motivo principal de sua participação no grupo e qual o tema que gostariam de trabalhar, algo que fos- 16 cezar wagner cap. 6.p65 210 25/8/2008, 17:29 83 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 211 se vinculado a sua prática profissional, de preferência. Três protagonistas surgiram e colocaram suas cenas para a platéia, que elegeu uma para ser representada pelo grupo. A for- ma de escolha sociométrica foi a seguinte: cada participante do grupo buscava ficar próximo do protagonista cuja história gosta- ria de ver encenada. Após eleita a história, delimitou-se o palco, tendo sido montado o cenário e do próprio público saíram os egos-auxiliares. Dramatização: a dramatização ocorreu com o apoio de al- gumas técnicas psicodramáticas como a inversão de papéis, soli- lóquios, o uso do espelho e o treino de papéis (role playing). A protagonista estava bem aquecida, assim como os egos-auxilia- res e a platéia. A cena escolhida trazia a temática de um jovem estagiário com tendência homossexual e como este seria orien- tado ao trabalhar em uma creche com crianças. Compartilhamento: nesse momento, muitos trouxeram suas vivências, discutiu-se acerca dos preconceitos e posturas éticas e profissionais que envolvem um trabalho com crianças e o com- promisso de pertencer a um grupo de estágio e desenvolver suas atividades com responsabilidade. A protagonista, com o uso da técnica do espelho, pôde ver alternativas para sua postura ante a situação do passado, mostrando-se satisfeita com a produção do trabalho. Comentários: foi ressaltado o compromisso e a responsabili- dade necessária no desempenho do papel de estagiário e a im- portância do treino constante da espontaneidade e criatividade nas ações do dia-a-dia. (Texto da Psicóloga Ivana Carneiro Fer- nandes, psicodramatista, 2006.) T E AT R O D O O P R I M I D O O teatro primordial nasce da relação do homem com a terra, de uma relação orgânica entre a natureza humana e a biodiver- sidade de seres que os circundavam. As festas dionisíacas na Gré- cia antiga, os rituais ao estranho deus da fertilidade, do transe, dos campos, tinham a função simbólica de fecundar o chão e de celebrar mais um tempo de colheita, mais um ciclo da terra. Os 16 cezar wagner cap. 6.p65 211 25/8/2008, 17:29 84 212 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O ritos dionisíacos presentificavam a força da transcendência hu- mana, a libertação da mediocridade e da mortalidade. Nos com- plexos rituais de entorpecimento pela dança, pelo canto, pelo vinho, pelo encontro dos corpos em êxtase e entusiasmo, o ser humano comum, mortal, escravo, estrangeiro, mulher, rompia as amarras sociais e se permitia a condição de deus, de ser imor- tal, de criador. As aristocracias helênicas alimentaram um ódio olímpico pelas festas dionisíacas. Os deuses do Olimpo, representados pe- los próprios aristocratas, enciumavam-se pelo culto excessivo a um deus camponês, subversivo, obsessivo, antilei. O caráter co- letivizante e despersonalizante das festas dionisíacas ofendia gra- vemente a atitude ordinária de moderação moral, de controle social, pregada pelas religiões apolíneas. A Tragédia Grega, assim como o rádio e a televisão para o homem moderno, foi sem dúvida uma das maiores tecnologias de controle ideológico já inventadas pelas elites dominantes. As tragédias foram a concretização de uma política aristocrática de anulação das forças dionisíacas por meio da sua cooptação e cap- tura burocrática. Funda-se o teatro competitivo, coercitivo, fi- nanciado pelos benfeitores da política, mensageiro da moral vi- gente das elites atenienses. As tragédias eram festas urbanas, que cultuavam os deuses olímpicos, mas que se utilizavam do nome do deus (Grandes Dionisíacas) para atrair a população e neutra- lizar as suas forças libertadoras. Os rituais coletivos e circulares de integração, cooperação e solidariedade foram estrategicamente atenuados quanto às suas forças extraordinárias. Uma grande parte da população de to- das as categorias sociais era seduzida pela grandiosidade dos espetáculos apolíneos. O culto ao deus dos campos tinha sido mascarado e revertido. O nome de Dioniso raramente era lem- brado nas peças trágicas, e, quando lembrado, aparecia como um deus passivo, enfraquecido, harmônico aos interesses da cidade. A circularização e a participação efetiva de todos nos rituais dionisíacos foi substituída pela hierarquização e passividade. Foram construídos espaços arquitetônicos destinados aos espe- táculos, onde se absolutizava a separação entre palco e platéia: 16 cezar wagner cap. 6.p65 212 25/8/2008, 17:29 85 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 213 estava criado o abismo histórico que inventou e separou os par- ticipantes em atores e espectadores. No início, Ator e Espectador coexistem na mesma pes- soa; quando se separam, quando algumas pessoas se especia- lizam em atores e outras em espectadores, aí nascem as for- mas teatrais tais como conhecemos hoje. Nascem também os teatros, arquiteturas destinadas a sacralizar essa divisão, essa especialização. Nasce a profissão de ator (Boal, 2002, p. 28). Na platéia, os espectadores permaneciam imobilizados pe- los dispositivos estético-ideológicos que eram enfaticamente re- presentados no palco. Dentre todos os efeitos trágicos, a catarse (kátharsis) era o princípio purificador da vontade de ser divino, transferido das religiões para os palcos com o objetivo de neu- tralizar o entusiasmo e o êxtase dos antigos rituais. Contudo, as tradições dionisíacas resistiram na marginalida- de dos povos gregos até os nossos tempos. As forças dionisíacas podem ser entendidas como forças indomáveis, características de uma subjetividade integrada à natureza. Dos rituais shivaís- tas indianos, de bruxaria da Escandinávia, das tribos africanas, indígenas e aborígines, da cultura popular brasileira, até os re- cônditos das teologias libertadoras da Igreja Católica, o arquéti- po do deus dos campos conspira, celebrando a horizontalidade, a circularidade e a participação coletiva. A cultura dos oprimidos (especialmente dos ritos dioni- síacos) reproduz e repete a recordação deformada e atrofia- da de um projeto originário de liberação e de institucionali- zação coletiva: na parte mais secreta, mais codificada e simbolizada, os ritos de possessão e de transe, “contam” um passado de luta contra a opressão, falam de “magia negra” da revolta e do entusiasmo coletivo; em suma, mediante um discurso indireto, indicam tudo aquilo que forma o núcleo de qualquer experiência revolucionária (Altoé, 2004, p. 74). É dessa tradição revolucionária que brota, do seio da cultura 16 cezar wagner cap. 6.p65 213 25/8/2008, 17:29 86 214 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O popular brasileira, o Teatro do Oprimido. Criado nos anos 1970 pelo ativista político-cultural Augusto Boal, num contexto de re- sistência aos regimes ditatoriais que violentavam os direitos so- ciais e impunha uma ordem bélica, oposta ao ritmo de liberta- ção e solidariedade dos povos latino-americanos, essa modalidade de teatro serviu de instrumento de luta contra os aparelhos tota- litários e as subjetividades opressoras que operavam em todas as dimensões da existência. Hoje um movimento cultural ainda em expansão, atuando em mais de setenta países, o Teatro do Oprimido vem desapro- priando os meios de produção de bens simbólicos, artísticos, mediante a popularização desses meios para as comunidades. Enquanto na linguagem dramática herdada da Grécia, o ca- minho da perfeição e os valores aristocráticos são impostos aos espectadores por via catártica, na Estética do Oprimido o espec- tador rompe a catarse e se transforma em “espect-ator”, trans- gredindo as fronteiras da representatividade dramática e atuan- do. O espectador liberta-se, pensa e atua sintonizado com os anseios coletivos de seu grupo, de sua comunidade. A metodologia do Teatro do Oprimido segue dois princípios fundamentais: o primeiro é transformar todos os espectadores em “espect-atores”, retomando as origens primordiais dos rituais dionisíacos. O segundo princípio é de transformar toda “ficção” vivida nos espaços cênicos, em um ensaio para a transformação da realidade. O Teatro do Oprimido é um sistema de exercícios físicos, jogos estéticos, técnicas de imagens e improvisações especi- ais, que tem por objetivo resgatar, desenvolver e redimensi- onar essa vocação humana, tornando a atividade teatral um instrumento eficaz na compreensão e na busca de soluções para problemas sociais e interpessoais (Boal, 2002, p. 28). Fundado na reflexão sobre histórias comuns vividas no co- tidiano, são descortinadas as relações de poder e de repressão dos desejos vitais dos envolvidos. A dramaturgia é construída com base nesse compartilhamento e constituída para denunciar as 16 cezar wagner cap. 6.p65 214 25/8/2008, 17:29 87 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 215 relações entre opressores e oprimidos, propiciando a libertação da lógica de opressão, mediante a produção coletiva de alterna- tivas para os problemas apontados. As peças de Teatro do Oprimido podem ser expressas em vá- rios formatos, considerando o foco que se deseja atingir (cultu- ral, pedagógico, político, terapêutico e, preferencialmente, to- dos integrados): * Teatro Imagem: são técnicas que permitem aos inte- grantes debaterem um problema e pensar sem o uso das pa- lavras, com imagens produzidas pelos seus próprios corpos e/ou por objetos. * Teatro Fórum: é um jogo dramático dialético no qual o protagonista, em verdade “co-agonista”(por sempre sofrer jun- to com o outro), tem um desejo vital a ser realizado e não con- segue pelas relações de domínio que lhe são impostas. Nesse formato o público é transformado em um coletivo que busca alternativas para os problemas apontados, conduzindo a ação dramática. * Teatro Legislativo: é uma peça de Teatro-Fórum na qual as alternativas sugeridas pelo coletivo são formatadas em projetos de lei e apresentadas nas câmaras ou assembléias legislativas. Posteriormente, o coletivo deve acompanhar a tramitação do projeto, pressionando a sua aprovação e, após aprovado, fiscalizando a sua implantação. * Arco-Íris do Desejo: é uma técnica dramática de fun- ções terapêuticas, desenvolvida para possibilitar a expressão das opressões que foram introjetadas pelas relações simbó- licas de dominação a serem trabalhadas. O teatro de elite, da burguesia, é um teatro laico, assim como a própria classe dos proprietários. Classe a qual os antigos deu- ses precisaram exilar-se para que se divinizasse o Capital e todas as suas expressões de exploração. Essa teatralidade é uma obra de arte finalizada, própria de quem já cristalizou uma visão de mundo e quer expressá-la. O teatro burguês é um espetáculo as- séptico no qual a pureza da arte final não pode contaminar-se pelo público, que deve estar silencioso, domesticado, catártico, 16 cezar wagner cap. 6.p65 215 25/8/2008, 17:29 88 216 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O para melhor acumular as mensagens bancárias transmitidas do palco. O teatro popular é um teatro sagrado, de onde nunca foi preciso alienar o divino. A transcendência, é, por excelência, a expressão da criatividade, de uma tradição advinda dos rituais ancestrais de culto à terra. A teatralidade popular é uma arte de infinitos ciclos, de quem está sempre descobrindo um mistério e celebrando uma nova criação. Um teatro inacabado, aberto à transformação, ao diálogo, um ensaio coletivo, sem público, no qual todos são criadores espontâneos, um templo circular onde todos são deuses. (Texto de Aldo Rezende de Melo, Aracaju, Ser- gipe, 2007.) A R T E -I D E N T I D A D E O animal explorador orienta-se por sinais, investiga o am- biente para se proteger, habitar, alimentar-se e procriar. Ao pas- sar à condição humana, torna-se curioso e apaixonado, mani- pula objetos e faz arte, quer conhecer o mundo e construir seu próprio caminho. Expressa realidades internas singulares na for- ma de gesto, símbolo ou ação. Torna-se espírito enraizado em permanente recriação existencial. Desse modo, o mundo subje- tiva-se e torna-se realidade interna e particular do ser, enquan- to este se objetiva no mundo como singularidade, como expres- sividade, como arte. O mundo vivido é transformado, torna-se símbolo, ganha significação, faz-se, também, arte. Com base nesse olhar sobre o ser humano, entendemos a Arte-Identidade como abordagem expressivo-evolutiva (peda- gógica e terapêutica), que parte da arte em sua função media- dora da relação indivíduo-mundo, para facilitar a expressão do potencial de vida inerente a todo ser humano, o qual, por mui- tos caminhos, anseia expressar-se, fazer-se singularidade com os outros no mundo. Adotamos a expressão “Arte-Identidade” em 1990, a partir dos trabalhos de criatividade que realizávamos em Biodança, como a Coragem de Criar e a Dança das Máscaras. Baseando- nos nas obras de Rolando Toro, Nise da Silveira, Jung, Boal, Ar- taud, Signor e Brecht, vimos que, de fato, a arte realizada sob 16 cezar wagner cap. 6.p65 216 25/8/2008, 17:29 89 T É C N I C A S D E FAC I L I TA Ç Ã O 217 determinadas condições tem o poder de atuar positivamente sobre o mundo primal, arquetípico, consciente e social do indi- víduo, favorecendo processos de regulação orgânica, existencial e social. Ademais, influi positivamente sobre a expressão do si- mesmo, a identidade pessoal. Vemos a arte sendo importante caminho de expressão e re- criação da identidade pessoal. Ela marca o momento da grande mudança, quando o homo, além de representar em sua mente o que via e vivenciava, passou a traduzir isso externamente na for- ma de desenho nas cavernas. Aí se revela com todo o seu poder a imaginação humana. Nesse instante, o homo sapiens deu o salto em direção ao humano atual. Podemos dizer que três grandes instantes nos fizeram: o bipedalismo, o uso do fogo e a pintura nas cavernas — a arte. A imaginação surge com o gesto tosco de riscar e este riscar vira pintura, que recria a imaginação que trans- borda como arte, como expressão do

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