História de Portugal Tomo I - Oliveira Martins PDF

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Centro de Estudos de Fátima

Oliveira Martins

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Portuguese history History of Portugal Lusitanian history European history

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This is a book about the history of Portugal, written by Oliveira Martins. It examines the roots of Portuguese nationality, tracing it back to the Lusitanian people. The book delves into the political and social developments of Portugal throughout history.

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História de Portugal Oliveira Martins Edições Vercial Índice ADVERTÊNCIA LIVRO PRIMEIRO OS LUSITANOS FUNDAMENTOS DA NACIONALIDADE GEOGRAFIA PORTUGUESA A TERRA E O HOMEM A HISTÓRIA NACIONAL LIVRO SEGUNDO A SEPARAÇÃO DE PORTUGAL A CONQUISTA DE A...

História de Portugal Oliveira Martins Edições Vercial Índice ADVERTÊNCIA LIVRO PRIMEIRO OS LUSITANOS FUNDAMENTOS DA NACIONALIDADE GEOGRAFIA PORTUGUESA A TERRA E O HOMEM A HISTÓRIA NACIONAL LIVRO SEGUNDO A SEPARAÇÃO DE PORTUGAL A CONQUISTA DE AL-GHARB A MONARQUIA E A JUSTIÇA A CRISE LIVRO TERCEIRO O INFANTE D. HENRIQUE PORTUGAL EM ÁFRICA O PRÍNCIPE PERFEITO EM DEMANDA DO PRESTE-JOÃO DAS ÍNDIAS LIVRO QUARTO D. FRANCISCO DE ALMEIDA AFONSO DE ALBUQUERQUE D. JOÃO DE CASTRO SUMÁRIO DA DERROTA. VOLTA AO REINO LIVRO QUINTO A CORTE DE D. MANUEL A INQUISIÇÃO (D. JOÃO III) JORNADA DE ÁFRICA (D. SEBASTIÃO) O SEBASTIANISMO LIVRO SEXTO A EDUCAÇÃO DOS JESUÍTAS OS FILIPES PORTUGAL RESTAURADO AS MINAS DO BRASIL (D. JOÃO V) O TERRAMOTO – O MARQUÊS DE POMBAL LIVRO SÉTIMO A SOCIEDADE A INVASÃO FRANCESA 1820 D. MIGUEL A REVOLUÇÃO LIBERAL APÊNDICE ADVERTÊNCIA « Antigamente foi costume fazerem memoria das cousas que se fazião, assi erradas, como dos valentes & nobres fey tos. Dos erros porque se delles soubessem guardar: & dos valentes & nobres fey tos, aos bõos fezessem cobiça auer pera as semelhantes cousas fazerem». Coronica do Condestabre A história é sobretudo uma lição moral; eis a conclusão que, a nosso ver, sai de todos os eminentes progressos ultimamente realizados no foro das ciências sociais. A realidade é a melhor mestra dos costumes, a crítica a melhor bússola da inteligência: por isso a história exige sobretudo observação direta das fontes primordiais, pintura verdadeira dos sentimentos, descrição fiel dos acontecimentos, e, ao lado disto, a frieza impassível do crítico, para coordenar, comparar, de um modo impessoal ou objetivo, o sistema dos sentimentos geradores e dos atos positivos. O desenvolvimento do critério racional e o predomínio crescente dos processos próprios das ciências baniram os modelos antigos e fizeram da história um género novo. Nem os discursos morais ou literários sobre a história, à maneira do XVII século, nem o doutrinarismo seco do XVIII, que sobre factos e instituições mal conhecidos construía sistemas gerais quiméricos, nem a opinião, muito seguida em nossos dias, de considerar a história unicamente nos seus fenómenos exteriores, averiguando eruditamente as épocas e as condições dos sucessos, merecem, a nosso ver, imitação. Todos estes sistemas, porém, ensaios sucessivos para determinar o género de um modo definitivo, têm um lado de verdade aproveitável. Os modelos clássicos fizeram sentir o caráter moral da história; os modelos abstratos, a necessidade de compreender os fenómenos num sistema de leis gerais; os modelos eruditos, finalmente, a condição imprescritível de um conhecimento real e positivo da cronologia e dos elementos que compõem o meio externo ou físico das sociedades. Nada disto, porém, é ainda realmente a história, embora todas essas condições sejam indispensáveis para a sua compreensão. O íntimo e essencial consiste no sistema das instituições e no sistema das ideias coletivas, que são para a sociedade como os órgãos e os sentimentos são para o indivíduo, consistindo, por outro lado, no desenho real dos costumes e dos carateres, na pintura animada dos lugares e acessórios que forma o cenário do teatro histórico. Estes dois aspetos são igualmente essenciais: porque a coexistência independente dos motivos coletivos e naturais, e dos atos individuais, é um facto incontestável na vida das sociedades. Na História da Civilização Ibérica tratámos de estudar o sistema de instituições e de ideias da sociedade peninsular, para expor a sua vida coletiva orgânica e moral. Tomámos aí a sociedade como um indivíduo, e procurámos retratá-lo física e moralmente. Agora o nosso propósito é diverso. Tratando da história particular portuguesa, somos levados a encarar principalmente o segundo dos aspetos essenciais da história geral. A sociedade portuguesa, como molécula que é do organismo social ibérico, peninsular, ou espanhol – estas três expressões têm aqui um alcance equivalente – obedeceu, nos seus movimentos coletivos, ao sistema de causas e condições próprias da história geral da península hispânica. Por isso procurámos sempre, na obra referida, indicar o modo pelo qual as leis gerais se realizavam simultaneamente nas duas nações espanholas: duas, porque a história assim constitui politicamente a Península. Metade da história portuguesa está, portanto, escrita na História da Civilização Ibérica: a metade que trata da vida da sociedade, como um ser orgânico. Compreender-se-á, pois, que nos abstenhamos agora de repetir o que está dito, e que nos limitemos a enviar o leitor para esse livro; indicando, quando for necessário, o lugar onde poderá encontrar a explicação das causas gerais a que no texto se tem de aludir. Resta fazer a segunda metade: resta caracterizar o que há de particular na história portuguesa; resta fazer viver os seus homens, e representar de um modo real a cena em que se agitam: tal é o programa deste livro, cujas dificuldades de execução excedem em muito as do anterior. Nesse, bastavam o conhecimento e o pensamento: um para nos dizer como foram as coisas, outro para nos indicar o princípio e o sistema da civilização. Agora carece-se do faro especial da intuição histórica, e dum estilo que traduza a animação própria das coisas vivas. Toda a longanimidade do leitor será pois necessária para desculpar as imperfeições da obra. É mister indicar ainda outro assunto e prevenir uma impressão, natural em quem ler sucessivamente as duas obras. A História de Portugal consiste numa série de quadros, em que, na máxima parte das vezes, os carateres dos homens, os seus atos, os motivos imediatos que os determinam e as condições e modo por que se realizam, merecem antes a nossa reprovação do que o nosso aplauso. Crimes brutais, paixões vis, abjeções e misérias compõem, por via de regra, a existência humana; e por isso mais de um moralista tem condenado o estudo da história, como pernicioso para a educação. – Por outro lado, a História da Civilização Ibérica respira um entusiasmo otimista que, ao primeiro exame, pareceria contraditório com o péssimo e mesquinho caráter que as ações dos homens apresentam. Um exemplo bastará para demonstrar este antagonismo: além considerámos as conquistas americanas e asiáticas uma obra heroica, e agora veremos que montanha de ignomínias foi o império português do Oriente. Esta contradição, real para o critério abstrato, não existe, porém, para o critério histórico. Toda a boa filosofia nos diz que o homem real é a imagem rude de um homem ideal, que essa imagem vive no mundo inconscientemente, e que todas as ações dos homens, maculadas de defeitos e vícios, obedecem a um sistema de leis, idealmente sublimes. É esta verdade que o povo consagrou quando formulou o adágio: Deus escreve direito por linhas tortas. Pesada esta consideração, que não podemos agora desenvolver de um modo cabal, ver-se-á como na história de uma civilização os carateres particulares das ações dos homens, fundindo-se no sistema geral de princípios e leis que os determinam, perdem individualidade, e não valem senão como elementos componentes de um todo superior: que sejam humanamente bons ou maus, importa nada, porque só nos cumpre atender ao destino que os determina, e a moral é um critério incompetente para a esfera ou categoria coletiva de que se trata. Na esfera dos movimentos de instituições e ideias na categoria da vida social, as ações dos homens são sempre absolutamente excelentes; porque a supremacia da sociedade sobre o indivíduo consiste no facto da existência de uma consciência superior da Ideia, no organismo que se diz sociedade. Os poetas épicos, seres privilegiados cuja voz não é própria, senão coletiva, são os órgãos vivos da consciência de uma civilização; assim Camões sente e exprime a grandeza histórica do império das Índias, que na própria opinião particular do poeta são uma Babilónia, um poço de ignomínias. Esclarecido este lado do problema, embora de um modo incompleto e rápido, resta-nos dizer que na segunda metade da história, na que trata dos indivíduos e dos episódios, na que pinta os costumes e os pensamentos, o critério é outro: por isso afirmámos que a história é uma lição moral. Nos vícios e nas virtudes, nos erros e nos acertos, na perversidade e na nobreza dos indivíduos que foram, há um exemplo excelente. Na sabedoria ou na loucura dos atos políticos e administrativos passados há um meio de prevenir e encaminhar a direção dos atos futuros. A história é, nesse sentido, a grande mestra da vida. Se os vícios, os erros, o crime e a loucura predominam, iremos por isso condenar a história por perniciosa? Não, decerto. Apresentar crua e realmente a verdade é o melhor modo de educar, se reconhecemos no homem uma fibra íntima de aspirações ideais e justas, sempre viva, embora mais ou menos obliterada. Conhecer-se a si próprio foi, desde a mais remota Antiguidade, a principal condição da virtude. LIVRO PRIMEIRO DESCRIÇÃO DE PORTUGAL «Onde a terra se acaba e o mar começa» CAMÕES, Lusíadas, III, 20 I. OS LUSITANOS « O povo desde o qual os historiadores têm tecido a genealogia portuguesa está achado: é o dos lusitanos. Na opinião desses escritores, através de todas as fases políticas e sociais da Espanha durante mais de três mil anos, aquela raça de celtas soube sempre, como Anteu, erguer-se viva e forte; reproduzir-se, imortal na sua essência; e nós os portugueses do século XIX temos a honra de ser os seus legítimos herdeiros e representantes». Com esta ironia encoberta mas grave, fustigava Alexandre Herculano os seus predecessores, historiógrafos nacionais, e, segurando com valor a férula magistral, castigava o povo culpado de acreditar numa tradição que tem para o erudito, além de outros defeitos, o de ser recente. Só desde o fim do XV século o nome de lusitani começa a substituir o de portucalenses, nos livros; mas essa inovação, perpetuando-se entre os eruditos, torna-se por fim uma crença nacional e quase popular. Que valor merece a inovação? Nenhum; e por vários motivos: « Tudo falta: a conveniência de limites territoriais, a identidade da raça, a filiação da língua, para estabelecermos uma transição natural entre os povos bárbaros e nós». Ora estes argumentos, decisivos para o sábio historiador, não nos parece a nós – perdoe-se-nos o atrevimento – que o sejam. Outro tanto sucede com todas as nações ou quase todas, desde que procuramos estabelecer a árvore genealógica, indo aos arcanos de um passado ignoto reconhecer a fisionomia dos mortos de muitos séculos e determinar de entre eles os primeiros avós de uma nação. Seria absurdo exigir conveniência de limites territoriais, ou por outra, identidade de fronteiras, entre a localização de uma tribo primitiva, e a de uma nação moderna nem aos povos que hoje mais indiscutivelmente representam, pura, uma raça, poderia fazer-se tal exigência. Se há ou não identidade de raça, é exatamente o problema que deveria agitar-se; e, sem isso, negá-lo é proceder dogmática e não cientificamente. Alega-se que são indecisas as noções de Estrabão com respeito às fronteiras dos lusitanos; diz-se mais que não coincidem com as que Augusto deu à província da Lusitânia. O geógrafo antigo, ora parece incluir os calaicos nos lusitanos, estendendo as fronteiras destes últimos até à costa do norte da Península, ora os separa, dando-lhes o Douro como divisória. A demarcação de Augusto adotou esta segunda versão. As fronteiras orientais estendiam-se, quer para o geógrafo, quer, depois, para a administração romana, muito além da raia portuguesa, incluindo Salamanca, e subindo quase até próximo de Toledo. Daí para o sul, e depois para o nascente, seguindo o curso angular do Guadiana, os lusitanos de Estrabão e a Lusitânia de Augusto tinham como limite este rio, quase desde as suas fontes, e até a sua foz, na costa do nosso Algarve. Se ligássemos, pois, um valor positivo às resenhas dos antigos geógrafos, e um alcance social-histórico à identidade das fronteiras primitivas e atuais, parece-nos que poucas nações poderiam com melhores motivos achar na etnologia dos antigos o fundamento da sua vida moderna. Alargue-se a fronteira do norte ao Minho (conquista da Lusitânia sobre a Galécia), retraia-se a fronteira de leste ao Douro (conquista da Tarraconense sobre a Lusitânia) e teremos feito coincidir os antigos com os atuais limites. Qual é, dos primitivos, o povo que no decurso da sua vida histórica deixou de conquistar e de ser conquistado? Qual é o que não ganhou ou não perdeu, de um lado ou de outro, sobre ou para os vizinhos? Se a maneira porque, a partir do século XV ou XVI, os historiógrafos nacionais filiam o Portugal moderno na antiga Lusitânia justifica as fundadas ironias do nosso grande historiador, não nos parece que o processo por ele seguido para negar a doutrina seja conveniente, nem até verdadeira a opinião de que entre portugueses e lusitanos nada haja de comum. Quando hoje vimos renascer de um modo erudito, e daí afirmar-se no espírito popular, a tradição nacional germânica, a italiana e até a romana, que valor tem o facto da tradição lusitana ter estado obliterada por séculos, para só ressurgir numa época relativamente próxima e de um modo erudito? Se os portugueses da Idade Média não sabiam de seus avós lusitanos, acaso saberiam de seus avós ítalos, romanos ou teutónicos os piemonteses, os valáquios ou os prussianos até o XVIII século? Acaso, também, ser-lhes-á mais possível do que a nós estabelecer uma transição natural e uma história ininterrupta desde as primeiras idades até as modernas? Não, decerto. Se a erudição pudesse demonstrar a unidade da raça ibérica, então os lusitanos baixariam à condição de uma variedade sem autonomia: facto é, porém, que pouco ou nada sabemos, nem de iberos em geral, nem de lusitanos em particular, e por isso as fábulas dos velhos antiquários não merecem a atenção moderna. Não haverá, porém, acaso outro caminho para atacar este problema? A falta de monumentos escritos, nada poderá valer-nos? Entre a fábula ingénua dos antiquários e as exigências secas e formais dos eruditos modernos, não estará outra via? Afigura-se-nos que sim. Todos reconhecem hoje a indestrutível tenacidade das populações primitivas. Raízes profundas que nenhuma charrua destrói apesar de revolta a leiva pelo ferro das conquistas, depois de esmagados as folhas e troncos pelo tropear dos cavalos de guerra, depois de queimados e reduzidos a cinzas pelos incêndios das invasões embora se lancem novas sementes à terra e nasçam vegetações novas, essas raízes profundas tornam a reverdecer, crescem, dominam um chão que é seu, e afinal convertem ou esmagam, transformam ou exterminam, de um modo obscuro, lento, mas invencível, as plantas intrusas. A permanência dos carateres primitivos dos povos, facto hoje indiscutível, permite fazer – consinta-se-nos a expressão – a história ao inverso: julgar de hoje para ontem, inferir do atual para o passado. A questão da raça lusitana apresenta-se-nos pois nestes termos: há uma originalidade coletiva no povo português, em frente dos demais povos da Península. Cremos que a há circunscrita porém a traços secundários. Cremos que as diversas populações da Espanha, individualizadas sim, formam, contudo, no seu conjunto, um corpo etnológico dotado de carateres gerais comuns a todas. A unidade da história peninsular, apesar do dualismo político dos tempos modernos, é a prova mais patente desta opinião. Esse dualismo, porém, leva-nos também a crer que entre as diversas tribos ibéricas, a lusitana era, senão a mais, uma das mais individualmente caracterizadas. Não esquecemos, decerto, a influência posterior dos sucessos da história particular portuguesa; mas eles, por si só, não bastam para explicar o feitio diverso com que coisas idênticas se representam ao nosso espírito nacional. Há no génio português o que quer que é de vago e fugitivo, que contrasta com a terminante afirmativa do castelhano; há no heroísmo lusitano uma nobreza que difere da fúria dos nossos vizinhos; há nas nossas letras e no nosso pensamento uma nota profunda ou sentimental, irónica ou meiga, que em vão se buscaria na história da civilização castelhana, violenta sem profundidade, apaixonada mas sem entranhas, capaz de invetivas mas alheia a toda a ironia, amante sem meiguice, magnânima sem caridade, mais que humana muitas vezes, outras abaixo da craveira do homem, a entestar com as feras. Trágica e ardente sempre, a história espanhola difere da portuguesa, que é mais propriamente épica: e as diferenças da história traduzem as dissemelhanças do caráter. Poderemos regressar agora ao passado, e perguntar-lhe a causa primária deste fenómeno? Decerto não. Ou sombras impenetráveis o encobrem, ou a escassez do nosso saber nos não deixou ainda desvendá-lo. Como hipótese – e do nosso atrevimento será escusa a nossa modéstia – somos levados a crer que a individualidade do caráter dos lusitanos (quer neles incluamos os calaicos, quer não) provém de uma dose maior de sangue céltico ou celta (questionou-se outrora sobre isto) que gira em nossas veias, de mistura com o nosso sangue ibérico. Os nomes próprios de lugares, os nomes de pessoas e divindades, tirados das inscrições latinas da Lusitânia e da Tarraconense, que constituem o nosso Portugal, provam a preponderância de um elemento céltico. As vagas indicações dos antigos falam-nos dos celtas das margens do Guadiana, e dão-no-los na costa ocidental da Península. Vale porém mais do que isso a analogia evidente entre as manifestações particulares dos lusitanos e dos galegos, e aquela fisionomia que os estudos eruditos sobre os celtas da França e da Irlanda têm determinado a estes últimos. Tentámos há pouco esboçar a nossa fisionomia diferencial: escusado é tornar agora ao assunto. Se a ideia de uma filiação dos lusitanos foi expressa de um modo ridículo pelos antiquários clássicos, a ideia de uma filiação céltica ou celta teve já a mesma sorte quando, quase em nossos dias, houve quem pretendesse filiar diretamente o português na língua dos bardos. Paz do esquecimento a todas as quimeras! II II. FUNDAMENTOS DA NACIONALIDADE Que valor tem o problema da nacionalidade perante a questão da independência política? Causas complexas, de ordem a mais diversa, e de merecimento o mais distante, circunstâncias que não vêm agora ao caso desenvolver, fizeram com que no nosso tempo se substituísse, ao princípio do equilíbrio internacional, o princípio das nacionalidades, na organização dos corpos políticos independentes da Europa. Invasora como todas as doutrinas, e além disso habilmente explorada pelos estadistas, a das nacionalidades tentou – se não tenta ainda – predominar absoluta no triplo conjunto de causas naturais que de facto determinaram sempre, e sempre determinarão, a existência das nações; a geografia, a raça, e as necessidades de ponderações, uma vez que a Europa é de facto uma anfictionia. Sobre estes três elementos naturais, ou antes coartado por eles, o egoísmo das nações e a ambição dos imperantes talharam no mapa a delimitação das fronteiras. Por escasso que seja o conhecimento da história, ninguém ignora que de todos três o que mais impunemente tem sido e é atacado pela vontade dos homens, é o primeiro. A rebeldia dos dois segundos traduz-se de um modo mais imediato e eficaz nas guerras de equilíbrio e nas guerras comerciais ou estratégicas. Guerras, própria e exclusivamente de raça, são raras, se é que alguma houve; e os povos oprimidos por estranhos, quando têm o sentimento como que religioso da comunidade de origem, extinguem-se, ou em revoltas estéreis, ou emigrando. O equilíbrio, o comércio, a estratégia, porém, muitas vezes aproveitam o sentimento da raça, fomentando-o, para dar com ele às guerras a sanção que noutros tempos se achava, de um modo análogo, nas crenças propriamente religiosas. Até hoje todas as sucessivas tentativas para descobrir a nossa raça têm falhado. Latinos, celtas, lusitanos e afinal moçárabes têm passado: ficam os portugueses, cuja raça, se tal nome convém empregar, foi formada por sete séculos de história. Dessa história nasceu a ideia de uma pátria, ideia culminante que exprime a coesão acabada de um corpo social e que, mais ou menos consciente, constitui como que a alma das nações, independentemente da maior ou menor homogeneidade das suas origens étnicas. O patriotismo tanto pode, com efeito, provir das tradições de uma descendência comum, como das consequências da vida histórica. Não há dúvida, porém, que, se assenta sobre a afinidade etnogénica, resiste mais ao império estranho do que quando provém apenas de uma comunidade de história. No dia em que a independência política se perde, obliteram-se mais rapidamente os carateres autonómicos, embora durante a luta valham menos os elementos de Força provenientes da homogeneidade etnogénica. Assim tantas nações perderam na Europa moderna a sua autonomia, sem que restem vestígios vivos da sua antiga independência; ao passo que as individualidades étnicas aparecem ainda hoje distintas no seio das nações politicamente unificadas desde largos séculos: tais são o país basco, a Galiza e o Aragão, na Espanha; a Irlanda e a Escócia de raça céltica, na Inglaterra; a Provença, ou a Bretanha, em França; e, na Rússia, a Finlândia que é escandinava, ou as províncias bálticas que são germânicas. O patriotismo português não é pois argumento a favor nem contra o problema da unidade de sangue das populações com que Portugal se formou. O jornalismo e a política podem explorar retoricamente todas as coisas, confundindo-as; mas à ciência impassível e soberana fica mal deixar-se arrastar por motivos inferiores. O patriotismo é excelente, no seu lugar. Negar que durante os três séculos da dinastia de Avis a nação portuguesa viveu de um modo forte e positivo, animada por um sentimento arreigado da sua coesão, seria um absurdo. Essa coesão, que fora ganha nas lutas e campanhas da primeira dinastia, perde-se no XVI século, por causa das consequências do império oriental e da educação dos jesuítas. Portugal acaba; Os Lusíadas são um epitáfio. Deixemos pois celtas e lusitanos em paz, e aproximemo-nos dos tempos que precederam a formação da monarquia portuguesa. Nessa época, o Mondego divide em duas metades o território nacional e as diferenças típicas da população deviam ser então ainda mais acentuadas do que o são hoje. Na metade do sul o tipo vai confundir-se com os limítrofes de além da fronteira do reino; e na metade do norte, diz um nosso ilustre escritor, « a Galiza, que tem connosco de comum a língua, que é uma continuação natural da zona geográfica portuguesa, podia muito melhor formar com Portugal uma nação do que Portugal com Castela». A Galiza, cuja língua se tornou literária sob o nome de português, vem com efeito até o Mondego: o mosteiro de Lorvão dá-se em antigos documentos como situados in finibus Galleciae. O falecido Soromenho (Origens da Língua Portuguesa) dizia que « entre a língua usada na província de Entre-Douro-e-Minho e a que mais tarde aparece nas terras de Cima Coa e na Estremadura há uma diferença bastante sensível. Pode sem receio dizer-se que, à semelhança do que sucedia além dos Pirenéus, em Portugal havia também uma langue d'oc e uma langue d'oil, a língua do Norte e a língua do Sul... O Mondego é a linha divisória... ainda um século depois de D. Dinis ter abandonado o Latim como língua oficial». Esta diferença coincide singularmente com as diferenças, evidentes para todos, no clima, na vegetação, no caráter das populações do Norte e do Sul do nosso país. E a uniformidade posterior da língua explica-se natural e comezinhamente pelo facto de sete séculos de unidade nacional. « A importância que o português adquiriu repentinamente, diz o senhor Adolfo Coelho (A Língua Portuguesa), resultou da introdução da cultura poética na corte portuguesa». É conhecido o papel da política no sentido de unificar as línguas de uma nação; abundam os exemplos de línguas substituídas, e nem sempre a língua denuncia a estirpe. Os normandos perderam em França o seu idioma escandinavo, os burgúndios e os lombardos, na França e na Itália, os seus idiomas germânicos; à maneira dos oscos e úmbrios que tinham trocado pelo Latim as suas línguas. Não se pretenda por forma alguma dizer, contudo, que ao sul do Mondego houvesse uma língua diversa; diga-se, porém, que o argumento da unidade atual da língua, depois de sete séculos de vida nacional, não tem valor. Todos veem ainda hoje como é rara a população no Sul, menos densos portanto os laços coletivos; e todos sabem como essas regiões, sujeitas por séculos a guerras exterminadoras, habitadas por moçárabes, invadidas por berberes, taladas pelo fanatismo almorávide passaram para sob o império da monarquia nascida na Galiza portuguesa. Como não receberiam a língua do vencedor? Não podia haver luta entre duas línguas românticas, porque a arabização do Sul fora completa: podê-la-ia haver entre o árabe e o português, quando a população cativa passava à condição de escrava?, quando as novas terras conquistadas eram povoadas por colónias francas, ou pelos cavaleiros hierosolimitanos? Por tais motivos parece evidente a ausência de uma causa etnogénica no facto da formação da monarquia portuguesa, cujas razões de existir são comezinhas, praticamente compreensíveis, sem teorias subtis. A língua vale decerto muito, como argumento: mas não valerá nada o homem que a fala? Não se acham por esse mundo homens de uma mesma raça falando idiomas diversos, e populações de um mesmo idioma, pertencendo a raças diferentes? Ora quem trilhou Portugal e a Espanha vizinha observou decerto – ou não tem olhos para ver – uma afinidade incontestável de aspeto e de caráter, um parentesco evidente, entre as populações dos dois lados do Minho, dos dois lados do Guadiana, dos dois lados da raia seca de leste. Se esses homens não falassem, ninguém distinguiria duas nações. E por outro lado, confundiu já alguém um algarvio, ou um alentejano puro, com um puro minhoto? A história comum funde, não cinde; e quando vemos, depois de sete séculos, diferenças tão marcadas, a observação dos homens leva-nos a crer que com efeito em Portugal faltou uma unidade de raça, sobrando pelo contrário uma vontade enérgica e uma capacidade notável nos seus príncipes e barões. Com um retalho da Galiza, outro retalho de Leão, outro da Espanha meridional sarracena, esses príncipes compuseram para si um estado. A raça é de facto o mais ténue dos laços próprios para garantir a coesão independente de um povo. E além disso a doutrina – se admitíssemos a identidade dela e do facto – exigiria que à expressão de raça se ligassem sempre certos carateres correspondentes à vastidão necessária, à eminência sempre crescente das funções orgânicas, e à originalidade ativa, das nações modernas. Mal de nós, pois, se ao facto de termos ou não termos sido os lusitanos, ou outros quaisquer, formos pedir argumentos para defender a nossa independência nacional; porque esse facto não aumentará, nem a nossa força, nem as nossas razões; porque esse facto nem sequer chega para motivar a nossa separação da monarquia leonesa. Não nos levantámos contra ela como lusitanos oprimidos, nós nem tínhamos a menor ideia de que fossemos lusitanos, ou qualquer outra coisa. A população do condado portucalense, ibera, cruzada de celtas, romanizada, submetida ao governo dos godos, depois aos árabes, e finalmente ao monarca leonês, não podia ter, decerto, um sentimento de coesão coletiva ou nacional, incompatível com o estado da sua cultura, com a tradição, e com a situação social e política: é isso o que todos os documentos históricos nos revelam. « Portugal, diz o sr. Herculano, nascido no XII século em um ângulo da Galiza, dilatando-se pelo território do Al-Gharb sarraceno, e buscando até aumentar a sua população com as colónias trazidas de além dos Pirenéus, é uma nação inteiramente moderna». É decerto; sem isso, porém, impedir que tenha raízes antigas. Não confundamos esta questão com a da independência, e teremos, cremos nós, pisado o verdadeiro e sólido terreno da história. A causa da separação de Portugal do corpo da monarquia leonesa não é obscura, nem carece de largas divagações para definir-se: é a ambição de independência do governador do condado, que o tinha do rei suserano; é o afastamento desta nova região roubada aos sarracenos; é a necessidade de pulverização da soberania, que a aliança desta ideia com a de propriedade, e a ignorância de meios administrativos capazes de manter a ordem em terrenos dilatados, tornam inevitável na Idade Média. Portugal separava-se, da mesma forma que o reino da Navarra se dividira em três, e pelos mesmos motivos. Portugal defende a separação; o monarca suserano impugna-a. Debate- se mais de uma vez a questão com as armas; não porque se chocassem os sentimentos nacionais, mas porque os príncipes defendiam o que era, ou julgavam ser, propriedade sua. Estas primeiras guerras portuguesas não depõem decerto de um modo particular em favor da independência, porque eram a lei de toda a Espanha, a lei de toda a Europa – podemos dizer assim. É um preconceito fazer do conde D. Henrique o fundador consciente da independência de uma nação, quando o conde apenas cuidava de uma independência pessoal e própria. O sentimento de independência nacional, a ideia de que os reis são os chefes e representantes de uma nação, e não os donos de uma propriedade que defendem e tratam de alargar, bem se pode dizer que só data da dinastia de Avis, depois do dia memorável de Aljubarrota. No XII e XIII séculos Portugal é um certo território, propriedade de um certo príncipe: donde vem? quem é?, pouco importa. O conde D. Henrique era francês. Assim, a época da primeira dinastia desmente por todos os lados, e de todas as formas, a ideia de uma raça, possuindo, de um modo mais ou menos definido, a consciência da sua existência coletiva. É essa a consciência que dá porém o caráter eminente à segunda dinastia, ou de Avis, em cujas mãos Portugal desempenha um papel bem semelhante ao dos fenícios da Antiguidade. Como aos fenícios sucedeu aos portugueses: no momento em que a razão de ser da sua ação na civilização da Europa desapareceu, a nação definhou, sumiu-se, perdendo tudo até perder a independência. É verdade que a nossa independência restaura-se em 1640. Mas como? De que modo? Atrever-se-á alguém a dizer que é uma ressurreição? Não será a história da Restauração a nova história de um país que, destruída a obra do império ultramarino, surge, no XVI século, como no nosso apareceu a Bélgica, filho das necessidades do equilíbrio europeu? Não vivemos desde 1641 sob o protetorado da Inglaterra? Não chegámos a ser positivamente uma feitoria britânica? E ainda no decurso desta história o Brasil veio, enchendo-nos de oiro, prestar-nos um ponto de apoio extraeuropeu, e como que restaurar o antigo caráter do Portugal manuelino, capital europeia de um império ultramarino, à maneira da Holanda. E que melhor prova pode haver da nossa desorganização do que a duração efémera da obra do marquês de Pombal – o estadista que concebeu a verdadeira restauração de Portugal, chegando por um momento a fazer dele outra vez uma nação independente?, que melhor prova do que a reação vitoriosa de D. Maria I? A perda do Brasil, reduzindo o reino à miséria, veio mostrar a fragilidade do nosso edifício político. Os ingleses tiveram de nos tutelar para manter, como lhes convinha, a dinastia de Bragança; e passada, vencida a crise, apareceu com o liberalismo a impotência manifesta de restaurar a vida histórica de uma nação imperial ou colonial. Não confundamos, pois, pelo amor de tudo o que há sensato, o patriotismo com as questões e problemas científicos das origens naturais étnicas. Também a Suíça, alemã, italiana, francesa, odiou o austríaco, à maneira por que nós odiámos Castela. Basta a história, basta o interesse, para dar homogeneidade social e política a um povo; e basta essa homogeneidade para criar um patriotismo. Ora o patriotismo das raças assim formadas exprime-se na ação, e não em miragens enganadoras de um passado que a história acaba. Na sua língua, nas suas tradições, no seu caráter, o celta da Irlanda encontra sempre um ponto de apoio vivo e positivo. Quereis uma prova da diferença? Os pontos de apoio que nós buscamos são mortos ou negativos: morto o império marítimo e colonial, a Índia, e toda a história que terminou com os Lusíadas em 1580; negativo o ódio a Castela, que nem nos oprime, nem nos odeia. Se a unidade da raça primitiva se não vê, menos ainda Portugal obedece na sua formação às ordens da geografia: os barões audazes, ávidos e turbulentos são ao mesmo tempo ignorantes de teorias e sistemas. Vão até onde vai a ponta da sua espada: tudo lhes convém, tudo lhes serve, contanto que alarguem o seu domínio. Por isso as fronteiras de Portugal oscilam durante os primeiros dois séculos à mercê dos azares das guerras, com Leão e Castela de um lado, com os sarracenos do outro; e Portugal vem a ser formado com dois fragmentos do reino leonês, um, dos emirados sarracenos, outro. Quando Fernando Magno de Castela, descendo do oriente, conquistou a moderna Beira aos muçulmanos, a Galiza encontrou em Coimbra e na linha de defesa do Mondego uma fronteira que a punha ao abrigo de futuras correrias, até ou além do vale do Douro. Pelo meado do XI século a expressão geográfica da Galiza ia, pois, até o Mondego; porém, as novas conquistas tinham sido constituídas pelo rei num governo, ou condado, cujos limites eram, pelo norte, o Douro; e a leste, uma linha passada por Lamego, Viseu e Ceia, e que, descendo de novo à costa, acompanhava os pendores setentrionais da serra da Estrela. Condado de Galiza ao norte, de Coimbra ao sul do Douro, sarracenos ao sul do Mondego: eis aí a condição do território do moderno de Portugal na segunda metade do XI século. Já, porém, nesta época, uma expressão a que não correspondia valor político, militar ou administrativo aparece a designar o território de entre o Douro e o Minho e a moderna província de Trás-os-Montes: a essa parte do condado da Galiza chama-se já Portucale. Nos últimos anos do XI século correrias felizes deram ao célebre Afonso VI a posse de Santarém, Lisboa e Sintra, alargando as fronteiras cristãs até à linha do Tejo. Os nossos territórios de entre o Mondego e Tejo foram criados em condado ou governo, e confiados à guarda de Gonçalo Mendes da Maia, o nomeado Lidador; e os três governos que tinham por limites sucessivos o Douro, o Mondego e o Tejo constituíram em favor do genro de Afonso VI, Raimundo de Borgonha, uma espécie de vice-reino. Breve foi, porém, a duração deste período; porque logo em 1097, depois do desbarato do conde borguinhão e da perda da fronteira do Tejo, Afonso VI efetua uma nova divisão do território, dando autonomia política à expressão geográfica de Portucale ou Portugal, e anexando-lhe o antigo condado de Coimbra. O condado portucalense, por tal forma engrandecido, foi dado a um primo do conde da Galiza, e os seus domínios recuavam assim de golpe desde o Tejo até o Minho. Esse primo era o conde D. Henrique, também genro do poderoso Afonso VI. Na primeira metade do XII século, o conde e a viúva sua herdeira levam as fronteiras do seu Estado, para leste, até Zamora, e para norte, por entre Minho e Bivei, até Tui e Orense. As guerras civis dos Estados da Península davam e tiravam assim, constantemente, territórios e povoações. A fronteira norte-leste breve regressa, porém, aos seus atuais limites de além-Douro; mas o governo de Afonso Henriques, o primeiro que ousou quebrar de todo os laços ténues da vassalagem a Leão, viu alargar-se do lado oposto a raia até à linha do Sado, desde que, no meado do XII século, Lisboa, Santarém, Sintra, Almada e Palmela caíram definitivamente em seu poder, acrescentando novas terras às do primitivo condado portucalense. As fronteiras do norte e leste, no além-Douro, eram já, ao tempo da acessão de Sancho I ao trono, as mesmas de hoje: margem esquerda do Minho, por Melgaço a Lindoso, daí a Bragança por Miranda, entestar com o Douro no ponto em que agora se estremam Portugal e a Espanha. A fronteira de leste, entre Douro e Tejo, só no tempo de D. Dinis se demarcou por onde hoje passa: no fim do XII século a raia seguia desde a foz do Coa, rio acima, até a confluência do Pinhel, e, acompanhando-o, passava entre Sabugal e Sortelha, em demanda das fontes do Elga. Daí ao Tejo, então e agora, a fronteira é a mesma. Ao sul do Tejo é difícil, senão impossível, determinar cronologicamente as fronteiras portuguesas. A nacionalidade do domínio nas cidades do Alentejo permitiria traçar geograficamente a linha da fronteira com uma aproximação conveniente, tanto mais que os territórios de entre as cidades, devastados e ermos, eram posse de quem no momento os pisava armado. Mas as sucessivas correrias lado a lado, a tomada, logo a queda, depois a reconquista de uma mesma cidade, às vezes num período de meses, tornam impossível demarcar a fronteira antes da época em que definitivamente uma certa região passa para o domínio português, para dele não mais sair. Assim, a tomada de Évora, em 1166, dá à linha do Sado, pouco antes conquistada, um ponto de apoio a leste contra as fortalezas sarracenas de Juromenha, Elvas e Badajoz. Por aí a raia portuguesa iria até Marvão, acaso até Arronches. Tal é a linha das primeiras fronteiras do moderno Portugal. No primeiro quartel do XII século, Alcácer do Sal, base estratégica da linha sarracena ao sul, e Elvas, padrasto avançado da linha de leste, caem em poder dos portugueses; e à determinação final da nossa raia alentejana vem juntar-se, até o meado do século, a conquista do Algarve, completando, entre o Guadiana e o mar, o moderno Portugal. No ferir das guerras da conquista não são os muçulmanos que põem um freio à ambição pessoal dos príncipes, porque a sorte do império do Islão estava lançada, e para a consumar concorriam todos os Estados cristãos da Península. Será porventura a raça que delimita as fronteiras da nova nação? Ocioso é já responder. Será a geografia? Não parece; desde que vemos a raia cortar de lado a lado as planícies do Alentejo, as bacias do Tejo e do Douro, e cair perpendicularmente sobre as cumeadas das montanhas em vez de lhes seguir a orientação. Qual dos três elementos nos resta? O equilíbrio. O equilíbrio é com efeito o elemento ponderador: à ambição dos príncipes de Portugal opõe-se a resistência dos reis de Leão; as armas, invocadas, demonstram que, se um dos antagonistas não tem força bastante para submeter o adversário, o outro tem de usar com prudência de um poder limitado. Quando tenta passar além do Minho, ou adquirir para si Badajoz, a reação mostra-lhe até onde pode ir a ação dos meios de que dispõe. Do equilíbrio ou ponderação das duas forças antagónicas nasce a determinação geográfica do Portugal moderno, para o qual só no extremo norte e no extremo sul, sobre o Minho e sobre o Guadiana, se assentou em admitir uma fronteira natural. Estas já longas explicações bastarão, parece-nos, a expor claramente o nosso pensamento. Há ou não há uma nacionalidade portuguesa? Questão absurda, assim formulada. Evidentemente há, se nacionalidade quer dizer nação. Se por nacionalidade se entende, porém, um corpo de população etnogenicamente homogéneo, localizado numa região naturalmente delimitada, insistimos em dizer que tal coisa se não dá connosco. Se por nacionalidade se entende, finalmente, essa unidade social que a história imprime em povos submetidos ao regime de um governo, de uma língua, de uma religião irmãs, como nós o temos sido durante sete séculos, evidentemente a resposta só pode ser uma. III III. GEOGRAFIA PORTUGUESA Quando se observa o retalho da Península, de que a história fez Portugal, separado do corpo geográfico a que pertence, desde logo se vê como a vontade dos homens pôde sobrepujar as tendências da natureza. Os rios e as serranias descem, perpendiculares sobre a costa ocidental, prosseguindo uma derrota e provindo de uma origem que se dilatam para muito além das fronteiras, até o coração do corpo peninsular. As cumeadas das montanhas e os vales extensos mudam de nacionalidade naquele ponto convencional que aos homens aprouve fixar. Não falta, porém, quem pretenda encontrar, no nosso próprio território, motivos determinantes da constituição primordial da nação: tanto pode a obcecação doutrinária! Diz um que essa separação dos litorais é uma regra; nega outro o caráter arbitrário da linha das fronteiras de leste, afirmando que essa linha coincide com os limites extremos até onde os nossos rios são navegáveis. Decerto nunca os viu quem tal afirma. No Guadiana apenas se navega até Serpa, e entretanto o rio é português nas duas margens até Monsaraz, formando a raia daí até Elvas. O Douro para cima da Régua é tão navegável até Zamora como até Barca de Alva. No Tejo, passando Abrantes, tanto se vai até Alcântara, como até Aranjuez. Onde está pois a concordância da fronteira com a parte navegável dos rios? A alegada base geográfica da nacionalidade desaparece pois, se é que uma tal expressão não quer apenas denunciar o destino marítimo, como que fenício, da nação. As duas coisas não devem, porém, confundir-se, pois num caso encontramos a causa determinante da agregação social, enquanto no outro se observa a consequência do facto da existência anterior dessa agregação, fortuitamente constituída num litoral. É evidente que o caráter marítimo e colonial da nação portuguesa, na segunda dinastia, não podia ter influído no facto já secular da independência. É sabido que D. Afonso Henriques, o autor dela, não tinha navios, servindo-se dos dos Cruzados para tomar Lisboa e Alcácer. A marinha foi uma criação da monarquia e um produto da nação, depois de constituída; o caráter marítimo é histórico, não é primitivo em um povo rural, como era o português dos primeiros tempos, e ainda hoje o é o galego. O movimento de deslocação da capital do reino para o sul, as medidas de D. Dinis, as de D. Fernando, depois a empresa do Infante D. Henrique, são momentos sucessivos de uma história que é o nervo íntimo da vida portuguesa. Desde a reunião das esquadras cruzadas no Tejo para a conquista de Lisboa, desde a introdução dos genoveses, que vieram ensinar-nos a navegar, vê-se começar a formar-se essa nação cosmopolita, destinada à vida comercial, marítima e colonizadora. É essa a nação que a história forma; e por isso mesmo que a vida portuguesa foi marítima, e o destino da sua história o mar; por isso mesmo avultam os elementos que diariamente tornam cosmopolitas as cidades marítimas de um país cuja capital é um dos melhores portos do mundo. Portugal foi Lisboa, e sem Lisboa não teria resistido à força absorvente do movimento de unificação do corpo peninsular. Erguido em frente do mar como um anfiteatro cujos primeiros degraus as ondas constantemente aspergem, o território português, independente, adquiriu desta localização um caráter seu; ao mesmo tempo que nos habitantes de Portugal acaso uma diversa combinação de sangue favorecia uma tendência particular. Assim como, porém, as cristas das montanhas, e, pelo coração dos vales, o curso dos nossos rios são as veias e os tendões que nos ligam ao corpo peninsular; assim também no nosso sangue os elementos primitivos acusam o facto de uma origem e de uma raça irmã. E se temos uma fisionomia moral, distinta sem ser diversa, também as condições do nosso território nos dão um género de destino diferente, mas encaminhando a um mesmo fim. As navegações e descobertas são a nossa glória e a nossa maior façanha. Mareando a interrogar as mudas ondas, construímos; conquistando, derrocámos. Navegadores e não conquistadores, desvendámos todos os segredos dos Oceanos; mas o nosso império no Oriente foi um desastre, para o Oriente e para nós. A bordo fomos tudo; em terra apenas pudemos demonstrar o heroísmo do nosso caráter e a incapacidade do nosso domínio. Façanhas de homens que dirigem instintos devotos e pensamentos de cobiça, eis aí o que nós veremos ser o nosso império oriental. Epopeia do espírito indagador, audaz e paciente, as nossas navegações, as nossas explorações colonizadoras tornam-nos os génios desse elemento misterioso, para o qual, porventura, a nossa alma céltica nos atraía. Quando à Europa humilhada o castelhano impõe a lei com a espada e o mosquete, nós, amarrados ao banco dos remeiros, segurando o leme, ferrando as velas, alargamos mar em fora a nau, com o olhar perscrutador fixado nos astros que nos guiam. Vamos de manso, ao longo das costas... Ninguém nos vê: só as ondas ouvem as melopeias monótonas dos marinheiros, cujo ritmo obedece ao ritmo do quebrar da vaga contra o costado. – Eles vão, emplumados e vestidos de aço, arrogantes e cheios de império, com o seu grito estridente e trágico, ensurdecer e estontear o mundo! Ninguém diria dois povos irmãos; e são-no, porque ambos obedecem a um motivo idêntico, a um pensamento igual, que está no fundo da sua alma inconsciente, como a chama que arde no cerne da Terra, dando origem a rochas tão diversas no aspeto, na cor, na rijeza, na estrutura, no mérito. Portugal é um anfiteatro levantado em frente do Atlântico, que é uma arena. A vastidão do circo desafia e provoca tentações nos espectadores, arrastando-os afinal à laboriosa empresa das navegações, que era para eles um destino desde que a política os destacara do corpo da Península. Quando se percorre de norte a sul a estreita faixa da nação ocidental da Espanha, encontram-se os sucessivos prolongamentos das cordilheiras peninsulares, galgando uns até o mar, terminando outros mais distantes da costa. Entre eles abrem-se as bacias ou estuários de rios paralelos que podem dividir-se em dois sistemas: o do norte e o do sul, delimitados pela cordilheira da Estrela- Aire-Montejunto-Sintra. No sistema do norte, o Douro é a artéria central duma região montuosa, coroada nos limites setentrionais e austrais pelas duas cordilheiras culminantes da Galiza e da Beira. De uma e de outra, como socalcos ou degraus sucessivos dessa plateia de montanhas que se fecha aquém da fronteira portuguesa, descem outras serras, entre cujas depressões se precipitam os rios nacionais do norte: o Minho, que delimita a Galiza, o Lima, o Cávado e o Ave, ao norte do Douro, e ao sul o Vouga e o Mondego. As serras de entre Minho e Lima são as do Soajo; as de entre Lima e Douro, as do Gerês e do Marão, separadas pelo Tâmega, confluente deste último; as de entre Douro e Vouga, Montemuro: as de entre Vouga e Mondego, Caramulo. No sul, as baías do Tejo e Sado, divididas pela península da Arrábida, constituem o centro de um sistema de caudais irradiantes que cortam a zona mais plana, limitada de um lado pela serra da Estrela, do oposto pela do Algarve. Ao norte, na raiz austral da primeira, corre o Tejo, desinteressando-se de Castela; destacando-se deste, para sueste, o Sorraia, em plena planície; e, mais pronunciadamente para o sul, o Sado, que vai nascer no pendor norte das montanhas algarvias. Se a metade do norte de Portugal é fechada a leste por um sistema de contrafortes avançados dos Pirenéus cantábricos, a metade sul, teatro das guerras castelo-portuguesas, contradiz de um modo inconstestável a opinião dos que veem na orografia a base necessária da delimitação das fronteiras nacionais. A começar do sul, o Guadiana fende a cordilheira andaluza penetrando no interior da Península. Curvando a sua orientação em Badajoz, o Guadiana, depois de ter regado os nossos terrenos raianos, toma uma direção leste através das largas campinas da Estremadura espanhola que os tratados apenas dividiram do nosso Alentejo. Nesta metade austral da nossa fronteira de leste, as planícies e as águas do rio que as rega mudam de nação sem mudarem de natureza; e outro tanto sucede aos contrafortes avançados que reúnem num mesmo promontório as serras de Guadalupe e a Morena, e onde em Portugal assentam Portalegre ao norte, Évora ao sul. No troço de fronteira ao norte desta como que garra lançada pela ossatura da Espanha no Portugal alentejano, corre, primeiro, o amplo vale em cujo centro desliza o Tejo, prolongando-se com ele, Estremadura em fora, até Toledo; e seguem, depois, as cumeadas da Gardunha, que dividem o Tejo do Zêzere, apertando este rio contra a serra da Estrela. O pendor austral das serras do Algarve e a faixa ou tapete de jardins sobre que pousa a sua base o trono desses montes, formam uma última e como que excecional província geográfica, vedeta sobre o continente fronteiro, cujo clima e produções partilha. Geognosticamente, o território português pode dividir-se em três regiões principais: a das rochas ígneas e paleozoicas, a dos terrenos secundários e a dos terrenos terciários. Tracemos uma linha que, partindo de Aveiro para norte, ao longo da costa, se dobre para nascente acompanhando a fronteira marginal do Minho. Daí estenda-se por toda a raia de leste até as serras do Algarve, baixando-a em direção poente, para a prolongar com a costa até Sines. Depois, interne-se a contornar a bacia do Sado, por Grândola, Cercal, Panóias, Aljustrel, Ferreira, Torrão até Vendas Novas; em seguida a do Sorraia, por Lavre, Mora, Ponte de Sor, caindo sobre o Tejo em Abrantes, e caminhando para norte por Tomar, Alvaiázere, Anadia – e ter-se-á encerrado em Aveiro um perímetro que abrange cerca de três quartas partes da superfície total da nação. É a região dos terrenos primitivos. A dos terrenos secundários compõe-se de dois retalhos isolados. O primeiro estende-se ao longo da margem direita do Tejo, desde Lisboa até a Barquinha; entestando daí até Aveiro com a linha anteriormente traçada, e vindo ao longo da costa, a descer para o sul, circunscrever a serra de Sintra, chegando outra vez a Lisboa. O segundo é constituído pelo litoral do Algarve, no pendor sul das serras, até o mar. A terceira região, finalmente, a dos terrenos terciários, desce pela costa, desde a ponta do Bugio, ao sul do Tejo, até Sines, alargando-se pelas duas zonas divergentes dos vales do Sado e do Sorraia, contornados pela linha determinada antes ao delimitar a raia da primeira região. Esta última é, como se viu, a mais extensa e importante. Abrange as duas províncias ao norte do Douro, a quase totalidade das duas Beiras, e do Alentejo, e boa metade do Algarve. A Estremadura quase por si só compõe as duas segundas regiões – uma ao norte, outra ao sul do Tejo. Na do norte predominam os terrenos cretáceos e jurássicos, formando também estes últimos a quase totalidade do retalho algarvio da segunda região. Uma pequena mancha de granitos em Sintra, os basaltos dos arredores de Lisboa, e as dunas da costa, desde a Marinha Grande até Aveiro são os fenómenos esporádicos da geognosia desta parte de Portugal. Na região do sul do Tejo apenas a Arrábida e Santiago de Cacém apresentam breves nódoas de terrenos jurássicos; e estes, os terrenos modernos formados pelas aluviões do Tejo e Sado e que lhes bordam as margens, e os areais da costa entre o Bugio e o cabo Espichel, são as únicas exceções do vasto lençol da região dos terrenos terciários. Na primeira e mais extensa das zonas geognósticas de Portugal também o Tejo pode dar lugar a uma divisão em duas sub-regiões diferentemente caracterizadas. Tomadas ambas como um todo, os terrenos, xistosos quanto à estrutura, e primários ou paleozoicos quanto à idade, predominam em massa, envolvendo as rochas eruptivas ou ígneas. Porém ao norte do Tejo o volume destas rochas, exclusivamente graníticas, é proximamente igual à dos xistos; ao passo que ao sul, além destes últimos predominarem, aparecem não só granitos mas pórfiros e dioritos. Entre Castelo de Vide, Portalegre, Niza e o Crato, inscreve-se acaso o maior e mais compacto afloramento de granitos ao sul do Tejo. Depois deste vem o de Évora, bracejando de um modo irregular, para norte até Vimieiro, para nordeste até Lavre, e no lado oposto até Viana, Aguiar e S. Manços. Afinal, as pequenas nódoas de Galveias, de Santa Eulália, de Freia, de Reguengos, da Vidigueira, e de Vale Vargo a nascente de Serpa, completam o sistema de afloramentos graníticos da sub-região do sul do Tejo. Os pórfiros e os dioritos constituem um longo dorso que vem de sueste a nordeste, desde Serpa, por Beja, Alvito, Torrão, Alcáçovas, terminar junto de Cabrela, quase na raia da região terciária. Além desta formação principal, encontram-se destacadas as manchas esporádicas de Alter, de Benavila, de Monforte, e as duas mais consideráveis de Campo Maior e de Elvas, próximo da fronteira. Ao norte do Tejo as condições variam. A massa de rochas eruptivas predomina sobre a dos xistos. Depois do maciço xistoso da Gardunha, entre Castelo Branco e o Fundão, transposto o vale do Zêzere, encontra-se a base alastrada da serra da Estrela, e afinal os alicerces de Montemuro. Os granitos vêm desde a fronteira, entre Alfaiates e a Barca de Alva, pela Covilhã e Tábua ao sul, por Viseu a poente, entestar no Douro, cuja margem esquerda sobe até a raia de Leão. Pequenas são as nódoas xistosas na área circunscrita: S. João da Pesqueira e Vila Nova de Foz Coa, na margem do Douro; Vila da Igreja às origens do Vouga; Pinhel e Valhelhas no pendor sul da serra da Estrela. Porém as abas ocidentais das serras da Gardunha, da Estrela e de Montemuro, ladeadas ao sul pelo Tejo, formam duas vastas zonas de terrenos paleozoicos, uma cortada pelo Zêzere, outra pelo Mondego e pelo Vouga; são estas zonas que vêm raiar com a região dos terrenos secundários até Aveiro, e com o mar desde Aveiro até a foz do Douro, tendo de permeio a faixa de dunas da costa. Ao norte do Douro os xistos predominam para cima da linha Régua- Chaves, os granitos para baixo. Ao longo da costa, desde o Porto até a Póvoa, encontra-se, destacado, um afloramento de rochas eruptivas; e, para leste, um outro nas serras do Gerês e do Soajo, a poente do Tâmega, lançando junto a Braga um ramo que vai, por Barcelos, a Viana e até Caminha. A leste da linha Chaves-Régua são irregulares e dispersos os afloramentos eruptivos: acompanham a margem portuguesa do Douro desde Bemposta até Miranda; aparecem em dois pontos da extrema fronteira do norte; vêm de Montalegre, por Chaves, até Valpaços e Torre de D. Chama; e pela serra do Marão, desde Mondim e Ribeira de Pena, por Vila Pouca e Vila Real, morrer junto ao Douro em Vilarinho. Todo o resto, o Marão, da Campeã a Santa Marta, as alturas à esquerda do Corgo, a máxima parte do vale do Tua, e todo o vale do Sabor, são formados pelos terrenos paleozoicos. IV IV. A TERRA E O HOMEM Conhecida a orografia e a geognosia do território, brevemente indicaremos o sistema de carateres agrícolas e climatológicos, ambos subordinados aos anteriores, e todos solidariamente ligados para formar a fisionomia natural das diversas regiões do território português. A sua antiga divisão em províncias obedecia mais a estas condições naturais do que a moderna divisão em distritos: as causas determinantes de uma e de outra são o motivo desta diferença. As províncias formaram-se historicamente em obediência às condições naturais; os distritos atuais foram criados administrativamente de um modo até certo ponto artificial. Umas provinham dos carateres próprios das regiões, e a administração limitara-se a reconhecer factos naturais; outros, determinados por motivos abstratos, nasceram de princípios administrativos e estatísticos (área, quantidade de população, etc.), fazendo-os discordar o menos possível dos limites naturais, geográficos e climatológicos. Por estes motivos nós agora estudaremos por províncias, e não por distritos, o território português; deixando para o lugar competente o estudo das condições modernas da nação. A divisão das províncias apoiava-se em factos físicos de um valor eminente. Começando pelo norte, o território de além-Douro inscreve duas zonas separadas pelo Tâmega: a leste, Trás-os-Montes; a oeste, Entre-Douro-e-Minho. Além de obedecer, como se vê, à geografia, buscando nos rios fronteiras naturais, a divisão das duas províncias consagrava diferenças essenciais: as geognósticas já por nós observadas (rochas eruptivas dominando a oeste, xistos a leste do Tâmega), e além delas as climatéricas. Portugal, segundo já se disse noutro lugar, é em geral um anfiteatro de montanhas, levantado em frente do Oceano. Esta circunstância caracteriza para logo as regiões de um modo também geral, dividindo-as em duas categorias: as marítimas e as interiores; as cis e as transmontanas; as que estão diretamente expostas à ação das brisas marítimas, e os declives orientais, os vales interiores, e os degraus ou socalcos das serras encobertas aos bafejos do mar por cumeadas ocidentais sobranceiras. Esta circunstância dá carateres inteiramente diversos às duas províncias do Douro-Minho e de Trás-os-Montes, divididas pelas serranias do Gerês e do Marão, que roubam a última à ação das brisas marítimas. Quem alguma vez transpôs o Tâmega, decerto observou a profunda diferença da paisagem e do caráter e aspeto dos habitantes de aquém e de além desse rio. O transmontano, vivo, ágil, robusto, destaca-se para logo do minhoto, obtuso mas paciente e laborioso, tenaz, persistente e ingénuo. Além do Tâmega o clima é seco (40 a 80% de humidade relativa), poucas as chuvas (500 a 1000 mm. e no estio 70 a 80 apenas), grande o calor no fundo dos vales apertados, mas temperado nas alturas; intensos os frios hibernais, que coroam de neve as montanhas e gelam as águas pelas baixas (12 a 15º temperatura média). Aquém, as brisas do mar, estacadas na sua passagem pelas serras, condensam-se e produzem as chuvas copiosas: por isso no Minho o pendor ocidental das serras do oriente é sarjado pelos numerosos e sucessivos rios paralelos, cujos vales, reunindo-se junto à costa, formam ao longo dela a primeira das planícies litorais de Portugal. Habita essa região pingue uma população abundante, ativa, mas sem distinção de caráter, nem elevação de espírito: consequência necessária da humidade e da fertilidade. Falta essa espécie de tonificação própria do ar seco e dos largos horizontes recortados num céu luminoso e puro. O Minho é uma Flandres, não uma Ática. As chuvas precipitam-se abundantes (1200 a 2000 mm. anuais, e no estio 80 a 200) sobre um chão lavrado de caudais; a humidade (70 a 100%) torna flácidos os temperamentos e entorpece a vivacidade intelectual, que nem um frio demasiado irrita, nem um calor excessivo faz fermentar, à maneira do que sucede nas zonas genesíacas dos trópicos. Temperado o clima (12 a 15°), sem excessivos afastamentos hibernais, a população satisfeita, feliz, e bem nutrida de vegetais e de ar húmido, oferece a imagem de um exército de laboriosas formigas sem coisa alguma do alado e brilhante de um enxame dourado de abelhas. O clima determina a paisagem. Além-Tâmega as louras messes do trigo, os pâmpanos rasteiros, o carvalho nobre e o castanheiro gigante vestem os pendores de elevadas serras, cujas cristas dentadas de rochas, no inverno coroadas de neves, se recortam no fundo azul do firmamento, dando fixidez e nobreza ao quadro, e infundindo o quer que é de elevado no espírito. A natureza vive na luz, e a alma sente que os elementos têm dentro em si forças que os animam. Aquém Tâmega o cenário muda: a humidade cria em toda a parte vegetações abundantes; não há um palmo de terra donde não brote um enxame de plantas! mas como o solo é breve, como a rocha aflora por toda a parte, e os campos nascem do terreno vegetal formado nas anfractuosidades do granito pelas folhas e ramos decompostos, e nos estuários dos rios pelos sedimentos das cheias, a vegetação é rasteira e humilde, o pinho marítimo de uma constituição débil, o carvalho um pigmeu enleado pelas varas das vides suspensas. A densidade da população completa a obra da natureza numa região onde o vinho não amadurece: o ácido picante dá-lhe uma semelhança das bebidas fermentadas do norte, cidra ou cerveja, e com ela, ao génio do povo, carateres também semelhantes aos de bretões e flamengos. A vegetação, de si mesquinha, é amesquinhada ainda pela mão dos homens; as necessidades implacáveis da população abundante produzem uma cultura que é mais hortícola do que agrícola: pequeninos campos, circundados por pequeninos vales, orlados de carvalhos pigmeus, decotados, onde se penduram os cachos das uvas verdes. No meio disto formiga a família: o pai, a mãe, os filhos, imundos, atrás duns boizinhos anões que lavram uma amostra de campo, ou puxam a miniatura de um carro. Sob um céu enuviado quase sempre, pisando um chão quase sempre alagado, encerrado num vale abafado em milhos, dominado em torno por florestas de pinheiros sombrios, sem ar vivificante, nem abundante luz, nem largos horizontes, o formigueiro dos minhotos, não podendo despregar-se da terra, como que se confunde com ela e, com os seus bois, os seus arados e enxadas, forma um todo donde se não ergue uma voz de independência moral, embora amiúde se levante o grito de resistência utilitária. A paisagem é rural, não é agrícola; a poesia dos campos é naturalista, não é idealmente panteísta. Quem uma vez subiu a qualquer das montanhas do Minho e dominou daí as lombadas espessas de arvoredo, sem contornos definidos, e os vales quadriculados de muros e renques de carvalhos recortados, sentiu decerto a ausência de um largo fôlego de ideal, e de uma viva inspiração de luz. Apenas aqui e acolá, engastado na monotonia da cor dos milhos, um canto do verde alegre do linho vem lembrar que também no coração do minhoto há um lugar para o idílio infantil do amor. Descendo para o sul do Douro, entre a Beira montanhosa e a Beira litoral, dão-se diferenças análogas às que distinguem o Minho e Trás-os-Montes: análogas, dizemos, e não idênticas porque nesta nova região começam a sentir-se as influências de causas gerais, como são as da latitude. A zona anterior estanceia entre os paralelos 41° e 42º; as Beiras descem até 39º e 30º; Portugal inscrito entre 37º e 42º, e lançado como uma estreita faixa norte-sul, tem na latitude das regiões uma causa geral a concorrer sempre com as causas particulares, quais são a altitude, a exposição e a constituição geognóstica das montanhas, no sentido de determinar os carateres das suas diferentes províncias. Nesta de que agora nos ocupamos, levanta-se ao centro a serra da Estrela, a cujo pendor marítimo se chamou Beira Alta, dando-se aos declives trasmontanos opostos, reunidos à Gardunha, o nome de Beira Baixa. Três zonas compõem a região das duas províncias o litoral formado pelos estuários do Vouga e do Mondego, as serranias ocidentais ou marítimas, e as orientais ou transmontanas. A serra da Estrela é a mais elevada das cordilheiras portuguesas; é o prolongamento da espinha dorsal da Península; é a divisória das duas metades de Portugal, tão diversas de fisionomia e temperamento! é finalmente como que o coração do país – e acaso nas suas quebradas e declives, pelos seus vales e encostas, demora ainda o genuíno representante do lusitano antigo. Se há um tipo propriamente português; se através dos acasos da história permaneceu puro algum exemplar de uma raça ante-histórica onde possamos filiar-nos, é aqui que o havemos de procurar, e não entre os galegos ao norte do Douro, nem entre os turdetanos da costa do sul, nem entre as populações do litoral cruzadas com o sangue de muitas raças e com os sentimentos e costumes das mais variadas nações. O pastor quase-bárbaro dessas cumeadas da serra a topetar com as nuvens (1800 a 2000 m. de altit.), abordoado ao seu cajado, vestido de peles, seguindo o rebanho de ovelhas louras, é talvez o descendente dos companheiros de Viriato. Por essas eminências, tapetadas de relva no estio e de neves no inverno, nem as vilas, nem as árvores se atrevem a subir: só o pastor nómada as habita. Do alto do seu trono de rochas vê gradualmente ir nascendo a vida pelas encostas: primeiro o zimbro, rasteiro e roído pelo gado, circunda os altos nus; logo aparecem os piornos, as urzes brancas, os carvalhos; depois, já a meia altura da encosta, os castanheiros, as lavouras, os enxames de aldeias; afinal, na extrema baixa, o lençol de lagunas, tapete de esmeraldas engastadas em fios de brilhantes, que o sol faceta ao espelhar-se no labirinto dos canais. A serra da Estrela, reforçada ao norte pelo contraforte de Montemuro, fecha, com o Marão e o Gerês, uma muralha natural, onde os ventos do mar estacam. Apenas cortada pelos vales do Douro e do Tua – duas fendas – essa barreira, cujos picos sobem até 2000 m., encerra e protege o Portugal do norte, sendo a principal causa das chuvas abundantes e do clima criador do litoral de além Mondego. O beirão, habitante da encosta ocidental onde o ar é mais húmido do que em Trás-os-Montes (65 a 100%), as chuvas mais abundantes (700 a 1200 mil.) e a temperatura idêntica; onde o castanheiro colossal, o cedro, o carvalho e o pinheiro bravo põem na paisagem todos os tons e essa grandeza própria de árvores que vivem séculos: o beirão é menos vivo, mas mais robusto. Quem divagou por essas terras admirou decerto a estrutura hercúlea dos seus homens, cuja face, não luzindo com os brilhantes reflexos da vida interior, acusa todavia um pleno desenvolvimento da vida animal. Berço dos audazes bandidos, anacrónicos representantes de uma independência de outras idades, a Beira é o viveiro de musculosos trabalhadores, que vão todos os anos, pelo estio, lavrar as glebas do sul do Tejo, levemente vestidos com as bragas curtas de linho, descalços, com a camisola de lã agasalhando o tronco, o barrete frígio na cabeça, a manta e a enxada ao ombro. Descendo ao litoral, o beirão é anfíbio: pescador e lavrador. A lavoura nasce do mar: os carros são barcos, adubos o moliço de algas e mariscos. Ao lado de um talhão de milho está uma marinha de sal. O mar insinua-se pelos canais retalhando a planície, em cujo centro, como uma artéria, corre placidamente o Vouga. A três léguas da costa vê-se fundeado um barco: as mulheres cosem as redes, ao lado, sobre a terra húmida e negra, que os bois lavram, ou o cavador abre à enxada. O calor (15º a 16º), a humidade permanente (65 a 80%), fazem germinar breve as sementes, multiplicam as colheitas e as febres. Essa paisagem deliciosa e original, indecisa entre o mar e a terra, e que nos enche de vivo prazer, quando a dominamos desde os altos de Angeja à raiz das montanhas, atrai-nos como a sombra da manzanilha, cheia de frescura e veneno. Os elementos, confundidos, vingam-se da temeridade dos homens. A exposição oriental ou transmontana das abas da serra da Estrela e dos cerros subalternos da Gardunha dá à província da Beira Baixa um outro aspeto: há maior secura no ar, e as chuvas são menos abundantes; os olivais medram melhor, e os habitantes juntam à vida agrícola a industrial, tecendo as lãs dos rebanhos da serra com a força das torrentes que se despenham nas quebradas do vale do Zêzere. Já semelhante por muitos lados ao Alto Alentejo, a Beira Baixa é a transição da metade norte para a metade sul do país. Caminhos de Oriente para Ocidente. O alto Alentejo tem o clima de Trás-os-Montes; a temperatura média é mais elevada (16º a 17º) porque a menor altura das montanhas dá frios menos intensos no inverno; as chuvas estivais são menores também (30 a 50 mil). Fronteira aberta da Espanha, a raia apenas convencionalmente o divide da Estremadura Castelhana. As mesmas planícies onduladas, as mesmas culturas cerealíferas, as mesmas florestas de sobros e azinhos, as mesmas vinhas, os mesmos costumes, os mesmos homens estão de um lado e do outro da fronteira. Torrada pelo sol a face barbeada, de olhar vivo, gesto livre, porte nobre e seguro, bizarro, folgazão, hospitaleiro e comunicativo, o alentejano exprime no seu todo a grandeza um tanto austera do chão sobre que vive. Não é decerto um grego de Atenas, mas é um grego da Beócia. Os seus campos são um granel, os seus montados um viveiro. Quando nas longas e alinhadas estradas, entre lençóis de matas de azinho escuro, sob o calor de um sol dardejante, divisamos ao longe uma pequena nuvem de poeira, que a luz ilumina, e ouvimos o tilintar alegre das campainhas e guizos nas coleiras dos machos – é o caseiro, que a trote largo, com a cara redonda e alegre, o ventre apertado nos seus calções de briche preto, vai à feira de Vila Viçosa em maio, ou à de Évora em junho, tratar dos negócios da lavoura. A distância, vem o arreeiro no seu carro toldado, guiando a récua de machos carregados de odres de vinho; logo o pastor com o guarda-mato de pele de cabra, o cajado ao ombro, conduzindo as ovelhas, a vara de porcos, gordos como texugos, ou a boiada loura de longas hastes. O sol ardente dá tom a todas as cores, vida a todos os movimentos; sufoca-se, a poeira cega, e as bagas de suor camarinham na testa. O alentejano diz pouco, e raro canta; não é misantropia, é indiferença. O idílio não pode seduzir a quem vive em ampla comunhão com o campo largo, o céu sempre azul, o sol sempre em fogo. Apenas, de verão, baila ao som da guitarra nas noites calmosas, fazendo a vigília aos seus santos favoritos, não para esquecer um trabalho que lhe não dói, mas para dar largas aos seus amores de um momento. Os que uma vez embarcaram abaixo de Serpa, onde as cataratas põem ponto à navegação, Guadiana em fora até o Algarve, terão sentido ao chegar à foz a impressão de quem entra, de um sertão, em um jardim; de quem deixa uma gruta escura por uma planície luminosa. Breve é a extensão do Algarve, desde Vila Real até Lagos abrigado pela ponta do cabo de S. Vicente; mas esse trajeto sombrio do Guadiana divide duas regiões caracteristicamente acentuadas. O algarvio é um andaluz. Ao contrário do alentejano, tudo o interessa, de tudo fala, agita-se em permanência, com uma vivacidade quase infantil. No Algarve não há o silêncio e a impassibilidade; há o movimento constante, o falar, o cantar de uma população como a dos gregos das ilhas, ora embarcados nos seus navios costeiros, ora ocupados nos seus campos, que são jardins. Se a planície e os longos horizontes das montanhas dão ao espírito a placidez solene, também o arrulhar constante da onda, sobre a qual, debruçado como um eirado está o Algarve, põe no pensamento uma agitação permanente, meio tonta, mas encantadora. Ao calor de um sol já africano, durante o estio, e no seio de uma constante primavera, durante o inverno, o algarvio desconhece a aspereza da vida: nem os frios o obrigam à indústria para se vestir, nem a fome ao duro trabalho da enxada para comer. Enquanto voga sobre o mar, mercadejando, pescando, contrabandeando, crescem-lhe no campo a figueira, a amendoeira, a laranjeira, cuja seiva o sol se encarrega de transformar todos os anos em frutos. A alfarrobeira nas encostas da sua serra, a palma pelos valados, pedem apenas que lhes colham os frutos e os ramos; e o mercador, no seu barco, ao longo da costa, espera as cargas, para as trocar por dinheiro. No decurso da nossa viagem deixámos em claro as mortíferas baixas do Guadiana: nem vale a pena demorarmo-nos nessa região desolada; porque agora, regressando pela costa acima, o litoral do Alentejo e a parte ocidental da Estremadura transtagana partilham com ela os carateres tristonhos e doentios. Entramos na região dos terrenos terciários : as águas estagnaram e apodreceram nas baixas; as populações definham. Ou torradas pelo árido suão, que os areais ardentes não podem suavizar, e sem montanhas que obriguem os vapores do mar a condensarem-se; ou envenenadas pelos miasmas dos pauis que o sol de fogo põe numa fermentação permanente, as populações amarelecidas e magras definham, curvadas pelo trabalho mortífero das marinhas de sal, ou da cultura pantanosa do arroz. São o contraste das baixas do norte do país, estas baixas do sul. Além, copiosas chuvas e uma humidade criadora, aqui o ar seco (500 a 700 mil. anuais, 30 a 50 no estio); humidade (30 a 80%), duro e carregado de emanações mefíticas. Além, uma temperatura branda; aqui um calor (med. 17º) excessivo. Além, uma população exuberante; aqui, as solidões e os areais nus, matizados pela traiçoeira cevadilha, e pelo aloés orgulhoso, levantando com império o seu penacho cor de fogo. Além, homens laboriosos e famílias; aqui tribos esfarrapadas em choupanas, tiritando com o frio das sezões numa atmosfera de lume; mulheres esquálidas, crianças verde-negras, homens na indiferença da desolação, ou na vertigem do crime. Entre estas duas regiões litorais extremas está porém a central, a vingar-nos da miséria de uma e da opulência de outra. Quem desce, de Canha e Alcácer do Sal e Sado, e domina, desde o promontório da Arrábida, a paisagem circundante, respira afinal a longos traços uma plena vida e uma doce alegria. Acaso não há no reino panorama nem mais belo, nem maior, nem mais nobre, nem mais variado. A nossos pés descem as anfractuosidades da serra vestidas de espessas matas: as giestas douradas, as bagas carmíneas dos medronhos, o rosmaninho, a alfazema, misturando todos os seus aromas inebriantes. Sobranceiros a Palmela, vemos-lhe os muros ameiados; Setúbal desenha-se no vale encastoada num jardim de laranjas; no fundo quebram-se as ondas contra as rochas do Cabo; e para o lado oposto as colinas da fidalga Azeitão ondulam por sobre o espesso tapete de pinhais estendido até ao Tejo. Erguendo a vista, divisamos além do mar a ponta de S. Vicente e o sul; para leste, Évora de um lado, as campinas do Ribatejo do outro; para norte, Lisboa em anfiteatro sobre a sua baía; além dela, Sintra e os montes da Estremadura cistagana, a qual, até ao Mondego, forma a primeira zona estremenha, por onde vamos entrar no exame da última das regiões do nosso território. O litoral do centro, entre o Mondego e o Tejo, é a parte mais benigna do país. Aí o ar temperado pelas brisas marítimas mantém um grau de humidade (60 a 85%), e as chuvas regulares sem serem copiosas (700 a 800 mil. anuais, e 20 a 30 no estio) uma rega, que fertilizam os terrenos sem os tornar gordos, como os do norte. Nem o calor (150 a 160) tisna de verão as vegetações, nem o frio do inverno as atrofia. Por tudo isto, a população abunda, sem exorbitar, como no Minho; e o habitante reúne à laboriosidade de uma vida agrícola a liberdade de uma existência mais ampla. Por tudo isto, além dos carateres geognósticos da região, a flora é variada, reunindo o pinheiro bravo e o manso, a vinha, a oliveira e o carvalho, o trigo, o milho e o centeio. Desde os campos que o Mondego todos os anos fertiliza, por Leiria e Alcobaça vestidas as florestas, pelas veigas do Nabão, chegamos ao Tejo; e, transpondo-o, entramos no seu vale, que é para nós como o Nilo é para o Egito. Nele com efeito o campino nos traz à ideia o tipo dessas raças da África setentrional, líbios ou mouros, cujo sangue anda misturado em nossas veias. A cavalo, de pampilho ao ombro, grossos sapatos ferrados, gorro vermelho na cabeça, o ribatejano, pastoreando os rebanhos de touros nas campinas húmidas e vicejantes, é como um beduíno do Nilo. A vasta planície matizada de povoações e bosques de choupos, de salgueiros e de álamos, contornada ao longe pelas cumeadas das serras, sem o caráter das paisagens do Egito, ou de Túnis, dominadas pelo esqueleto gigânteo do Atlas. Como o beirão, também o ribatejano reúne à vida agrícola a marítima ou fluvial; é ele quem vem nos seus barcos de água-acima, até Lisboa, trazer o seu tributo de cereais e frutas. Pelo Tejo, o Portugal marítimo abraça o Portugal agrícola, fundindo numa as duas fisionomias típicas da nação. Rio acima, o Alentejo de um lado, a Beira do outro, por esta forma se comunicam com a população marítima do litoral. Lisboa, com Sines ao Sul, Aveiro ao norte, eis os pontos cardiais dessa costa ocidental, donde tantas grandes aventuras, tão dilatadas viagens se empreenderam. Capital geográfica, Lisboa é também a nossa capital marítima; e se as viagens e descobertas são o coração da nossa história particular nacional, Lisboa é também a nossa capital histórica. As toadas plangentes que ao som da guitarra se ouvem por toda a costa do ocidente, essas cantigas, monótonas como o ruído do mar, tristes como a vida dos nautas, desferidas à noite sobre o Vouga, sobre o Mondego, sobre o Tejo e sobre o Sado, traduzirão lembranças inconscientes de alguma antiga raça, que, demorando-se na nossa costa, pusesse em nós as vagas esperanças de um futuro mundo a descobrir, de perdidas terras a conquistar ao mar? Os sonhos cheios de encanto e melancolia, por tão longos tempos embalados pelo incessante murmúrio do mar bretão e pelo ciciar das florestas druídicas; o carinho da natureza pelo homem, traduzido nessas lendas piedosas em que os animais falam, os pássaros vêm fazer ninhos na mão dos santos, e a voz das fadas se mistura com o ramalhar das árvores e o murmurar das águas; esse vaporoso e encantador botão da alma céltica, porventura desabrochava no espírito nacional português, quando a conclusão das guerras da independência assim o ordenou. D. João de Castro, o marinheiro, tem, como um druída, o amor ingénuo da natureza: « ó vergonha e grande cobiça dos homens, que por haver as desventuras dos metais cavam tanto a terra que lhe tiram fora as tripas, derribam grandes outeiros, abaixam ásperas e altíssimas serras no andar e olivel dos campos, e não contentes de estragarem tanto a terra, rompem e furam pelo mar por haverem uma perla – e para esculdrinhar uma obra maravilhosa da natureza são tímidos e preguiçosos!» V. A HISTÓRIA NACIONAL Desta viagem, breve, pálida, e incorretamente esboçada, ficaria – ousamos crê-lo – no espírito do leitor uma impressão por isso mesmo verdadeira. Pálida e como que indeterminada, sem fortes cores nem linhas pronunciadas, é a fisionomia da nação, quer na paisagem, quer nos homens. Nenhum traço profundo distingue a nossa geografia; benigno, médio ou temperado é o nosso caráter. Se alguma coisa de facto nos individualiza, é a falta de afirmação do nosso génio. Aquelas a que poderemos chamar qualidades peculiares nossas, consistem na facilidade com que recebemos e assimilamos as de estranhos. Navegadores – e só por si este caráter não imprime em nós um cunho distinto dos demais povos marítimos – a maneira por que nos aventurámos ao mar retrata ainda a nossa fisionomia coletiva: fomos prudente e pacientemente ao longo das costas africanas, ou de ilha em ilha, no oceano, caminhando passo a passo, avançando sempre, tenazes, mas jamais temerários. Essa individualidade passiva do nosso génio traduz-se na nossa história. Ninguém busque nela movimentos originais e profundamente caracterizados por uma ideia nacional: esperá-lo-ia o castigo reservado a todas as quimeras. Ninguém busque tão-pouco o sistema de um desenvolvimento próprio e orgânico, obedecendo a leis particulares, e constituindo, no seu todo, aquilo a que se chama uma civilização: por esse lado aparecemos indestrutivelmente ligados ao corpo peninsular; e apesar de politicamente separados, obedecemos às leis gerais que lhe determinam a vida histórica. O conjunto dos nossos pensamentos morais, o caráter dos movimentos que compõem o sistema do desenvolvimento das instituições, o das condições das classes, e até as linhas gerais da nossa vida política, são apenas um aspeto do sistema da história da península ibérica. Por isso nós, que, em outro livro , tratamos deste assunto, não voltaremos agora a ocupar-nos dele, para não fatigarmos o leitor com repetições inúteis. Procuraremos nesta obra determinar o modo particular, próprio ou nacional, com que realizámos um programa histórico geral, definindo a nossa individualidade coletiva; procuraremos também indicar os movimentos políticos, em que resolutamente defendemos a nossa autonomia; e finalmente mostrar que, sendo a ausência de caráter nacional afirmativa, e a maleabilidade com que recebemos e assimilamos as influências estranhas o que mais pronunciadamente nos individualiza como povo, a independência da nação não proveio de factos naturais, porém sim dos atos de vontade dos seus homens. Causas de outra ordem houve decerto que vieram dar-lhes um apoio enérgico, e, não falando agora nas marítimas e coloniais, referimo-nos às influências estranhas à Espanha, que por momentos nos puseram, a nós, seus filhos, num estado de antagonismo transitório com o desenvolvimento da história peninsular. É sabido que a nossa primeira dinastia procedia de Borgonha; nos primeiros tempos são numerosos os fidalgos e soldados estrangeiros entre nós; e as conquistas de Lisboa, de Alcácer, do Algarve, efetuam-se com o auxílio de exércitos e armadas forasteiros. Mais tarde vêm combater ao lado de D. João I os ingleses, com quem já ao tempo de D. Dinis celebrámos tratados de comércio, e que, nossos aliados no tempo de D. Fernando, nos impressionavam com os seus costumes e letras. De então data a generalização dos nomes ingleses como Tristão, Jorge, Duarte, que se começam a encontrar ao lado dos antigos nomes romanos e góticos. As alianças inglesas repetem-se nos primeiros tempos da dinastia de Avis, até que o desenvolvimento do nosso império colonial nos torna soberanos. Anexados à Espanha depois, voltamos a depender da Inglaterra ou da França, quando readquirimos a independência. Generais franceses comandam as campanhas da Restauração, patrocinada pela França; generais ingleses, as guerras do princípio do século, subsidiadas pela Inglaterra. E duas vezes, quando se tentou chamar a nação à vida eminente da ciência; duas vezes, quando D. João III e o marquês de Pombal reformaram a Universidade; duas vezes se importaram mestres estrangeiros. De tudo o que deixamos escrito o leitor decerto compreendeu já o sistema de preceitos a que vai obedecer o nosso estudo; e afigura-se-nos ser este o caminho verdadeiramente científico de encarar a história nacional, despindo-a de ilusões patrióticas, e de fantasias quiméricas. Mal de nós, se, amando do coração a nossa independência, imaginarmos que ela pode manter-se firme sobre um alicerce de fábulas, contra a reta e indestrutível verdade da ciência! A independência dos povos assenta sobretudo na vontade coletiva: tal foi a base da nossa, tal continuará a ser, se com a vontade tivermos o juízo correspondente. Sem ele, o querer é apenas um capricho. Obedecendo pois ao enunciado, dividimos a história pátria em quatro períodos sucessivos. No primeiro, o da dinastia de Borgonha, não nos destacamos ainda do sistema dos Estados peninsulares: somos um deles, e a independência provém exclusivamente do espírito separatista da Idade Média, personalizado no ciúme absolutista dos reis e barões portugueses. – Depois de Aljubarrota, porém, o sentimento de independência nacional torna-se popular, desde que a revolução do Mestre de Avis o faz coincidir com o interesse particular da região portuguesa. Entretanto a vida marítima fora-se desenvolvendo; e a nova dinastia obedece conquistando o litoral da África aos marroquinos, à corrente histórica peninsular; e inicia, com as navegações e descobertas, um movimento particularmente nacional. Pode então dizer-se que por um momento Portugal esteve à testa da história da Espanha. A terceira época abrange, a nosso ver, a infeliz empresa do Império oriental, onde o movimento marítimo nos levou. Os elementos de vida própria, formados na época anterior, produziram uma colonização à antiga e uma literatura neo-latina: nestas duas circunstâncias provávamos faltar-nos uma fibra de íntima originalidade nacional. A perversão dos costumes, a vastidão das empresas, o limitado dos nossos meios, os erros políticos, finalmente, condenam- nos à perda da independência. – Se na quarta e final das épocas da nossa história voltámos a reganhá-la, a nossa vida aparece, contudo, outra. Ao império oriental perdido, vem a exploração e colonização do Brasil substituir-se, dando um ponto de apoio externo ao pequeno corpo europeu; e mais tarde, perdido a seu turno o Brasil, voltamo-nos agora, a ver se a África pode dar-nos os meios de custearmos as despesas de um país pequeno e mediocremente abastado, sobre o qual pesam os encargos cada vez maiores do maquinismo nacional. Holanda do extremo ocidente, radicada no corpo da Espanha, como ela o está no corpo germânico, só num ponto de apoio externo podemos fundar o alicerce de uma independência excecional; só à custa de recursos coloniais poderemos talvez satisfazer às múltiplas e dispendiosas exigências da organização económica, científica e moral, hoje inseparáveis e indispensáveis à existência de uma nação. LIVRO SEGUNDO HISTÓRIA DA INDEPENDÊNCIA (DINASTIA DE BORGONHA: 1090-1385) «He nossa entençon curtamente fallar, nom come buscador de novas razõoes, per propria invençon achadas, mas come aiumtador em huum breve moolho, dos ditos dalguns que nos prouguerom.» F. LOPES, Crónica de Pedro I I. A SEPARAÇÃO DE PORTUGAL O condado portucalense, criado nos últimos anos do XI século a favor do conde borguinhão D. Henrique, genro de Afonso VI, pouco tempo existiu sob o regime de uma vassalagem indiscutidamente reconhecida. Era essa a época em que a Espanha tendia a constituir-se num sistema de Estados independentes, à medida que sucessivas regiões iam saindo de sob o domínio muçulmano para o dos descendentes dos godos asturianos, ou dos seus atuais aliados; e o condado portucalense obedecia a esta tendência geral, no empenho que o seu conde não mais encobriu desde a morte do sogro. É com efeito da data do óbito de Afonso VI que deve contar-se a era da independência de Portugal; embora por largos anos ela seja mais uma ambição do que um facto; embora essa ambição traduza um pensamento que os acontecimentos posteriores da história impediram se realizasse. Qualquer que fosse o valor dado no XI século à expressão geográfica de Portucale, é facto provado, por todas as memórias e documentos desses tempos, que para ninguém deixava de considerar-se o território de entre Minho e Mondego como parte da Galiza. O facto da constituição do condado de nada vale contra esta opinião; porque demasiado se sabe que a formação dos Estados medievais, na Península e fora dela, jamais obedecia às prescrições geográficas ou etnológicas. Não se atribua pois a causas desta ordem, nem à consciência de uma solidariedade nacional, o facto da desmembração da Galiza dos fins do XI século. A cisão que o Minho demarcou obedeceu apenas a motivos de ordem política. Isto mesmo, porém, deu causa a uma ambição, na qual devemos reconhecer o princípio da vitalidade da nação portuguesa, durante estas primeiras e ainda indecisas épocas da sua existência. A solidariedade nacional espontânea existia de facto para os galegos; e desde que a Galiza fora dividida pela política em duas, aquém e além Minho, restava saber qual dessas metades tomaria sobre si o papel de representar um sentimento de independência, comum a todos os membros ainda então desconexos do corpo peninsular. Várias causas concorriam para atribuir este papel à metade portuguesa da Galiza; e porventura acima de todas o facto do merecimento pessoal do conde português. Circunstâncias desta ordem eram decisivas numa época em que a anarquia sistemática da constituição da sociedade fazia principalmente depender os destinos imediatos dela da perspicácia ou da bravura dos seus chefes. Nada há de comum entre a vida destes tempos e a dos posteriores; e num certo sentido pode até dizer-se que os factos de ordem política são independentes dos de ordem social, porque a sociedade é como um elemento passivo que por este lado (mas por ele apenas) obedece às consequências do desordenado capricho dos atos e carateres dos chefes militares que a governam, sem propriamente a representarem. Nos primeiros três séculos, isto é, na primeira época da história portuguesa, a independência é um facto originado no merecimento pessoal dos chefes militares dos barões de aquém Minho. Nacionalidade propriamente dita, não a há; ou pelo menos não no-la revelam os monumentos históricos, unânimes, também, em revelar uma ambição coletiva ou social que se estende a toda a Galiza. Ao merecimento pessoal reúne-se, nos primeiros monarcas portugueses, a circunstância de serem os intérpretes deste sentimento. Por isso a tendência permanente e o princípio claramente definido da política portuguesa, nos primeiros séculos, é unificar a Galiza, constituindo a noroeste da Península um Estado tão homogéneo como o Aragão ou a Navarra a nordeste. Neste propósito se filiam todas as guerras civis – se este nome convém ainda aos conflitos entre Portugal e Leão – e as repetidas alianças dos barões galegos das duas zonas divididas pelo Minho. A facilidade com que os reis portugueses transpõem armados as águas desse rio, e se apossam por várias vezes dos territórios da Galiza leonesa, são provas evidentes da opinião exposta. Não quis a sorte que chegasse a realizar-se este primeiro pensamento político, a que chamaremos hegemonia de Portugal na Galiza, para usarmos de expressões modernas; antes ordenou que os limites convencionais do condado portucalense apenas inscrevessem o ponto de partida da formação de uma nação, cujo caráter, ulteriormente definido, proveio principalmente da fisionomia geográfica da região; de uma nação, repetimos, que veio a perder a tradição dessa primitiva origem, desde que o génio das populações de entre Mondego e Tejo sobrepujou o das do norte, na direção e impulso dados à vida coletiva portuguesa. Se nesta primeira época da nossa história o pensamento oculto que dirige com maior ou menor consciência a política é, incontestavelmente, o da hegemonia de Portugal na Galiza, seria absurdo supor que, ao lado deste princípio, decadente desde certa época, e não fossem também manifestando de um modo correlativo, e cada vez mais pronunciado, os sintomas da deslocação do centro vital da nação. A circunstância que mais decisivamente determina este caráter da nossa história primitiva é a conquista dos territórios sarracenos de aquém Mondego, levada a cabo pelos barões portugueses, sem os auxílios do suserano de Leão. É este movimento que, principiando por quebrar os laços de solidariedade entre os galegos leoneses e os portugueses, vai gradualmente adicionando a estes últimos os lusitanos (seja-nos lícito dizer assim, para mais claramente definir o nosso pensamento), até o ponto de os últimos predominarem na fisionomia posterior da nação, transferindo de Guimarães e de Coimbra, para Lisboa, a capital do reino; fazendo substituir, à vida rural, primeiro quase exclusiva, a vida comercial e marítima, depois predominante e quase absoluta. A primeira época da história portuguesa oferece pois à observação do crítico dois movimentos, opostos num sentido, concordes em outro, que é o da afirmação positiva da independência. Mas, se essa afirmação, terminante nas guerras leonesas, e também nas sarracenas, exprime de um lado a política da hegemonia na Galiza, do outro exprime, de um modo todavia inteiramente inconsciente e espontâneo, uma tendência contrária. É a formação de uma nação lusitana, de que a Galiza portuguesa desce à condição de província ao norte, como o Algarve, mais propriamente turdetano, vem a sê-lo ao sul. O entre Douro e Guadiana, isto é, a espinha dorsal da Estrela, ladeada pelas Beiras do norte, pelo Alentejo a sul, pela Estremadura a poente: eis aí o que, logo desde o XIV século, começa a representar o corpo homogéneo da nação portuguesa. No Portugal primitivo, a política da hegemonia na Galiza não se fundava, porém, somente em uma indeterminada ambição coletiva. Era um pensamento decisivo e fixo dos monarcas, e trazia origens tão antigas como a própria constituição do condado portucalense. Criado por uma desmembração da Galiza, o condado cedido ao borguinhão não é natural que satisfizesse os desejos ambiciosos do príncipe. Como as almas que, desorientadas pelas extravagâncias do bárbaro cristianismo medieval, viviam num estado de aspirações nebulosamente infinitas, assim a ausência de um critério fixo, intelectual ou moral, e a lei da pura força em que existiam lançavam os barões numa vida de aventuras, cujo critério único era a sua ambição, cujo único limite era o limite imposto por uma força adversa. O poder do rei leonês era, para o conde borguinhão, o limite forçado das suas temeridades. Logo porém que Afonso VI morreu, deixando um vasto espólio a dividir, D. Henrique exigiu para si um largo quinhão. Quebrada pela morte a cadeia da vassalagem a um rei poderoso, e acaso desobrigado já da gratidão para um sogro que tanto favorecera o conde, é desta era que, a nosso ver, data a independência de Portugal; e não da era, de resto indecisa e impossível de determinar, em que Afonso Henriques tomou para si o título de rei. É dar uma demasiada importância ao facto exterior e secundário do título, o fazer dele o símbolo da independência da nação. Apesar de rei, D. Afonso Henriques prestou vassalagem; e a sua monarquia não é, de facto, mais nem menos independente, como monarquia, do que o condado de D. Henrique, ou o infantado de D. Teresa. A força e não a definição de um domínio, só efetivo quando se estriba nas armas, eis aí o que exclusivamente caracteriza os movimentos dos séculos XI e XII. Ora essa força era já para D. Henrique um facto, desde que lhe morrera o sogro. A unidade que o seu valente braço dava ao domínio sobre os territórios herdados ou conquistados, levara-a Afonso VI consigo para o túmulo; e entre os dois herdeiros rivais, D. Urraca e o rei de Aragão, o conde portugalense tinha um lugar bem preparado para exercer a sua astuciosa influência, e para impor condições e preço a uma aliança que ambos igualmente ambicionavam. Passemos longe dessas crónicas de perfídias, de violências, de adultérios e barbaridades que constituem a história da herança de Afonso VI. Como os generais de Alexandre, os príncipes da Península retalham o manto do imperador; e a Idade Média, tão fantasiosamente pintada com traços de nobreza e galhardia, não é de facto menos corrupta e asquerosa do que a idade dos sátrapos do Oriente. A ferocidade é mais violenta, a luxúria menos requintada, a perfídia mais ingénua, porque os homens são verdadeiramente bárbaros, e não gregos barbarizados. Do pacto de aliança de D. Henrique e D. Urraca resultou o engrandecimento do condado, para o norte da Galiza e para leste ao longo da bacia do Douro, abrangendo Tui, Vigo, Santiago, por um lado, Zamora, Salamanca, Toro e até Valhadolide pelo outro. A divisão e demarcação do novo Estado chegou a fazer-se com a possível solenidade, e com a concorrência de barões leoneses e castelhanos. Era a definição de um Portugal que a história não consentiu se mantivesse. Neste convénio ou tratado vieram posteriormente fundando-se todas as pretensões dos soberanos portugueses à posse da Galiza, e daquela parte da Castela Velha geograficamente denominada Terra de Campos: territórios que o conde D. Henrique soubera ganhar para si na disputa da herança de Afonso VI. Três anos apenas gozou o conde a posse desses seus dilatados domínios. Morrendo, a mesma história de ignomínias, adultérios e barbaridades ia assinalar o governo de sua viúva herdeira, como tinha assinalado o da viúva do conde Raimundo. Eram irmãs também, no caráter e nos apetites s

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