25 de Abril: Textos Literários PDF
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1974
Maria Isabel Lemos
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Summary
This document presents a collection of literary texts about the 1974 Carnation Revolution in Portugal. It's intended for exploration by students in 9th to 12th grades, with an emphasis on the diversity of literary genres and historical context. The collection includes writings from various authors and perspectives.
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textos literários 25 abril 1974 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Os textos que aqui se apresentam, para uma possível exploração com os alunos, consti- tuem uma simples amostra, desdobrando-se num leque temporal re...
textos literários 25 abril 1974 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Os textos que aqui se apresentam, para uma possível exploração com os alunos, consti- tuem uma simples amostra, desdobrando-se num leque temporal restrito. Poderiam ser outros textos, e quantos não haveria... A finalidade desta colectânea foi colocar à disposição dos professores dos alunos do 9º ao 12º anos uma selecção norteada quer pela diversidade de géneros literários, quer pela varie- dade e complexidade dos temas. Foi nossa preocupação reunir um conjunto de documentos que pudesse ser explorado por professores e alunos, com histórias pessoais e percursos culturais muito diversos, marcados por diferenças etárias e geográficas. Pensámos também colocar à disposição do público-alvo um guião de exploração de cada texto. No entanto, considerando os objectivos deste conjunto pedagógico, optámos por não o fazer. Na verdade, mais do que o tratamento de conteúdos, pretende-se fornecer conheci- mento e, se possível, reavivar um processo de contacto pessoal e colectivo com Abril (especial- mente para quem o não viveu). Assim sendo, os textos propostos destinam-se sobretudo a um encontro solitário de qual- quer leitor. Acresce ainda que, sendo o 25 de Abril um tema transversal a todas as disciplinas, a selec- ção apresentada permitirá uma abordagem a conduzir por professores de qualquer área disci- plinar e não exclusivamente pelos professores de Português. De qualquer modo, avançaremos com algumas ideias muito gerais que podem ser substi- tuídas (possivelmente com mais êxito) por quem tiver a missão de orientar o trabalho de exploração e que, forçosamente, deverá ter o conhecimento próximo do meio e do grupo-turma. Enquadramento histórico e político do texto, recorrendo aos outros textos deste con- junto e às transparências. Audição de música portuguesa disponível: Adriano Correia de Oliveira, Fernando Lopes Graça, José Mário Branco, Luís Cília, Francisco Fanhais, José Afonso, Manuel Freire, Sér- gio Godinho. Descodificação e justificação de metáforas e outras imagens. Exploração da iconografia nos cartazes e nos murais da época. Estudo das mensagens e submensagens desses materiais. Comparação com as mensagens de hoje. Reescrita comparada de textos. Evolução do tema em textos comparados. Ilustração criativa de textos (ex. Bichos de Abril). Ler, ler, ler... Para que se entenda melhor esta última e universal «sugestão», remetemos para um breve excerto da obra de Daniel Pennac Como um Romance: 203 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS «É preciso ler, é preciso ler. E se em vez de exigir leitura o professor decidisse de repente partilhar o seu prazer de ler? Prazer de ler? O que é isso? De facto são perguntas que supõem um regresso a si próprio! E, para começar, a aceitação de uma verdade que está radicalmente em oposição ao dogma: a maior parte das leituras que nos formaram não foram feitas para, mas contra. Lía- mos (e lemos) como quem se entrincheira, como quem recusa, como quem se opõe. Se isso nos coloca na posição de fugitivos, se a realidade desespera de nos encontrar atrás do «encanto» da nossa leitura, somos fugitivos preocupados com a nossa construção, evadidos que estão em vias de nascer. Qualquer leitura é um acto de resistência a todas as contingências. Todas: Sociais Profissionais Psicológicas Afectivas Climáticas Familiares Domésticas Gregárias Patológicas Pecuniárias Ideológicas Culturais Ou umbilicais. Uma leitura bem conduzida salva de tudo, mesmo de nós próprios. E, acima de tudo, lemos contra a morte». Ou ainda para algumas palavras de Gianni Rodari, em Gramática da Fantasia: «Espero que este livrinho possa ser igualmente útil a quem acreditar na necessidade de a imaginação ter o seu lugar na educação; a quem tiver confiança na criatividade infantil, a quem souber qual o valor de libertação que pode ter a palavra. Todos os usos da palavra a todos parece-me um bom lema, de belo som democrático. Não para que todos sejam artistas, mas para que ninguém seja escravo». Maria Isabel Lemos 204 Textos de: CARLOS PINHÃO JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS JOSÉ SARAMAGO CASIMIRO DE BRITO JOSÉ BAÇÃO LEAL FERNANDO PESSOA ALEXANDRE O’NEILL MANUEL ALEGRE ANTÓNIO RAMOS ROSA JOSÉ CARDOSO PIRES MARIA VELHO DA COSTA JOÃO DE MELO JOSÉ MANUEL MENDES BAPTISTA-BASTOS JORGE DE SENA E. M. DE MELLO E CASTRO JOSÉ CUTILEIRO ARMINDO RODRIGUES BOAVENTURA DE SOUSA OLGA GONÇALVES ÁLAMO DE OLIVEIRA SÉRGIO GODINHO JULIETA MONGINHO SOPHIA DE MELLO BREYNER MARIA TERESA HORTA JORGE DE SOUSA BRAGA 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Elefante de Abril A Revolução teve uma flor o cravo. Não teve um animal e, como tal, proponho o elefante tão paciente e sofredor durante tanto ano mas quando a paciência se esgotou foi coisa de se ver violento eficaz empolgante. Depois, voltou a ser lento bom rapaz algo distante. Mas, atenção nunca se viu morrer um elefante! Carlos Pinhão, Bichos de Abril, Editorial Caminho, Lisboa, 1977. 207 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Crocodilo de trazer por casa Aquilo do crocodilo era uma mania que Madame vestia. Tinha crocodilo para todo o serviço – sapato de crocodilo – mala de crocodilo – aplicações de crocodilo no casaco e no chapéu. O crocodilo era todo seu. Ao quilo. E não se ficou por aqui digo eu que vi Madame Reaça cheia de graça tirar um frasco da mala e pôr pinguinhos nos olhos enquanto explicava aos circunstantes reverentes que não usava óculos (isso era dantes) usava lentes. Só que, no Verão não via bem secava-se-lhe a vista e, de aí, o expediente do frasco lacrimal. Conclusão a tirar: eram de crocodilo as lágrimas também. Carlos Pinhão, Bichos de Abril, Editorial Caminho, Lisboa, 1977. 208 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Ser ou não ser carneiro Votava de cruz à ordem do pastor mas veio Abril e já começa a ter cor e já começa a saber o que quer e já começa a votar a pensar pela própria cabeça e não pela cabeça do parceiro. Em resumo já não é carneiro. Carlos Pinhão, Bichos de Abril, Editorial Caminho, Lisboa, 1977. 209 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Oportunismo O camaleão tem a cor da ocasião. Usa-se muito em política é prática muito vista – a situação pode mudar ele não é sempre situacionista Carlos Pinhão, Bichos de Abril, Editorial Caminho, Lisboa, 1977. 210 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS As portas que Abril abriu (fragmentos) Era uma vez um país onde entre o mar e a guerra vivia o mais infeliz dos povos à beira-terra Onde entre vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras um povo se debruçava como um vime de tristeza sobre um rio onde mirava a sua própria pobreza. […] Ora passou-se porém que dentro de um povo escravo alguém que lhe queria bem um dia plantou um cravo. Era a semente da esperança feita de força e vontade era ainda uma criança mas já era liberdade. Era já uma promessa era a força da razão do coração à cabeça da cabeça ao coração. Quem o fez era soldado homem novo capitão mas também tinha a seu lado muitos homens na prisão. […] Posta a semente do cravo começou a floração do capitão ao soldado do soldado ao capitão. 211 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Foi então que o povo armado percebeu qual a razão porque o povo despojado lhe punha as armas na mão. Pois também ele humilhado em sua própria grandeza? era soldado forçado contra a pátria portuguesa. Era preso e exilado e no seu próprio país muitas vezes estrangulado pelos generais senis. Capitão que não comanda? não pode ficar calado é o povo que lhe manda ser capitão revoltado é o povo que lhe diz que não ceda e não hesite – pode nascer um país – do ventre duma chaimite. Porque a força bem empregue Contra a posição contrária nunca oprime nem persegue – é força revolucionária! […] José Carlos Ary dos Santos, As portas que Abril abriu, Comunicação, Lisboa, 1975. 212 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Ouvindo Beethoven Venham leis e homens de balanças, mandamentos d’aquém e além mundo. Venham ordens, decretos e vinganças, desça em nós o juiz até ao fundo. Nos cruzamentos todos da cidade a luz vermelha brilhe inquisidora, risquem no chão os dentes da vaidade e mandem que os lavemos a vassoura. A quantas mãos existam peçam dedos para sujar nas fichas dos arquivos. Não respeitem mistérios nem segredos que é natural os homens serem esquivos. Ponham livros de ponto em toda a parte, relógios a marcar a hora exacta. Não aceitem nem queiram outra arte que a proeza do registo, o verso acta. Mas quando nos julgarem bem seguros, cercados de bastões e fortalezas, hão-de ruir em estrondo os altos muros e chegará o dia das surpresas. José Saramago, Poemas Possíveis, Portugália, Lisboa, 1966. 213 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Prática da escrita (alguns fragmentos) Quem tem medo de afirmar que a literatura, de um modo ou de outro, é sempre uma arma? Umas vezes surda, ensurdecida, amordaçada; outras vezes (aqui e agora) jogando-se num combate aceso e vivo contra o obscurantismo? Soeiro Pereira Gomes, trinta anos depois: hoje, como ontem, uma obra (arma) livre e libertadora. Arte revolucionária? Sim. Porque reflecte as lutas do povo (a possível violência no campo social) e destrói códigos caducos (o alargamento do campo semântico). A leitura do autor dos Contos Vermelhos já não produz em nós a revolta surda contra o submundo susten- tado pela opressão fascista – antes nos aponta novos campos e novas formas de luta, agora na ordem do dia, agora que, virados para o futuro, estamos empenhados na construção do socia- lismo. Da liberdade. Esta é pois uma memória das lutas de algum povo contra os seus exploradores (os meni- nos sem infância de Esteiros; os homens expulsos do mundo comum de Refúgio Perdido; os camponeses sem terra, proletarizados, de Engrenagem), e, simultaneamente, a criação de uma nova linguagem dentro da linguagem: objectiva, contundente, rigorosa. Algo de novo se passou nos anos 40 na literatura portuguesa (que, até então, só ocasio- nalmente se ocupava do povo, e como se de uma entidade abstracta se tratasse): «o estudo da evolução da consciência social dentro de condições de determinadas de trabalho, de relações de produ- ção e de luta de classes», para citar Augusto da Costa Dias. Arte revolucionária, destruição (de práticas velhas) sobre a destruição (surda e lenta de uma sociedade asfixiante), a de Soeiro Pereira Gomes. Homem temperado por lutas concretas ao lado de profetas e campesinos. Onde obra e vida se fundiram. E de tal modo que, sendo a sua obra uma representação das contradições sociais, o não foi menos a sua vida, inteira- mente dedicada à militância política. Até à última consequência: o «salto» para a clandestini- dade. De um discurso político se trata. Sem ambiguidades. O dia, quase sem transição (outrora foi a lenta e corrosiva movimentação de longas lutas surdas), apodera-se da cidade. O silêncio e o medo desinstalam-se. Terçam-se armas contra o obscurantismo. Desenvolve-se o tempo do diálogo, o tempo das grandes opções. O povo, ontem amordaçado, aprende as primeiras palavras da liberdade. De um espaço furtivamente habitado (terror, habitação do hábito) o homem português renasce – refazemos a praça pública. E assim se elevam dúvidas, interrogações, as questões quotidianas do pão e do prazer; dispomo-nos, enfim, a partilhar o património comum, os parcos teres e haveres, e problemas altos e velhos como montes intransponíveis. Conversações ciciadas, as quais, ao longo de séculos, ensurdeceram o próprio idioma, elevam-se à luz do dia, abrem suas sílabas tónicas. Mas pesam mais do que nunca as palavras e os actos. 214 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS O tempo, sobre um fogo ainda instável, é de vigília: no olhar pensativo dos homens as trevas tomam novas formas. Imperceptíveis quase. As formas de um novo discurso, de um novo código de honra, de uma nova cidade onde não mais o medo e a usura sejam o ar que alguém alguma vez respirou. Casimiro de Brito, Experiência da liberdade, Antologia de textos publicados no suplemento «Artes e Letras» do Diário de Notícias de Maio a Novembro de 1975. 215 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Intamuene: (quer dizer amigo no dialecto local) Mais ou menos sereno, menos ou mais ausente estou de serviço – oficial de dia ao aquar- telamento. Recebi pela manhã a tua primeira carta e primeira também dum amigo. Realmente, não sei se abúlia ou esquecimento é fraca a memória da europa, muito fraca. Chegámos ao alto Molocué há uma semana, semana que decorreu longe da memória. Afinal isto não é um pla- nalto, mas, de qualquer forma, tentarei «a casa de madeira»… Há portanto uma semana que me despedi do António Manuel V. Inútil dizer que foi difícil, inútil. Uma baía espantosa foi o cenário (o porto de Nacala). Em suma: despedimo-nos como pessoas que se odeiam pouco. Espero carta dele breve. Já deve ter entrado em combate a estas horas – o capim inicia a sua via- gem verde através da raiva… aqui, a escassos kms d’aqui (alto Molocué). Aí deve-se ignorar o que se passa. Lógico: Evitar o pânico, morreremos todos sem pânico… (c’est si bon de morrer sem pânico). Teshs… Teshs on s’emmerde? Creio que já te disse, em Luanda abracei e almocei com o Zé Mário. Luanda é uma autêntica «República do Silêncio», segundo terminologia Sar- treana. E a propósito J. P. Sartre recebeu ou não o Nobel da Literatura? Mas regressando ao Alto Molocué, trata-se duma espécie de povoação onde meia dúzia de brancos exploram muitas centenas de negros. De resto, talvez não saibas que se atribuís- sem a invenção da ternura ou da inocência a uma raça só um cego voluntário não a atribuiria à raça negra. Esclareço: ainda não percebi, não constatei em nenhuma criança branca a ter- nura e a inocência que diariamente constato no doloroso, antigo olhar das crianças negras que se cruzam. Elas param à minha passagem (não minha de alferes ou senhor, mas de branco) e dizem usando uma voz que vem do coração dos séculos: «bom-dia-mêu alfé». Aprendo que nunca fui criança, vivi uma infância manchada de egoísmo. Vivemos, nós-os-apesar-de- -tudo-eleitos. É que o estômago dilatado duma criança magríssima, os muitos estômagos dila- tados de muitas crianças negras são a fome, percebes: a Fome, não a fome em termos de comer pouco, mas em termos de não comer. Ontem, quando disse ao empregado negro que serve à mesa que tencionava provar um caldo de formigas com asas (que ontem invadiram a povoa- ção) ele olhou-me, quase mansamente, e objectou: «Nós é que comemos formigas. Você, não tem o costume». Pensei e respondi que os costumes mudam. Mas ele não quis entender… Kid: esta é uma das mais (delicadamente) vergonhosas experiências dum homem. Apetece-me ficar num canto chorando até ao bronze da última lágrima. Como militar nada posso elaborar de construtivo. E o pior: ainda faltam bastantes kms e eu já não tenho pés. Perdoa-me: [...] Não posso, não quero, Recuso! As crianças magríssimas de estômago proeminente. Lembram espectros dos campos de concentração Nacional-Socialistas. São como punhais na carne da memória dos homens. Ficas também a saber que as cartas são abertas. E que estou farto, farto, farto... Zé P. S. Se descobrires um livro de poemas: «Máquina de Areia» de Rui Knopfli compra-o e lê. Vale a pena. Se puder envio-te. 2.º P. S. Envia-me se possível a morada do Fernando, do Victor, do Tó Manuel A.M., envia- -me, e obrigado. ao Francisco 26-Nov.-64, Alto Molocué José Bação Leal, Poesia e Cartas, 1971. 216 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS O menino da sua mãe No plaino abandonado Que a morna brisa aquece, De balas traspassado – Duas, de lado a lado –, Jaz morto, e arrefece. Raia-lhe a farda o sangue. De braços estendidos, Alvo, louro, exangue, Fita com olhar langue E cego os céus perdidos. Tão jovem! que jovem era! (Agora que idade tem?) Filho único, a mãe lhe dera Um nome e o mantivera: «O menino da sua mãe». Caiu-lhe da algibeira A cigarreira breve. Dera-lhe a mãe. Está inteira E boa a cigarreira. Ele é que já não serve. De outra algibeira, alada Ponta a roçar o solo, A brancura embainhada De um lenço… Deu-lho a criada Velha que o trouxe ao colo. Lá longe, em casa, há a prece: «Que volte cedo, e bem!» (Malhas que o Império tece!) Jaz morto, e apodrece, O menino da sua mãe. Fernando Pessoa, Cancioneiro, in Fernando Pessoa. Obra Poética em um volume, Editora Nova Arguilar, S.A. Rio de Janeiro, 1986. 217 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Portugal Ó Portugal, se fosses só três sílabas, linda vista para o mar, Minho verde, Algarve de cal, jerico rapando o espinhaço da terra, surdo e miudinho, moinho a braços com um vento testarudo, mas embolado e, afinal, amigo, se fosses só o sal, o sol, o sul, o ladino pardal, o manso boi coloquial, a rechinante sardinha, a desancada varina, o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos, a muda queixa amendoada duns olhos pestanítidos, se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos, o ferrugento cão asmático das praias, o grilo engaiolado, a grila no lábio, o calendário na parede, o emblema na lapela, ó Portugal, se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato! Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos, rendeiras de Viana, toureiros da Golegã, não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço, galo que cante a cores na minha prateleira, alvura arrendada para o meu devaneio, bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço. Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, golpe até ao osso, fome sem entretém, perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, rocim engraxado, feira cabisbaixa, meu remorso, meu remorso de todos nós... Alexandre O´Neill, Poesias completas 1951/1981, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1982. 218 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Vai-se o canto vão-se as armas Não sei se as pedras andam Mas o meu país é pedra e anda. Desloca-se. Foge. Pula ribeiros nas pernas do povo. Salta fronteiras nas minhas pernas. Rasteja. Nada. Esconde-se. Atravessa montanhas. Desaparece. Disfarça-se. O meu país deixou de ser país. É qualquer coisa que caminha. Que se procura. Saudade de ser Pátria. País em movimento. País sem chão. Assim cortado pela raiz o meu país é feito de dois países: um é dono o outro não. Fica o dono e vai-se o outro. O que se fica tem tudo o que se vai nada tem: nem terra para ficar nem licença para ir. O meu país não é dono. Não tem licença de nada. País clandestino. Pedra ambulante. Chão que sangra. Que caminha. Pula ribeiros. Corre. Derrama-se. E vai-se com ele a força a guitarra a pena a foice. Vai-se o canto. Vão-se as armas. Manuel Alegre, «O Canto e as Armas», (1967) in Manuel Alegre. Trinta anos de poesia, Publicações D. Quixote. Lisboa, 1995. 219 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS A foice e a pena Com outra que não pena arma trabalhas. Se é minha a pena é tua a foice. Mas se acaso são diferentes nossas armas as penas são as mesmas e as batalhas. Eu ceifo com a pena ervas daninhas e a mentira que a todos envenena. E tu ceifando penas essa pena que fraterna se junta às penas minhas. Onde tu ceifas eu ceifeiro sou da tua dor ceifeira e dessas queixas que dizes a ceifar e nunca ceifas. Se já teu canto a foice te ceifou canta ceifeira canta: a dor destrói-se juntando a foice à pena e a pena à foice. Manuel Alegre, «O Canto e as Armas», (1967) in Manuel Alegre. Trinta anos de poesia, Publicações D. Quixote. Lisboa, 1995. 220 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Vão-se os homens desta terra Vão-se os homens desta terra. Aqui fumavam seu tabaco aqui esperavam desesperavam aqui bebiam seu vinho tinham suas mulheres. Batiam-lhes. Amavam-nas com o corpo mais que com palavras com ternura com raiva que são assim os homens desta terra: tão fundo é o seu amor que com amor magoam. Aqui plantavam hortas vinhas fábricas. Alguns fizeram filhos. Outros amaram suas cabras entre pedras e noite. Alguns nunca colheram aquela que cheirava a flor de laranjeira. Para que a terra fosse verde as mãos envelheceram: ficaram da cor da terra ficaram da cor do vento. Aqui moravam. Fluíam no fluir das estações. Com seus arados lavravam ternamente ferozmente assim como quem ama assim como quem morre gota a gota espiga a espiga. Aqui plantavam esperavam chuva a chuva sol a sol. E em cada espiga floriam as mãos dos homens. E as mãos dos homens ficavam cada vez mais cheias de nada. Aqui viviam morriam. Tinham suas mulheres suas tabernas seus adros seus ódios e seus amores. Aqui às vezes matavam. 221 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Por uma vaca. Uma galinha. Água. Desespero. Por uma coisa de nada: às vezes por uma vaca às vezes por uma rosa. Vieram primeiro da montanha e da planície partiram para dentro das cidades. E as cidades cresceram. Em Lisboa morreram caravelas. Pedra a pedra floriu Lisboa com suas casas e avenidas. E as mãos dos homens foram fábricas sabão cimento. As mãos dos homens produziram capitais. Circularam morreram floriram. Foram fechadas em grandes cofres. Investidas. Exportadas. E o Tejo encheu-se de navios. E os navios levavam as mãos dos homens. E as mãos dos homens ficavam cada vez mais cheias de nada. Vão-se os homens desta terra. Ficam cabras sem pastores ficam terras sem seus donos. Fica no ar um soluço na parede uma guitarra. Às vezes uma espingarda. E nas mãos das mulheres ficam sombras sombras sombras. As vezes uma rosa. Às vezes coisa nenhuma. Vão-se os homens desta terra. Já suas mãos foram vinhas foram cidades navios. Domaram corpos morenos às vezes eram guitarras às vezes eram navalhas. Plantaram filhos batatas por cada espiga sangraram 222 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS ficaram por cada espiga às vezes da cor da terra às vezes da cor do vento. E de tudo o que plantaram as mãos dos homens colheram sombras sombras sombras. Às vezes uma rosa. Às vezes coisa nenhuma. E as mãos dos homens ficavam cada vez mais cheias de nada. E a minha pátria ficava cada vez mais cheia de sombras Vão-se os homens desta terra. Já não tinham que perder já não tinham que deixar. Ficam sombras sombras sombras. Manuel Alegre, «O Canto e as Armas», (1967) in Manuel Alegre. Trinta anos de poesia, Publicações D. Quixote. Lisboa, 1995. 223 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS O grito claro De escadas insubmissas de fechaduras alerta de chaves submersas e roucos subterrâneos onde a esperança enlouqueceu de notas dissonantes dum grito de loucura de toda a matéria escura sufocada e contraída nasce o grito claro. António Ramos Rosa, Não posso adiar o coração, Col. Sagitário, Plátano Editora, 1974, (Obra poética de António Ramos Rosa, 1958-1973). 224 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Lá vai o português Lá vai o português, diz o mundo, quando diz, apontando umas criaturas carregadas de História que formigam à margem da Europa. Lá vai o português, lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e que remédio – índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta a côdea do sol-a-sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. Mal nasce deixa de ser criança: fica logo com oito séculos. No grande atlas dos humanos talvez figure como um ser mirrado de corpo, mirrado e ressequido, mas que outra forma podia ele ter depois de tantas gerações a lavrar sal e casca- lho? Repare-se que foi remetido pelos mares a uma estreita faixa de litoral (Lusitânia, assim chamada) e que se cravou nela com unhas e dentes, com amor, com desespero ou lá o que é. Quer isto dizer que está preso à Europa pela ponta, pelo que sobra dela, para não se deixar devolver aos oceanos que descobriu com muita honra. E nisso não é como o coral que faz pé-firme num ondular de cores vivas, mercados e joalharia; é antes como o mexilhão cativo, pobre e obscuro, já sem água, todo crespo, que vive a contra-corrente no anonimato do rochedo. (De modo que quando a tormenta varre a Europa é ele que a suporta e se faz pedra, mais obscuro ainda). Tem pele de árabe, dizem. Olhos de cartógrafo, travo de especiarias. Em matéria de argú- cias será judeu, porém não tenaz: paciente apenas. Nos engenhos da fome, oriental. Há mesmo quem lhe descubra qualquer coisa de grego, que é outra criatura de muitíssima História. Chega-se a perguntar: está vivo? É claro que está: vivo e humilhado de tanto se devorar por dentro. Observado de perto pode até notar-se que escoa um brilho de humor por sob a casca, um riso cruel, de si para si, que lhe serve de distância para resistir e que herdou dos mais heróicos, com Fernão Mendes à cabeça, seu avô de tempestades. Isto porque, lá de quando em quando, abre muito em segredo a casca empedernida e, então sim, vê-se-lhe uma cicatriz mordaz que é o tal humor. Depois fecha-se outra vez no escuro, no olvidado. Lá anda, é deixá-lo. Coberto de luto, suporta o sol africano que coze o pão na planície; mais a norte veste-se de palha e vai atrás da cabra pelas fragas nordestinas. Empurra bois para o mar, lavra sargaços; pesca dos restos, cultiva na rocha. Em Lisboa, é trepador de colinas e de calçadas; mouro à esquina, acocorado diante do prato. Em Paris e nos Quintos dos Infernos topa-a-tudo e minador. Mas esteja onde estiver, na hora mais íntima lembrará sempre um cis- mador deserto, voltado para o mar. É um pouco assim o nosso irmão português. Somos assim, bem o sabemos. Assim, como? José Cardoso Pires, E agora José. Moraes Editores, 1977. 225 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Revolução e mulheres 1. Reconstituição da força de trabalho Elas são quatro milhões, o dia nasce, elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café. Elas picam cebolas e descascam batatas. Elas migam sêmeas e restos de comida azeda. Elas chamam ainda escuro os homens e os animais e as crianças. Elas enchem lancheiras e tar- ros e pastas de escola com latas e buchas e fruta embrulhada num pano limpo. Elas lavam os lençóis e as camisas que hão-de suar-se outra vez. Elas esfregam o chão de joelhos com escova de piaçaba e sabão amarelo e correm com os insectos a que não venham adoecer os seus enquanto dormem. Elas brigam nos mercados e praças por mais barato. Elas contam centa- vos. Elas costuram e enfiam malhas em agulhas de pau com as lãs que hão-de manter no corpo o calor da comida que elas fazem. Elas vêm com um cântaro de água à cinta e um molho de gravetos na cabeça. Elas limpam as pias e as tinas e as coelheiras e os currais. Elas acendem o lume. Elas migam hortaliça. Elas desencardem o fundo dos tachos. Elas passajam meias e calças e camisas e outra vez, meias. Elas areiam o fogão com palha de aço. Elas calcor- reiam a cidade a pé e à chuva porque naquele bairro os fatos-macacos são caros. Elas correm esbaforidas para não perder o comboio, o barco. Elas pousam o cesto e abrem a porta com a mão vermelha. Elas põem a tranca no palheiro. Elas enterram o dedo mínimo na galinha a ver se tem ovo. Elas acendem o lume. Elas mexem o arroz com um garfo de zinco. Elas lam- bem a ponta do fio de linha para virar a camisa. Elas enchem os pratos. Elas pousam o algui- dar na borda da pia para aguentar. Elas arredam a coberta da cama. Elas abrem-se para um homem cansado. Elas também dormem. 2. Reprodução da força de trabalho Elas vão à parteira que lhes diz que já vai adiantado. Elas alargam o cós das saias. Elas choram a vomitar na pia. Elas limpam a pia. Elas talham cueiros. Elas passam fitilhos de seda no melhor babeiro. Elas andam descalças que os pés já não cabem no calçado. Elas urram. Elas untam o mamilo gretado com um dedal de manteiga. Elas cantam baixinho a meio da noite a niná-los para que o homem não acorde. Elas raspam as fezes das fraldas com uma colher romba. Elas lavam. Elas carregam ao colo. Elas tiram o peito para fora debaixo de um sobreiro. Elas apuram o ouvido no escuro para ver se a gaiata na cama ao lado com os irmãos não dá por aquilo. Elas assoam. Elas lavam joelhos com água morna. Elas cortam calções e bibes de riscado. Elas mordem os beiços e torcem as mãos, a jorna perdida se o febrão não desce. Elas lavam os lençóis com urina. Elas abrem a risca do cabelo, elas entrançam. Elas compram a lousa e o lápis e a pasta de cartão. Elas limpam rabos. Elas guardam uma madei- xita entre dois trapos de gaze. Elas talham um vestido de fioco para uma boneca de papelão escondida debaixo da cama. Elas lavam as cuecas borradas do primeiro sémen, do primeiro salário, da recruta. Elas pedem fiado popeline da melhor para a camisa que hão-de levar para a França, para Lisboa. Elas vão à estação chorosas. Elas vêm trazer um borrego à primeira bar- raca e ao primeiro neto. Elas poupam no eléctrico para um carrinho de corda. 226 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS 3. Produção Elas sobem para cima de um caixote, que ainda são pequenas para chegar à bancada de descamar o peixe. Elas mondam, os dedos tolhidos de frieira e urtiga. Elas fazem descer a lâmina de cortar o coiro. Elas sopram nos dedos a aquecê-los, esfregam os olhos, voltam a pôr as mãos por detrás da lente a acertar os fios da matriz do transistor. Elas espremem as tetas da vaca para o balde apertado entre as pernas. Elas fecham num dia as pregas de papel de mil pacotes de bolacha. Elas acertam em duzentos casacos a postura da manga onde cravar o botão. Elas limpam o suor da testa com a manga e a foice rebrilha ao sol por cima da cabeça e da seara. Elas ouvem a matraca de dez teares enquanto a peça cresce diante, o fio amandado de braço a braço aberto. Elas cortam os dedos nas primeiras vinte cinco latas até calejar bem. Elas fazem a agulha passar para cá e lá em cruz na tela do tapete. Elas vigiam a última fieira de garrafas, caladas, à espera da sirene. Elas carregam o cesto de azeitona à cabeça já sem cantar, até que o sol se ponha. 4. Serviços Elas carregam no botão da caixa e fazem quinhentos trocos miúdos. Elas metem a cavi- lha, dizem outro número e passam a vigésima chamada. Elas mexem panelões que lhes che- gam à cinta. Elas descem doze caixotes de lixo já noite fechada. Elas fazem todas as camas e despejos de uma família alheia. Elas picam bilhetes metidas numa caixa de vidro. Elas batem à máquina palavras que não entendem. Elas arquivam por ordem alfabética duas mil. Maria Velho da Costa, Cravo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1994. 227 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Uma «estória», de um soldado português [...] Levantou-se espreguiçando as pernas; lentamente renovou todos os gestos de apertar e afivelar tudo o que atirara para o chão. Alguém assobia o ritmo lento e chorão de um fado em voga. À sua volta também se espreguiçavam alguns homens cansados como ele enquanto outros começavam os preparativos para mais uma marcha longa, agora pela fresca humidade que começava a fazer sentir-se já. Os espaços entre cada homem faziam do pelotão uma extensa cobra que se deslocava coleante pelo trilho sulcado nos morros. Embrenhado nestas suas andanças saudosistas arrancaram-lhe o sonho mole no estré- pito forte de qualquer coisa que rebentara perto. Fora um barulho de trovão que ele assinalara na coluna de fumo negro que a sua vista abarcara ali, dez metros desviados para a direita. Os seus ouvidos deixaram momentaneamente de funcionar e, numa miríade de pequenos picos, sentiu todo o seu lado direito ser sacudido por pequenas mordidelas provenientes do cascalho projectado. Devia ter sido uma mina, uma granada de bazuca, qualquer coisa de inesperado e mau que lhe tapara a vista do resto do grupo. Os seus ouvidos começaram lentamente a estalar; ouvia gritos e sentia um tropel ataba- lhoado de gente correndo à sua volta ou na sua direcção. Ele era o último da penúltima secção, a que tinha o rádio de transmissões. Os gritos cada vez mais perto, cada vez mais angustiantes no medo que lhe faziam. Na sua frente encontrava-se um cabo de uma das secções de exploração. A cara tinha-a manchada de pequenas feridas circulares do tamanho de cabeças de alfinete; os olhos mareja- dos desfaziam-se na surpresa da máscara afivelada do seu rosto sem barba. Era um dos maquei- ros improvisados que carregavam o pesado do corpo do gajo de Cinfães. Da sua cabeça de cabelos encaracolados e negros caíam lâminas de terra fresca. – A granada rebentou; a granada que ele segurava rebentou, o desgraçado está todo des- feito, venha depressa, meu furriel! [...] João de Melo in Os Anos da Guerra 1961-1975. Publicações D. Quixote, Lisboa, 1988. 228 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS O oitavo dia da semana Eu estava lá. Posso-lhe dizer que não saberei como foi possível caber tanta gente numa só voz. Faço-me entender? Eram muitas as vozes, milhares e milhares, mas havia uma que vinha de todas elas e ficava a pairar. Uma revoada, uma música de mar. Cada um de nós a ouvia à sua maneira. Eu ouvia-a pensando no inverno de sessenta cinco, o meu tio preso, o meu tio tinha-se envolvido nas greves da margem sul, as nossas visitas a Caxias, o pavor e a revolta, imagine com que coração atravessávamos os portões!, o vento a varejar as árvores quando saíamos. Ouvia-a também por entre as imagens da guerra nas fotos dos amigos, con- taram-me estórias de arrepiar, iguais decerto a todas as estórias de guerra, mas havia uma dife- rença, na Guiné ou em Angola morriam tipos do meu bairro, tipos que jogavam matraquilhos nos cafés onde ia tomar a bica, um desses foi abatido a meio de um sorriso, o horror a preto e branco, corpos desfeitos no capim, navios carregados largando o cais. E o silêncio depois. O silêncio da angústia, o silêncio do luto. Estava lá, mesmo junto dos blindados. A barba por fazer, cigarro atrás de cigarro, duas maçãs nos bolsos. Vim para a rua a esfregar os olhos, cheio de sono, e corri para o Carmo. Como a cidade inteira, afinal. Ou antes, como os que esqueceram o medo. Porque a derrota ainda poderia surgir, claro. A ansiedade crescia, tornava-se clamor, tantas palavras inventáva- mos, nem calcula as palavras que acolá nasciam para andarem de boca em boca, a tropa ner- vosa, um braço no gatilho, outro na festa, uma festa com subterrâneos de dúvida, note que não faltavam agoiros, preces, gestos temerosos. E lágrimas, lágrimas. Lembro-me sempre da velhinha, atrás de mim, murmurando Jurem-me que é verdade, o rosário na mão, as contas caindo dos dedos até serem apenas cruz, murmurando e chorando, Jurem-me, um homem cortava presunto à navalha, oferecia aos militares, já o osso brandia no ar das palmas, dos punhos, das cantigas, alguém assomou a uma janela e pôs balões a subir, balões de feira, pom- bas de várias cores em viagem por cima dos telhados. E, a dada altura, os tiros. Segundos de respiração suspensa, barulho de água a precipi- tar-se, a multidão em sobressalto. Os rostos fitando a entrada do Quartel. Que se passaria além daqueles muros onde estrebuchavam quarenta e oito anos de ditadura? Que se passa, nosso cabo? Alguma novidade, senhor jornalista? Nada, conjecturas, rumores. Nada. No fundo da alegria sentíamos charcos, essa coisa pegajosa chamada angústia. O tal receio de um desaire. Pequeno e imenso receio, acredite. Entoámos o Hino Nacional. Gritámos Liberdade, Fascismo Nunca Mais, desejos assim. Desejos ou certezas, tudo se confundia. E Vitória, Vitória, quantos vês em movimento de onda sobre o dique entretanto derrubado?, chegou a notícia da rendição, chegavam cravos, vermelhos, brancos, cravos, cravos, na raiz do sangue e no cano das espingardas, pão, chouriço, cerveja, não te perguntarei o nome, soldado a quem estendo uma das maçãs camoesas, não te perguntarei por que caminhos irás, chegariam sus- tos e flores silvestres, transistores, ecos de um país amanhecendo, a História mudava de página, eu estava ali, percebe?, ali, uma criança trepara-me aos ombros para observar as varan- das apinhadas, os carros de combate, o povo no Largo. 229 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Creio que não, não chovia. De qualquer modo fazia sol, um sol de dentro, tão intenso como se o mundo começasse finalmente a conhecer a claridade. Sábado? Quarta-feira? Impos- sível recordar-me. Se calhar domingo, as pessoas desobrigadas do emprego, enchendo os pas- seios e as praças, Rossio, Chiado, Cais das Colunas. Os cacilheiros, as gaivotas do rio. E daí, deixe ver, os domingos são uma chatice, horas gastas de montra em montra, jardim em jar- dim, a remoer azedumes. Às vezes o cinema, sim. As praias na época do calor, o futebol. Domingo não, não podia ser. Teremos de imaginar um dia único, diferente dos sete dias da semana, um lugar para a dádiva e os abraços sem porquê, para o que jamais se repete, o insó- lito, o definitivo. Por exemplo, um oleiro no Terreiro do Paço. Um oleiro a tirar do barro cres- centes de lua, flautas, placas à espera dos sinais por aprender. E, à volta, grupos a dançar. Dia único, garanto-lhe. A legenda de uma vida. José Manuel Mendes, Prelúdio de Outono, CCUM. Braga, 1988. 230 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Até os muros, que dantes eram vedações impávidas ou autoritárias (na realidade recusa- vam qualquer aproximação com a ameaça do proibido: «proibido afixar», «proibido estacio- nar»), até os muros se tornaram livres e populares. Mais ainda: falam, criticam a vida com o hábil e diabólico humor do anonimato. Hoje numa fachada de igreja posso ler: «DEUS É PARVO» – mas no dia seguinte outra mão, outra letra, acrescenta por baixo: «PARVO ÉS TU, ASSINADO: DEUS». Aqui discute-se o pão: REFORMA AGRÁRIA, O TRACTOR SOBRE O CAPITAL», acolá fala-se de sexo: «O SEXO A QUEM O TRABALHA» – e estamos no diálogo a todas as vozes, no diálogo dos muros. Vem por exemplo este e proclama: «O VOTO É A ARMA DO POVO»; levanta-se logo outro e res- ponde: «SE VOTAS FICAS DESARMADO». Mais adiante cita-se um herói ou anuncia-se um partido: «TODOS AO COMÍCIO POPULAR MONÁRQUICO, O REI VAI NU». «ABAIXO O BLACK & DECKER» grita um paredão remendado com cartazes comerciais, «VIVA A FOICE E O MARTELO». Agora não somos só nós, os homens, que ganhamos voz pública. Realmente pode dizer-se que não há estrada, não há cidade ou aldeia que não seja atra- vessada pelo contínuo e sempre renovado eco dos muros. Com os seus slogans, suas notícias, suas siglas partidárias, com seus desenhos e seus murais coloridos eles protestam ou conci- tam, fazem história. Discutem, esquina a esquina, rua a rua, e como se vê desprezando o «proibido» de antigamente. Alguns eram propriedade de intocáveis senhorias (ainda lá conti- nua o letreiro arrogante, mas quem o lê?) e na sua maior parte estavam abafados pela voraci- dade das marcas do comércio. Até da praga do marketing as paredes e os tapumes se conseguiram libertar. Em menos de nada romperam os cartazes do sonho consumidor, essa praga dirigida, cobrindo-os com mensagens do tempo essencial, com jornais de parede, comentários, caricaturas. Inclusive, expulsaram as placas dos falsos heróis que davam o nome às ruas e no lugar desses mortos dourados, escreveram Bento Caraça, Catarina Eufémia, Redol, General Sem Medo... «MOR- TOS DA VALA COMUM, OCUPAI O PANTEÃO!» Portanto, viajar hoje em dia no meu país é percorrer uma cartilha de pedra e cal ilus- trada de sentenças populares. Muito do nosso saber está resumido ali, nos muros, e foi escrito por todos e ninguém – o homem que passa e o militante nocturno, o artista de mão ignorada e o profeta comum. E frase a frase, caminhando e lendo, vamos aprendendo à flor das cidades e dos tapumes os abecedários da democracia, cada qual com seus apelos e seus avisos. (Brecht: «As fotografias da revolução [de Outubro] mostram uma curiosa literatização da rua. As cidades, e mesmo as aldeias, estão consteladas de fórmulas, como símbolos. A classe que se apodera do poder inscreve em grandes pinceladas as suas opiniões e as suas palavras de ordem nos edifícios de que se apoderou» – A Arte e a Revolução). José Cardoso Pires, E agora, José?, Moraes Editores, 1977. 231 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Ova ortegrafia Ecidi escrever ortado; poupo assim o rabalho a quem me orta. Orque quem me orta é pago para me ortar. Também é um alariado. Também ofre o usto de ida. Orque a iteratura deve dar sinal da ircunstância, e não não tem ustificação oral. E ais deve ter em conta todos os ofrimentos, esmo e rincipalmente os daqueles ujo rabalho é zelar pela oralidade e ordem ública – os ortadores. Eu acho que enho andado esavinda omigo e com a grei, com tanta iberdade de estilos e emas e xperimentalismos e rocadilhos que os ríticos e eitores dizem arrocos e os ortadores, pelo im, pelo ão, ortam. A iteratura eve ser uma oisa éria e esponsável. Esta é a minha enúncia ública. (Eço esculpa de esitar nalguns ortes, mas é por pouco calhada neste bom modo de scrita usta ao empo e aos odos). Izia eu que o ortuguês que ora, nesta ora de rudência e sforço, se não reduz a orma imples, não erve a vera íngua da Pátria. (Por enquanto só orto ao omeço, porque a arte de ortar não é fácil; rometo reinar-me até udo me air aturalmente ortado e ao eio e ao im). Outros jovens me eguirão o rilho. Odos não eremos emais para ervir na etaguarda os que, em árias frentes, por nós se mputam. A issão do scritor é dar estemunho e efrigério aos e dos omentos raves da istória, ao erviço dos ideais da sua omunidade; ervir a oz do ovo, espeitar a oz dos overnantes egítimos. Olegas, em ome da obrevivência da íngua, vos eço pois: Reinai-vos a ortar-vos uns aos outros omo eu me ortei. Maria Velho da Costa, Desescrita, Ed. de A., Porto, 1973. 232 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Venham mais 25 Contarás de Abril, aos meus filhos, que os meus olhos ardidos, urbanos, ficaram cheios de um ofício de dizer coisas singelas, humildes: como amor, liberdade. Contarás de Abril os idos e os que voltaram, os que ficaram e ficam. Contarás de Abril pequenas pilhas de palavras, armazenadas numa necessidade que inventei; e as nossas almas ledas e limpas: e os braços que se estendem a outros abraços; e a cordialidade de anotarmos um nome, um número, uma flor: e os balaios sem reticências de mágoas, cheios de trissos de aves, de pássaros remotos de que ignorávamos a voz ou havíamos esquecido o toque e a fímbria. Contarás de Abril que na nossa terra já não apodrecem as raízes e que já não adiamos o coração; que já não nos dói a velhice e que os rios são todos nossos e íntimos e que já não perdemos a infância e que nas- cem crianças insubmissas e claras e livres. Contarás de Abril a espessura mágica, o punho reflexo, o dia de água, a lágrima, a vontade de sermos e de estarmos, o lipido grito, a forma inconsútil, o vermelhor e a brisa, o livor das coisas, a maravilha discreta de assear a vida, o caminhar, os restos nesta dócil pausa e neste imenso perdão. Contarás de Abril as casas de mil sóis, a imponderável descoberta dos sussurros, a brancura inadiável da perseverança, o res- plandecente varar dos dias, a feira alvoroçada das horas. Contarás de Abril as mãos dadas. Contarás de Abril o renascer da essencial frescura. Baptista-Bastos, in O Diário, 25-4-90. 233 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Quem a tem… Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade. Eu não posso senão ser desta terra em que nasci: Embora ao mundo pertença e sempre a verdade vença qual será ser livre aqui, não hei-de morrer sem saber. Trocaram tudo em maldade, é quase um crime viver. Mas, embora escondam tudo e me queiram cego e mudo, não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade. Jorge de Sena, Fidelidade. 234 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Cantiga de Abril Às Forças Armadas e ao povo de Portugal «Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade» J. de S. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Quase, quase cinquenta anos reinaram neste país, a conta de tantos danos, de tantos crimes e enganos chegava até à raiz. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Tantos morreram sem ver o dia do despertar! Tantos sem poder saber com que letras escrever com que palavras gritar! Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Essa paz do cemitério toda prisão ou censura, e o poder feito galdério, sem limite e sem cautério, todo embófia e sinecura. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Esses ricos sem vergonha, esses pobres sem futuro, essa emigração medonha, e a tristeza uma peçonha envenenando o ar puro. 235 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Essas guerras de além-mar gastando as armas e a gente, esse morrer e matar sem sinal de se acabar por política demente. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Esse perder-se no mundo o nome de Portugal, essa amargura sem fundo só miséria sem segundo, só desespero fatal. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Quase, quase cinquenta anos durou esta eternidade, numa sombra de gusanos e em negócios de ciganos, entre mentira e maldade. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Saem tanques para a rua, sai o povo logo atrás: estala enfim altiva e nua, com força que não recua, a verdade mais veraz. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Jorge de Sena, 40 Anos de Servidão, 1979. 236 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Poema constituinte (Escrito em 1979, para o 3.º Aniversário da Constituição) A Constituição constitui-se de homens e mulheres cidadãos com a mesma dignidade social iguais perante a lei A Constituição constitui-se de homens e mulheres antes de se estruturar em Títulos Capítulos Artigos Alíneas A Constituição constitui-se pela vontade popular empenhada livremente na transformação da sociedade portuguesa numa sociedade sem classes A Constituição constitui-se por dentro dos braços e das cabeças dos homens e das mulheres livres que constroem o socialismo dia a dia antes de ele ser o Artigo 2.° da Constituição pela via democrática A Constituição constitui-se de avanços projectos e lutas no coração que não admite recuos nem abdica do futuro A Constituição constitui-se da força organizativa dos que acordam todos os dias com um novo intento de viver porque possuem em si próprios a soberania una indivisível 237 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS A Constituição constitui-se dos direitos dos trabalhadores não distinguindo idade raça religião ideologia com direito ao trabalho e à retribuição sem aviltamento sem exploração com direito à existência condigna à realização pessoal à higiene e à saúde à organização à segurança à educação e à cultura ao repouso às comissões suas de trabalhadores defendendo esses seus interesses e outros A Constituição constitui-se de consciências livres antes de se cristalizar nas palavras e nas frases num documento lei A Constituição constitui-se da liberdade de escrever essas palavras da obrigatoriedade de cumpri-las porque por longos anos circularam interditas no sangue livre do povo soberano Constituição constitui-se das palavras com que se escrevem os poemas (como este) que todos têm direito de produzir exprimir divulgar já que pela palavra são a criação do pensamento 238 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS pela imagem são a materialização da comunicação por todos os meios são a circulação da informação a que todos os homens e mulheres têm direito sem impedimentos nem discriminações E porque todos esses direitos não podem ser impedidos por qualquer tipo de censura a voz soberana do povo digno e verdadeiro far-se-á ouvir defendendo e constituindo a Constituição! E. M. de Melo e Castro, Vértice 59/ Março-Abril de 1994. 239 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Esta lei Ainda que não houvéssemos feito mais nada desde o século XVI, erigimos este corpo de leis invulgarmente justas e certas, em nome da vontade popular. A lei democraticamente escrita pelos representantes legítimos de um povo e o rosto que esse povo levanta perante as outras nações. Resplandecente de esperança e dignidade, esta lei há-de fazer-nos maiores do que somos na adversidade e dependência, porque os homens são construídos ou destruídos pelas leis que os obrigam e abrigam. Esta é uma Constituição aventurosa, projecto de vida certa deste povo para este povo. Estes são os novos mandamentos a que ater-nos durante a longa travessia até à justiça de todas as leis do mundo. Mais uma vez chegamos primeiro, acaso sem ter com quê. Mas destruir estas tábuas seria destruir algo daquilo em que sempre fomos grandes – a capacidade de inscrever o sonho realizável na memória e no assombro dos outros povos. Março, 1978 Maria Velho da Costa, Vértice 59/Março-Abril de 1994. 240 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Os medos É a medo que escrevo. A medo penso. A medo sofro e empreendo e calo. A medo peso os termos quando falo A medo me renego, me convenço A medo amo. A medo me pertenço. A medo repouso no intervalo De outros medos. A medo é que resvalo O corpo escrutador, inquieto, tenso. A medo durmo. A medo acordo. A medo Invento. A medo passo, a medo fico. A medo meço o pobre, meço o rico. A medo guardo confissão, segredo. Dúvida, fé. A medo. A medo tudo. Que já me querem cego, surdo, mudo. José Cutileiro, Os medos, in Versos da mão esquerda, 1961. 241 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Sim é o Estado Novo e o povo Sim, é o Estado Novo, e o povo Ouviu, leu e assentiu. Sim, isto é um Estado Novo Pois é um estado de coisas Que nunca antes se viu. Em tudo paira a alegria E, de tão íntima que é, Como Deus na Teologia Ela existe em toda a parte E em parte alguma se vê. Há estradas, e a grande Estrada Que a tradição ao porvir Liga, branca e orçamentada, E vai de onde ninguém parte Para onde ninguém quer ir. Há portos, e o porto-maca Onde vem doente o cais, Sim, mas nunca ali atraca O Paquete Portugal Pois tem calado de mais. Há esquadra… Só um tolo o cala Que a inteligência, propícia A achar, sabe que, se fala, Desde logo encontra a esquadra: É uma esquadra de polícia. Visão grande! Ódio à minúscula! Nem para prová-la tal Tem alguém que ficar triste: União Nacional existe Mas não união nacional, E o Império? Vasto caminho Onde os que o poder despeja Conduzirão com carinho A civilização cristã, Que ninguém sabe o que seja. 242 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Com directrizes à arte. Reata-se a tradição, E juntam-se Apolo e Marte No Teatro Nacional Que é, onde era a Inquisição. E a fé dos nossos maiores? Forma-a impoluta o consórcio Entre os padres e os doutores. Casados o Erro e a Fraude Já não pode haver divórcio. Que a fé seja sempre viva. Porque a esperança não é vã! A fome corporativa E derrotismo. Alegria! Hoje o almoço é amanhã. Fernando Pessoa. 243 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Poema sobre Salazar António de Oliveira Salazar Três nomes em sequência regular… António é António. Oliveira é uma árvore. Salazar é só apelido. Até aí está bem. O que não faz sentido É o sentido que tudo isto tem Este senhor Salazar E feito de sal e azar. Se um dia chove, A água dissolve o sal, E sob o céu Fica só azar, é natural. Oh, c’os diabos! Parece que já choveu… ……………………… Coitadinho Do tiraninho! Não bebe vinho. Nem sequer sozinho… Bebe a verdade E a liberdade. E com tal agrado Que já começam A escassear no mercado. Coitadinho Do tiraninho! O meu vizinho Está na Guiné E o meu padrinho No Limoeiro Aqui ao pé. Mas ninguém sabe porquê. 244 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Mas enfim é Certo e certeiro Que isto consola E nos dá fé: Que o coitadinho Do tiraninho Não bebe vinho, Nem até Café Fernando Pessoa. 245 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Portugal, cravo vermelho Em vinte e cinco de Abril, em Portugal, de repente, no termo da madrugada, floriram cravos vermelhos. Já quarenta e oito anos a treva nos tinha cegos, quando da treva rasgada floriram cravos vermelhos. Veio a manhã que tardava. Estava a longa noite finda. Num rumor de asas de pombas, floriram cravos vermelhos. Desde os peitos dos soldados aos peitos dos marinheiros, nas próprias metralhadoras, floriram cravos vermelhos. Mal rompeu o dia novo, logo por ruas e praças, das cidades às aldeias, floriram cravos vermelhos Quer nas mãos dos operários, quer nas mãos dos camponeses, no tempo de um pensamento, floriram cravos vermelhos. Nos olhos baços dos velhos, na gralhada das crianças, no enlevo das mulheres, floriram cravos vermelhos. Nas páginas dos escritores, na atenção dos estudantes, na comoção da razão, floriram cravos vermelhos. 246 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Era um povo renascido da morte em que estava morto, cujos gestos e gritos floriram cravos vermelhos No sol, na lua, no vento.. nas searas, nos montados, nos olivais, nas charnecas, floriram cravos vermelhos. Na voz das fontes e rios, por ondas do mar amigo, nas penedias dos montes, floriram cravos vermelhos. No pão, no vinho, nos frutos, de sangue e suor nutridos, mais na fome e sede deles, floriram cravos vermelhos. No azul do céu profundo, no branco leve das nuvens, no canto alegre das aves, floriram cravos vermelhos. Na sombra vil das prisões abertas de par em par, dos irmãos delas libertos, floriram cravos vermelhos. Mas no Primeiro de Maio foi que, em todo o Portugal, Portugal todo floriu num mesmo cravo vermelho. Armindo Rodrigues, A Manhã Necessária, 1978. 247 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Cravo Mal Temperado II Vamos sentar devagar no regaço deste mal armado dia o perfume quebradiço das glicínias e a tarde manifesta de abril vamos revelar as dores manuscritas nas costas oficiais do caixilho da alegria cheia de perigos a medição dos passos organizado só o esforço do chão pelas encostas da garganta os gritos descansam à sombra do que não sabem o sol ainda milita arroxeado. Boaventura de Sousa, in Têmpera, Centelha, Coimbra, 1980. 248 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Festejar no teu corpo a liberdade que a obra desta noite pronuncia sobre o nervo da voz força de alarme garganta milimétrica de abril um cravo na coronha de um soldado no carmo há meia hora ainda em sentido para o gesto tão fundo tão volável infância já da luz dentro do sismo Jornais não censurados no tapete uma fábula fértil de fogueiras crepitando onde rola o som da estampa interior ao rumo à labareda o desenho final do nosso beijo na premissa mais livre do meu sangue Olga Gonçalves, Só de amor, Ed. Ática, 1975. 249 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Aos poetas que faremos poetas aos cravos roxos e libertos de maresia? que faremos às pernas do dia que faremos maduramente em cachos? que faremos é pôr as mãos no lume viver é ter figueiras de abandono no quintal morrer é balizar o sol com perfume. Que faremos poetas antes do render das botas ao chafariz dos versos? que faremos a estes calhaus dispersos – ilhas de carne e osso com a lava a escorrer? cantar é desfolhar as rosas da garganta gritar é ter nas veias a raiva dos fortes? amar é sempre um medo que se canta. a nada nos obriga a posição dos mortos? Álamo Oliveira, «14 Poetas de Aqui e de Agora». Antologia. Angra do Heroísmo, 1974. 250 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Do Abril Sabes meu amor: sou o único sobrevivente deste país. os outros poetas olham os cravos e de alegria mirram fartos da liberdade abrilmente dada. só eu preso! – verde força lírica política deste tempo onde tu manuel meu povo me tornas caule fardo cimento. Aqui acredito no curso da lágrima ferindo o meu rosto seco duro barro sopro. os outros poetas também estão secos. mas fartos porque de mão na mão se plantaram com amor e tudo se consumou em abundância. Sabes meu amor: sou o que resta deste bagaço lírico e português Álamo Oliveira, Cantar o Corpo, 1979. 251 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS O dia incomum de um exilado vivendo então em Vancouver Era muito longe, ou seja no Pacífico Notícias de jornal, confusas: tanques ocupam a praça central de Lisboa Digo-me: mal eles sabem que se chama Rossio mas digo-me também: se é a revolução daquele do monóculo pouco tenho a esperar Depois espanto-me: como é possível que libertem assim sem mais nem menos os presos políticos e prometam a autodeterminação de colónias economicamente tão preciosas? O povo saiu à rua e foi isso que mudou tudo, explicam-me então pelo telefone. No dia em que abalei para aqui ficar deixei sem remorsos: a minha horta cujos legumes tantas vezes protegi um trabalho que tanto suspeitava amar e os amigos que, querendo ser generosos, me disseram: «Vai, vais ver que não te arrependes» Esquece-se muita coisa... à força de ver caras novas não sei se me lembro das antigas embora as veja tão bonitas e disponíveis na memória e por vezes em fotografia. Sérgio Godinho, POEMABRIL, Fora do Texto, Coimbra, 1994. 252 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS A professora de Latim «O tempus miserum atque acerbum provinciae Sciliae! o casum illum multis innocentibus cala- mitosum atque funestum! o iustius nequitiam ac turpitudinem singularem!» – Chega! Não foi lá muito fluente essa leitura mas já se nota um ligeiro progresso. Podem começar a fazer a tradução do texto completo, têm trinta minutos. Ana Maria, venha sentar- -se nesta carteira da frente, ao pé de mim. Empilhei o dicionário, o livro de textos e o caderno, encostei-os ao braço e levantei-me a caminho do lugar que a professora tinha acabado de indicar. Obedeci sem entusiasmo nem protesto. Já estava habituada a mudar de lugar nos testes de latim, isolada dos meus colegas prisioneiros para evitar que copiassem todo o teste pelo meu, como tinha acontecido no prin- cípio do ano. Mas nessa manhã o humor de Aretusa – era este o nome carinhoso da megera – parecia ainda mais agreste do que o habitual, para me impor assim o pior lugar da sala, rodeado de muros: a norte o quadro preto, a leste uma parede, a sul uma fila de carteiras desertas e a oeste a secretária magistral. Nessa manhã não me dava a mínima hipótese de fuga. Pelo menos quando ficava perto da janela conseguia tirar proveito do isolamento, porque mal acabava o teste punha-me a olhar para a paisagem exterior e fugia dali para um mundo maravilhoso, sem latim. E nessa manhã teria valido a pena ficar perto da janela. O sol ainda não tinha nascido há muito tempo mas já tinha invadido a sala inteira. Um sol capaz de penetrar a espessura dos corpos e de iluminar até um texto atormentado de M. Tullius Cicero. Capaz de anunciar um dia raro, apesar do latim ao primeiro tempo, fatal à quinta-feira. Pousei os livros e comecei a traduzir mentalmente, facilmente, como de costume. Nunca cheguei a perceber que espécie de relação havia entre mim e aquela língua austera. Em todo o caso uma relação tormentosa, uma injusta relação, porque era óbvio que ela me amava apai- xonadamente, tentando todos os artifícios para me seduzir, enquanto eu a repelia sem pie- dade, sem ao menos lhe permitir uma pequena esperança. «quae consolari hominem in malis posset». Consolar os homens. Ajudar os companhei- ros de reclusão, os colegas aflitos. Levantei-me com o pretexto de ir buscar a caneta que inten- cionalmente tinha deixado no meu lugar de origem e fui passar soluções à colega encarregada de as divulgar pela turma. Depois regressei à cela de isolamento, onde já me aguardava o olhar torcionário, a ferver em ácido sulfúrico. – É a última vez que se levanta do lugar, estes imbecis não merecem a sua ajuda, ou pensa que merecem? Seria um diálogo o que ela estava a sugerir? Afinal Aretusa estaria só com vontade de falar? Mas da minha parte não havia a mínima hipótese de lhe corresponder, tal como à lín- gua que justificava a sua decrépita presença, cada vez mais irritante. Limitei-me a olhar para o caderno e começar a escrever, sem me dar ao trabalho da resposta. Mas não cheguei a comple- tar a primeira frase porque ela afinal não tinha desistido: – Não ouviu a pergunta que eu lhe fiz? 253 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Era então um desafio! Pelos vistos o caso estava a ficar mais sério que o previsto, come- çava a interessar-me e a merecer empenhamento. – Ouvi a pergunta, mas a resposta não ia ser lá muito amável, se não se importa prefiro voltar à tradução. O sol continuava a iluminar a sala inteira. Nos olhos dela provocava um estranho tom amarelado de icterícia, como se eles fossem nesse dia a única barreira em que a luz tropeçasse e depois fugisse apavorada. – Não precisa de continuar a tradução, já sei que ficaria perfeita como sempre, não vale a pena ter esse trabalho, disse ela, e ao mesmo tempo baixava os olhos e a voz, num registo ines- perado. – Não vale a pena ter esse trabalho num dia como este. – Um dia como este? – perguntei eu, sinceramente surpreendida – O que é que este dia tem de especial? – Não vê este sol todo, esta luz capaz de entontecer? Não ouviu as notícias? – Ainda vinha a dormir quando entrei na aula, não ouvi nada, que notícias? – A revolução, em Lisboa. No país todo, ao que parece. A ordem acabou. Acabou tudo, e chamam ao fim a liberdade. As ruas estão apinhadas de gente desvairada, com os dedos estica- dos em gestos obscenos, sem o mínimo respeito pela autoridade. Aqueles dedos, aquelas mãos vão acabar com tudo, até são bem capazes de acabar com as aulas de latim. Eu, atónita e feliz, sem conseguir esconder o riso, com vontade de desatar aos saltos e de atirar para o lixo lodosos livros e cadernos e o liceu em geral. Virei-me para trás e gritei: – Vamos embora, malta, estamos livres, o teste acabou. Mas a turma estava tão empenhada no seu esforço tradutor que poucos perceberam e ninguém me levou a sério. Quando olhei de novo para a frente, à espera de uma reacção, nem queria acreditar. Seriam mesmo lágrimas o que parecia restituir um fio de luz aos olhos de Are- tusa? – Não vou deixar que acabem com as aulas de latim, vou reagir, prometa-me que me vai ajudar. Aconteça o que acontecer nunca deixe de vir às minhas aulas, prometa-me. Não consegui dizer nada, nem sequer um aceno de cabeça me animou. Não fui capaz de enfrentar aqueles olhos nem de lhes prometer fosse o que fosse. Nunca tive jeito para mentir mesmo por compaixão. Levantei-me, fui até ao quadro e comecei a escrever a tradução do texto inteiro, letras brancas de giz sobre a ardósia preta. Não houve outras aulas nesse dia feliz. As de latim foram acabando sem tumulto ao longo de uma primavera deslumbrante. Longínqua, também só uma luz invencível na memó- ria. Julieta Monginho, ABRIL, Comissão Abril de Abril, Braga, 1999. 254 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Revolução Como casa limpa Como chão varrido Como porta aberta Como puro início Como tempo novo Sem mancha nem vício Como a voz do mar Interior de um povo Como página em branco Onde o poema emerge Como arquitectura Do homem que ergue Sua habitação Sophia de Mello Breyner Anderen, Obra Poética, Caminho, Lisboa, 1991. 255 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Que país constróis? Porque tens nos olhos o sol e o mar… Porque tens nos olhos o rio e também: o riso e o fogo Porque tens no ventre a raiz de todas as crianças… que país constróis diariamente? Maria Teresa Horta, Mulheres de Abril, Editorial Caminho, Lisboa, 1977. 256 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS Portugal Portugal Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse oitocentos Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de África só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais e nunca mais voltasse Quase chego a pensar que é tudo mentira que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente Portugal Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional (que os meus egrégios avós me perdoem) Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo Anda na consulta externa do Júlio de Matos Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de rosas Portugal Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do Império mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar uma pétala que fosse das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador Portugal Se tivesse dinheiro comprava um Império e dava-to Juro que era capaz de fazer isso só para te ver sorrir Portugal Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém Sabes Estou loucamente apaixonado por ti Pergunto a mim mesmo Como me pude apaixonar por um velho decrépito e 257 25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS LITERÁRIOS idiota como tu mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentugal e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade Portugal estás a ouvir-me? Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada de ressentimentos o meu irmão esteve na guerra tenho amigos que emigraram nada de ressentimentos um dia bebi vinagre nada de ressentimentos Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas a nado na piscina municipal de Braga ia agora propôr-te um projecto eminentemente nacional Que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho que Camões lá deixou Portugal Sabes de que cor são os meus olhos? São castanhos como os da minha mãe Portugal gostava de te beijar muito apaixonadamente na boca Jorge de Sousa Braga, O Poeta Nu, Ed. Fenda, 1991. 258