Noções Gerais de Direito Penal PDF

Summary

Este documento fornece uma visão geral sobre o Direito Penal, incluindo tópicos como a criminologia, movimentos políticos criminais e os princípios do direito penal. Aborda temas como a formação do Estado Absolutista, a Inquisição e o Iluminismo, a escola positivista e variações, e os princípios da legalidade, da intervenção mínima, da lesividade, da adequação social e da culpabilidade.

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NOÇÕES GERAIS DE DIREITO PENAL ÍNDICE 1. DIREITO PENAL.................................................................................................................3 2. DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E POLÍTICA CRIMINAL....

NOÇÕES GERAIS DE DIREITO PENAL ÍNDICE 1. DIREITO PENAL.................................................................................................................3 2. DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E POLÍTICA CRIMINAL...................................5 3. MOVIMENTOS DE POLÍTICA CRIMINAL....................................................................7 A formação do Estado Absolutista.............................................................................................................................7 Inquisição....................................................................................................................................................................................... 8 Iluminismo................................................................................................................................................................................... 10 Escola clássica......................................................................................................................................................................... 10 4. POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO.................................................................................11 Escola positivista...................................................................................................................................................................... 11 Imperialismo................................................................................................................................................................................ 11 Postuladores da Escola Positivista.............................................................................................................................12 5. AS VARIANTES DO POSITIVISMO............................................................................. 13 Escola moderna alemã.......................................................................................................................................................13 Escola Correlacionalista.....................................................................................................................................................13 Escola técnico–jurídica.......................................................................................................................................................14 Teoria da anomia.....................................................................................................................................................................14 6. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE......................................................................................16 7. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA................................................................... 18 Subsidiariedade.......................................................................................................................................................................18 Fragmentariedade.................................................................................................................................................................18 8. PRINCÍPIO DA LESIVIDADE E PRINCÍPIO DA HUMANIDADE..........................20 Princípio da Humanidade...............................................................................................................................................20 9. PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL.................................................................... 22 10. PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE............................................................................. 23 1. Direito Penal Para começarmos o curso, é importante deixar claro que não há somente um conceito consolidado de Direito Penal. Algumas teorias criminológicas ocupam-se em descrevê- lo e o fazem cada qual com suas peculiaridades. A grosso modo, consideremos que o “Direito Penal” abarca duas entidades complementares: 1. A legislação penal, ou seja, o conjunto de leis que dispõe sobre matéria penal 2. O sistema de interpretação dessas leis, isto é, o saber do Direito Penal. Comumente, vê-se definida a principal função do Direito Penal como a proteção de bens jurídicos penais, ou bens jurídicos essenciais: quaisquer bens, materiais ou imateriais, que sejam essenciais ao indivíduo e à comunidade. Bens que tenham significativo valor perante a sociedade -e, portanto, perante o Direito-, apresentando-se como dignos, úteis, relevantes. Nas palavras de Alice Bianchini, Doutora em Direito Penal, “o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens.” É levando-se em conta esses requisitos de relevância social que o legislador seleciona quais são os bens merecedores da tutela penal. Especifiquemos o que seriam os bens jurídicos penais. Definem-se bens jurídicos, no sentido amplo, como valores éticos sociais que o Direito seleciona com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob a sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas. Ora, bens jurídicos penais, então, são esses valores, de todos os mais relevantes, que o Direito Penal se ocupa em proteger. Sabe-se que, dos ramos do direito, o Penal é o mais invasivo no sentido de que gera maior repressão àquele que atenta contra ele. É o último a atuar, (tem natureza residual, pois que sempre buscam-se, antes, soluções menos gravosas noutros ramos do direito ao fato que clame por tutela jurídica), é o único que pode sancionar com penas privativas de liberdade, mais agudas, e tem natureza fragmentária, ou seja, somente protege os bens jurídicos mais preciosos. Esses são motivos pelos quais os bens jurídicos penais podem também ser chamados de bens jurídicos essenciais. Podem sê-los a vida, a honra, a propriedade, a liberdade, a saúde etc. Cada tipo penal posto em nosso Código (CP), ou seja, cada descrição de fato ilícito intenta evitar um bem jurídico penal de sofrer lesão. A essas condutas tipificadas é que chamamos crimes. O “furto”, por exemplo, objetiva a proteção do patrimônio, e o “homicídio” objetiva a proteção da vida. Digamos, em suma, e sem levar em conta suas diferentes definições, que o Direito Penal é o conjunto de normas jurídicas que preveem os crimes, conferem-lhes sanções, e disciplinam a incidência e validade de tais normas, a estrutura geral do crime e a aplicação e execução das sanções aos crimes conferidas. 3 A partir desse entendimento, podemos definir o que seria o Sistema Penal: estrutura de aplicação de penas, por meio do Direito Penal, usadas como resposta a certas condutas consideradas inaceitáveis pela sociedade em que esta foi perpetrada; ou, ainda: grupo de instituiçõesqueseincumbemderealizaroDireitoPenalsegundoregrasjurídicaspertinentes. O Sistema Penal coloca-se como “garantidor de uma ordem social justa”. Veremos, contudo, que seu desempenho real não condiz com tal afirmação. Temos um Sistema evidentemente seletivo. Nosso Código Penal é dividido em duas partes: a parte geral e a especial. A parte geral dispõe sobre aplicabilidade, características, explicações e permissões contidas na lei penal. Trata das normas gerais. A parte especial, por sua vez, dispõe sobre os crimes em si, definindo sua conduta e suas penas aplicáveis. Além do Código Penal, forçoso dizer, temos legislações penais especiais que cumprem semelhante papel ao do Código, mas que trazem leis sobre crimes específicos não contidos nele. São legislação penal especial a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), a Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990), Lei da Tortura (Lei nº 9.455/97), Lei do Terrorismo (Lei nº 7.170/83), Lei das Contravenções Penais (Lei nº 3.688/1941), Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), Lei dos Crimes de Preconceito de Raça ou Cor (Lei nº 7.716/1989), Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei nº 1.079/50), Lei dos Crimes Falimentares (Lei nº 11.101/05), entre outras. 4 2. Direito Penal, Criminologia e Política Criminal Criminologia é a ciência que se ocupa em estudar o delito, suas causas, e a situação e personalidade do delinquente, bem como fatores sociais, econômicos, psicológicos e políticos que influenciariam o cometimento de infrações. Não se pode dizer que a criminologia é simples ciência auxiliar do direito penal. Trata-se de ciência autônoma e empírica, ou seja, independentemente do método dogmático usado para a construção do conhecimento de direito penal, ela busca elementos somente identificados na realidade prática, operando com base na observação dos fatos, e não em opiniões, afirmações ou argumentos. Ela estuda comportamentos, fatores sociais -objetivos e subjetivos-, cenas de delitos, psicopatologias, motivação da infração ou violência, e quaisquer aspectos que tenham relação com o crime ou com o dito criminoso. Trata-se de ciência que busca alternativas para responder ao fenômeno criminal, no sentido de preveni-lo ou controla-lo. Diz-se da ciência que cuida das leis e fatores da criminalidade do ponto de vista causal-explicativo, incluindo-se no ramo das ciências positivas daquilo que é, e não daquilo que deve ser. Sumariamente, a criminologia tenta explicar as causas do crime tomando como base a pessoa do criminoso e todo seu entorno e contexto social, em seus aspectos subjetivos e objetivos. Parte dessa ciência empírica discutida é a criminologia crítica, também conhecida como criminologia radical, que questiona o próprio conceito de crime e os processos de criação e aplicação das leis. Essa corrente enxerga a criminalidade e o comportamento do criminoso e de sujeitos criminalizados como resultantes de processos seletivos de construção social. O que se definiu legislativamente a respeito do crime não é visto como uma verdade absoluta fruto de um consenso da sociedade, mas fruto de produção tendenciada, calcada em interesses de grupos econômicos específicos. Dá-se exemplo dos crimes contra a ordem tributária, cuja punibilidade pode ser extinta se o agente pagar o tributo antes do oferecimento da denúncia. Essa Essa diferenciação punitiva não é senão um desvalor que se dá ao crime de furto. Seria isso uma coisa natural decorrente de se tratarem de espécies criminais diferentes, ou essa diferenciação relaciona-se de alguma forma com o fato de que os crimes tributários são praticados, em geral, por empresários, pessoas com quem a classe dominante se identifica? Fica aí esse questionamento para reflexão. Último assunto a abordarmos é a Política Criminal, que, de acordo com Zaffaroni e Pierangeli, consiste na ciência ou na arte de selecionar os bens jurídicos que devem ser tutelados penalmente e os caminhos para tal tutela, o que implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos. Dentre outras coisas, a Política Criminal trata dos princípios por meio dos quais se faz a leitura do crime, e dá recomendações para a reforma ou transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação. Sua fonte são os resultados empíricos propiciados tanto pelo desempenho das instituições que integram o Sistema Penal quanto dos avanços e descobertas da criminologia, área de estudos cada vez mais pertinente à Política Criminal, a qual não pode mais reduzir-se ao papel de 5 “conselheira da sanção penal” descrevendo uma política penal limitada à função punitiva do Estado, mas deve estruturar-se como forma de política de transformação social e institucional, para a construção da igualdade, da democracia e de modos de viver mais humanos. Um exemplo recente de Política Criminal foi o indulto do dia das mães, assinado pelo então presidente Michel Temer. Objetivando a implementação de melhorias no sistema penitenciário do país e a promoção de melhores condições de vida e da reinserção social às mulheres presas, o indulto contemplou, pela primeira vez, milhares de mulheres presas por crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa. Em 2013, 45% das mulheres presas tinham cometido o crime de tráfico de drogas. Quase metade do total de mulheres presas, então, puderam se beneficiar com tal induto. Com a decisão de conceder-se essa forma de extinção da pena às mulheres, o governo pratica uma Política Criminal de desencarceramento. Baseou-se esta em estudos que indicaram precisamente sua necessidade, estudos que apontaram “gafes” pontuais no nosso sistema jurídico. Eis como se dá o funcionamento das políticas criminais sumariamente. 6 3. Movimentos de Política Criminal O Século XIX é marcado pelo surgimento de inúmeras correntes de pensamento filosófico-jurídico estruturadas de forma sistemática conforme determinados princípios fundamentais. São as escolas penais. As escolas penais representam diferentes metodologias de se aproximar do estudo da disciplina do direito penal, ou seja, adotam diferentes formas de estudo do direito penal, atribuindo a ele diferentes objetos e diferentes elaborações. A formação do Estado Absolutista No final da idade média, o poder estava ainda descentralizado. Cada local tinha sua lei, sua forma de resolver conflitos, seus costumes. Bem característico do feudalismo. Enfim, por motivos históricos (tais quais o desenvolvimento do comércio, a exploração dos outros continentes, o aumento populacional), começou a ficar inviável o sustento desse sistema social descentralizado, eis que o território fragmentado dificultava a grande empreitada que seria o alavancar de crescimento e desenvolvimento nacional. A necessidade de fomento ao comércio, as grandes navegações e o desenvolvimento social, no geral, foram determinantes para que houvesse a unificação dos territórios europeus. Semeou-se, aos poucos, o surgimento do Estado Moderno. Com o advento deste, todo poder de resolução dos conflitos, que antes eram difusos, ficam nas mãos do monarca soberano. Ora, veja. Sempre que grandes mudanças sociais acontecem, havemos de ter a certeza de que relevantes aspectos de cunho filosófico estiveram por trás do movimento, inspirando-o e justificando-o. Nessa época e situação de que falamos, emergiram os teóricos do absolutismo. Dentre eles, Thomas Hobbes, autor de Leviatã e de Do cidadão, que, como se vê a partir de sua famosa afirmação “o homem é o lobo do homem”, acreditava serem os seres humanos incapazes de se regerem e organizarem sozinhos, posto que nascem num Estado de Natureza, “selvagens”, necessitando, então, de um ente que os regulassem e os organizassem apropriadamente, garantindo-lhes estabilidade e segurança. Dessa forma visou o teórico a justificar o porquê de a sociedade dever concentrar os poderes na mão de um único indivíduo. É que os homens, para ele, encontram-se, por natureza, em estado de caos. Precisam colocar-se nas mãos de um alguém que cuide deles. Claro, críticos dirão: “mas não é este indivíduo a deter o poder também um ser humano, ou seja, também lobo?” Pois é. Firma-se, apesar disso, o contrato social e transferem-se os direitos de organização e a faculdade de estabelecerem-se regras ao soberano, dando-se início ao Estado civil. 7 Junto com isto, forçoso dizer, nascem as dificuldades advindas de se reunir a organização de sociedades e ambientes esparsos e vastos num só polo de controle. Quando o Estado se organizava de maneira fragmentada, cada polo de poder organizava- se dentro de restritos limites territoriais. Era simples, então, que tarefas governamentais fossem realizadas por funcionários que iam de porta em porta, por exemplo, cobrando impostos. Ora, era assim a manifestação de poder, que se confundia com poder de imposição de força. Agora, em se tratando de Estado organizado com concentração de poder, ou seja, quando da existência de uma área de vastos limites a ser administrada por um só indivíduo, não é possível o acompanhamento e controle presencial efetivo da sociedade, de forma que o poder é melhor exercido se o Estado investir em conhecimento e desenvolver aparatos de auxílio de controle do que se este investir na força coercitiva propriamente dita. Para cobrar impostos, por exemplo, de um país inteiro, precisa-se de uma máquina, de um instrumento burocrático. O poder começa a abandonar o estritamente físico e começa a ter cunho mais intelectual e estratégico. Nasce assim a administração pública. Inquisição Na idade média, a grande detentora do conhecimento das ciências e da literatura (na verdade, a grande detentora do saber em geral) era a igreja Católica. Era essa a instituição mais poderosa e respeitada da época, e a ela cabia, inclusive, o sistema de justiça. Era praticado pela igreja o sistema penal da inquisição. O sistema inquisitório surgiu no século XII com o advento da santa inquisição, entidade Católica. Concentravam-se, neste sistema, as funções de acusar, defender e julgar nas mãos de um só ente que detinha plenos poderes de “justiça”. Ora, assim surgiu a semente do nosso Direito Penal e Processo Penal: caracterizada por acusações arbitrárias, aplicação de penas severas, torturas, execuções, e enérgica perseguição dos chamados hereges, pecadores, criminosos. Quando o Estado passou a não mais apreciar tamanha influência da igreja sobre a sociedade e houve a sobreposição deste àquela, houve manutenção do Sistema de Justiça anteriormente adotado, exceto que, agora, ele centrava-se na figura do soberano. Veja: anteriormente, práticas de condutas lesivas eram uma ofensa à sociedade e um pecado. Uma ofensa a Deus, por tanto, de sorte que a igreja se achava no direito de sancionar o ato delituoso de acordo com seus livres critérios. Adaptando essa linha de raciocínio, o Soberano representante do Estado passou a aplicar o poder de sancionar de maneira semelhantemente justificada: a conduta lesiva seria uma afronta não só à vítima, mas à própria pessoa do soberano, motivo pelo qual tinha ele a legitimidade e o condão de julgar e punir o autor do delito de acordo com seus livres critérios. 8 Estes passaram a ser definidos e aplicados pelos chamados procuradores do rei. Posteriormente, estes funcionários viriam a originar a ideia formante do nosso órgão do Ministério Público. Foi-se, então, formando a noção de proibição da justiça pelas próprias mãos. Até hoje é tipificada como conduta ilícita, pois o Estado expropriou o conflito penal das vítimas: de parte integrante da persecução penal, a vítima passou a ser mera informadora do delito, consolidando-se o Estado como detentor do monopólio da jurisdição. Tanto as práticas penais da Santa inquisição quanto as deste Estado Absolutista recorriam a latente brutalidade na aplicação de penas. Eram comuns as sanções penais corporais, que deixassem estigmatizado aquele a quem se atribuiu fato delitivo. Tratavam-se de marcas de humilhação para o infrator e, ao mesmo tempo, de poder para o Estado. Castigos e punições públicas, pelo mesmo motivo, também eram usuais. Fazia-se da vergonha do criminoso um espetáculo de afirmação de soberania e intimidação da sociedade. Outra forma de pena comum na época eram os trabalhos forçados, cada vez mais aplicados na medida em que o comércio evoluía, as cidades cresciam, e restava parte da população ociosa. Mão de obra era obtida comumente desta forma. O soberano detinha poder sobre os corpos de seus súditos e ainda sobre sua força de trabalho. Havia, ainda, penas de confisco e penas de reclusão. Podia o soberano confiscar propriedade de seus súditos se assim quisesse, bem como podia prendê-los nos moldes que desejasse. A prisão tinha natureza cautelar: não costumava figurar como fim em si mesmo. Sua imposição dava-se sem qualquer limite temporal, podendo estender-se ao longo de toda a vida do indivíduo, e não havendo distinção, ainda, entre homens, mulheres, idosos e crianças, que podiam ser presos todos juntos. O discurso jurídico de princípios começa a surgir da burguesia indignada com a falta de limites impostos ao poder soberano de arbitrar. Com o tempo, mais absurdas ficavam as arbitrariedades e violência estatais aos olhos das pessoas, que cresciam em número e influência. Há enérgica ascensão da burguesia contra a figura do monarca absoluto, trazendo novos discursos criminológicos, novas instituições e novas políticas condizentes com o novo modelo cartesiano e iluminista do mundo. É aí que começam a surgir as ideias de legalidade e de outras garantias, bem e os conceitos chave de delito e pena. São exigidos métodos mais igualitários de aplicação de justiça: punir em vez de vingar e estabelecer uma gestão seletiva das ilegalidades populares. Diz-se, assim sendo, que o Direito Penal surge, historicamente, para limitar o poder punitivo do antigo regime. 9 Iluminismo No descrito cenário de revolta e insatisfação com o absolutismo é que surge o pensamento iluminista. John Locke, neste contexto, acreditava que, quando o homem passa do estado de natureza para o contrato civil, ele conserva seus direitos naturais (fala-se em vida, honra e propriedade, por exemplo), que não podem ser por ninguém feridos. Desse modo, fica óbvio que o soberano tem de ter seus poderes limitados. Tal teoria filosófica fundamenta o Estado em dizendo que os homens e as mulheres não devem viver em seu estado natural sem qualquer regulação, pois que feririam os direitos naturais uns dos outros o tempo todo. A solução considerada ideal por filósofos deste contexto foi a implementação da razão como instrumento de reflexão capaz de melhorar e tornar instituições mais justas e funcionais. No entanto, se o homem não tem sua liberdade assegurada, a razão acaba sendo tolhida por entraves como o da crença religiosa ou pela imposição de governos que oprimem o indivíduo. A corrente filosófica do iluminismo foi absorvida por estudiosos do Direito Penal, e tal absorção deu início à escola clássica. Escola clássica Nascida sob os ideais iluministas, ela veio regrar o Direito Penal com vistas ao restabelecimento da ordem externa na sociedade. Por defender os direitos individuais e o princípio da reserva legal, essa foi uma escola humanitária e liberal importantíssima para a evolução do Direito Penal. Seu principal autor é Beccaria (dos delitos e das penas), para quem o Estado deveria punir os delinquentes submetendo-se às limitações da lei. O agente do crime deveria ter sua culpabilidade evidenciada para sofrer sanções. Tanto em casos de aplicação de pena excessiva quanto demasiadamente branda, via-se injustiça na aplicação sancionatória. Para que se chegasse ao equilíbrio, então, sugeriram-se regramentos e regulamentações Estatais. Assim surgiram as imprescindíveis garantias processuais do indivíduo. Interessante dizer que Beccaria não adotava métodos empíricos, mas dissertava sobre os princípios que achava corretos e cabíveis baseando-se muito nas ideias contidas em obras de Rousseau e Montesquieu. A Escola Clássica não é considerada científica, inclusive, porque não adotou o empirismo como forma de adquirir conhecimento. Trata- se possivelmente de etapa pré-científica da criminologia. Interessante também dizer que a escola clássica não é etiológica, ou seja, não visa a descobrir a origem do crime. 10 4. Positivismo criminológico Escola positivista Cesare Lombroso (que foi psiquiatra, cirurgião, higienista, criminologista, antropólogo e cientista italiano), achava que conseguiria achar a exata medida de um homem criminoso. Para ele, e em seu contexto, o fenótipo dos sujeitos podiam indicar tendências para o crime, bem como outros traços de personalidade. Chama-se a isso determinismo biológico. Buscando identificar o criminoso nato, ele colheu dados característicos de quem estava preso. Acontece que, como hoje, as pessoas mais presas eram as pobres, os imigrantes, enfim, as marginalizadas pela sociedade. O Positivismo criminológico, então, só pôde levar a conclusões distorcidas. Imperialismo As grandes potências industrializadas europeias, por volta de 1800, dividindo suas colônias em áreas geográficas demarcadas arbitrariamente, passaram a coloniza-las de fato, exercendo sobre elas controle político e econômico. Dividiram e subjugaram o continente africano unicamente de acordo com sua conveniência. Foi quando se iniciou maior contato das populações colonizadas com a população europeia. Nesse contexto, começa a crescer o contingente de pessoas ociosas vindas do campo. Fica evidente o cunho racista de tal feito, todo justificado em uma ideia de superioridade do homem europeu. E antecedentes “científicos” vinham dar suporte a isto: Estudos da fisionomia, do fenótipo dos indivíduos, estudos sobre a formação cerebral (frenologia), sobre o crânio humano, sobre a teoria da evolução das espécies de Darwin, enfim. Usava-se da distorção de bases científicas para justificar a dominação do homem branco europeu sobre os demais. A delinquência seria, para os disseminadores deste tipo de pensamento, determinada biologicamente. Assim, o principal objeto de estudo da criminologia passou a ser o delinquente, e não mais o delito. Trata-se de crença inspirada no positivismo e escancaradamente contra o igualitarismo, e que pretendia basear-se na demonstração científica das desigualdades. Esse determinismo biológico nega um dos pilares do iluminismo jurídico, o conceito de livre-arbítrio. A solução lombrosiana dada para deterem-se os naturalmente propensos a práticas criminosas, por assim dizer, seria de aplicar a eles medida de segurança (pois que enviá- los a médicos possibilitaria que se determinasse sua real potencialidade delitiva por meio de suas características físicas e mentais), ou matá-los. Para o teórico, o criminoso nato não teria livre arbítrio, seria um inimputável (O homem delinquente) pois não consegue entender e se comportar de acordo com o que compreende adequado a sociedade. Sofre a chamada regressão atávica: reproduzem-se os instintos da humanidade primitiva. 11 Documentário Sugerido: A Casa dos Mortos - Débora Diniz. Livro: O Holocausto Brasileiro - Daniela Arbex Discípulo de Lombroso, Ferri, foi considerado o pai da sociologia criminal. Também positivista, ele agregou, às crenças de Lombroso, os aspectos sociais do crime (moradia, educação, segurança), bem como aspectos telúricos (climáticos, de temperatura, estações do ano)... O criminoso tornava-se tal por uma junção desses fatores todos. O homem delinquente, na visão deste pensador, comparava-se a um agente infeccioso do corpo social a ser eliminado. Atenção: Quando se diz sociologia criminal, normalmente falamos da sociologia criminal americana. Não confunda com a escola do Ferri. Garófalo, discípulo de Ferri, foi o responsável por fundar o que se tornaria, posteriormente, os conceitos de periculosidade e medida de segurança, usados até hoje em nossas legislações. Entendia este pensador que os delinquentes natos eram completamente desprovidos dos sentimentos de probidade e piedade. Entusiasta da pena de morte, afirmava que, do mesmo modo que a natureza elimina a espécie que não se adapta ao meio (influência da seleção natural), o Estado deveria eliminar o delinquente que não se adapta à sociedade. Postuladores da Escola Positivista A criminologia passou a ser considerada ciência somente quando da adoção do método do empirismo, com o positivismo criminológico e a Escola Positiva Italiana, a qual tinha por expoentes os mencionados Lombroso, Ferri e Garófalo. Para os positivistas, em suma, importava descobrir a causa do crime. Eles eram, desta forma, etiológicos. É o positivismo criminal que inaugura a etiologia criminal, bem como o método empírico e, por conseguinte, o caráter cientifico da criminologia. Como já vimos, para os positivistas, a causa do crime reside na estrutura orgânica do homem, a qual seria capaz de revelar sua predeterminação comportamental. Nesse sentido, correto seria afirmar que o crime escapa do controle do autor, sendo algo visceral, enraizado, de impulso. O positivismo, então, é determinista e propõe, como resolução da problemática do delito, a sobreposição da ordem social aos interesses individuais. 12 5. As Variantes do Positivismo Como comumente acontece com diversas correntes de pensamento que adotam posições extremas e filosoficamente bem definidas, com o estudo das teorias Clássica e Positivista, começaram a surgir novas formulações teóricas a trazer a conciliação destas anteriores. Nessas novas escolas, chamadas intermediárias ou ecléticas, procurou-se valorizar os princípios da Escola Clássica e o rigor técnico jurídico da Escola Positivista. Reuniram-se, sob este preceito, penalistas orientados por novas ideias, mas que evitavam romper completamente com as Escolas anteriores. Escola moderna alemã Nascida graças aos estudos de Franz Von Liszt, a Escola utilizava-se de métodos dogmáticos. Delimitava-se o objeto de estudo dentro do Direito Penal, numa forma de corte metodológico, para se estudá-lo individualmente, sem influência de áreas outras. Segundo esta Escola, o indivíduo criminoso poderia estar dentro da “normalidade” ou não. Caso estivesse, sua sanção seria – com finalidade preventiva – a pena. Para os inimputáveis, aqueles que não se determinam “normalmente” quanto a seus atos, aplicava-se a medida de segurança. A pena deveria adequar-se à natureza do crime cometido bem como ao sujeito delinquente. Acreditava-se, quanto ao crime, tratar-se de um fenômeno social e também de um fato jurídico. Diferentemente da Escola Clássica, de pena retribuitiva, atribuía-se finalidade preventiva à pena, principalmente preventiva especial. Pode-se dizer que, em geral, a Escola tinha uma política criminal liberal. Visava à defesa da ordem social e à aplicação da justiça. Von Liszt foi quem trouxe a tripartição entre Direito Penal, criminologia e política criminal. Escola Correlacionalista Também nascida na Alemanha, esta Escola concebia tanto o delinquente quanto o delito como manifestações de “debilidade”, um mal a ser excluído da sociedade. Como, para esta corrente, também se acreditava ser o crime um fenômeno social, considerava-se injusta a pena que destruísse o criminoso. Dever-se-ia, então, aplicar à pena métodos de remédio social, ou seja, buscar o conserto, a cura do indivíduo delinquente e sua reinserção na sociedade. O Direito Penal deveria cuidar de orientação educadora e tutelar: “A função penal de hoje perderá o caráter odioso que inevitavelmente a acompanha. De repressiva, tornar-se-á preventiva; de punitiva, passará a ser correcional, educativa e protetora de certos indivíduos a quem se dá o nome de delinquentes”. Para essa teoria, o delinquente é visto como um ser incapaz para o Direito e a pena como um meio para o bem. Explicando: o criminoso é um ser limitado por uma anomalia da 13 vontade; o delito é o seu sintoma mais evidente e a sanção penal um bem. (Regis Prado, p. 93 e 94). Para os correlacionistas, não se falava em delito natural. O Direito, bem como suas definições e regras, não passam de criação da sociedade. Além disso, pregava-se o determinismo. Escola técnico–jurídica Nesta Escola, confundiam-se os campos do Direito Penal, da política criminal e da criminologia. Para Rocco, estudioso da Escola, o estudo da criminologia deveria basear-se pura e simplesmente no método positivo do Direito Penal como ciência natural. Não se incentivava a filosofia envolvendo tais estudos, mas somente a observação da realidade inerente ao próprio Direito Penal, que é autônomo e tem método e fins próprios, não se confundindo com outras ciências causa-explicativas ou políticas. Sustentava-se que o centro da ciência penal é a pessoa do delinquente pois, segundo Ferri, o juiz julga o réu e não o crime. Pode-se comparar esta escola com a positivista clássica firmando que os positivistas preocupavam-se excessivamente com os aspectos antropológicos e sociológicos do crime, em prejuízo do jurídico. Aqui, por outro lado, procurou-se restaurar o critério propriamente jurídico da ciência do Direito Penal. Teoria da anomia Anomia é o desregramento social. Para Durkeim, em toda sociedade regrada haverá uma parcela de indivíduos a viver em estado de anomia, e não porque estes indivíduos têm pré-disposição para o crime! Para esta Escola, o crime é fenômeno social, normal e funcional. Tais indivíduos que vivem em anomia devem ser punidos pelo fato de reforçarem-se os valores vigentes da sociedade para o resto dos cidadãos. Émile Durkheim, fundador da sociologia, foi predecessor da ruptura com o positivismo. Sua teoria afirma que 1. as causas do desvio não devem ser pesquisadas nem em fatores bioantropo- lógicos e naturais, nem em possíveis patologias da estrutura social; 2. o desvio de conduta de certos indivíduos é um fenômeno normal de toda estrutura social; 3. somente quando são ultrapassados determinados limites é que o fenômeno do desvio é negativo para a existência e o desenvolvimento da estrutura social. Ao contrário, dentro de seus limites funcionais, o comportamento desviante é 14 um fator necessário e útil para o equilíbrio e o desenvolvimento sócio cultural. O delito, sob este ponto de vista, deixa de ser necessariamente uma agressão à sociedade, apresentando função de fortalecimento da “consciência coletiva”. Esta teoria dá base, no plano jurídico, a um fortalecimento da prevenção geral, função essencial da pena, invertendo-se a concepção da pena como prevenção especial, própria do pensamento positivista. O positivismo teve declínio dentro do âmbito de estudo criminológico. Isto se deu muito por causa da visão formalista e causal explicativa do Direito Penal, proporcionada pela pretensão de fundamentar e legitimar o Sistema Penal a partir do método indutivo. Como vimos, o positivismo pretendeu aplicar, ao Direito, os mesmos métodos de observação e investigação que eram utilizados nas disciplinas experimentais (física, biologia, antropologia etc.), mas pensamos, hoje, que o Direito Penal não deve ser visto como algo que reflete valores naturais de uma sociedade, tampouco os criminosos podem ser vistos como pessoas biologicamente propensas ao crime. Antes, o Direito Penal tem que ser analisado cautelosamente quanto às condutas merecedoras de punição e quanto às pessoas selecionadas pelo sistema para ser punidas. Ora, o Direito Penal não tem sido eficaz em proteger realmente os bens jurídicos, que continuam sendo constantemente violados, nem em investigar e punir delitos. Tudo nos leva a concluir que o Direito Penal, até hoje, encontra dificuldades, a despeito das várias teorias e todo o estudo da área, em manter a ordem política e econômica social. 15 6. Princípio da Legalidade Os princípios penais constituem o núcleo essencial da matéria penal, muitas vezes visando a limitar o poder punitivo do Estado. Salvaguardando as liberdades e os direitos fundamentais do indivíduo, orientando a política legislativa criminal, oferecendo pautas de interpretação e de aplicação da lei penal conforme a Constituição e as exigências próprias de um Estado democráticos e social de Direito, os princípios penais servem de fundamento e de limite à responsabilidade penal. O princípio da legalidade, também conhecido por “princípio da reserva legal” (nullum crimen nulla poena sine lege), surge historicamente com a revolução burguesa e exprime, em nosso campo, a um só tempo, a garantia o indivíduo perante o poder estatal e este mesmo poder como o espaço exclusivo da coerção penal. O princípio da legalidade está compreendido não apenas na acepção da “previsibilidade da intervenção do poder punitivo do estado”, que lhe confere Roxin, mas também na perspectiva subjetiva do “sentimento de segurança jurídica” que postula Zaffaroni. Além de assegurar a possibilidade do prévio conhecimento dos crimes e das penas por parte dos indivíduos, o princípio garante que o cidadão não será submetido a coerção penal distinta daquela predisposta na lei. Está o princípio da legalidade inscrito na declaração universal dos Direitos do homem e na convenção americana sobre direitos humanos, bem como na nossa Constituição, entre os direitos e garantias fundamentais, e no artigo 1º do Código Penal: Art. 1º: Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal. A abrangência do princípio também inclui a vedação de que critérios de aplicação ou regimes de execução mais severos ao delinquente possam retroagir. Segundo Nilo Batista, o princípio da legalidade tem quatro funções: 1. a proibição da retroatividade de lei penal menos favorável (note-se que a lei penal retroagirá sempre que beneficiar o acusado, seja pela revogação da nor- ma incriminadora (abolitio criminis), seja por qualquer outro modo, excetuando- -se as chamadas leis excepcionais e leis temporárias.); 2. a proibição da criação de crimes e penas simplesmente pela fonte do cos- tume (só a lei escrita, promulgada de acordo com as previsões constitucionais, pode criar crimes e penas); 3. a proibição do emprego da analogia para criar crimes, fundamentar ou agra- var penas (é admitida, contudo, a analogia que favorece o acusado. Analogia in bonan partem), e 16 4. a proibição de incriminações vagas e indeterminadas (visa a cumprir a exi- gência de certeza, no sentido de que o conteúdo da lei possa ser conhecido por seus destinatários, permitindo-lhes diferenciar entre o penalmente lícito e o ilícito, ficando livres de abusos e arbitrariedades). Pela taxatividade, fixam-se as margens penais às quais está vinculado o julgador, que deve interpretar e aplicar a norma penal incriminadora nos limites estritos em que ela foi formulada, para satisfazer a exigência de garantia. É a função garantista do princípio da legalidade. 17 7. Princípio da Intervenção Mínima O Estado deve interferir o mínimo possível na esfera de direitos do cidadão, não ultrapassando o limite do que for estritamente necessário à manutenção da ordem econõmica e social. A ideia da intervenção mínima constitui princípio político típico de Estados liberais. Não está inserido expressamente no texto constitucional nem no Código Penal, mas integra a política criminal. No Direito Penal, há subprincípios derivados do da intervenção mínima: Subsidiariedade O Direito Penal só pode ser legitimamente empregado se subsidiariamente, ou seja, após terem sido descartadas todas as demais instâncias de controle social por sua insuficiência. É a ideia de ultima ratio. Isto acontece porque o Direito Penal é o mais gravoso de todos. Veja que ele trabalha com o sacrifício de direitos pessoais! Por isto, é tão necessário ponderar-se bem o prejuízo do direito sacrificado em relação ao benefício do direito protegido. Então, somente após verificada a insuficiência dos métodos de controle social informais (a família, a escola, a comunidade), bem como dos métodos de controle formais (civil, administrativo), é que se recorre ao método penal. Roxin ensina que a subsidiariedade é a consequência da proporcionalidade que, por sua vez, decorre da razoabilidade. Só se pode aplicar o Direito Penal, destarte, se for estritamente necessário, adequado e proporcional. Fragmentariedade O Direito Penal é incapaz de resolver todos os conflitos. Por isto, deve ater-se a seu objeto, regulando pura e somente as lesões aos bens jurídicos vitais para a vida em sociedade. Da fragmentariedade podemos extrair ao menos duas conclusões: Para ser ilícita penalmente, a conduta não pode ser considerada licita em nenhum outro ramo do direito. De novo, porque o Direito Penal é o mais gravoso. A coisa julgada penal, também em decorrência disto, sempre faz coisa julgada no cível e no administrativo. Riscos e lesões mínimas não têm relevância penal (principio da insignificância). A insignificância, decorrente da fragmentariedade, é reconhecida no brasil desde 1998 (STJ, Resp 111011). Requisitos do Supremo para o reconhecimento da insignificância: PROL 18 " Nenhuma -> Periculosidade " Reduzidíssima -> Reprovabilidade " Mínima -> Ofensividade " Inexpressiva -> Lesividade DIGNIDADE PENAL DO BEM JURÍDICO Já vimos que, por seu peso coercitivo, nem todo interesse humano pode ser tutelado pelo Direito Penal. Prevalece que o bem jurídico penal deve ter, ao menos, referência constitucional. Não há cabimento da aplicação penal: a) contra meras imoralidades que não causam prejuízo de fato b) para a imposição meramente ideológica de uma politica governamental eventual. 19 8. Princípio da Lesividade e Princípio da Humanidade Tal princípio determina que o direito penal deverá punir o crime tão somente se a conduta a ser punida tiver lesionado (ou exposto a lesão) um bem jurídico penalmente tutelado. Retomamos o que já vimos: Não há cabimento da aplicação penal contra meras imoralidades que não causam prejuízo de fato, nem para a imposição meramente ideológica de uma politica governamental eventual. Podemos admitir quatro principais funções do princípio da lesividade: 1. Proibição da incriminação de uma atitude interna do indivíduo: convicções, desejos, aspirações e sentimentos dos homens não são puníveis. A mera cogita- ção de cometimento de crime não chama atuação do Direito Penal. Precisa-se de que a atitude interna esteja associada a uma conduta externa, seja consuma- da ou tentada. 2. Proibição da incriminação de conduta que não exceda o âmbito do próprio autor: os atos preparatórios para o cometimento de um crime não são punidos por si só (art. 14, II, CP). Da mesma forma, o simples conluio entre duas ou mais pessoas para a prática de um crime não será punido se sua execução não for re- almente iniciada (art. 31, CP). 3. Proibição da incriminação de simples estados ou condições existenciais: o homem responde somente pelo que faz, e não pelo que é. 4. Proibição da incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico: conduta desviada seria aquela fortemente desaprovada pela cole- tividade mas que não causa dano necessariamente. Existe o direito à diferença, para que se protejam práticas e hábitos de grupos minoritários que não devem ser criminalizadas. Princípio da Humanidade O princípio da humanidade postula que o objetivo da pena não deve ser o sofrimento ou a degradação do apenado. Antes de delinquente, eis que o condenado é um ser-humano. O Estado não pode, desta forma, aplicar sanções que venham a ferir sua dignidade ou a lesionar sua constituição físico-psíquica. Demanda-se, então, para a aplicação penal, mais racionalidade e proporcionalidade. Mesma corrente histórica seguem os princípios da legalidade, da intervenção mínima e até mesmo – sob o prisma da danosidade social – da lesividade. A pena não deve visar a fazer sofrer o condenado nem pode desconhecer o réu enquanto pessoa humana. Tal princípio, como defensor de direitos fundamentais de toda a pessoa humana, deve ter incidência na cominação, na aplicação e também na execução da pena. 20 O princípio da humanidade está explicitamente reconhecido pela Constituição em seu art. 5° nos incisos III (proibição de tortura e de tratamento cruel ou degradante), XLVI (individualização, ou seja, “proporcionalização” da pena) e XLVII (proibição de penas de morte, cruéis ou perpétuas). 21 9. Princípio da Adequação Social Bem intuitivamente, diz-se que o princípio da adequação social é aquele que preza pela resposta do Estado em acordo com a contemporânea sociedade, sua cultura, e características gerais que podem ser identificadas num todo-social. Ele existe porque a sociedade não é estática, bem como não deve sê-lo o Direito. Há condutas que são socialmente aceitas atualmente, e que outrora não o seriam. Há condutas que, antes, aceitavam-se naturalmente e, hoje, foram superadas e se refutam. Ora, as coisas mudam e a sociedade se molda com a história! E, juntamente com as mudanças da sociedade, mudam-se as condutas socialmente adequadas. Veja, ainda que não o tenham sido antigamente ou ainda que não agradem a todos, que pareçam absurdas para uns ou para outros, as condutas adequadas à sociedade são aquelas que já se normalizaram. Aquelas que já não se escandalizam em regra geral. De acordo com Santiago Mir Puig, não se pode castigar aquilo que a sociedade considera correto. A conduta socialmente adequada não pode ter relevância penal. É de se lembrar, como afirma o professor Luiz Regis Prado, que as condutas socialmente adequadas não são necessariamente exemplares, senão condutas que se mantêm dentro dos marcos da liberdade de ação social. O Princípio da adequação social garante que estas coisas “normalizadas” não permaneçam puníveis indefinidamente, ou liberadas indefinidamente. O princípio da adequação social, então, é o que dita que a lei e a faculdade de punir devem se moldar juntamente à sociedade, evoluindo com ela. Um exemplo de aplicação deste princípio é o caso da Farra do Boi. Trata-se de uma festa bem tradicional popular do estado de Santa Catarina, que comporia a cultura e folclore da região. Acontece que ela consiste em soltar um boi pelas ruas da cidade e deixar que a população, munida de quaisquer instrumentos, fira-o como quiser, perseguindo-o às vezes por dias. O boi só é morto quando já não estiver suportando as agressões, quando já estiver prestes a morrer mesmo. Evidentemente, não há o menor cabimento, em nossa sociedade, sustentar um festival com requintes de crueldade como este. Trata-se, pois, de conduta socialmente inadequada, não importando se vem de tradições centenárias e culturais. Assim entra em ação o princípio da adequação social: a celebração, outrora vista com normalidade, foi proibida em 1997. Outro caso controverso é o dos CDs e DVDs piratas. Sabemos que eles são comercializados em todo o Brasil muito normalmente, como se nada fosse. Alguns defendem que não há, nestas vendas, desvalor social suficiente para legitimar criminalização da conduta. Ora, a sociedade não está nem aí para estas vendas, até gosta delas. Assim atuou a defensoria pública no sentido de descriminalizar tal prática. Mas a súmula 502 do STJ consolidou tratar-se, sim, de conduta socialmente inadequada e que, portanto, configura crime. Fica aí este caso para reflexão. 22 10. Princípio da Culpabilidade O princípio da culpabilidade é bem importante ao Direito Penal. Ele deriva da proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, ou seja, fica implícito na nossa constituição federal, relacionando-se com o princípio da inocência. Em suma, põe-se que a pena só pode ser imposta a quem, agindo com dolo ou culpa, e merecendo juízo de reprovação, cometeu um fato típico e antijurídico, e tal só se define após análise do caso, nunca presumidamente. Consiste na exigência de que penas não sejam infligidas a ninguém senão quando a conduta do sujeito lhe seja reprovável, independentemente da existência, ou não, de resultados danosos. Em outras palavras, tal princípio pede que se avalie, caso a caso, o grau de reprovabilidade do sujeito que cometeu a ação a qual se pretende punir. Refuta, destarte, a responsabilidade objetiva pelo resultado. Segundo o princípio da culpabilidade, a responsabilidade penal deve ser sempre subjetiva! Não se pode presumir a culpa. Isso seria punir sem bem conhecer a situação, apenar sem bem se adequar ao caso e ao sujeito. Pode-se dizer, então, que se deve aplicar a personalidade da responsabilidade penal, o que implica duas coisas: Intranscendência da Pena: mpede que a pena ultrapasse a pessoa do autor do crime. Antigamente, por exemplo, seria possível punir o filho do infrator que tivesse causado dano ao filho de outrem! Este tipo de coisa é que se quer terminantemente vedar. Individualização da Pena: exige que a pena aplicada considere aquela pessoa concreta à qual se destina a punição, demandando que se avaliem as particularidades do sujeito e do caso, sopesando tudo o que de contexto tiver. Para ilustrar, vejamos esse excerto do Voto do Ministro Cezar Peluso, Tribunal Pleno, no HC 82959: [...] Perante a Constituição, o princípio da individualização da pena compreende: a) proporcionalidade entre o crime praticado e a sanção abstratamente cominada no preceito secundário da norma penal; b) individualização da pena aplicada em conformidade com o ato singular praticado por agente em concreto (dosimetria da pena); c) individualização da sua execução, segundo a dignidade humana (art. 1º, III), o comportamento do condenado no cumprimento da pena (no cárcere ou fora dele, no caso das demais penas que não a privativa de liberdade) e à vista do delito cometido (art. 5º, XLVIII). Tendo visto isso, coloquemos sumariamente que o principio da culpabilidade tem, ao menos, dois outros princípios dentro de sí: 1. Principio da Vedação da Responsabilidade Objetiva: não há crime sem 23 dolo ou culpa. Estabelece-se desta forma no artigo 19 do código penal. Ao punir sem, antes, ter-se verificado a estrita necessidade de tal, viola-se a dignidade do sujeito, e é por isso que a culpabilidade decorre da dignidade da pessoa huma- na. A punição sem dolo ou culpa instrumentaliza o condenado como um sim- ples meio para satisfazer a ânsia social por punição. 2. Proporcionalidade das Penas: o mal da pena deve ser proporcional ao mal do crime. Quando se usa um condenado como meio para intimidar terceiros dando a ele uma pena exorbitante para um crime bobo, por exemplo, também se está vio- lando sua dignidade, pois o transforma em instrumento de reprimenda social, e instrumento ele não é, mas indivíduo sujeito de direitos e deveres. 24 Noções Gerais de Direito Penal

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