Introdução à Linguística PDF
Document Details
Uploaded by Deleted User
2019
Adelaide H. P. Silva
Tags
Summary
This is an introduction to linguistics. The book discusses the basics of linguistics, using the Portuguese language as a basis for examples. It also touches on the relationship between language and other fields, such as cognitive science.
Full Transcript
Introdução à Linguística Introdução à Linguística...
Introdução à Linguística Introdução à Linguística va Adelaide H. P. Sil Adelaide H. P. Silva Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6549-3 58998 9 788538 765493 Introdução à Linguística Adelaide H. P. Silva IESDE 2019 © 2019 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Asier Romero/Ninell/Shutterstock CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ S578i Silva, Adelaide H. P. Introdução à linguística / Adelaide H. P. Silva. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2019. 128 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6549-3 1. Linguística. 2. Linguagem e línguas. I. Título. CDD: 410 19-61533 CDU: 81 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Adelaide H. P. Silva Doutora e mestre em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e graduada em Letras pela mesma instituição. É professora titular na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e atua na área de Linguística, com ênfase em Fonética e Fonologia. Sumário Apresentação 7 1 O que a Linguística explica? 9 1.1 O que é Linguística? 10 1.2 Como falamos? 14 1.3 Um sistema complexo em equilíbrio 17 2 Uso versus norma 27 2.1 Nós falamos errado? 27 2.2 Vamos desfazer outros mitos 31 2.3 A riqueza da variação 35 2.4 A diferença entre uso e norma 40 2.5 A necessidade da norma 42 3 Compreender as partes para entender o todo 49 3.1 O nível sonoro 50 3.2 As palavras 55 3.3 As sentenças 61 3.4 Os textos 66 3.5 O discurso 70 4 A Linguística conversa com o ensino de línguas 77 4.1 Língua materna: o que precisamos saber? 77 4.2 Aquisição de uma língua estrangeira 84 4.3 O que ensinar a um estrangeiro sobre nossa língua? 88 5 A Linguística conversa com outras áreas 99 5.1 Linguística e neurociências: Neurolinguística 99 5.2 Linguística e Psicologia: Psicolinguística 104 5.3 Linguística e Computação: Linguística Computacional 107 5.4 Linguística e tecnologia de fala 111 5.5 Linguística e ciências forenses 115 Gabarito 123 Apresentação Minha intenção, ao escrever esta Introdução à Linguística, é trazer uma breve apresentação dos pressupostos que deram origem a essa ciência, expostos por Ferdinand de Saussure em seu Curso de Linguística Geral – obra fundadora da área – e pelas noções básicas da teoria chomskyana. Venho expor os pressupostos dos dois paradigmas mais utilizados na Linguística, desde sua fundação como ciência, e as bases de algumas de suas disciplinas para, a partir desse conhecimento, desenvolver duas questões centrais: como atua a Ciência Linguística e como ela pode dialogar com outras áreas do conhecimento. Para percorrer esse caminho, apresento e analiso dados da língua portuguesa (pelo simples fato de esta ser a língua de domínio comum aos leitores desta obra), dando-lhes um tratamento descritivo e, por vezes, buscando desconstruir algumas impressões equivocadas disseminadas pelo senso comum. Esses dados linguísticos formam a base empírica para exemplificar como a Linguística funciona. É claro que, embutidos nessas considerações, estarão elementos inspirados em Saussure, Chomsky e outros autores. Ainda nesse caminho, apresento a possibilidade de diálogo entre Linguística e outras áreas do conhecimento, como o ensino e a aprendizagem de línguas ou a Ciência da Computação. Tal preocupação – o cerne desta obra – se justifica pelo fato de que, em um momento em que tanto se fala em multidisciplinaridade e transdisciplinaridade, a Linguística presta-se muito bem a essas perspectivas, justamente porque a linguagem perpassa todas as atividades humanas. Compreender a linguagem pode nos levar, por consequência, à compreensão de muitos fatos que nos cercam, e pode levar ao desenvolvimento de novos e melhores métodos para o processo de ensino-aprendizagem da nossa língua materna ou de uma língua estrangeira. Esta, aliás, é uma questão primordial: o ensino de língua portuguesa nas escolas carece ser melhorado e repensado, conforme evidenciam índices educacionais de naturezas diversas. Ao mesmo tempo, ensinar português brasileiro a estrangeiros tornou-se um desafio urgente, em razão da onda migratória que traz ao país refugiados de várias etnias. Por outro lado, o desenvolvimento de aparatos tecnológicos, como sistemas de síntese e reconhecimento de fala – base de dispositivos como GPS ou de assistentes pessoais –, se vale das descrições de língua e do conhecimento sobre a estrutura de língua que uma abordagem linguística proporciona, a fim de obter sistemas cada vez mais sofisticados. Ao mesmo tempo que busco ressaltar a importância do diálogo entre Linguística e outras áreas, como uma estratégia proveitosa para o desenvolvimento de ferramentas variadas que envolvem línguas naturais, argumento sobre a pertinência desse diálogo para a própria Linguística, na medida em que ele pode fornecer diferentes subsídios para o teste de hipóteses sobre funcionamento e processamento de línguas naturais. Isso, ao fim e ao cabo, pode resultar em um refinamento de modelos linguísticos e, consequentemente, em uma melhor compreensão do objeto de estudo da Linguística. Como todo manual, este é o início da incursão por uma área específica que, no nosso caso, é a Linguística. Por essa razão, procurei oferecer uma farta bibliografia, com vistas a que o leitor possa recorrer a outras produções, caso queira enveredar de modo mais aprofundado por uma área específica. Ao percorrer o caminho que esta introdução enseja, espero que o leitor perceba a Linguística como um campo de estudos vasto, promissor e fascinante. Boa leitura! 1 O que a Linguística explica? Você já parou para pensar que a linguagem está presente em tudo o que fazemos? Desde o cumprimento aos colegas quando chegamos ao trabalho até as mensagens que enviamos pelo celular aos amigos; do GPS que narra o percurso à interpretação em LIBRAS da fala de uma pessoa na TV; dos contratos que assinamos quando fechamos um negócio aos memes na internet. Não é exagero afirmar que é impossível um mundo sem linguagem. A linguagem é um traço característico da espécie humana e, como tal, é objeto de estudos há séculos: desde filósofos na Grécia antiga – como Platão, que em seu livro Crátilo tentava explicar a motivação dos nomes das coisas –, passando por filósofos franceses do século XVII – que, inspirados pelo pensamento do filósofo René Descartes, propuseram a gramática como um conjunto de processos mentais, comuns a todos os seres humanos, em uma obra que ficou conhecida como a Gramática de Port-Royal (1660) –, até filósofos do século XX, como Ludwig Wittgenstein, que tenta explicar a relação entre linguagem e pensamento. Mas não são só os filósofos que estudam a linguagem. Ainda na Grécia Antiga, Dionísio de Trácia (século I a.C.) estuda a estrutura do grego e propõe um sistema de classes de palavras, além de uma análise morfológica da língua. A Téchné Grammatiké é, assim, a primeira gramática de que se tem notícia, considerada a ancestral das gramáticas que usamos até hoje. Mais tarde, os filólogos passaram a se ocupar do estudo de textos seguindo uma perspectiva histórica. Recorrendo a obras literárias, por exemplo, e cotejando-as com o período histórico de Cotejar: comparar, analisar. sua produção, os filólogos passaram a estudar a evolução temporal de uma língua. Finalmente, no começo do século XX, surge uma ciência com o objetivo de estudar a linguagem. Essa ciência, a Linguística, tem suas bases propostas por um estudioso com formação inicial na filologia, mas que lança um olhar sincrônico sobre a linguagem e, mais propriamente, sobre a língua. Esse estudioso é Ferdinand de Saussure, considerado o “pai” da Linguística. A consequência de sua proposta é que, ao invés de uma abordagem histórica, a Linguística faz um recorte temporal da língua e passa a estudá-la naquele momento do tempo. De Saussure até a atualidade muita coisa mudou na Linguística. O foco inicialmente estreito sobre o objeto de estudo dessa ciência foi-se alargando, a ponto de permitir a intersecção com outras disciplinas. Neste capítulo, trataremos das bases da ciência Linguística, buscando esclarecer o que é essa disciplina e o que ela pode nos explicar sobre esse fato complexo e fascinante que é a linguagem humana. Eu proponho a você o começo de uma viagem incrível por esse mundo sobre o qual temos ainda muito a explorar. 10 Introdução à Linguística 1.1 O que é Linguística? Vídeo “Fish swim, birds fly, people talk”1. Essa afirmação, do linguista norte- americano Norbert Hornstein (2017), é um bom ponto de partida para nossa viagem pelo mundo da linguagem e para respondermos à pergunta que intitula esta seção. A afirmação de Hornstein pode ser interpretada da seguinte maneira: os peixes, ao nascerem, nadam sem que os mais velhos da espécie tenham de ensiná-los a desempenhar essa tarefa. Algo parecido se aplica aos pássaros, embora os filhotes necessitem de um tempo para emplumarem, já que sem penas eles simplesmente caem do ninho. O “saber nadar” ou o “saber voar” é produto de toda uma estrutura biológica específica que se adaptou e se especializou ao longo do desenvolvimento dessas espécies. O “saber falar”, que remete à capacidade humana de usar a linguagem, assume que temos estruturas mentais especializadas para o desenvolvimento dessa capacidade, de modo que podemos assumi-la inata. Parece contraintuitivo que os seres humanos não tenham de aprender a usar a linguagem? Vamos imaginar uma criança de três ou quatro anos, de uma família brasileira, falando com alguém, talvez sua mãe. Se a criança quer algo, por exemplo, água, ela provavelmente produzirá uma sentença como “bebê quer água” ou, de forma mais sofisticada, particularmente no caso de crianças não tão novas, ela produzirá algo como “eu quero água”. Deixando de lado, nesse momento, questões relativas à pronúncia das palavras ou a marcas morfológicas de número e pessoa (uma criança na faixa etária mencionada pode produzir um enunciado como “eu quer água”), nenhuma criança, falante nativa de português brasileiro (PB)2, precisa ser ensinada pelos adultos de que a ordem das palavras em uma sentença é “sujeito + verbo + complementos”. Assim como os peixes sabem nadar e os pássaros, voar, a criança sabe qual é a ordem canônica de constituintes no PB, se essa é a sua língua materna. Por que a criança sabe a ordem de constituintes de sua língua materna? Essa é uma das questões que a Linguística se propõe a responder. Até que a ciência Linguística chegasse a esse ponto, ela trilhou um longo caminho. O primeiro passo foi estabelecer o seu objeto de estudo, isto é, o que ela estudaria. Coube a Ferdinand de Saussure, o “pai” da Linguística, fazer isso. Na obra que funda a ciência Linguística, intitulada Curso de Linguística Geral (2012), publucada no ano de 1916, Saussure busca responder à pergunta: “o que cabe à Linguística estudar e que nenhuma outra ciência estuda?”. Isso considerando que várias ciências estudam aspectos diversos da linguagem. A História, por exemplo, aborda a evolução das línguas ao longo do tempo, por meio da observação de registros escritos datados de diferentes momentos e das mudanças que se verificam na língua em que são produzidos. Nesse sentido, a tarefa dos filólogos se cruza com a tarefa de um historiador que aborde a linguagem. 1 Tradução da autora: “Os peixes nadam, os pássaros voam, as pessoas falam”. 2 Daqui em diante usarei a sigla PB para me referir a “português brasileiro”, como se faz correntemente na literatura linguística. O que a Linguística explica? 11 Um físico pode estudar os sons que uma mensagem transmite em uma determinada língua, analisando parâmetros como a frequência das ondas pelas quais se propagam. Um psicólogo, por sua vez, pode utilizar a linguagem como um fato comportamental e, assim, depreender características – algumas não explícitas – do indivíduo que se submete a um procedimento terapêutico. Já um sociólogo pode relacionar as formas da linguagem às características de seus falantes, como lugar de origem, idade, sexo. Ora, se são tantos os aspectos da linguagem que podem ser abordados, e sob diferentes perspectivas, o que caberia à Linguística estudar? Saussure (2012) responde a essa pergunta definindo três fatos: linguagem, língua e fala. Para ele, a linguagem é um fato que se constitui de língua e fala. A língua, por sua vez, é o fato “social” da linguagem, acordado por uma comunidade. Já a fala é a contraparte individual da linguagem. O que isso quer dizer? Vamos lá: para Saussure, a língua é um fato acordado por grupos de indivíduos. Isso explica por que as coisas têm o nome que têm. Como? Assim como Crátilo de Platão, Sausurre considerava que o nome das coisas não tem uma motivação natural. Se chamamos “lápis” a um “objeto cilíndrico, comprido e fino, cujo interior contém uma barra de grafite para escrever ou desenhar” (LÁPIS..., 2019), por exemplo, é porque os indivíduos de uma determinada comunidade concordaram em associar a cadeia sonora que escrevemos “lápis” ao significado mencionado. Se houvesse uma motivação natural para o nome das coisas, bastaria olhar um objeto que nunca vimos para sabermos o nome dele. Além disso, se houvesse a tal motivação natural para o nome das coisas, um objeto receberia o mesmo nome em qualquer lugar do globo terrestre. Logo, não haveria línguas diferentes. Então, para Saussure, a Linguística deveria ocupar-se em investigar e explicar as razões que levam uma determinada comunidade a unir um sentido “x” a uma sequência de sons “y” ou, para usar a terminologia do autor, que levam uma comunidade linguística a unir um significado “x” a um significante “y” para formar os signos linguísticos, isto é, unidades de uma língua qualquer. Logo, a união entre significado e significante, como defende Saussure, é arbitrária, pois é estabelecida não por um ou dois indivíduos, mas pelo conjunto de indivíduos que constitui uma comunidade linguística. Em razão de a língua ser estabelecida por um conjunto de indivíduos, Saussure assume que ela é externa aos indivíduos daquela comunidade e, também, invariante. Para uma comunidade linguística, portanto, os signos não variarão – em nosso exemplo anterior, “lápis” terá o mesmo referente no mundo. A maneira como significado e significante se unem para formar um signo, nas diferentes O que a Linguistica busca estudar. comunidades linguísticas, não constitui objeto de estudo de nenhuma ciência. Como consequência, cabe à Linguística esse estudo, na visão de Saussure. Importa também compreendermos como Saussure compreende a fala. Para ele, é a Difere de um lugar para outro,de um contraparte individual da linguagem e está internalizada na mente de cada indivíduo. Como sotaque. consequência, ela pode variar de pessoa para pessoa, o que de fato acontece. Preste atenção à pronúncia de palavras como “porta”, “título” ou “pasta” por pessoas diferentes, nascidas em 12 Introdução à Linguística locais também diferentes: a variabilidade da pronúncia ficará bem clara. Por ser a fala um fato individual, não compartilhado, necessariamente, por todos os indivíduos de uma comunidade linguística, e por ela apresentar variabilidade, como a mencionada, Saussure a coloca fora do escopo de estudo da Linguística. Nesse primeiro momento da ciência Linguística, Saussure faz um foco bastante estreito sobre o objeto de estudo da nova ciência. E era preciso que fosse assim; do contrário, se não houvesse uma delimitação clara de um objeto que coubesse exclusivamente à Linguística estudar, por que propor uma nova ciência? Então, além de circunscrever o olhar da Linguística à língua, tal como definida por ele, Saussure preconiza que a abordagem da língua deve visar um recorte temporal preciso, isto é, que devemos estudar a língua em uso, em um lugar específico, por exemplo, durante os anos 1850-1900. Ou que devemos estudar, por exemplo, o português brasileiro utilizado por habitantes da Região Sul do país entre os anos 1940 e 1990. Esse recorte temporal confere uma abordagem sincrônica à língua. Por que Saussure defende essa abordagem? Como a evolução histórica dos fatos de uma língua cabia, em alguma medida, aos historiadores, e, em outra medida, aos filólogos abordar, mais uma vez, para que a Linguística tivesse um olhar particular sobre a língua, Saussure abandona a perspectiva histórica. Mais um ponto a considerar sobre o tratamento que Saussure oferece à língua no momento de fundação da Linguística concerne ao uso do registro falado como base de qualquer tratamento linguístico que se dê à língua. É preciso notar que a fala é a materialização da língua. Nesse sentido, cabe aos pesquisadores extrair o que é invariante na fala para se chegar à língua propriamente. Abandona-se, portanto, a prática dos filólogos de recorrerem a textos escritos com o intuito de rastrearem a evolução de uma língua no tempo, passando a privilegiar a língua em uso em um dado instante. Essa perspectiva de Saussure, para além de lançar as bases da ciência Linguística, inaugura o estruturalismo, uma corrente de pensamento que vigeu durante a primeira metade do século XX e concebe que, em uma língua, um elemento se define pelas relações de oposição com todos os outros elementos dessa língua, formando, assim, a estrutura da língua. O estruturalismo linguístico teve grande importância para o pensamento ocidental, pois influenciou as Ciências Humanas de modo geral e emprestou seu modelo analítico para a antropologia e as ciências sociais, por exemplo. É possível dizer, então, que a Linguística impulsionou as Ciências Humanas na primeira metade do século XX. Se voltarmos à pergunta que intitula esta seção, “o que é Linguística?”, podemos respondê‑la da seguinte maneira, e à luz do que abordamos até então: a Linguística é a ciência que estuda a contraparte social da linguagem, isto é, a língua. O caráter social da língua – cabe relembrar – advém da previsão de que a união entre um conceito (significado) a uma cadeia sonora (significante), para a constituição dos signos linguísticos, é determinada por um “trato” entre os indivíduos de uma comunidade linguística. Desse modo, para que algo receba o nome que tem, é preciso que os falantes da língua concordem com esse nome. O que a Linguística explica? 13 Vamos tentar explicar um pouco melhor esta questão do “trato” entre os falantes da língua. Em seu livro infantojuvenil intitulado Marcelo, Marmelo, Martelo, Ruth Rocha toca na velha questão: “por que as coisas têm o nome que têm?”. O personagem que está no título do livro é um menino muito curioso, que coloca seu pai em maus bocados quando tenta obter a resposta para essa questão, como vemos no trecho a seguir: Daí a alguns dias, Marcelo estava jogando futebol com o pai: — Sabe, papai, eu acho que o tal de latim botou nome errado nas coisas. Por exemplo: por que é que bola chama bola? — Não sei, Marcelo, acho que bola lembra uma coisa redonda, não lembra? — Lembra, sim, mas... e bolo? — Bolo também é redondo, não é? — Ah, essa não! Mamãe vive fazendo bolo quadrado... O pai de Marcelo ficou atrapalhado. (ROCHA, 1999, p. 11-12) O que o pai de Marcelo não conseguia responder ao menino é que “bola” é “bola” e “bolo” é “bolo” porque os falantes de português decidiram assim. E a decisão não tem de se pautar em nenhuma característica inerente à bola ou ao bolo. Simplesmente se decidiu dessa maneira. Continuando as suas peripécias, e cada vez mais indignado com os nomes sem motivo aparente, Marcelo resolve nomear, ele mesmo, as coisas do mundo, atribuindo-lhes designações que acreditava terem alguma motivação. Assim, por exemplo, “leite” virou “suco de vaca”, a casinha do cachorro virou “moradeira” e “cachorro” virou “latildo”. O problema é que só Marcelo entendia a motivação dos nomes que dava às coisas. Resultado: no dia em que a casinha do cachorro pegou fogo, apesar de ele tentar avisar aos adultos, aflitíssimo, ninguém entendeu nada e a casinha foi completamente destruída. O ponto que nos interessa é: por que ninguém o entendeu? A resposta é simples: porque só Marcelo sabia qual significado se unia aos significantes de que ele dispunha, ou seja, não havia um “trato” entre os diversos falantes da língua para que “casa” passasse a se chamar “moradeira”, por exemplo. Então, e voltando à questão do “trato” entre os falantes de uma língua, não basta que alguém determine o nome de algo se os demais falantes da língua, ou um bom número deles, não concorda com a proposta. Daí Saussure argumentar sobre o caráter social – isto é, relativo a uma sociedade, a um grupo de pessoas – da língua. A concepção saussureana de linguagem, língua e fala, porém, não é a única possível. À medida que a ciência linguística se desenvolve, essa concepção muda, assim como muda o enfoque da linguística sobre seu objeto. E, por isso, uma das preocupações dos linguistas passa a ser explicar como falamos, isto é, como, partindo de uma ideia qualquer, conseguimos articular uma sequência de sons. Este é o ponto para o qual nos voltamos a seguir. 14 Introdução à Linguística 1.2 Como falamos? Vídeo Esta pergunta tornou-se o centro da ciência Linguística em decorrência da mudança do paradigma teórico ocorrido em 1957, com o livro Syntactic Structures3, em que Noam Chomsky inaugura o gerativismo, corrente que suplanta o estruturalismo e, em alguns anos, torna-se o mainstream da área. A preocupação por explicar como falamos se relaciona à concepção chomskyana de que os seres humanos são dotados de uma “faculdade da linguagem”. Para o autor, a “faculdade da linguagem” é um sistema cognitivo como outras tantas “faculdades”, a exemplo da “faculdade da audição”. Como consequência, o autor assume que existem órgãos dedicados – ou especializados – a essa faculdade, razão pela qual é preciso estudá-la à luz de teorias construídas especialmente para explicá-la. A faculdade da linguagem, conforme propõe Chomsky, estaria localizada em um dos módulos que constituem a mente humana. O linguista, porém, não explica qual é nem como seria o módulo que abriga essa faculdade, tampouco quais seriam os órgãos constitutivos dela. Por outro lado, Chomsky preconiza que a faculdade da linguagem nos permite adquirir uma língua e, assim, produzir e compreender enunciados. A teoria linguística, para ele, não tem de se ocupar em explicar questões anátomo-fisiológicas relacionadas à faculdade da linguagem, devendo descrever seu estado inicial e a maneira como ela muda em função da exposição a dados linguísticos. Segundo Chomsky (1981), o estado inicial da faculdade da linguagem corresponde a uma algoritmo: conjunto Gramática Universal (GU), uma espécie de algoritmo que nos permite construir enunciados em de procedimentos lógicos que, por uma uma língua, combinando elementos dela por meio de relações lógico-formais. A GU é dotada de sequência de etapas, levam à solução de princípios universais, como a sílaba CV4, cuja ocorrência se prevê em todas as línguas do mundo. um problema. Outro exemplo de princípio universal é o que prevê a existência de sentenças constituídas de sujeito, verbo e complemento. Cada língua, por sua vez, tem um conjunto de parâmetros que atuam para implementar os princípios. Desse modo, uma língua seleciona um conjunto de consoantes e um conjunto de vogais que, combinados, constituirão suas sílabas CV. Como o inventário de consoantes e o de vogais não é o mesmo para todas as línguas, consequentemente, as sílabas do tipo CV variarão. De modo análogo, as línguas selecionam os elementos que podem funcionar como sujeito, verbo e complemento, e os parâmetros específicos de cada língua estabelecem a ordem dos constituintes em uma sentença. Decorre dessa especificidade dos parâmetros nas diversas línguas o fato de, no PB, os constituintes em uma sentença obedecerem à ordem sujeito, verbo e complemento ou objeto (SVO), enquanto em uma outra língua, como o japonês, seus constituintes se apresentarem na sequência sujeito, objeto e verbo (SOV). Cabe acrescentar que os parâmetros de uma língua inibem a ocorrência de sentenças malformadas. Assim, por exemplo, dizemos que uma sentença como “cinema fui ontem eu” é 3 Há uma boa tradução desta obra para o português, de autoria de Gabriel Othero e Sérgio Menuzzi, que consta das referências ao final deste capítulo. 4 Uma sílaba CV constitui-se de uma consoante seguida por uma vogal. Essa estrutura silábica é o primeiro tipo de sílaba que as crianças produzem, durante o processo de aquisição da linguagem. O que a Linguística explica? 15 malformada, ou agramatical, no PB porque seus constituintes violam a ordem estabelecida pelos parâmetros da língua. Em resumo, e voltando à pergunta que inspira a seção “como falamos?”, podemos dizer que, segundo a proposta de Chomsky, a linguagem é processada de modo que a Gramática Universal, ou um conjunto de relações lógico-formais, atue sobre os elementos de uma língua determinando a maneira como se organizam e inibindo combinações que resultem em enunciados malformados. Uma decorrência dessa previsão é a de que é possível criarmos infinitos enunciados a partir da combinação de um número finito de elementos, porém, essa combinação obedece aos parâmetros estabelecidos por línguas distintas. Por sua vez, os parâmetros são selecionados com base nos princípios da Gramática Universal. Um ponto adicional que precisa ser abordado nesse contexto refere-se às relações lógicas e sua atuação sobre a combinação entre elementos de uma língua, que resultam na formação de sentenças. Entretanto, é preciso prever que as sentenças são faladas, articuladas, por isso a fonologia desempenha um papel importante na teoria chomskyana: ela é responsável por atribuir fatos como acento e fronteira silábica, além de especificar quais segmentos constituirão a cadeia da fala associada a uma determinada sentença5. Em linhas gerais, podemos dizer que a proposta chomskyana tenta dar conta do processamento das línguas naturais, considerando que uma forma lógica – a GU – é mapeada em uma forma fonológica – que resultará na cadeia da fala. Esse processo acontece pela ação de um conjunto de regras de boa formação de enunciados – ou parâmetros – que combinam elementos da língua entre si. Nessa perspectiva, cabe à Linguística descrever adequadamente os princípios universais e os parâmetros específicos das línguas. Essa descrição se baseia em dados de uma determinada língua produzidos por seus falantes. Cabe também à Linguística desvendar como a competência gramatical é alcançada e, nesse aspecto, dados de aquisição da linguagem têm muita informação a fornecer. Chomsky preconiza que o processo de aquisição da linguagem apresenta um problema lógico de pobreza de estímulo: as crianças estão expostas a um input linguístico finito, constituído frequentemente de sentenças truncadas e, por vezes, mal articuladas pelos adultos. Apesar disso, conseguem adquirir uma língua natural em um curto espaço de tempo, de modo que, com aproximadamente quatro anos, as crianças produzem um repertório vasto de sentenças bem‑formadas em sua língua materna. Como elas conseguem essa proeza? Para Chomsky, o processo de aquisição é forte evidência da existência de princípios linguísticos inatos e, portanto, de uma Gramática Universal que, conforme mencionado, corresponde ao estado inicial da faculdade da linguagem. Deve ficar clara, portanto, a importância da aquisição da linguagem nessa abordagem. Feita essa breve exposição sobre a perspectiva chomskyana, com o objetivo de oferecer uma resposta possível para a pergunta “como falamos?”, cabem, agora, algumas comparações entre essa perspectiva e a perspectiva saussureana, abordada na seção anterior. 5 Não trataremos, aqui, dos modelos de fonologia gerativa, mas você pode recorrer, por exemplo, a Hernandorena (1996) para uma introdução a esses modelos. 16 Introdução à Linguística É muito importante começar essa comparação ressaltando que não se trata, em absoluto, de afirmar que uma perspectiva está correta e a outra, errada. Ao contrário, cada uma delas tenta dar conta de explicar a linguagem sob perspectivas distintas. Assim, enquanto Saussure diferencia língua de linguagem, essa questão não se coloca para Chomsky. Além disso, à medida que Saussure concebe a língua como um fato externo aos indivíduos, Chomsky assume uma perspectiva mentalista, isto é, prevê que a língua é internalizada na mente dos falantes. Como decorrência, para Saussure, os indivíduos não atuam sobre a língua que utilizam; para Chomsky, sim, eles atuam construindo hipóteses sobre seu funcionamento, ao fixarem os parâmetros atuantes nela. Uma outra decorrência da previsão de que os indivíduos não atuam sobre a língua que falam é o fato de que a aquisição da linguagem não é diretamente contemplada por Saussure. Por isso, uma das pesquisadoras mais eminentes em aquisição de linguagem no Brasil, De Lemos (1992), afirma que, sob a perspectiva saussureana, a criança é capturada pela língua, no sentido de que seus primeiros enunciados, conforme argumenta, seriam enunciados extraídos do registro dos adultos. Por outro lado, assumir – como Chomsky – que os indivíduos atuam sobre a língua que utilizam, construindo enunciados em número teoricamente infinito por meio de um número finito de constituintes, pode explicar por que uma criança é capaz de produzir um enunciado que nunca ouviu antes em sua língua materna. Outra diferença entre as duas perspectivas refere-se à proposta de Saussure, cuja preocupação central é explicar a estrutura de um signo linguístico, resultado da associação arbitrária entre um significado e um significante. Cabe, então, ao linguista investigar as relações entre os signos de uma língua. Nesse sentido, e considerando que uma das premissas da proposta saussureana é a de que os sistemas se fundam na base de oposições, caberá ao linguista depreender quais unidades estabelecem oposições e são, portanto, distintivas em uma língua. Na proposta de Chomsky, por outro lado, a preocupação central é explicar como a forma lógica, presente na Gramática Universal, é “traduzida” em forma fonológica. Grosso modo, essa perspectiva tenta explicar como uma “ideia” se “traduz” em fala. Para isso, é preciso prever uma série de regras, específicas de línguas, que mudam ou “traduzem” uma forma em outra. Além de desvendar quais regras atuam em uma língua, o linguista que adota essa perspectiva deverá explicar como elas funcionam, porque, como mencionado, esse percurso permite que se chegue, em última instância, à própria Gramática Universal e à explicação sobre o modo como ela é constituída. Apesar dessas diferenças, uma abordagem e outra explicam, de diferentes maneiras, como falamos. E, assim, permitem que lancemos um olhar sobre os fatos das línguas que se preocupam, essencialmente, em descrever e explicar a língua em uso, isto é, a língua que empregamos cotidianamente, na interação com nossos pares. O foco sobre a língua em uso nos permite compreender, no limite, que há regularidades envolvidas em uma série de fatos que registramos, e que essas regularidades não são aleatórias, ao contrário do que muita gente diz com desconhecimento sobre o funcionamento da língua. O que a Linguística explica? 17 Então, na seção seguinte abordaremos fatos do PB que ilustram a regularidade de que falo aqui, ao mesmo tempo que tentaremos, como consequência, questionar alguns mitos sobre a língua, provenientes do senso comum. 1.3 Um sistema complexo em equilíbrio Vídeo Quando aprendemos gramática tradicional na escola, somos ensinados que só existe uma maneira correta para fatos da língua. Entretanto, para a Linguística, quer assumamos uma visão saussureana, quer assumamos uma visão chomskyana – para ficar nos paradigmas teóricos mais influentes nessa ciência –, considerando a língua em uso, deixamos de assumir a existência de uma forma correta e de outras, erradas. Passamos a tentar explicar as diferenças que observamos no uso de um mesmo fato linguístico. E, não raro, notamos que há uma certa regularidade nos fenômenos observados, que colocam os sistemas linguísticos em um ponto de equilíbrio. Por isso, nesta seção, nossa preocupação se voltará a alguns fatos da língua para tentar explicar o que acontece com eles e por que não estão “errados”, como nos diria a gramática tradicional, mas, ao contrário, nos permitem desvelar todo um raciocínio dos indivíduos sobre a língua que falam. Por razões óbvias tomaremos fatos do português brasileiro (PB), já que é a língua comum à grande maioria dos leitores desta obra, senão a todos. Vamos lá! Você já deve ter ouvido em uma padaria, por exemplo, um pedido como “me dá seis pão”. Ou já deve ter perguntado à sua mãe onde estariam “minhas camiseta branca”. Temos, aí, fatos análogos ao que acontece nas duas sentenças a seguir: “Não pode alimentar os sagui, animais selvagem.” “Por favor, não abrir os alho embalado.” (FRANCISCO, 2017, grifos nossos) Em todos os exemplos citados há um substantivo – pão, camiseta, sagui, alho, respectivamente – antecedido de numeral (seis), pronome possessivo (minhas), artigo/determinante (os). Note que há, nesses casos, uma regularidade: temos um sintagma nominal, isto é, da sequência formada por um nome, ou substantivo, precedido de elementos como artigo ou numeral, e sucedido por elementos como adjetivos. Nesse sintagma nominal, o número plural é marcado consistentemente no elemento mais à esquerda, que pode ser um artigo ou um numeral, ou um pronome possessivo, como nos nossos exemplos. No sintagma nominal “animais selvagem”, em que não há elemento precedendo o substantivo, este é o termo mais à esquerda do sintagma. Note que, nesse caso, também se aplica a regularidade apontada: marca-se o número plural no elemento mais à esquerda do sintagma. 18 Introdução à Linguística Por que isso acontece? Uma explicação plausível e largamente aceita é oferecida por Camara Jr. (1995): ao marcarem o número no elemento mais à esquerda do sintagma nominal – e não em todos os elementos do sintagma, como determina a gramática normativa –, os falantes da língua quebram a redundância presente nela. Em linhas gerais, podemos dizer que o raciocínio que orienta a quebra de redundância da marcação de número é o de que informar o número no primeiro elemento do sintagma é suficiente para que todo o sintagma carregue a informação sobre o plural. Ou seja, se temos “os alho embalado”, o sintagma todo está no plural e difere, por isso, do sintagma “o alho embalado”. Cabe notar que a quebra de redundância de marcação de número funciona ao flexionarmos no plural o membro mais à esquerda do sintagma. Coisas como “o alhos embalado” ou, ainda, “o alho embalados” são agramaticais na língua, quer dizer, os falantes de PB não aceitam essas produções como fatos de sua língua materna. A marca de número no elemento mais à esquerda do sintagma também se observa em “animais selvagem”. Aí, o membro mais à esquerda é o próprio núcleo do sintagma, o substantivo, que carrega a marca de flexão de número plural. A regularidade que se verifica sobre o enxugamento das marcas de número se mantém, portanto. Mas a norma da língua portuguesa diz que devemos marcar o plural em todos os membros do sintagma, ou seja, que o “certo” é dizer “os alhos embalados”. Bem, uma coisa é aquilo que a norma prescreve, determina, outra é o que os falantes da língua fazem, a maneira como usam sua língua, orientados por seu conhecimento de falante nativo, que consiste, em linhas gerais, nos parâmetros que ele fixa com base nos princípios da Gramática Universal. O conhecimento dos falantes nativos, nesse caso, pode ser assim resumido: para flexionar um sintagma nominal em número, marque o plural no elemento mais à esquerda dele. A marca, ali, é suficiente para veicular a informação de flexão de número em todo o sintagma. Mais um exemplo de regularidade na língua está no gênero gramatical. A língua portuguesa tem apenas dois gêneros gramaticais, masculino e feminino, que não se confundem com gênero social. É preciso esclarecer que o “gênero gramatical”, para a literatura linguística, se refere a conjuntos de palavras nos quais se agrupam diferentes substantivos da língua, de maneira análoga aos conjuntos de palavras nos quais se agrupam diferentes verbos e a que chamamos “conjugações”. Por isso, gênero gramatical não deve ser confundido com gênero social, e nem faria sentido: é absolutamente impossível associar um gênero social a palavras como casa, sofá, cadeira. Além disso, a diferença de gênero gramatical entre duas palavras correlatas às vezes resulta em distinção de significados entre elas. É o caso de “barco” – que remete a uma pequena embarcação – e de “barca” – que remete a um navio à vela, com três mastros, maior que um barco, portanto. Cabe comentar que a confusão entre gênero gramatical e gênero social – muitas vezes instaurada pela gramática normativa – é um grande engano, por algumas razões: 1) embora a língua portuguesa atribua gênero a todos os substantivos, há os que se referem a seres animados, aos quais é possível associar gênero gramatical, e há os que se referem a coisas, para as quais não O que a Linguística explica? 19 se pode atribuir gênero; 2) existem substantivos que remetem a pessoas, e que carregam gênero gramatical, mas aos quais não se consegue atribuir um gênero social específico – como “criança” ou “testemunha”. Nesse mesmo sentido dos equívocos que se cometem quando o assunto é gênero gramatical, é necessário acrescentar que, diferentemente do que o senso comum afirma, “-a” não é necessariamente marca de gênero gramatical feminino, nem “-o” é obrigatoriamente marca de gênero gramatical masculino. Exemplos? Vamos lá! “Sofá”, como comentamos anteriormente, recebe gênero masculino; mesma observação cabe para “califa”, “Papa”, “dogma”. Ao mesmo tempo, existem substantivos que recebem gênero gramatical feminino, mas terminam em -o, como “tribo”, “libido”, “foto”. E, se a questão – como quer o senso comum – é atribuir gênero social aos substantivos, em razão de sua terminação, o que dizer dos substantivos que terminam em “-e”, como “ponte”, “fonte”, “pente”, “peixe”, que podem ter – conforme ilustram esses exemplos – gênero gramatical masculino ou feminino? Mais ainda: como ficam os substantivos que, apesar de terminados em consoante, também recebem gênero gramatical, como “cônsul”, “calor”, “amor”, “dor”, “sol”? Diante desse cenário, que regularidade se pode estabelecer sobre o gênero gramatical no PB? Podemos dizer que o gênero das palavras é marcado no léxico, isto é, que no nosso “dicionário mental” as palavras recebem o gênero gramatical. Isso explica algumas diferenças entre línguas, como o fato de a palavra “sol”, em alemão, receber gênero gramatical feminino e a palavra “lua” receber gênero gramatical masculino. Explica, também, por que substantivos que contêm o sufixo “-agem” recebem gênero feminino em português – como “viagem” – e seus correlatos, em línguas aparentadas, como espanhol, italiano e inglês, recebem gênero masculino. Em linhas gerais, então, quando selecionamos uma palavra do nosso “dicionário mental” para formar com ela unidades maiores, do tamanho das sentenças, as palavras já têm informação sobre seu gênero gramatical. Além dessa, há uma outra regularidade: a vogal “-o” não é marca de masculino. Na análise de Camara Jr. (1995), largamente aceita na literatura linguística, o masculino não tem marca morfológica, por isso afirmamos que esse gênero é “não marcado”. A marca de gênero que temos na língua portuguesa é “-a”, que marca feminino nos substantivos que admitem flexão. Para Camara Jr. (1995), “-o” é uma vogal temática que sinaliza que a palavra que a recebe é um substantivo na língua. No caso dos substantivos em que o gênero se expressa por marca morfológica, temos, então, uma forma não marcada, à qual se associa o gênero gramatical masculino – por exemplo, “menino” – e uma forma marcada, isto é, que recebe marca morfológica e à qual se associa o gênero gramatical feminino – por exemplo, “menina”. O mesmo acontece com substantivos terminados por consoante: em “professor”, por exemplo, não há marca morfológica para gênero masculino, mas para obtermos o feminino acrescentamos “-a” à base, obtendo, assim, “professora”. Uma boa evidência para a ausência de marca morfológica do gênero gramatical masculino na língua portuguesa nos chega em textos que, ao tentarem supostamente incluir todos os gêneros sociais, começam com um vocativo do tipo “todos e todas”, mas, em seu decorrer, deixam de empregar a mesma estratégia. Assim, temos algo análogo ao exemplo: 20 Introdução à Linguística Amigas e amigos, Convidamos vocês para uma festa que realizaremos no próximo mês para comemorar nossa formatura. Todos estão convidados, mas pedimos que venham sozinhos, porque não teremos muita bebida, então, se trouxerem mais gente, vai faltar cerveja. Como você deve ter observado, os dois gêneros gramaticais só estão presentes nos termos que designam os destinatários do convite: “amigos” e “amigas”. Porém, existem momentos no texto em que a mesma estratégia poderia ter sido adotada, como em “todos estão convidados” e “venham sozinhos”. Por que isso acontece? Porque os falantes do PB sabem, têm o conhecimento implícito, decorrente da faculdade da linguagem, que em sua língua materna não há marca morfológica para gênero masculino e, por isso, quando fazemos o plural, em casos análogos aos dos exemplos, utilizamos a forma com “-o” para incluir todos os gêneros. Essa inclusão dos gêneros resulta justamente do fato de o masculino ser o gênero “não marcado” morfologicamente e de nós, como falantes nativos do PB, sabermos disso. Vale a pena comentar, adicionalmente, que o fato que menciono, recorrendo ao exemplo do convite, é muito frequente na oralidade também – talvez até mais do que no registro escrito. É que, na escrita, podemos monitorar o texto, voltar a pontos dele e corrigir o que julgamos necessário. Na fala, que se processa em tempo real, não existe a mesma possibilidade. Todos esses exemplos, então, nos mostram que a regularidade existente sobre esse aspecto gramatical está no fato de que o gênero é marcado no léxico da língua. Também está no fato de que, por não haver marca morfológica para gênero masculino, quando fazemos plural, os termos levam “-o”, e não “-a”, que é a marca morfológica de feminino. Uma última observação a respeito do gênero gramatical: para os substantivos terminados em vogal, como “dogma”, “foto”, “ponte”, “peixe”, assumindo que o gênero gramatical está marcado no léxico, veremos que ele emerge quando outro elemento se conecta aos substantivos na constituição de uma unidade maior, como o sintagma nominal. Esse elemento pode ser um artigo, a partir do qual obtemos: “o dogma”, “a foto”, “a ponte”, “o peixe”. Temos, desse modo, a informação sobre o gênero das palavras em questão. Outro exemplo de regularidade na língua está na formação de novas palavras. Como parte do meu ofício, há anos tento ensinar aos alunos que os neologismos não são tirados da cartola de quem os cria. Ao contrário, seguem a estrutura da língua, a mesma que é empregada para formar outros tantos itens lexicais de que dispomos. Nesse sentido, um dos exemplos que gosto de mencionar é “imexível”. Hoje dicionarizada, eu me lembro muito bem do surgimento dessa palavra e da celeuma que ela causou. O “pai” dessa palavra é Antonio Rogério Magri. Em 1990, o Ministro do Trabalho do então governo Collor, durante uma entrevista em que tentava argumentar sobre, ao contrário do que havia acontecido com as cadernetas de poupança, os salários estarem garantidos, saiu-se com a observação de que o salário dos trabalhadores era imexível. O que a Linguística explica? 21 A celeuma, claro, aconteceu porque, afinal, onde se viu um ministro de Estado usar uma palavra “errada”? Sim, para o senso comum, palavras que não constam no dicionário estão erradas. Meu ofício, então, é trazer evidências para o argumento de que o senso comum é que está errado, e não a formação da palavra. Ora, temos na língua um verbo como “mover”. Se, a partir dele, quero criar um adjetivo, acrescento o sufixo “-vel”. Como resultado, obtenho “móvel”. Se, além disso, quero negar a ideia da base, para afirmar que algo não se move, basta colocar um prefixo, “in-”, que nesse exemplo específico perde a nasalidade ao se juntar a uma base (“móvel”), que começa por nasal. Temos, então, “imóvel”. Como falantes nativos do português brasileiro, somos capazes de nos lembrar de um vasto conjunto de exemplos de palavras que se formam exatamente dessa maneira: ilegível, irreparável, irrefutável, imemorável, e assim por diante. “Imexível” não é exceção. Para compor esse item lexical, Magri tomou o verbo “mexer”, transformando-o em adjetivo com o sufixo “-vel”, de onde resultou “mexível”. Para negar a ideia de que “algo pode ser mexido”, conectou à nova base o prefixo “i-”. Pronto, temos “imexível”! É preciso notar também que o sentido dessa palavra é único e expressa “aquilo em que não se pode mexer”, ou “aquilo em que não se pode pôr a mão”. É claramente distinto do sentido de “imutável” (aquilo que não se pode mudar) ou “imóvel” (aquilo que não se pode mover). Talvez por essa razão é que tenha entrado na língua. Recentemente ouvi a forma “exfiltrar”. Segundo a Infopédia, no jargão da informática, essa palavra significa “extrair ilegalmente dados de um determinado sistema informático fechado” (EXFILTRAR..., 2019). Ora, também essa palavra nova segue o padrão estrutural da língua portuguesa. Temos, por exemplo, o verbo “portar”, que pode significar “levar”. A essa base podem se conectar dois prefixos, ambos originários do latim, mas com sentido oposto: “im-“, “para dentro”; “ex-“, “para fora”. Se quero obter uma palavra com sentido aproximado de “levar para dentro”, uno “im-” à base “portar” e, como resultado, tenho “importar”. Se, ao contrário, quero obter uma palavra com sentido aproximado de “levar para fora”, conecto o prefixo “ex-” à base “portar” e tenho, então, “exportar”. De modo análogo, temos “filtrar”. Podemos conectar a essa base o prefixo “in-”. Com essa operação, obtemos “infiltrar”, ou seja, “penetrar”. Por outro lado, se queremos dar à palavra o sentido inverso, algo como “retirar”, utilizamos o prefixo “ex-”. O sentido de “exfiltrar”, porém, não é o mesmo de “extrair”, já que no caso do neologismo não se trata de uma extração qualquer, e sim de uma extração ilegal no contexto específico de um banco de dados. E, mais uma vez, como não temos na língua uma palavra com esse sentido específico, nos encarregamos de criar uma, usando os meios que a estrutura da língua nos proporciona. O que esses exemplos nos mostram é que, independentemente do momento que tenham entrado na língua, todos os processos de formação obedecem a regularidades. Afinal, nenhuma dessas formas lança mão de prefixos ou sufixos inexistentes no PB. 22 Introdução à Linguística Quer outro exemplo sobre regularidades da língua portuguesa? Vamos, então, à flexão dos verbos. Você se lembra dos chamados “verbos irregulares”? Pois também nesse aparente caos há equilíbrio, regularidade. Vejamos: alguns tempos verbais dão origem a outros. Consequentemente, se a forma da qual deriva um tempo verbal exibe alguma irregularidade, todo o tempo derivado dela apresentará a mesma irregularidade. Quer um exemplo? Considere a Figura 1 a seguir. Figura 1 – Regularidade na flexão de verbo irregular do português brasileiro Pedir 1ª pessoa do singular do presente do indicativo = Peço Peço sem marca de número e pessoa "-o" Peç + marcas de tempo e modo (presente do subjuntivo), número e pessoa Presente do subjuntivo: peço, peças, peça, peçamos, peçais, peçam Fonte: Elaborada pela autora. A Figura 1 ilustra a regularidade presente na conjugação de um verbo denominado “irregular”. Esse rótulo é conferido ao verbo em razão da alternância da consoante da raiz, que muda de [d] para [s], nesse caso grafado 6. Mas observe que a “irregularidade”, isto é, a consoante [s] que aparece na primeira pessoa do singular do presente do indicativo (peço) permanece em todas as formas do presente do subjuntivo. Se não existe irregularidade noutros tempos a partir dos quais derivam outros tempos e modos, obviamente as formas permanecerão como estavam no tempo que as originou. Vejamos agora este outro exemplo, na Figura 2. Figura 2 – Regularidade na flexão de outro verbo irregular do português brasileiro CABER CABER 1ª pessoa do singular do presente indicativo: Caibo 1ª pessoa do plural do pretérito do indicativo: Coubemos Caibo sem marca de número e pessoa: Caib- Coubemos sem marca de número e pessoa: Coub- Caib + marcas de tempo, modo (pres. subjuntivo), Coub + marcas de tempo, modo (pres. subjuntivo), número, pessoa número, pessoa Presente do subjuntivo: caiba, caibas, caiba, Imperfeito do subjuntivo: coubesse, coubesses, coubesse, caibamos, caibais, caibam coubéssemos, coubésseis, coubessem Fonte: Elaborada pela autora. 6 Os colchetes são utilizados para a transcrição fonética, o que implica que, dentro deles, temos anotados sons da fala. < >, por sua vez, são empregados para anotar letras. Isso significa que anota uma consoante específica que usamos em nosso sistema ortográfico. O que a Linguística explica? 23 A Figura 2 ilustra outro processo de regularidade na flexão dos chamados verbos irregulares do PB: note que tanto o presente do subjuntivo quanto o imperfeito do subjuntivo, derivados, respectivamente, da primeira pessoa do singular do presente do indicativo e da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo, têm a vogal da raiz do verbo “caber”, , alterada para os ditongos e. Essa alteração caracteriza a irregularidade deste verbo. Mas note também que ela é levada para os tempos que se originam de uma forma verbal específica. E, por isso, conseguimos prever as ditas “irregularidades”. Há, portanto, igualmente nesse caso, regularidades no processo. As regularidades na flexão verbal estão presentes na maior parte dos chamados “verbos irregulares”, e permitem até automatizarmos a flexão verbal. Ainda assim, é necessário acrescentar que alguns poucos verbos irregulares do PB não exibem regularidade em seu paradigma de flexão. Verbos como “ser”, “estar” e “ir” são exemplos disso, porque algumas de suas formas flexionadas acabam expressas por itens que não guardam qualquer semelhança com a estrutura sonora da raiz. É o caso de “vou”, “vamos”, “era”, “fui”. Aliás, este último exemplo, “fui”, é flexão tanto para o verbo “ir” como para o verbo “ser”. Considerações finais Do que se disse até aqui, deve ter ficado claro que à Linguística cabe estudar fatos da língua em uso. Quer sigamos uma perspectiva saussureana, quer sigamos uma perspectiva chomskyana, quer sigamos ainda uma outra, é preciso descrever o que se encontra nas diversas línguas e explicar por que os fatos são tais como se apresentam. Nesse sentido, encontrar o que eu chamo, nesse capítulo, de “regularidades”, ou “padrões”, em uma língua ajuda não só a explicar os fatos em si, mas também a responder à pergunta que abre a seção 1.2: “Como falamos?”. Os exemplos da seção 1.3 têm o objetivo de elucidar essa questão, mostrando que falamos seguindo as estruturas de que nossa língua materna dispõe, porque, como falantes nativos de PB, conhecemos tais estruturas, já que a Gramática Universal nos possibilita fixar parâmetros da nossa língua a partir de uma série de princípios de que ela dispõe. Assumir essa perspectiva, também deve ficar claro, nos leva a caminhos muito diferentes de simplesmente dizer que “português é difícil porque tem muitos verbos irregulares”, ou “está errado dizer ‘quero seis pão’”, ou, ainda, que “a língua é machista” e que, por isso, “precisamos mudá-la para que as pessoas mudem sua maneira de ver o mundo”. Esses são mitos equivocados que o senso comum cria sobre a língua. Para encerrar esse capítulo, e considerando os mitos que se criam sobre as línguas, vale a pena comentar rapidamente sobre a hipótese de Sapir-Whorf. Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf foram linguistas norte-americanos que produziram seus trabalhos na primeira metade do século XX. A eles é atribuída a “hipótese Sapir-Whorf ”, muito embora os dois nunca tenham trabalhado juntos. Questões históricas à parte, essa hipótese tem duas versões: uma versão fraca, que assume a existência da relação entre a língua e seus falantes, e uma versão forte, que potencializa essa relação, a ponto de preconizar que a mudança na língua pode mudar o mundo. 24 Introdução à Linguística Os linguistas em geral aceitam a versão enfraquecida da hipótese, e assumem a existência de uma relação entre a língua e os falantes que a utilizam, de modo que preveem que haja questões culturais que podem influenciar o uso da língua por indivíduos de uma determinada comunidade. Assim, por exemplo, concebe-se que a existência de elementos formais para dirigir-se a interlocutores pode ser resultado de uma sociedade baseada em relações quase que hierárquicas entre seus membros. A língua japonesa é um bom exemplo, porque é dotada de partículas para uso mais ou menos formal, que se conecta a bases e que são usadas em função do interlocutor: se uma pessoa fala com outra hierarquicamente superior, como seu patrão, usará uma determinada partícula ligada ao nome dele; se, por outro lado, a mesma pessoa conversar com um colega de trabalho, utilizará outra partícula, menos formal, ligada ao nome dele. A versão forte da hipótese de Sapir-Whorf, porém, não é aceita pelos linguistas, porque leva às últimas consequências a relação entre os indivíduos e sua língua, ao prever que mudanças na língua mudam a maneira como nós percebemos o mundo. Por isso, nos últimos tempos, tem-se tentado mudar aspectos das línguas para deixá-las mais inclusivas, ou menos preconceituosas. Isso acontece não só com o PB, mas com várias outras línguas, como o inglês ou o sueco, e se reflete não só sobre as questões de gênero, em uma confusão entre gênero gramatical e social, mas também na proposta de que alguns itens lexicais devam ser substituídos por outros, menos preconceituosos e mais inclusivos. Ora, nós precisamos mesmo de sociedades mais justas, menos preconceituosas e mais inclusivas. Mas para isso é preciso mudar a maneira como as pessoas agem. Pretender que a mudança na língua precede e determina a mudança de atitudes é varrer a sujeira para baixo do tapete. Uma sociedade menos preconceituosa se constrói com a mudança das atitudes das pessoas. E, então, haverá mudanças na língua, decorrentes dessas novas atitudes. Ampliando seus conhecimentos DOSSE, F. História do estruturalismo. Campinas: Ed. Unicamp, 1993. (2 vols.). Se você quiser saber mais sobre o Estruturalismo, desde seu início, passando pelo seu apogeu, até sua queda, leia Dosse. Embora não seja atual, a obra refaz o percurso histórico desse paradigma importantíssimo para as ciências humanas na primeira metade do século XX e relaciona as ciências humanas entre si, no que concerne, por exemplo, ao método de análise empregado. OTHERO, G. D’Á.; KENEDY, E. C. Chomsky: a reinvenção da linguística. São Paulo: Contexto, 2019. Se você quiser saber mais sobre o gerativismo, leia essa obra cujo prefácio foi escrito pelo próprio Noam Chomsky. A obra trata da gênese e da evolução dos conceitos que abordamos brevemente neste capítulo, possibilitando um conhecimento mais aprofundado deles. O que a Linguística explica? 25 A CHEGADA (Arrival). Direção de Denis Villeneuve. EUA: Sony Pictures, 2016 (156 min.). Para uma excelente ilustração da hipótese de Sapir-Whorf, assista a esse filme. Esse longa metragem, baseado no conto “Story of Your Life”, de Ted Chiang, narra a história de alienígenas que chegam à Terra e que falam uma língua completamente desconhecida. A professora de linguística Louise Banks é chamada pelo exército-norte americano para tentar identificar a língua em questão. Trata-se de uma língua até então não documentada e, ao aprendê-la, pelo contato com os extraterrestres, a linguista passa a perceber o mundo experienciando memórias de eventos futuros, em uma clara alusão à versão forte da hipótese de Sapir-Whorf: a língua dos extraterrestres, que tem um sistema de escrita não linear, quando aprendida pela humana, proporciona uma visão também não linear do tempo. Atividades 1. Por que Saussure escolhe a língua como objeto de estudo da Linguística? 2. Considerando o que você leu no capítulo, é possível dizer que a Linguística e a gramática aprendidas na escola oferecem um mesmo tratamento para os fatos de uma língua? Explique. 3. À luz do que foi apresentado no capítulo, podemos dizer que a palavra “tuitar” está errada? Explique. Referências CAMARA JR., J. M. Estrutura da Língua Portuguesa. 23. ed. Petrópolis: Vozes, 1995. CHOMSKY, N. Estruturas Sintáticas. Petrópolis: Vozes, 2015. CHOMSKY, N. Lectures on government and binding. Dordrecth: Foris, 1981. DE LEMOS, C. T. G. Los procesos metafóricos y metonímicos como mecanismos de cambio. Substratum, v. 1, n. 1, p. 121-135, 1992. EXFILTRAR. Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa [on-line]. Porto: Porto Editora, 2003-2019. Disponível em: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/exfiltrar. Acesso em: 23 out. 2019. FRANCISCO, C. N. P. A concordância em cartaz: uma proposta de trabalho na EJA à luz da análise linguística. Revista Educação e (Trans)formação, Garanhuns, v. 2, n. 1, nov. 2016/abr. 2017. Disponível em: http://www.journals.ufrpe.br/index.php/educacaoetransformacao/article/download/1143/1101. Acesso em: 14 out. 2019. HERNANDORENA, C. L. M. Introdução à teoria fonológica. In: L. BISOL (org.). Introdução a estudos de fonologia do Português Brasileiro. Porto Alegre: EdiPUCRS, 1996. 26 Introdução à Linguística HORNSTEIN, N. Noam Chomsky. In: E. CRAIG (ed.). Routledge Encyclopedia of Philosophy. 2017. Disponível em: https://www.rep.routledge.com/articles/biographical/chomsky-noam-1928/v-2. Acesso em: 20 ago. 2019. LÁPIS. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [on-line]. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/ lápis. Acesso em: 11 out. 2019. ROCHA, R. Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias. 2. ed. São Paulo: Salamandra, 1999. SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix/Edusp 2012. 2 Uso versus norma Você já deve ter ouvido, e até mesmo dito, que uma pessoa qualquer “não sabe falar português” ou que “português é muito difícil”. Ou, então, que o português tem muitos empréstimos do inglês e, por isso, está empobrecendo. Quem sabe até ele não venha a desaparecer um dia, por causa desses empréstimos todos? Você já deve também ter ouvido, ou lido, que francês é a língua do amor, e que alemão é a língua dos filósofos. Mas será que é assim mesmo? Este capítulo vai mostrar a você que afirmações como essas são julgamentos problemáticos que se constroem sobre as línguas e vai oferecer as razões pelas quais a Linguística as considera um grande equívoco. Além disso, vai mostrar que não existe propriamente um “certo” e um “errado” em uma língua, podendo haver variação em diferentes aspectos devido à faixa etária, ao grau de instrução ou à proveniência dos falantes. O objetivo deste capítulo, portanto, é argumentar que muito se diz sobre a nossa língua materna, incluindo equívocos. Procurarei mostrar, também, que alguns desses equívocos resultam da adoção de uma norma padrão estabelecida com base em um registro escrito da língua portuguesa usada no século XIX, sobretudo por escritores. Essa norma padrão, em razão de sua natureza, distancia-se muito do uso que fazemos da nossa língua, o que, além de estigmatizar falantes que não a dominam, oferece muitos problemas aos aprendizes nas aulas de língua portuguesa. Se, ao final da leitura deste capítulo, você entender que não há registro melhor que outro, ou língua mais difícil que outra, se compreender que todos sabemos falar português, nosso objetivo terá sido alcançado! 2.1 Nós falamos errado? Vídeo As afirmações de que “falamos errado” ou “não sabemos falar português” são frequentes há muito tempo e, inclusive, inspiram expressões artísticas como a música “Meninos e meninas”, da banda Legião Urbana (1989): “Eu canto em português errado / Acho que o imperfeito não participa do passado / Troco as pessoas / Troco os pronomes”. Mas será que falamos mesmo errado? O que sabemos e o que não sabemos sobre a nossa língua? Vamos começar a tratar dessa questão considerando os versos que tomamos como exemplo. Eles oferecem a interpretação possível de que o eu-lírico da canção acredita falar “português errado” porque “troca pessoas e pronomes”, algo como “tu estuda”, “tu vai”, “tu faz”, e assim por diante – fatos que a norma da língua, aprendida no ensino formal, afirma taxativamente estarem errados. 28 Introdução à Linguística Consideremos a língua em uso. Temos, no português brasileiro (PB), dialetos que usam “tu” como forma de segunda pessoa do singular. E temos outros dialetos em que a forma de segunda pessoa do singular utilizada é “você”. Em registros que usam “tu”, como alguns encontrados no Rio Grande do Sul, temos “tu estudas”. Nesse caso, consideremos as seguintes informações: Quadro 1 – Marcas morfológicas de segunda pessoa do singular em “tu estudas” Tu Estud – a – s Pronome 2a pessoa do singular Raiz – vogal temática – marca de 2a pessoa do singular Fonte: Elaborado pela autora. Note no Quadro 1 que temos veiculada duplamente, na sequência “tu estudas”, a informação relativa à segunda pessoa do singular: no pronome “tu” e na desinência do verbo. Trata-se, portanto, de um caso de redundância na expressão de uma mesma informação gramatical. Não há problema com a redundância, que resulta de um percurso que a língua portuguesa escolheu em toda a sua trajetória histórica e coincide com o percurso adotado por outras línguas originárias do latim, como o espanhol, o francês ou o italiano. Mas também não há problema que, em um determinado momento, as línguas percorram um caminho até uma mudança. Nesse caso específico, o caminho que vemos em dados como “tu estuda”, com a supressão da desinência , de segunda pessoa do singular, é a eliminação de uma informação gramatical redundante. Desse modo, em “tu estuda”, a informação sobre a segunda pessoa do singular está apenas no pronome, conforme ilustra o Quadro 2. Quadro 2 – Marca morfológica de segunda pessoa do singular no pronome em “tu estuda” Tu Estud – a Pronome 2a pessoa do singular Raiz – vogal temática Fonte: Elaborado pela autora. Veja que a informação sobre marca de segunda pessoa do singular continua lá, mas em um “lugar” apenas. Coincidentemente, em uma sequência como “ele estuda”, o verbo não tem marca de terceira pessoa do singular. Assim, quando enxugamos uma marca de pessoa do discurso, nas formas verbais, a exemplo do que temos no Quadro 2, é preciso manter a informação em algum “lugar”. Nesse caso, o “lugar” é o pronome. Suprimir também o pronome implica uma ambiguidade indesejada: “estuda” pode se referir, por exemplo, tanto à segunda quanto à terceira pessoa do singular. Por isso, ao mesmo tempo em que tiramos a informação da forma do verbo, é preciso manter os pronomes. Deve ficar claro, então, que no exemplo do Quadro 2 não se trata de “falar errado”, mas do resultado da observação de que a língua marca a segunda pessoa do singular em dois lugares, sendo que não é preciso repetir essa informação. Disso decorre a possibilidade de “enxugar” a redundância, marcando a informação em um lugar apenas. A forma “tu estuda” é semelhante a “você estuda”, no sentido de que não há marca de pessoa do discurso na forma verbal. Em ambas, a informação sobre a segunda pessoa está apenas no pronome. Uso versus norma 29 Isso posto, voltamos à pergunta inicial: “nós falamos errado?”. A resposta é não! Podemos não falar exatamente de acordo com o que a norma da língua prescreve e determina, mas isso não é um erro, um problema. Considere que os falantes de PB não dizem coisas como “tu estudamos” ou “eu estudam”. Esses seriam problemas, porque corresponderiam a formas agramaticais na língua. Por forma agramatical a Linguística entende o que falante algum da língua faria. Então, “tu estudamos” é agramatical porque, aí sim, há troca de pessoas e pronomes. Informa-se, no pronome “tu”, a segunda pessoa do singular, mas, na forma verbal “estudamos”, a desinência marca a primeira pessoa do plural. Há, portanto, informações desencontradas na sequência sujeito + verbo. Como falantes nativos do PB, sabemos que a língua não aceita que enunciemos o sujeito sem que o verbo esteja em concordância. Consequentemente, como comentamos, os falantes de PB não farão “tu estudamos”. Note que ninguém precisa nos dizer isso. A escola não nos ensina algo parecido. Nem parentes ou pessoas de um círculo próximo nos alertam para essa necessidade quando começamos o processo de aquisição de linguagem. Afinal, por que não precisamos ser ensinados que, se marcarmos a pessoa do discurso no pronome, que funciona como sujeito, e no verbo, é preciso fazer coincidir a informação nos dois termos? Ou, ainda, por que não precisamos ser ensinados que é possível veicular a informação relativa à pessoa do discurso só em um dos membros da expressão – no pronome ou no verbo? A razão para não precisarem nos ensinar a respeito disso, como afirma Perini (2000), refere-se ao fato de sermos dotados do conhecimento implícito da língua. Para o autor, o conhecimento implícito resulta do caráter inato da linguagem, tal como defende Chomsky, sendo “traduzido” em fatos bem formados de uma língua específica, derivados da Gramática Universal, a partir da aplicação de um conjunto de relações lógicas, ou regras, conforme abordado no Capítulo 1 desta obra. O mesmo conhecimento implícito é acionado pelos falantes de uma língua quando criam palavras. Assim, por exemplo, em PB, se quisermos formar uma nova palavra, sabemos que devemos acrescentar informação à esquerda ou à direita de uma base, tal como aconteceu com “imexível”, caso de que tratamos no capítulo anterior. Outras línguas poderão funcionar de outras maneiras, a ponto de licenciarem a colocação de informação no meio da base, ou a ponto de repetirem uma mesma base. É o mesmo conhecimento implícito que nos faz recorrer ao afixo para criar formas no diminutivo. E graças a esse conhecimento inato sobre nossa língua, sabemos que sucede a base, ao mesmo tempo em que deve anteceder a informação de número. Em consequência, todos produzimos fatos como “carrinhos”, em que temos base (“carr”) + diminutivo (“inho”) + número plural (“s”). Nunca produziremos “carrsinho”, porque essa forma viola a ordem de constituintes no interior da palavra, resultando em um fato agramatical para o PB. A observação vale também, mais uma vez, para crianças em fase de aquisição de linguagem, o que significa que não é preciso ir à escola para dominar o conhecimento implícito da língua. 30 Introdução à Linguística Como temos o conhecimento implícito da língua materna, que nos leva a não produzir fatos agramaticais, isto é, fatos que nenhum falante reconheceria como pertencentes ao PB, podemos afirmar seguramente que sabemos falar português! E isso vale, como tentei mostrar, para falantes de faixas etárias e graus de instrução variados. Por outro lado, Perini (2000) observa que existe o conhecimento explícito da língua, que, ao contrário do conhecimento implícito, não é inato e, por isso, precisa ser aprendido. Fazem parte desse conhecimento explícito saberes como o de que “eu, você, ele, nós, vocês, eles” são pronomes pessoais e, no geral, desempenham a função de sujeito da oração. Fazem igualmente parte do conhecimento explícito da língua saberes como: a) na sentença “Nenê quer papá”, o verbo é “quer”, o sujeito da sentença é “nenê” e o complemento objeto direto é “papá”; b) na palavra “carrinhos”, “carr-” é a raiz, “-inh” é marca de diminutivo, “-o” é a vogal que marca a palavra como pertencente à classe dos substantivos e, finalmente, “-s” é marca de número plural; c) em uma forma verbal como “cantávamos”, “-va-” é desinência de tempo, modo e aspecto, ou seja, indicativa de que o fato designado pelo verbo começou em um momento temporal anterior ao de fala, mas que não se concluiu; d) a forma “-va-” marca tempo, modo e aspecto apenas para o conjunto de verbos que pertencem à primeira conjugação. Essa observação, por sua vez, leva à informação de que existem outros dois conjuntos de verbos na língua, a que chamamos conjugações, e que os verbos de segunda e terceira conjugações se assemelham entre si, ao mesmo tempo em que diferem da primeira conjugação. Essa conjugação, por sua vez, é a mais produtiva de todas as três, ou seja, é a que reúne um maior número de verbos, e, como resultado, nela “entram” novos verbos quando criados ou tomados de empréstimo a outras línguas. Os exemplos citados até então certamente lhe evocam outros tantos, análogos. Você já deve ter notado que é preciso ir à escola para aprender que “nós” é pronome e, como tal, pode funcionar como sujeito de uma sentença. Antes de frequentarmos a escola, não sabemos o que é pronome, verbo, sujeito, predicado, concordância, e assim por diante. Precisamos aprender esses artifícios criados para falar da própria língua, isto é, a chamada metalinguagem. Então, quando alguém diz que “não sabe falar português”, talvez o que não saiba seja a metalinguagem, que proporciona o conhecimento explícito da língua. Talvez não saiba o que é um sujeito, o que é um objeto. Provavelmente, não domine a norma, que requer fazer concordar sujeito com verbo, ainda que o sujeito seja posposto, ou seja, colocado após o verbo. Assim, pela norma culta da língua portuguesa, uma forma como “Existe muitos livros na biblioteca” está errada, pois devemos concordar sujeito com verbo em número. Mas o conhecimento default: termo técnico advindo da implícito sugere que, sendo a ordem default do PB sujeito + verbo + complementos, é possível informática; refere- interpretar essa sentença com sujeito não preenchido, e “muitos livros” como objeto direto do -se a um parâmetro padrão, a um valor verbo. É muito importante notar que essa interpretação tem o objetivo de levantar hipóteses sobre pré-determinado. por que falamos e ouvimos sentenças como “Existe muitos livros na biblioteca” frequentemente. Não há, na construção dessa explicação, qualquer preocupação em julgar se quem expressa uma sentença como essa do nosso exemplo está produzindo um fato certo ou errado na língua. Uso versus norma 31 É, portanto, uma perspectiva diferente daquela adotada pelas gramáticas normativas, a que somos apresentados na escola, e pelo senso comum, que insiste em uma ignorância que não temos. Na seção que segue, ainda trataremos de alguns exemplos ilustrativos da discrepância entre nosso conhecimento implícito e nosso conhecimento explícito do PB, aliados ao equívoco do senso comum que profissionais de Letras, especialmente, precisam esclarecer e desfazer. 2.2 Vamos desfazer outros mitos Vídeo Assim como é equivocada a afirmação de que falamos português errado, ou a de que não sabemos falar português, há muitas outras afirmações que lemos ou ouvimos sobre as línguas, mas que não têm fundamento linguístico algum. Nesta seção, abordaremos duas dessas afirmações que são muito correntes: a de que existem línguas mais fáceis e línguas mais difíceis e a de que existem línguas “especializadas” para uma determinada finalidade. Vamos lá! Você provavelmente já leu alguma frase semelhante à do jornalista Apparício Torelly, também conhecido pelo falso título de nobreza de Barão de Itararé (apud RICARDO ORLANDINI, 2019): “O português é uma língua muito difícil. Tanto que calça é uma coisa que se bota, e bota é uma coisa que se calça”. Nessa frase, o julgamento da “dificuldade” da língua portuguesa se baseia em uma aparente contradição lexical. O “raciocínio” que talvez oriente essa afirmação é o de que deveria haver uma correspondência de um para um entre os termos, de modo que a língua permitisse dizer que calçamos a calça e botamos a bota, já que o nome “bota” e o verbo “botar”, por exemplo, têm uma semelhança sonora que deveria motivar sua semelhança de sentido. Em resumo, seria desejável uma correspondência motivada entre som e sentido, tudo o que língua nenhuma exibe, como comentamos no Capítulo 1 a propósito da discussão sobre o caráter arbitrário do signo linguístico, defendido por Ferndinand de Saussure como a base de qualquer sistema linguístico. A queixa de Torelly, em boa medida, assemelha-se às queixas de Marcelo, o personagem de Ruth Rocha que, em Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias (1999), tenta criar uma língua completamente motivada, na qual existiria, para o menino, uma correspondência biunívoca entre som e sentido. Ora, se o signo linguístico é arbitrário, se não existe uma motivação para que uma cadeia sonora se una a este ou àquele sentido, o problema que Torelly atribui à língua portuguesa não é exclusivo de nossa língua materna, certo? A internet, aliás, é um meio propício, privilegiado, para encontrarmos afirmações falaciosas sobre as línguas. Uma rápida busca nos permite encontrar listas com as cinco, as dez, as vinte línguas mais difíceis para se aprender. Da menos para a mais difícil, por exemplo, a Awebic (2018) listou vinte e cinco línguas: tagalo (língua filipina); navajo (língua indígena norte-americana); norueguês; persa; indonésio; holandês; esloveno; africâner1; dinamarquês; basco; galês; urdu2; 1 Língua falada na África do Sul e na Namíbia. Resulta do contato entre o holandês e as línguas locais desses países e surge durante o período de colonização holandesa na África. 2 Língua oficial do Paquistão, formada pela influência do persa, turco e árabe. 32 Introdução à Linguística hebraico; coreano; sânscrito3; croata; húngaro; gaélico; japonês; albanês; islandês; tailandês; vietnamita; árabe e chinês. Infelizmente, julgamentos equivocados a respeito das línguas podem levar os leitores de listas semelhantes a se sentirem intimidados ou desmotivados a aprendê-las. É importante, por exemplo, avaliarmos os critérios que justifiquem o rótulo de “língua mais difícil”. Muitas vezes, a “dificuldade” parece ora justificada por textos que, obviamente, não conseguimos ler, ora pelo fato de serem línguas “exóticas”, completamente desconhecidas por nós. Quem já ouviu falar no urdu ou no africâner, por exemplo? Outro critério para a alegada “dificuldade” se refere aos sistemas de escrita, bastante diferentes no caso do japonês, árabe, chinês, indonésio e persa. Nessas línguas, não só os símbolos utilizados na escrita são bastante diferentes das letras do nosso alfabeto, como, em alguns casos, a exemplo do árabe, do chinês e do japonês, a direção da escrita difere da direção em que escrevemos o PB. O basco, por sua vez, provavelmente é incluído em listas como essa porque não se assemelha a nenhuma língua do mundo, enquanto o sânscrito por se tratar de uma língua morta, de uso restrito a rituais litúrgicos. O navajo tem a peculiaridade de servir de base à elaboração de um código para envio de mensagens secretas, que os alemães não conseguiam decifrar, durante a Segunda Guerra Mundial. Ao fim e ao cabo de tudo o que se disse até aqui, em geral, não há propriamente um critério linguístico para justificar a dificuldade atribuída a essas línguas. No máximo, cita-se o húngaro, porque é uma língua que marca casos, ao contrário da nossa. A título de esclarecimento, é preciso dizer que “casos” são desinências que se conectam a uma base e carregam informação sintática. Assim, por exemplo, o latim – língua de que se origina o português – marcava o caso nominativo, que carrega a função de sujeito; o caso acusativo, que carrega a função de objeto direto; o caso vocativo, que carrega a mesma função que temos no português; o caso ablativo, correspondente ao adjunto adverbial do português; o caso dativo, que corresponde ao nosso objeto indireto; o caso genitivo, correspondente ao possessivo. Na evolução do latim para o português, os casos deixaram de existir e passamos a marcar funções sintáticas – como o objeto direto – pela ordem das palavras na sentença. Por outro lado, existem línguas atuais que adotam sistemas de caso, como o húngaro, o russo e o alemão. Talvez a diferença morfossintática entre essas línguas e a nossa seja vista como uma “grande dificuldade” por alguns. Mas a diferença não implica, necessariamente, dificuldade. Implica aprender fatos que não temos em nossa língua ao adquirirmos algumas das línguas da nossa lista. É preciso notar, igualmente, que ao listar línguas de difícil aprendizagem, vemos muitas dos continentes europeu e asiático. No caso da lista citada (AWEBIC, 2018), por exemplo, a exceção é o navajo. O afrikâner, ainda que falado em alguns pontos do continente africano, resulta do contato com o holandês. Nesses casos, parece não haver línguas originárias de outros continentes ou que ninguém queira aprender, por exemplo, uma língua como !Xosa ou Iorubá, ou alguma das línguas faladas no território brasileiro, como Guarani ou Juruna. 3 O sânscrito é uma língua morta. Era falado na Índia e no Nepal, usado na liturgia do budismo e do hinduísmo. Uso versus norma 33 Os argumentos apresentados até então reforçam que não existe uma língua mais difícil do que outra. O que existem são línguas de estruturas distintas, algumas mais próximas, outras mais distantes das estruturas da nossa língua materna. Esse juízo sobre as línguas é complementado por um outro, segundo o qual haveria línguas “primitivas”, “pouco desenvolvidas”. No geral, esse juízo se confunde com o de que existem sociedades primitivas, ao lado de outras, desenvolvidas, o que acarreta o equívoco de se afirmar que línguas indígenas, por exemplo, são “menos evoluídas” do que outras. É preciso frisar o equívoco dessa afirmação, e, para isso, voltamos ao navajo: se essa língua fosse mesmo primitiva, não teria sido utilizada para criar um código que os países do Eixo – supostamente falantes de línguas mais “desenvolvidas” – não conseguiram identificar, certo? Mas desenvolvimento linguístico e desenvolvimento social não andam juntos, necessariamente. E este é um ponto muito importante quando fazemos Linguística: reconhecer que não há uma língua melhor ou mais desenvolvida que as outras. O primeiro linguista a chamar a atenção para isso foi Edward Sapir, na década de 1930, em um texto intitulado “O gramático e a língua”. Sapir era um etnolinguista, com formação em Linguística e Antropologia, dedicado ao estudo de línguas originárias e faladas no continente norte-americano. Seus estudos levaram-no a desenvolver a tese de que todas as línguas são dotadas de plenitude formal. Esse conceito é importantíssimo, não só porque, anos mais tarde, de alguma maneira, é retomado por Noam Chomsky como base para seu próprio modelo, e sim por resultar do fato de colocar por terra a concepção de que existem línguas menos desenvolvidas que outras. Para Sapir, ter “plenitude formal” significa que todas as línguas se equivalem, no que diz respeito às relações lógicas. Isso implica que todas elas podem expressar as mesmas relações. Portanto, todas as línguas podem, por exemplo, expressar a relação de causalidade. Uma língua na qual a causalidade ainda não é observada, segundo Sapir, não expressa a causalidade porque seus falantes – por qualquer razão – ainda não sentiram necessidade de expressá-la. Entretanto, quando os falantes da língua precisarem expressar essa relação, poderão fazê-lo, porque a língua dispõe das relações lógico-formais necessárias para essa tarefa. É possível que a língua não disponha de itens lexicais por meio dos quais a relação de causalidade possa ser veiculada. Caso isso aconteça, a língua pode ou emprestar palavras de outras línguas, ou criar palavras, por meio dos mecanismos de criação de palavras que possui. Assim, como todas as línguas se equivalem, do ponto de vista formal, segundo preconiza Sapir, não se pode compará-las. A única comparação possível, ainda conforme o autor, envolve o léxico – as palavras da língua –, que pode ser maior ou menor, por exemplo. Essa é a perspectiva que a Linguística assume: não há língua melhor ou pior que outra, mais ou menos desenvolvida. Tudo o que se diga nesse sentido não passa de juízo infundado, calcado em aspectos não de natureza linguística, mas de natureza social. 34 Introdução à Linguística Quer um exemplo nítido do que estou dizendo? Pois bem: em PB, temos mais de um registro possível para a flexão verbal. Vejamos: Quadro 3 – Dois registros possíveis de flexão verbal no PB Registro 1 Registro 2 Eu estudo Eu estudo Você estuda Você estuda Ele estuda Ele estuda Nós* estudamos Nós* estuda Vocês estudam Vocês estuda Eles estudam Eles estuda * Os pronomes pessoais também podem variar em função, por exemplo, da região do país onde se usa o PB. Por ora, não vou abordar essa questão, então ficamos com um conjunto de pronomes que eu mesma uso no registro que falo. Fonte: Elaborado pela autora. Note que o Quadro 3 evidencia que o Registro 2 difere do Registro 1 por enxugar as marcas de pessoa e número. Temos, nele, apenas a marca para primeira pessoa do singular. Todas as demais são suprimidas, mas veiculadas nos pronomes. Ao fim e ao cabo, temos as mesmas informações gramaticais em ambos os registros. Por que, então, estigmatizamos quem usa o Registro 2, referindo-nos a essas pessoas de modo pejorativo, por vezes até ofensivo? Vamos fazer mais uma comparação: Quadro 4 – Registro estigmatizado de flexão verbal no PB e flexão verbal no inglês Registro 2 Inglês Eu estudo I study Você estuda You study Ele estuda He studies/study Nós* estuda We study Vocês estuda You study Eles estuda They study * Os pronomes pessoais também podem variar em função, por exemplo, da região do país onde se usa o PB. Por ora, não vou abordar esta questão, então ficamos com um conjunto de pronomes que eu mesma uso no registro que falo. Fonte: Elaborado pela autora. O Quadro 4 compara o Registro 2, estigmatizado do PB, com a flexão verbal em inglês. Veja que, para a terceira pessoa do singular em inglês, eu considero a forma prescrita pela norma dessa língua, que prevê a marca para veicular a informação gramatical desejada, mas também considero a forma usada pelos falantes do inglês cotidianamente. Se dedicar atenção a letras de músicas e filmes, você notará que é muito raro escutarmos a forma prescrita pela norma da língua. O Quadro 4 nos mostra, também, que a morfologia de flexão verbal do inglês é bastante enxuta e emprega, no máximo, uma forma apenas para veicular uma pessoa do discurso específica. A informação linguística sobre as pessoas do discurso é registrada nos pronomes. Por Uso versus norma 35 causa dessa morfologia enxuta, a língua inglesa não permite orações que não registrem o sujeito. Elas são agramaticais. Comparando, agora, o inglês com o Registro 2 do PB, vemos que existe, ali, uma morfologia de flexão verbal tão enxuta quanto a do inglês. Há apenas a marca de primeira pessoa do singular no verbo. No mais, marca-se a pessoa do verbo no pronome que o acompanha, tal qual acontece no inglês. Por que, então, estigmatizamos o Registro 2, mas não temos problema nenhum com o inglês? A resposta é: o estigma tem motivo social, mas não tem qualquer fundamento linguístico. Constitui-se uma variação de um registro padrão da língua. E nossa língua – como qualquer outra – exibe muitos fatos em variação. Na seção seguinte, trataremos de alguns deles. 2.3 A riqueza da variação Vídeo Assim como qualquer fato social, uma língua está sujeita a variar em função, por exemplo, do lugar onde é falada ou da idade dos seus falantes. É possível alguma comparação com a maneira como as pessoas se vestem: adultos, por exemplo, não usam os mesmos modelos de roupas que crianças; o mesmo vale para pessoas idosas, em comparação com adultos mais jovens. A língua também varia em função das características de seus usuários, e essa variação pode se refletir em diversos aspectos, como abordaremos a seguir. Antes, porém, cabe considerar que as línguas evoluem no tempo. E, mais uma vez, a analogia com a vestimenta é útil: você já deve ter visto fotografias de pessoas que viveram no início do século XX. Os trajes eram obviamente diferentes dos que usamos hoje. Homens e mulheres, por exemplo, já não saem à rua com chapéus. De modo semelhante, algumas das variações que observamos na língua podem percorrer um caminho tal que se traduzam em mudanças com o passar do tempo. Para começar essa abordagem, vamos voltar aos exemplos do Quadro 3, na seção 2.2. O aspecto que quero tomar, a partir dos dados ali ilustrados, é o sistema pronominal do PB. Se recorremos a qualquer gramática normativa da língua portuguesa, lemos que o sistema pronominal da língua é constituído por: Eu, nós: primeira pessoa, singular e plural. Tu, vós: segunda pessoa, singular e plural. Ele/ela; eles/elas: terceira pessoa, singular e plural. Porém, o sistema pronominal que encontramos no uso da língua, tanto em sua modalidade escrita quanto em sua modalidade oral, não é exatamente o mesmo. As diferenças se localizam sobretudo na segunda pessoa e atingem, igualmente, a primeira pessoa do plural. Comecemos por esta: a convivência entre “nós” e “a gente” no sistema pronominal do PB é atestada, d