Farsa de Inês Pereira - Gil Vicente PDF
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This is a Portuguese play, "Farsa de Inês Pereira", by Gil Vicente. It presents a historical perspective of Portuguese literature. The play is an example of Portuguese medieval drama.
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Farsa de Inês Pereira Gil Vicente BD Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente pág....
Farsa de Inês Pereira Gil Vicente BD Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente pág. 2 de 39 Introdução Figuras: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dois Judeus: Latão, Vidal; um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando. Feito por Gil Vicente, representado ao muito alto e mui pode- roso rei D. João, o terceiro, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente pág. 3 de 39 Entra logo Ines Pereira, e finge que está lavrando só, em casa, e canta esta cantiga: Canta Ines: Quien con veros pena y muere Que hará quando no os viere?1 (Falando) INES Renego deste lavrar E do primeiro que o usou; 5 O diabo qu’eu o eu dou, Que tão mao he d’aturar. Oh Jesu! que enfadamento, E que raiva e que tormento, Que cegueira e que canseira! 10 Eu hei-de buscar maneira D’algum outro aviamento2. Coitada, assi hei-de estar Encerrada nesta casa 1 – Quem com ver-vos pena e morre, que fará quando vos não vir? 2 – ocupação © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 4 Como panela sem asa, 15 Que sempre está num lugar? E assi hão-de ser logrados3 Dous dias amargurados, Que eu possa durar viva? E assim hei-de estar cativa 20 Em poder de desfiados4? Comendo-me eu logo ó demo S’eu mais lavro nem pontada; Ja tenho a vida cansada De jazer sempre d’hum cabo5. 25 Todas folgão, e eu não, Todas vem e todas vão Onde querem, senão eu. Hui! e que peccado he o meu, Ou que dor de coração? 30 Esta vida he mais que morta. Sam eu coruja ou corujo, Ou sam algum caramujo Que não sae senão à porta? E quando me dão algum dia 35 Licença, como a bugia6, Que possa estar à janela, He já mais que a Madanela Quando achou a alleluïa. Vem a Mãe, e diz: MÃE Logo eu adivinhei 40 Lá na missa onde eu estava, Como a minha Ines lavrava A tarefa que lh’eu dei. 3 – aproveitados 4 – travesseiros de franjas 5 – de estar sempre no mesmo sítio 6 – macaca © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 5 Acaba esse travesseiro! Hui! Nasceu-te algum unheiro? 45 Ou cuidas que he dia sancto? INES Praza a Deos que algum quebranto7 Me tire do cativeiro. MÃE Toda tu estás aquella! Chórão-te os filhos por pão? 50 INES Prouvesse a Deos! Que já he rezão De eu não estar tão singela. MÃE Olhade ali o mao pesar!8 Como queres tu casar Com fama de preguiçosa? 55 INES Mas eu, mãe, sam aguçosa,9 E vos dae-vos de vagar. MÃE Ora espera assi, vejamos. INES Quem já visse esse prazer! MÃE Cal’-te, que poderá ser, 60 Qu’ante a páscoa vem os ramos. Não t’apresses tu, Ines, Maior he o anno co mes. Quando te não precatares Virão maridos a pares, 65 E filhos de tres em tres. INES Quero-m’ora alevantar; Folgo mais de falar nisso, Assi me dê Deos o paraíso, Mil vezes que não lavrar: 70 Isto não sei que me faz MÃE Aqui vem Lianor Vaz. INES E ella vem-se benzendo. 7 – feitiço 8 – Que desgraça! 9 – activa © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 6 Entra Lianor Vaz. LIA. Jesu a que m’eu encomendo, Quanta causa que se faz! 75 MÃE Lianor Vaz, que foi isso? LIA. Venho eu, mana, amarela? MÃE Mais ruiva que hũa panela. LIA. Não sei como tenho siso. Jesu! Jesu! que farei? 80 Não sei se me va a elRei, Se me vá ao Cardial. MÃE Como? e tamanho he o mal? LIA. Tamanho? eu to direi. Vinha agora pereli 85 Ó redor da minha vinha, E hum clérigo, mana minha, Pardeos, lançou mão de mi; Não me podia valer, Diz que havia de saber 90 Sera eu femea, se macho. MÃE Hui! seria algum mochacho, Que brincava por prazer? LIA. Si, mochacho sobejava Era hum zote10 tamanhouço! 95 Eu andava no retouço11, Tão rouca que não falava. Quando o vi pegar comigo, Que m’achei naquele p’rigo, Assolverei!, não assolverás – 100 – Jesu! homem, qu’has comtigo? Irmam, eu te assolverei Co breviairo de Braga. – Que breviairo, ou que praga? Que não quero: aqui d’elRei! – 10 – idiota 11 – brincadeira © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 7 105 Quando viu revolta a voda, Foi e esfarrapou-me toda O cabeção da camisa. MÃE Assi me fez dessa guisa Outro, no tempo da poda. 110 Eu cuidei que era jôgo, E ele... dae-o vós ao fogo! Tomou-me tamanho riso, Riso em todo meu siso, E elle leixou-me logo. 115 LIA. Si, agora, eramá, Tambem eu me ria ca Das cousas que me dizia: Chamava-me luz do dia: Nunca te ôlho verá. 120 Se estivera de maneira Sem ser rouca, bradár’eu; Mas logo m’o demo deu Catarrão e peitogueira, Cócegas e cór de rir, 125 E coxa pera fugir, E fraca pera vencer: Porém pude-me valer Sem me ninguém acudir. O demo (e não póde al ser) 130 Se chantou12 no corpo delle. MÃE Mana, conhecia-te elle? LIA. Mas queria-me conhecer! MÃE Vistes vós tamanho mal? LIA. Eu m’irei ao Cardial, 135 E far-lh’ei assi mesura, E contar-lhe-ei a aventura Que achei no meu olival. 12 – meteu © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 8 MÃE Não estás tu arranhada, De te carpir nas queixadas? 140 LIA. Eu tenho as unhas cortadas, E mais estou tosquiada: E mais pera que era isso? E mais pera que é o siso? E mais no meio da requesta13 145 Veio hum homem de hũa bêsta, Que em vê-lo vi o p’raiso, E soltou-me, porque vinha Bem contra sua vontade. Porém, a falar a verdade, 150 Ja eu andava cansadinha, Não me valia rogar, Nem me valia chamar Áque de Vasco de Foes, Acudi-me, como soes! 155 E elle senão pegar: – Mais mansa, Lianor Vaz, Assi Deos te faça sancta. – Trama14 te dê na garganta! Como! isto assi se faz? 160 – Isto não revela nada. – Tu não ves que sou casada? MÃE Dera-lhe ma ora boa E mordêra-lo na c’roa. LIA. Assi! fôra excommungada. 165 Não lhe dera hum empuxão, Porque sou tão maviosa15, Que he cousa maravilhosa; E esta é a concrusão. Leixemos isto. Eu venho 13 – luta 14 – doença 15 – terna, meiga © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 9 170 Com grande amor que vos tenho, Porque diz o exemplo antigo Que a amiga e o amigo Mais aquenta que o bom lenho. Ines Pereira he concertada 175 Pera casar com alguém? MÃE Até gora com ninguém Não he ella embaraçada. LIA. Eu vos trago hum casamento Em nome do Anjo bento: 180 Filha, não sei se vos praz. INES E quando, Lianor Vaz? LIA. Eu vos trago aviamento. INES Porém, não hei de casar Senão com home’avisado16: 185 Ainda que pobre e pelado, Seja discreto em falar. LIA. Eu vos trago hum bom marido, Rico, honrado, conhecido: Diz que em camisa17 vos quer. 190 INES Primeiro eu hei de saber Se he parvo, se sabido. LIA. Nesta carta que aqui vem Pera vós, filha, d’amores, Veredes vós, minhas flores, 195 A descrição que elle tem. INES Mostrae-m’a ca, quero ver. LIA. Tomae: e sabedes vós ler? MÃE Hui! e ella sabe latim, E gramateca e alfaqui18, 200 E tudo quanto ella quer. Ines (lê a carta) 16 – sabido 17 – mesmo pobre (sem dote) 18 – ciência teológico-jurídica muçulmana © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 10 Senhora amiga Ines P’reira, Pero Marquez, vosso amigo, Que ora estou na nossa aldea, Mesmo na vossa mercea 205 M’encomendo, e mais digo, Digo que benza-vos Deos, Que vos fez de tão bom geito. Bom prazer e bom proveito Veja vossa mãe de vós. 210 Ainda que eu vos vi Est’outro dia folgar, E não quisestes bailar, Nem cantar diante mi...» INES Na voda de seu avô, 215 Ou onde me vio ora elle? Lianor Vaz, este he elle? LIA. Lede a carta sem dó, Qu’inda eu sam contente delle? Ines (prossegue na leitura) Nem cantar presente mi, 220 Pois Deos sabe a rebentinha19 Que me fizestes então. Ora, Ines, que hajais benção De vosso pae e a minha, Que venha isto a concrusão. 225 Viste tão parvo vilão? Eu nunca tal cousa vi. Nem tanto fóra de mão. LIA. Quereis casar a prazer No tempo d’agora, Ines? 230 Antes casa, em que te pês20, 19 – desejo e ciúme 20 – ainda que te custe © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 11 Que não he tempo d’escolher. Sempre eu ouvi dizer: Ou seja sapo ou sapinho, Ou marido ou maridinho, 235 Tenha-o que houver mister, Este he o certo caminho. MÃE Pardeos, amiga, essa he ella; Mata o cavalo de sela, E bô he o asno que me leva. 240 LIA. Filha, no chão de Couse, Quem não poder andar choute21. Mais quero eu quem m’adore, Que quem faça com que chore. Chamâ-lo-ei, Ines? INES Si, 245 Venha e veja-me a mi, Quero ver, quando me vir, Se perderá o presomir Logo em chegando aqui, Pera me fartar de rir. 250 MÃE Touca-te, se ca vier, Pois que pera casar anda. INES Essa he boa demanda! Ceremonias ha mister Homem que tal carta manda? 255 Eu o estou ca pintando: Sabeis, mãe, que eu adevinho? Deve ser hum vilãozinho... Ei-lo se vem penteando: Sera com algum ancinho? Vem Pero Marques e diz: 260 PERO Homem que vai donde eu vou Não se deve de correr; 21 – trote © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 12 Ria embora quem quizer, Que eu em meu siso estou. Não sei onde mora aqui: 265 Olhae que m’esquece a mi! Eu creio que nesta rua, E esta parreira he sua: Já conheço que he aqui. Chega a casa de Ines Pereira: Digo que esteis muito embora. 270 Folguei ora de vir cá. Eu vos escrevi de lá Hũa cartinha, senhora: E assi que de maneira... MÃE Tomae aquella cadeira. 275 PERO E que val aqui hũa destas? INES (Oh Jesu! que Jam das bêstas! Olhae aquella canseira.) Assentou-se com as costas para ellas, e diz: PERO Eu cuido que não ’stou bem... MÃE Como vos chamais, amigo? 280 PERO Eu Pero Marques me digo, Como meu pae que Deos tem. Faleceo, (perdoe-lhe Deos, Que fôra bem escusado) E ficamos dous ereos22, 285 Porém meu he o morgado. MÃE De morgado he vosso estado? Isso viria dos ceos! PERO Mais gado tenho eu já quanto, E o mair de todo o gado, 290 Digo maior algum tanto. 22 – herdeiros © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 13 E desejo ser casado, Prouguesse ao Spirito Sancto, Com Ines; que eu mespanto Quem me fez seu namorado. 295 Parece moça de bem, E eu de bem er tambm. Ora vós er ide vendo Se lhe vem melhor alguem, A segundo o qu’eu entendo. 300 Cuido que lhe trago aqui Peras da minha pereira; Hão de estar na derradeira. Tende ora, Ines per hi. INES E isso hei de ter na mão? 305 PERO Deitae as peas23 no chão. INES As perlas pera enfiar, Tres chocalhos e hum novelo, E as peieas no capelo: – E as peras onde estão? 310 PERO Nunca tal m’aconteceo! Algum rapaz m’as comeo; Que as meti no capelo, E ficou aqui o novelo, E o pentem não se perdeo: 315 Pois trazi’-as de boamente. INES Fresco vinha ahi o presente Com folhinhas borrifadas. PERO Não, qu’ellas vinhão chentadas24 Ca em fundo no mais quente. 320 Vossa mãe foi-se? Ora bem, Sos nos leixou ella assi? Cant’eu quero-m’ir daqui, Não diga algum demo alguem... 23 – cordas 24 – metidas © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 14 INES Vós que m’havieis de fazer? 325 Nem ninguém que ha de dizer? O galante despejado! PERO Se eu fôra já casado, D’outra arte havia de ser, Como homem de bom peccado. Ines (à parte) 330 INES Quão desviado este está! Todos andão por caçar Suas damas sem casar, E este, tomade-o lá! PERO Vossa mãe he lá no muro? 335 INES Minha mãe eu vos seguro Que ella venha cá dormir. PERO Pois, senhora, eu quero-me ir Antes que venha o escuro. INES E não cureis mais de vir. 340 PERO Virá ca Lianor Vaz, Veremos que lhe dizeis. INES Homem, não aporfieis, Que não quero, nem me praz. Ide casar a Cascais. 345 PERO Não vos anojarei mais, Ainda que saiba estalar; E prometo não casar Até que vós não queirais. Estas vos são ellas a vós; 350 Anda home a gastar calçado, E quando cuida que he aviado, Escarnefuchão25 de vós. Creio que lá fica a pea: Pardeos! bô ia eu à aldea. 355 Senhora, ca fica o fato. 25 – escarnecem © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 15 INES Olhae se o levou o gato. PERO Inda não tendes candea? Ponho per cajo que alguém Vem como eu vim agora, 360 E vós a escuras a tal hora: Parece-vos que será bem? Ficae-vos ora com Deos: Cerrae a porta sôbre vós Com vossa candeiazinha; 365 E siquaes26 sereis vós minha, Entonces veremos nós. (Vai-se) INES Pessoa conheço eu Que levára outro caminho. Casae lá c’hum vilãozinho, 370 Mais covarde que hum judeu! Se fôra outro homem agora, E me topara a tal hora, Estando assi às escuras, Dissera-me mil doçuras, 375 Ainda que mais não fôra. Vem a Mãe e diz: MÃE Pero Marquez foi-se já? INES E pera que era elle aqui? MÃE E não t’agrada elle a ti? INES Va-se muitieramá!27 380 Que sempre disse e direi: Mãe, eu me não casarei Senão com homem discreto, E assi vo-lo prometo Ou antes o leixarei. 26 – se porventura 27 – em muito má hora © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 16 385 Que seja homem mal feito, Feio, pobre, sem feição, Como tiver descrição, Não lhe quero mais proveito. E saiba tanger viola, 390 E coma eu pão e cebola. Siquer hũa canteguinha! Discreto, feito em farinha28, Porque isto me degola29. MÃE Sempre tu has de bailar, 395 E sempre elle ha de tanger? Se não tiveres que comer, O tanger te ha de fartar? INES Cada louco com sua teima. Com hũa borda de boleima30 400 E hũa vez d’agoa fria, Não quero mais cada dia. MÃE Como às vezes isso queima! E qu’he d’esses escudeiros? INES Eu falei ontem ali, 405 Que passárão por aqui Os judeos casamenteiros E hão de vir agora aqui. Vem os Judeos casamenteiros, Latão e Vidal, e diz: LAT. Ou de cá. INES Quem’stá lá? VID. Nome del Deo, aqui somos! 410 LAT. Não sabeis quão longe fomos! VID. Corremos a eramá. Este e eu. 28 – meigo 29 – agrada 30 – bolo © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 17 LAT. Eu, e este, VID. Pela lama e pelo pó, Que era pera haver dó, 415 Com chuiva, sol e noroeste. Foi a coisa de maneira, Tal friura e tal canseira, Que trago as tripas maçadas: Assi me fadem boas fadas 420 Que me saltou caganeira – Pera vossa mercê ver O que nos encomendou. LAT. O que nos encomendou Sero o que hoiver de ser. 425 Todo este mundo é fadiga. Vós dixestes, filha amiga, Que vos buscassemos logo... VID. E logo pujemos fogo. LAT. Cal’-te! VID. Não queres que diga? 430 Não fui eu tambem contigo? Tu e eu não somos eu? Tu judeu e eu judeu? Não somos massa d’um trigo? LAT. Leixae-me falar. VID. Ja calo. 435 Senhora, fomos... Agora falo, Ou falas tu? LAT. Dize, que dizias? Que foste, que fomos, que ias Buscá-lo, esgravatá-lo. VID. Vós quereis, Amor, marido 440 Mui discreto, e de viola? LAT. Esta moça não he tola, Que quer casar per sentido. VID. Judeu, queres-me leixar? LAT. Leixo, não quero falar. © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 18 445 VID. Buscamo-lo... LAT. Demo foi logo, Credo que o vosso rôgo Vencerá o Tejo e o mar. Eu cuido que falo e calo: Falo eu agora ou não? 450 Eu falo se vem à mão, Não digas que não te falo. INES Não falará hum de vós? Já queria saber isso. MÃE Que siso, Ines, que siso 455 Tens debaixo desses veos! INES Diz o exemplo da velha, O que não haveis de comer Leixae-o a outrem mexer. MÃE Mao conselho te aconselha. 460 INES Judeos, que novas trazeis? VID. O marido que quereis, De viola e dessa sorte, Não no ha senão na côrte Que ca não no achareis. 465 Falamos a Badajoz, Musico, discreto, solteiro; Este fôra o verdadeiro, Mas soltou-se-nos da noz. Fomos a Vilha Castim, 470 E falou-nos em latim: Vinde ca daqui a hum’hora, E trazei-m’essa senhora. INES Assi que he tudo nada enfim! VID. Esperae, aguardae ora. 475 Soubemos d’hum escudeiro De feição d’atafoneiro31, 31 – muito ocupado © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 19 Que virá logo essora, Que fala, e como ora fala Qu’estrugirá32 esta sala, 480 E tangem e como ora tange E alcança quanto abrange, E se preza bem da gala. Vem o Escudeiro com seu Moço, que lhe traz ũa viola, e diz: ESC. Se esta senhora he tal Como os Judeos ma gabárão, 485 Certo os anjos a pintarão, E não pôde ser hi al. Diz que os olhos com que via Forão de Sancta Luzia, E cabelos de Madanela. 490 Se fosse moça tão bela, Como donzela sería? Moça de vila será ella Com sinalzinho postiço, E sarnosa no toutiço, 495 Como burra de Castella. Eu assi como chegar, Cumpre-me bem d’atentar Se he garrida, se he honesta, Porque o melhor da festa 500 He achar siso e calar. MÃE Se este Escudeiro ha de vir, E he homem de descrição, Has-te de pôr em feição De falar pouco e não rir. 505 E mais, Ines, não muito olhar, E muito chão o menear, Porque te julguem por muda; 32 – atroará. © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 20 Porque a moça sisuda He hũa perla pera amar. 510 ESC. Olha ca, Fernando, eu vou Ver a com qu’hei de casar: Avisa-te, que has de estar Sem barrete onde eu estou. MOÇO Como a Rei, corpo de mi! 515 Mui bem vai isso assi. ESC. E se cospir pela ventura, Põe-lhe o pe e faz mesura. MOÇO Ainda eu isso não vi. ESC. E se me vires mentir, 520 Gabando-me de privado, Está tudo dessimulado, Ou sae-te pera fóra a rir. Isto t’aviso daqui, Faze-o por amor de mi. 525 MOÇO Porém, senhor, digo eu Que mao calçado he o meu Pera estas vistas assi. ESC. Que farei, que o çapateiro Não tem solas nem tem pele? 530 MOÇO Çapatos me daria elle, Se me vós desseis dinheiro ESC. Eu o haverei agora. E mais calças te prometo. MOÇO Homem que não tem nem preto, 535 Casa muito na ma hora. Chega o Escudeiro onde está Ines Pereira, e diz: ESC. Antes que mais diga agora, Deos vos salve, fresca rosa, E vos dê por minha esposa, Por molher e por senhora; 540 Que bem vejo Nesse ar, nesse despejo, © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 21 Mui graciosa donzella, Que vós sois, minha alma, aquella Que eu busco e que desejo. 545 Obrou bem a natureza Em vos dar tal condição, Que amais a descrição Muito mais que a riqueza. Bem parece 550 Que a descrição merece Gozar vossa fermosura, Que he tal que da ventura, Outra tal não s’accontece. Senhora, eu me contento 555 Recebervos como estais; Se vós vos não contentais, O vosso contentamento Póde falecer no mais. LAT. Como fala! 560 VID. E ella como se cala! Este ha de ser seu marido, Segundo a coisa s’abala. ESC. Eu não tenho mais de meu, Somente ser comprador 565 Do Marichal meu senhor, E sam escudeiro seu. Sei bem ler, E muito bem escrever, E bom jogador de bóla, 570 E quanto a tanger viola, Logo me vereis tanger. Moço, que estás lá olhando? MOÇO Que manda Vossa Mercê? ESC. Que venhais ca. MOÇO Pera quê? 575 ESC. Porque faças o que eu mando! © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 22 MOÇO Logo vou. O Diabo me tomou: Sair-me de Jam Montes Por servir hum tavanes33, 580 Mor doudo que Deos criou! ESC. Fui despedir hum rapaz, Por tomar este ladrão, Que valia Perpinhão34. Moço! MOÇO Que vos praz? 585 ESC. A viola. MOÇO Oh! como ficará tola, Se não fosse casar ante Co mais cafeo35 bargante36 Que come pão e cebola. 590 Ei-la aqui bem temperada, Não tendes que temperar. ESC. Faria bem de t’a quebrar Na cabeça bem migada37. MOÇO E se ella he emprestada, 595 Quem na havia de pagar? Meu amo, eu quero-me ir. ESC. E quando queres partir? MOÇO Logo quero começar. Determino de partir 600 Ante que venha o inverno, Porque vós não dais govêrno Pera vos ninguém servir. ESC. Não dormes tu que te farte? MOÇO No chão, e o telhado por manta, 605 E cerra-se me garganta 33 – estouvado 34 – raro; precioso 35 – reles 36 – homem sem vergonha 37 – feita em pedaços. © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 23 Com fome. ESC. Isso tem arte... MOÇO Vós sempre zombais assi. ESC. Oh que boas vozes tem Esta viola aqui! 610 Leixa-me casar a mi, Depois, eu te farei bem. MÃE Agora vos digo eu Que Ines está no paraiso! INES Que tendes de ver co isso? 615 Todo o mal ha de ser meu. INES Oh! como he seca a velhice! Leixae-me ouvir e folgar, Que não m’hei de contentar De casar com parvoice. 620 Póde ser maior riqueza Que hum homem avisado? MÃE Muitas vezes, mal peccado, He milhor boa simpreza. LAT. Ora ouvi, e ouvireis. 625 Dizei algũa cantadela. Namorae esta donzela E esta cantiga direis: «Canas do amor, canas «Canas do amor. 630 «Polo longo de hum rio Canaval38 está florido, «Canas do amor.» Canta o Escudeiro o romance de «Mal me quieren en Castilla», e diz: VID. Latão, já o sono é comigo, 38 – canavial © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 24 Como oiço cantar guaiado39, 635 Que não vai esfandangado40... LAT. E he o demo qu’eu digo. Viste cantar «Dona Sol Pelo mar vai a vela, Vela vai pelo mar»? 640 VID. Filha Ines, assi vivais Que tomeis esse senhor Escudeiro cantador E caçador de pardaes, Sabedor, revolvedor, 645 Falador, gracejador, Afeitado pola mão, E sabe de gavião: Tomae-o por meu amor. Podeis topar um rabugento, 650 Desmazelado, baboso, Descancarado41, brigoso, Medroso, carapatento42. Este escudeiro, aosadas43, Onde se derem pancadas, 655 Ele as ha de levar Boas; se não apanhar, Nele tendes boas fadas. MÃE Quero rir com toda a mágoa Destes teus casamenteiros. 660 Nunca vi judeos ferreiros Aturar tão bem a fragoa44. Não te he melhor, mal por mal, Ines, hum bom official, 39 – lamentoso 40 – desafinado 41 – descarado 42 – hipócrita 43 – certamente 44 – forja © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 25 Que te ganhe nessa praça, 665 Que he hum escravo de graça, E mais casas com teu igual? LAT. Senhora, perdei cuidado: O que ha de ser, hade ser; E ninguém póde tolher 670 O que está determinado. VID. Assi diz Rabizarrão. MÃE Ines, guar’-te de rascão45: Escudeiro queres tu? INES Jesu, nome de Jesu! 675 Quão fóra sois de feição! Já minha mãe adevinha... Folgastes vós na verdade Casar à vossa vontade? Eu quero casar à minha. 680 MÃE Casa, filha, muit’embora. ESC. Dae-me ca essa mão, senhora. INES Senhor, de mui boa mente. ESC. Per palavras de presente Vos recebo desdagora. 685 Nome de Deos, assi seja, Eu Bras da Mata, Escudeiro, Recebo a vós Ines Pereira Por esposa verdadeira Como manda a sancta Igreja. 690 INES Eu, aqui diante Deos, Ines Pereira, recebo a vós, Sem mais preço nem demanda, Como a sancta Igreja manda A Bras da Mata. Ahi somos nós. 695 VID. Alça manim dona, ó dona, ha46, 45 – vadio, desordeiro 46 – Levanta as mãos e agradece © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 26 Arrea espeçulá47, Bento o Deu de Jacob, Bento o Deu que a Pharaó MÃE Espantou e espantará: 700 Bento o deu de Abraham, Benta a terra de Canaam. Pera bem sejais casados, Dae-nos ca senhos48 ducados. MÃE Amanham vo-los darão. 705 Pois assi he, bem será Que não passe isto assi. Eu quero chegar ali Chamar meus amigos ca, E bailarão de terreiro. (sahe) 710 ESC. Oh! quem me fôra solteiro! INES Já vós vos arrependeis? ESC. Ó esposa, não faleis, Que casar he cativeiro. Vem a Mãe com certas moças e mancebos pera fazerem festa, e diz huma dellas, per nome Luzia: LUZ. Ines, por teu bem te seja! 715 Oh! que esposo e que alegria! INES Venhas embora, Luzia, E cedo, t’eu assi veja. MÃE Ora vae tu ali, Ines, E bailareis tres por tres. 720 FER. Tu connosco, Luzia, aqui; E a desposada ali, Ora vêde qual direis. Cantam todos de terreiro: 47 – Arranja o cabelo 48 – distribuídos © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 27 «Mal herida iba la garza «Enamorada, 725 «Sola va y gritos daba.» A las orillas de um rio La garça tenia el nido; Ballestero la ha herido En el alma; 730 Sola va y gritos dava.» E acabando de cantar e bailar, diz Fernando: FER. Ora, senhores honrados, Ficai com vossa mercê, E nosso senhor vos dê Com que vivais descansados. 735 LUZ. Ficae com Deos, desposados, Com prazer e com saude, E sempre elle vos ajude Com que vivais descansados. Ista festa foi agora, 740 Mas melhor sera outrora. MÃE Ficae com Deos, filha minha, Não virei cá tão asinha49: A minha bênção hajais. Esta casa em que ficais 745 Vos dou, e vou-me à casinha. Senhor filho e senhor meu, Pois que ja Ines he vossa, Vossa molher e esposa, Encomendo-vo la eu. 750 E pois que desque naceo A outrem não conheceo, Senão a vós por senhor, Que lhe tenhais muito amor, Que amado sejais no ceo. (vai-se) 49 – depressa © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 28 755 ESC. E vós cantais, Ines Pereira? Em vodas m’andaveis vós? Juro ao corpo de Deos Que esta seja a derradeira. Se vos eu vejo cantar, 760 Eu vos farei assoviar. INES Bofé, senhor meu marido, Se vós disso sois servido, Bem o posso eu escusar. ESC. Mas he bem que o escuseis, 765 E outras cousas que não digo. INES Porque bradais vós comigo? ESC. Sera bem que vos caleis, E mais sereis avisada Que não me respondereis nada, 770 Em que ponha fogo a tudo’; Porque o homem sesudo Traz a mulher sopeada50. Vós não haveis de falar Com homem nem mulher que seja. 775 Nem somente ir à igreja Não vos quero eu leixar. Já vos preguei as janellas, Porque não vos ponhais nellas; Estareis aqui encerrada 780 Nesta casa tão fechada, Como freira d’Oudivellas. INES Que pecado foi o meu? Porque me dais tal prisão? ESC. Vós buscastes descrição, 785 Que culpa vos tenho eu? Póde ser maior aviso, Maior descrição e siso Que guardar o meu tisouro? 50 – humilhada, dominada © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 29 Não sois vós, molher, meu ouro, 790 Que mal faço em guardar isso? Vós não haveis de mandar Em casa somente hum pelo; S’eu disser isto he novelo, Havei-lo de confirmar. 795 E mais, quando eu vier De fora, haveis de tremer, E cousa que vós digais Não vos ha de valer mais Daquilo que eu quiser. 800 Moço, às partes d’alem Vou-me fazer cavaleiro. MOÇO Se vós tivésseis dinheiro, Não seria senão bem. ESC. Tu has de ficar aqui. 805 Olha, por amor de mi, O que faz tua senhora: Fecha-la-has sempre de fóra. MOÇO Co dinheiro que leixais Não comerei eu galinhas... 810 ESC. Vae-te tu per essas vinhas; Que diabo queres mais? MOÇO Olhae, olhae, como rima! E depois de ida a vendima? ESC. Apanha desse rabisco51. 815 MOÇO Pesar ora de Sanpisco! E convidarei minha prima... E o rabisco acabado, Ir-m’ei espojar52 às eiras? ESC. Vae-te per essas figueiras, 820 E farta-te, desmazelado! MOÇO Assi? 51 – rebusco (gaipos) 52 – rebolar © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 30 ESC. Pois que cuidavas? E depois virão as favas – Conheces tuberas da terra? MOÇO l-vos vós embora à guerra, 825 Qu’eu vos guardarei oitavas53. Ido o Escudeiro, diz o Moço: MOÇO Senhora, o que elle mandou Não posso menos fazer. INES Pois que te dá de comer, Faze o que t’encomendou. 830 MOÇO Vós fartae-vos de lavrar, Eu me vou desenfadar Com essas moças lá fora: Vós perdoae-me, senhora, Porque vos hei de fechar. (vai-se) Fica fechada Ines Pereira e lavrando canta: 835 INES «Quem bem tem e mal escolhe, Por mal que lhe venha não sanoje.» Renego da discrição, Comendo ó demo o aviso, Que sempre cuidei que nisso 840 Stava a boa condição: Cuidei que fossem cavaleiros Fidalgos e escudeiros, Não cheios de desvarios, E em suas casas macios, 845 E na guerra lastimeiros54. Vêde que cavalarias, Vêde ja que mouros mata 53 – rendimentos 54 – cruéis © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 31 Quem sua molher maltrata, Sem lhe dar de paz hum dia. 850 Sempre eu ouvi dizer Que o homem que isto fizer Nunca mata drago55 em vale, Nem mouro que chamem Ale; E assi deve de ser. 855 Juro em todo meu sentido Que se solteira me vejo, Assi como eu desejo, Que eu saiba escolher marido, À boa fé sem mao engano, 860 Pacífico todo o anno, E que ande a meu mandar: Havia-m’eu de vingar Deste mal e deste dano. Entra o Moço com huma carta de Arzila, e diz: MOÇO Esta carta vem d’alem, 865 Creio que he de meu senhor. INES Mostrae ca, meu guarda-mor, E veremos o que hi vem. (Lê-se o sobrescrito.) À senhora mui presada Ines Pereira da Grãa, 870 À senhora minha irmãa, Em Tomar lhe seja dada. De meu irmão; venha embora. MOÇO Vosso irmão está em Arzila? Eu apostarei que hi vem 875 Nova de meu senhor tambem. 55 – dragão © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 32 INES Já elle partio de Tavila? MOÇO Ha tres meses que he passado. INES Aqui virá logo recado. Se lhe vai bem ou que faz. 880 MOÇO Bem pequena é a carta assaz. INES Carta de homem avisado. (lê) Muito honrada irman, Esforçae o coração E tomae por devação 885 De querer o que Deos quer; E isto quer dizer? E não vos maravilheis De cousa que o mundo faça, Que sempre nos embaraça 890 Com cousas. Sabei que indo Vosso marido fogindo Da batalha pera a villa, A meia legua de Arzila, O matou um mouro pastor. 895 MOÇO Oh meu amo e meu senhor! INES Dae-me vós ca essa chave, Ei buscar vossa vida. MOÇO Oh que triste despedida! INES Oh que nova tão suave! 900 Desatado he o nó. S’eu por elle ponho dó, O diabo m’arrebente: Pera mim era valente, E matou-o hum mouro so. 905 Guardar de cavaleirão, Barbudo, repetenado56, Que em figura d’avisado He malino e sotrancão57. 56 – insolente 57 – hipócrita © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 33 Agora quero tomar 910 Pera boa vida gozar Hum muito manso marido; Não no quero já sabido, Pois tão caro ha de custar. Vem Lianor Vaz visitá-la, e ella finge-se muito anojada. LIA. Como estais, Ines Pereira? 915 INES Muito triste, Lianor Vaz. LIA. Que fareis ao que Deos faz? INES Casei por minha canseira. LIA. Se ficaste prenhe, basta. INES Bem quisera eu dele casta58, 920 Mas não quis minha ventura. LIA. Filha, não tomeis tristura, Que a morte a todos gasta. O que havedes de fazer?... Casade vós, filha minha. 925 INES Jesu! Jesu! tão asinha! Isso me havieis de dizer? Quem perdeo um tal marido, Tão discreto e tão sabido, E tão amigo de minha vida? 930 LIA. Dae isso por esquecido, E buscae outra guarida. Pero Marquez tem que herdou Fazenda de mil cruzados; Mas vós quereis avisados... 935 INES Não; já esse tempo passou: Sobre quantos mestres são Exp’riência dá lição. LIA. Pois tendes esse saber, Querei ora a quem vos quer, 58 – descendência © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 34 940 Dae ó demo a opinião. Vai-se Lianor Vaz por Pero Marquez, e fica Ines Pereira só, dizendo: INES Andar! Pero Marquez seja; Quero tomar por esposo Quem se tenha por ditoso De cada vez que me veja. 945 Por usar de siso mero, Asno que me leve quero, E não cavalo folão. Antes lebre que leão, Antes lavrador que Nero. Vem Lianor Vaz com Pero Marquez. 950 LIA. Nó mais cerimonias agora; Abraçae Ines Pereira Por molher e por parceira. PERO Ah, eu m’empacho59 ma ora Quanto a dizer abraçar; 955 Depois que eu usa Entonces poderá ser. INES Não lhe quero mais saber; Ja me quero contentar. LIA. Ora dae-me essas mãos ca: 960 Sabeis as palavras? si! PERO Ensinárão-m’as a mi, Porém esquecem-me ja. LIA. Ora dizei como eu digo. PERO E tendes vós aqui trigo 965 Pera nos geitar por riba? LIA. Inda he cedo, como rima! PERO Soma: vós casais comigo, 59 – atrapalhado © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 35 E eu comvosco, pardelhas60! Não compre aqui mais falar. 970 E quando vos eu negar, Que me cortem as orelhas. LIA. Vou-me; ficae-vos embora. (vai-se) INES Marido, e sahirei eu agora, Que ha muito que não sahi? 975 PERO Sim, molher, sahi vós hi, Qu’eu me sahirei p’ra fóra. INES Marido, não digo isso. PERO Pois que dizeis vós, molher? INES Ir folgar onde eu quiser. 980 PERO I onde quiserdes ir, Vinde quando quiserdes vir, Stae onde quiserdes ’star. Com que podeis vós folgar Qu’eu não deva consentir? Vem hum Ermitão pedir esmola, e diz: 985 Señores, por caridad Dad limosna al dolorido Ermitaño de Cupido Para siempre en soledad, Pues su siervo soy nacido. 990 Por ejemplo, Me meti en su santo tempo Ermitaño en pobre ermita, Abastada de infinita Tristeza en que contemplo. 995 Aonde reso mis horas Y mis dias y mis años, Mis servicios y mis daños, 60 – pardeus (por Deus) © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 36 Donde tú, mi alma, lloras, Dolor de tantos engaños. 1000 E acabando Las horas, todas llorando, Tomo las cuentas una y una, Con que tomo a la fortuna Cuenta del mal en que ando, 1005 Sin esperar paga alguna. Y ansi sin esperança De cobrar lo merecido, Sirvo alli mi Dios Cupido Con tanto amor sin mudanza, 1010 Que soy su santo escogido. O señores, Los que bien os va de amores, Dad limosna al sin holgura, Que habita en sierra oscura, 1015 Uno de los amadores Que tuvo menos ventura. Y rogará al Dios de mi, En que mis sentidos traigo, Que recibais mejor pago 1020 De lo que yo recebi En esta vida que hago. Y resaré Con grau devocion y fe, Que Dios os libre de engaño, 1025 Que esso me hizo ermitaño, Y para siempre seré, Pues para siempre es mi daño. INES Olhae ca, marido amigo, Eu tenho por devação 1030 Dar esmola a um ermitão, E não vades vós comigo. PERO I-vos embora, molher, Não tenho lá que fazer. INES Tomai a esmola, padre, lá, © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 37 1035 Pois que Deos vos trouxe aqui. ERM. Sea por amor de mí Vuesa buena caridá. Deo gracias, mi señora, La limosna mata el pecado, 1040 Vos teneis cuidado De ser demí matadora. Debéis saber, Para merced me hacer, Que por vos soy ermitaño, 1045 Y aun mas os desengaño Que esperança de os ver Me hizo vestir tal paño. INES Jesus, Jesus, manas minhas! Sois vós aquelle que hum dia 1050 Em casa de minha tia Me mandastes camarinhas; E quando aprendia a lavrar Mandáveis-me tanta cousinha? Eu era ainda Inesinha, 1055 Não vos queria falar. ERM. Señora, tengo-os servido, Y vos á mi despreciado; Haced, que el tiempo pasado No se cuente por perdido. 1060 INES Padre, mui bem vos entendo Ó demo que vos eu encomendo, Que bem sabeis vós pedir! Eu determino lá d’ir À ermida, Deos querendo. 1065 ERM. Y quando? INES I-vos, meu santo, Que eu irei hum dia destes Muito cedo, muito prestes. ERM. Señora, yo me voy en tanto. 1070 INES Em tudo he bô a concrusão. © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 38 Marido, aquelle ermitão He um anjinho de Deos. PERO Corregê vós esses veos, E ponde-vos em feição. 1075 INES Saveis vós o que eu queria? PERO Que quereis, minha molher? INES Que houvesseis por prazer De irmos lá em romaria. PERO Seja logo sem deter. 1080 INES Este caminho he comprido, Contae huma historia, marido. PERO Bofá que me praz, molher. INES Passemos primeiro o rio. Descalsae-vos. PERO Assi ha de ser? 1085 E pois como? INES E levar-me-eis no ombro, Não me corte a madre o frio. Põe-se às costas do marido e diz: INES Assi. PERO Ides à vossa vontade? 1090 INES Como estar no paraiso. PERO Muito folgo eu com isso. INES Esperade ora, esperade! Olhae que lousas aquellas, Pera poer as talhas nelas! 1095 PERO Quereis que as leve? INES Sim: aqui hũa e outra aqui. Oh como folgo com ellas! Cantemos. PERO Se vós quereis. 1100 INES E vós me respondereis A tudo quanto eu cantar: Pois assi se fazem as cousas. (canta) © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Farsa de Inês Pereira Gil Vicente 39 INES «Marido cuco me levades E mais duas lousas.» 1105 PERO «Pois assi se fazem as cousas.» INES «Quanto vos quero; «Sempre fostes percebido61 «Pera cervo: «Agora vos tomou o demo 1110 «Com duas lousas.» PERO «Pois assi se fazem as cousas.» INES «Bem sabedes vós, marido, «Quanto vos amo, «Sempre fostes percebido 1115 «Pera gamo. «Carregado ides, noss’amo, Com duas lousas.» «Pois assi se fazem as cousas.» E assi vão e acaba a dita Farça. 61 – sempre tivestes predisposição, destinado © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA