Afirmação Social das Ciências da Educação: Uma Perspectiva Histórica de Portugal (PDF)

Summary

Este artigo analisa a evolução das Ciências da Educação em Portugal, desde o século XIX até aos dias atuais. Aborda períodos distintos, como o positivista e republicano, o da Pedagogia Experimental e da Escola Nova, e o da autonomia e institucionalização universitária. O texto argumenta que o estudo da história das Ciências da Educação é essencial para compreender seu estatuto e centralidade em Ciências Humanas.

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Artigo A afirmação social das Ciências da Educação: uma perspectiva histórica a partir de Portugal A social affirmation of Education Science: one history perspec...

Artigo A afirmação social das Ciências da Educação: uma perspectiva histórica a partir de Portugal A social affirmation of Education Science: one history perspective as from Portugal João Amado João Boavida Universidade de Coimbra Resumo Abstract O artigo procura fazer uma síntese da This article intends to do an evolution evolução, do século XIX aos nossos dias, synthesis, from the 19th century to nowa- de uma pedagogia normativa de pendor days, about a normative pedagogy with filosófico, à “ciência da educação”, e philosophic propensity, to the “education desta às actuais Ciências da Educação, science”, and from that to the present 7 centrando a sua perspectiva a partir de Education Science, focusing its perspec- Portugal, sem contudo deixar de integrar tive as from Portugal, but including the a evolução que se deu neste país no evolution that occurred in this country on contexto europeu e mundial. Para isso os the European and world-wide context. autores caracterizam esta evolução com For that, some actors characterize this recurso a uma periodização: (1) período evolution with resource to a time line: positivista e republicano, (2) período da (1) positive and republican period, (2) Pedagogia Experimental e da Escola Experimental Pedagogy and the New Nova e, (3) período da autonomia e ins- School period, and (3) university auton- titucionalização universitária. Os autores omy and institutionalization period. The consideram que este exercício se torna authors consider this exercise is neces- necessário para aclarar a identidade sary to clarify the historical, social and histórica, social e epistemológica das epistemological identity of Education Ciências da Educação. Science. Palavras-chave: Pedagogia. Ciência da Keywords: Pedagogy. Education Science. Educação. Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo Introdução Segundo Charlot (1995), uma ciência define-se pela sua realidade histórica e desenvolve-se através da construção de um domínio que é pró- prio dela e de mais nenhuma outra ciência. Contudo, esta constituição de um domínio específico, para além de um processo lento e contraditório, tem muito de local, surgindo na sequência de tradições próprias de cada país, e tendo por base determinados condicionalismos político-sociais como interesses de grupos, dinamismo e influência de investigadores e domínios de investigação, relações de poder etc., o que torna possível uma grande variedade de orienta- ções, objectivos e práticas, consoante a época e o local. Não é descabido, portanto, no domínio das Ciências Humanas, com- preender o que “foi” e “é” uma determinada ciência, de modo comparativo entre países, sendo importante confrontar a sua evolução histórica, as temáti- cas que constituíram objecto da sua investigação, e a dinâmica político-social subjacente (a relação entre os diferentes poderes: académico, profissional e político) que determina essa evolução. (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2002). No caso das Ciências da Educação, como afirma António Nóvoa (1998, 8 p. 123), é impossível compreender o seu percurso histórico “[...] sem uma referência aos lugares de enquadramento institucional de trabalho científico e da utilização profissional dos conhecimentos [...]” – o que, aplicando-se a Portugal e a alguns outros países, obriga a valorizar o facto de o ensino da Psicologia e da Pedagogia ter estado “[...] ligado, na sua origem, à formação psicopedagógica dos professores [...]” (GOMES, 1994, p. 337) e correlativa preocupação pela escolarização das crianças. Por outro lado, é óbvio também que devemos relacionar o apareci- mento e desenvolvimento das Ciências da Educação com o desenvolvimento de outras ciências que para elas (e para a Educação) contribuíram e continuam a contribuir (permanecendo algumas dificuldades na delimitação de fronteiras). Sabemos que desde o Renascimento ao século XIX, este desenvolvimento ficou a dever-se ao surgimento de um conjunto de condições de vária ordem, de carácter social, político, económico e cultural (filosófico e científico) a que as novas concepções sobre o Homem, sobre a Educação e sobre a natureza do conhecimento científico não foram alheias. Esta seria toda uma “pré-história” que não cabe desenvolver aqui. (VERGARA, 2003; ULJENS, 2002). Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo A referência habitual a Jean Jacques Rousseau (1712-1778), como “pai” das Ciências da Educação, resulta de algumas coincidências e outras tantas confusões. Rousseau é, de facto, considerado como um precursor da Educação Nova. Mas é bom não esquecer outros nomes incontornáveis neste enqua- dramento histórico, a começar por Coménio (1592-1670), cuja “Didáctica Magna” se deve considerar o “[...] primeiro tratado sistemático de pedagogia, de didáctica e até de sociologia escolar.” (GOMES, 1985, p. 33). A preocu- pação do filósofo e pedagogo polaco era já a de estabelecer uma pedagogia derivada dedutivamente de princípios universais – pelo que mereceu ser con- siderado o “Bacon da Pedagogia” e o “Galileu da Educação”. (GOMES, 1985). Ainda na viragem do século XVIII para o XIX, vamos encontrar auto- res importantes como Pestalozzi (1746-1827), Herbart (1776-1841), Froebel (1782-1852). Herbart, por exemplo, é por muitos considerado o pai da Pedagogia científica ou Ciência da Educação; é, pelo menos, alguém que influencia de forma extraordinária o pensamento pedagógico do século XIX e início do século XX, quer pelo pendor moralista que defende para a educação, quer pela exigência de aplicação da psicologia. Com efeito, para ele, “[...] 9 a Pedagogia como ciência depende da Filosofia e da Psicologia práticas, mostrando aquela o objectivo da educação e esta as vias, os meios e os obs- táculos.” (HERBART apud HETZER, 1981, p. 50). Tendo em conta uma periodização mais ou menos comum em diver- sos autores (AVANZINI, 1978; PLAISANCE; VERGNAUD, 1993; NÓVOA, 1998), avançaremos com uma periodização da história das Ciências da Educação aplicável a países que seguiram de perto uma mesma tradição (França, Espanha e Portugal), e que caracterizaremos por: 1– Período positivista e republicano; 2– Período da Pedagogia Experimental e da Escola Nova; 3– Período da autonomia e institucionalização universitária. Pretendemos com esta abordagem dar apenas um sinal da importân- cia do estudo da tradição histórica das Ciências da Educação (e de todo um património cultural e pedagógico que a elas está ligado) para a compreensão Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo do seu estatuto e da sua centralidade no conjunto das Ciências Humanas; longe está, pois, de nós, a preocupação de ser exaustivos. 1– Período positivista e republicano A denominação de “Ciência da Educação” tem a sua génese no século XIX, um período fortemente marcado pela visão positivista da ciência a cujo esforço e intenção racionalizadora a problemática educativa não podia escapar. Em 1812, Marc Antoine Jullien (1775-1848) foi o primeiro a utili- zar a expressão “Ciência da Educação”, na obra O espírito do método de Educação de Pestalozzi. Em 1872, com a obra de Alexander Bain intitulada Educatinal Science, e traduzida para francês por Gabriel Campayré com o título La Science de l’Éducation (1879), defende-se a aplicação da Psicologia à arte de ensinar. Apesar de a Ciência da Educação ainda não se constituir como uma ciência autónoma, neste primeiro período afirmou-se já a possibili- dade “incontestável” da sua existência e deram-se os primeiros passos para a sua constituição enquanto ciência com a ambição, na interpretação de Ramos do Ó (2003, p. 114), “[...] de agir sobre o espírito e o corpo das crianças e 10 dos jovens”. O seu método, reafirmaram-no os vários investigadores da época, consistia tão só em observar os factos da vida física e moral do homem», e o seu objectivo era “[...] o levantamento e a construção racional dos fac- tos da intimidade em ordem a um cabal estabelecimento do mapa da alma humana[...]” e a construção de uma moral laica. (RAMOS DO Ó, 2003, p. 115). É o período também conhecido por “Momento Compayré 1” bali- zado entre o ano 1879, data da publicação da Histoire critique des doctrines de l’éducation en France, por Gabriel Compayré, e o ano 1911, ano da publicação dos artigos Educação e Pedagogia 2, de Durkheim. Para além da necessária referência a Compayré (RAMOS DO Ó, 2003), há que assinalar, sobretudo, a criação dos Cursos Complementares de Ciência da Educação e Pedagogia nas universidades francesas, cerca de 14, entre 1883 e 1914. O objectivo destes cursos era a “preparação profissional” dos professores do ensino primário e secundário (PLAISANCE; VERGNAUD, 1993); tratava-se, no entanto, de uma preparação mais ideológica do que técnica (didáctica) e científica (análise empíricas da realidade escolar). Na Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo realidade, o que se procurava era “[...] justificar uma política educativa [...]” (GAUTHERIN, 1995, p. 53) e uma educação que fosse “[...] capaz de levar as crianças e os jovens a incorporar as regras sociais pela via da inteligência e do conhecimento racional [...]” (RAMOS DO Ó, 2003, p. 116), em oposição ao pensamento metafísico e ao sentimento religioso tradicional. Pode dizer-se que a Pedagogia nesta época consistia, acima de tudo, num ramo da Filosofia, especulando sobre a formação do cidadão, ainda que para isso recorresse a conhecimentos produzidos no âmbito da Psicologia e da Sociologia, também elas numa fase inicial e a procurarem separar-se da «mãe de todas as ciên- cias». No entanto, independentemente da natureza e do papel desse saber, a Pedagogia, como diz Charbonnel apud Nóvoa (1991), surge como uma disciplina universitária, como uma Ciência da Educação, que tem algo a ser ensinado e já não é apenas dependente do engenho e arte do pedagogo. O caso da Sorbonne é significativo pela duração destes cursos, pela sua transformação em cátedra, o que se pode considerar um verdadeiro ponto de partida para a sua institucionalização (1887), e pelas personalida- des que os asseguraram. A primeira dessas personalidades foi Henri Marion, para quem a Pedagogia consistia na formação moral da criança, uma moral baseada no “[...] imperativo categórico” (tal como Kant o formulara) e inde- 11 pendente da religião e da metafísica; nesse sentido a educação traduzia-se na “[...] operação capaz de levar as crianças e os jovens a incorporar as regras sociais pela via da inteligência e do conhecimento racional.” (RAMOS DO Ó, 2003, p. 116). Outra personalidade responsável pelos cursos da Sorbonne foi Durkheim, para quem havia que substituir a “pedagogia” (demasiado filosó- fica, utópica e normativa) “[...] pelo estudo objectivo daquilo que a sociedade espera da Escola, isto é, dos ajustamentos requeridos para obter as finalidades que a dinâmica social exige.” (DURKHEIM, 1984, p. 46-47). Deveria, pois, segundo o Mestre, elaborar-se uma “Ciência da Educação” cujos objectivos e métodos seriam diferentes dos da Pedagogia. Enquanto esta última tem por fun- ção elaborar “teorias práticas”, teorias doutrinárias destinadas a serem guias da acção, a construírem um ideal, mas elaboradas sem nenhuma análise da realidade, a Ciência da Educação, por outro lado, deverá ter como função conhecer e explicar a natureza passada e presente dos fenómenos educati- vos. (DURKHEIM, 1984). Com efeito, estes fenómenos têm todas as condições Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo para serem sujeitos a uma pesquisa que satisfaça os critérios de constituição de uma ciência; condições que o autor descreve como se segue: 1 – É necessário que os estudos incidam sobre factos adquiridos, realizados, oferecidos à observação. Uma ciência, com efeito, define-se pelo seu objecto; ela pressupõe, por consequência, que esse objecto existe, que pode ser apontado a dedo, ser de algum modo assinalado o lugar que ocupa no conjunto da realidade. 2 – É necessário que estes factos apresentem entre si uma homoge- neidade suficiente para poderem ser classificados numa mesma categoria. Se fossem irredutíveis uns aos outros, existiria, não uma ciência, mas tantas ciências diferentes quantas as espécies distintas de assuntos a estudar […]; 3 – Finalmente, a ciência estuda esses factos para os conhecer, e somente para os conhecer, de uma forma absolutamente desin- teressada […]. 12 Posto isto, não há qualquer motivo para que a educação se não transforme no objecto de uma pesquisa que satisfaça todas estas condições e que, por consequência, apresente todas as característi- cas de uma ciência. (DURKHEIM, 1984, p. 39). José Alberto Correia (1998) nota muito bem que o interesse, originali- dade e reflexão epistemológica aprofundada desta visão durkheimeana está, entre outros, no facto de: [...] em lugar de adoptar uma visão simplista de fazer depender a cientificidade em educação da aplicação de outros domínios do saber ao campo educativo, Durkheim distingue explicitamente uma aplicação cognitiva – que seguramente fundamentaria a cons- trução da Sociologia da Educação e, ambiguamente, sustentaria o desenvolvimento da Psicologia da Educação – de uma aplica- ção instrumental susceptível de interferir no desenvolvimento da Pedagogia enquanto teoria prática. (CORREIA, 1998, p. 32). Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo A Educação, portanto, oferece domínios onde há espaço para gran- des desenvolvimentos científicos e onde, como ele próprio afirmava, muito havia a fazer. Esse trabalho de produção científica não poderia limitar-se a tomar como seu objecto o que a observação imediata e as exigências do momento colocavam na mesa da inquirição. Pelo contrário, uma tal reflexão e inquirição no trabalho realizado pelo próprio Durkheim acaba por inscrever-se “[...] numa espacialidade e numa temporalidade mais ampla e complexa do que aquelas onde se constrói a relação educativa entendida fundamentalmente como uma relação interpessoal.” (CORREIA, 1998, p. 32). O pensamento durkeimeano exigia que os fenómenos a investigar fossem colocados no seu devir histó- rico, de modo a determinarem-se com rigor as condições que o precederam e o explicam numa relação de causalidade − certamente o grande objectivo da obra L’Évolution pédagogique en France, publicada pela primeira vez em 1937, mas traduzindo muito do conteúdo dos referidos cursos. Acrescentemos apenas que, em Portugal, os ideais positivistas e republicanos estiveram presentes em toda a reflexão científico-pedagógica do último quartel do século XIX, procurando conferir à educação e à peda- gogia que a deveria servir, uma base científica. (FERNANDES, 1979). Com 13 efeito, em 1883 escrevia já Adolfo Coelho, uma das figuras proeminentes da pedagogia lusitana que “[...] a moderna ciência da educação não formula preceitos deduzidos por processos puramente racionalísticos: observa e expe- rimenta; depois só induz e deduz.” (COELHO, 1883). Para este autor, bem como para outros autores da época, tornava-se imprescindível o recurso aos conhecimentos da Psicologia, ciência que, embora a dar os seus primeiros passos, permitia, segundo afirma, compreender o que era a criança e o adoles- cente e evitar erros no ensino e sua organização. (COELHO, 1911). Também José Augusto Coelho (1891) diz explicitamente, no prefácio dos quatro tomos da sua obra “Princípios da Pedagogia” que procura aliar os conhecimentos daquela ciência, “[...] base essencial da pedagogia [...]” aos princípios da filosofia positivista: “[...] pensei que, combinando os dados da psicologia com o princípio da identidade entre a evolução do indivíduo e da raça, pode- ria sistematizar-se a ciência pedagógica, baseando-a nos dogmas desse alto positivismo filosófico que hoje tende a dominar o mundo.” (COELHO, 1891, p. VIII). E o mesmo autor, preocupado já com a fundamentação científica da Ciência da Educação, considera que ela Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo [...] apresenta o carácter de uma perfeita ciência, pois que esta consiste em organizar sínteses e unificar, em novas sínteses, as sínte- ses anteriores [...]. É uma ciência que, fundando-se na observação indirecta que lhe oferece a observação histórica da nossa espé- cie, sistematiza e coordena num grande todo unitário os elementos destinados a entrarem como factores nos diferentes ramos da edu- cação, quando a consideramos como geral e integral. (COELHO, 1891, p. 389). Tal como em França, a preocupação pela formação dos professores dá origem a várias tentativas (quase sempre frustradas) de criação de cursos onde fosse ministrada e Psicologia e a Ciência da Educação. (FERNANDES, 1979). Ferreira Deusdado, para quem a pedagogia tinha “[...] por base a psicologia e a moral [...]” (DEUSDADO, 1995, p. 4533) chegou a criar um efémero curso livre de Psicologia Aplicada à Educação.” (DEUSDADO, 1995, p. 420). Mas a efectiva criação oficial de um curso de Pedagogia no Curso Superior de Letras (mais tarde, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) só se efectivará em 1907/1908 com Adolfo Coelho. (FERNANDES, 1979). Nesta data (1907) foi importante, também, o movimento de bolseiros que puderam tomar conhecimento directo com o que de mais avançado se 14 fazia na época em vários países europeus. De entre eles destaque-se João de Barros (1881-1960); este autor descreveu a sua experiência europeia, que incluiu também a assistência aos cursos de Durkheim na Sorbonne, num livro que intitulou A escola e o futuro (BARROS, 1908), salientando a importância dos métodos activos assentes na iniciativa e motivação do aluno, afirmando as vantagens da coeducação, e negando qualquer valor aos métodos clássicos de avaliação. Nota-se ainda em Portugal, neste período (e nos seguintes), também à semelhança do que acontecerá noutros países, para além da influência da Psicologia, a forte influência da classe médica e de uma certa medicalização da Pedagogia; o que também se compreende tendo em conta o estatuto cien- tífico que se atribuía à medicina, e que levava a esperar dela a última palavra sobre higiene, prevenção da doença e, forçosamente, sobre a Educação do homem sadio e feliz. (FERREIRA, 2003; FERNANDES, 1979). Contudo, em muitos casos os médicos cediam à tentação de ultrapassar os limites de uma intervenção no campo da saúde, o que também não deixou de ser muito criti- Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo cado na época, em especial devido à concepção redutora de Educação em que se baseava a sua acção. (RICHARD, 1911; PLANCHARD, 1982). 2– Período da Pedagogia Experimental e da Escola Nova Trata-se de um período que surge na continuidade do anterior (e até certo ponto crescendo no interior dele), e de grande dinamismo no domínio da Educação, quer do ponto de vista das reformas educativas que se rea- lizam na época, quer do ponto de vista da reflexão e da investigação. É também, por isso, um período muito rico de consequências no campo educa- tivo, mas também um período de muitas ambiguidades entre o reforço da teoria (racionalidade, objectividade, cientificidade) e as necessidades da prática (necessidade de acção, de resposta urgente, mas esclarecida, aos problemas educativos da época). Nóvoa (1987, p. 733) referindo-se à especificidade da Educação Nova em Portugal, dá conta de um conjunto de correntes em conflito, como os “intuicionistas”, os “experimentalistas”, os “militantes políticos” e os “militantes pedagógicos”. As clivagens entre as correntes, ainda no con- texto português, assentam em duas linhas principais: “[...] o posicionamento sociopolítico (que vai do anarquismo revolucionário ao catolicismo conserva- 15 dor) e o modo de conceber a pedagogia (é ela uma ciência orientada para a sociologia ou para a psicologia?” (NÓVOA, 1987, p. 735). É desse clima de alguma euforia mas também de muitas contradições, que queremos deixar algumas notas, ainda que esquematicamente, subdivi- dindo a exposição em duas alíneas: na primeira, sublinharemos as principais características do movimento da Pedagogia Experimental; na segunda, carac- terizaremos sucintamente o movimento da Escola Nova. Pretendemos com estas notas apresentar algumas características das duas grandes tendências no interior de um mesmo movimento, e cujo denominador comum era a oposição à escola tradicional, no contexto de uma dinâmica muito grande em termos científicos, sociais e culturais. A) A Pedagogia Experimental Convencionemos como início deste período, que designamos por período da pedagogia experimental, o ano de 1912, ano da criação, em Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo Genève, do Instituto J. J. Rousseau, também conhecido como “Escola das Ciências da Educação”, designadas, precisamente, no plural. (PLAISANCE; VERGNAUD, 1993). Note-se, no entanto, que em França a designação conti- nuará, ainda por muito tempo, a ser feita no singular. A visão positivista da Educação própria do período anterior não só permanece como evolui para atitudes de maior sistematicidade, mantendo como modelo as ciências físicas. A ciência da educação afirma-se como uma psicologia aplicada e cujo objecto é, − essencialmente, a realidade individual de cada criança, do educando. “O tema seria, pois, o da diferença, e o pro- blema correspondente é o de adequar a escola e as suas rotinas ao postulado maior da individualização.” (RAMOS DO Ó, 2003, p. 126). Tratava-se de construir “a escola por medida”. Esse foi, aliás, o título de uma conferência de Claparède, que fez grande sucesso, de tal modo que foi retomado por outros autores. Escreveu Ferriére: [...] a ideia da escola por medida é justa; e é de actualidade. Justa, porque cada criança os testes o demonstram – é diferente de todas as outras. Diferente, não somente na preparação com que inicia o estudo dos diferentes ramos de conhecimento, no inte- 16 resse que esse estudo lhe merece […] mas também no carácter, no humor triste ou alegre, na energia, no domínio de si mesma. (FERRIÉRE, 1934, p. 5). É ao serviço dessa individualização que surgem, pela mão de per- sonalidades precursoras, como Alfred Binet (1857-1911) em Paris, Édouard Claparède (1873-1940) em Genève e Raymond Buyse (1889-1974) em Bruxelas, novos métodos de investigação, como a observação e a expe- rimentação psicológicas, os testes psicológicos, a antropometria, a análise estatística, etc. susceptíveis de escalpelizar o indivíduo (criança/jovem – aluno) com grande pormenor. A medida em Psicologia e em Pedagogia tornou-se finalmente uma ideia e uma prática “[...] não só admitida, mas destinada a durar.” (GILBERT, 1983, p. 75). Nesta linha de pensamento, a acção do professor passa a ter exigên- cias totalmente diferentes das que possuía até aí. O professor não mais pode tratar os alunos reunidos na turma como um rebanho, dirigindo-se a todos por igual – como acontecia na “escola tradicional”. Ao lado da preocupação por ensinar estarão também, os professores hão-de ter a preocupação por observar Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo as capacidades dos seus alunos (situando-os em face do nível de desenvolvi- mento médio das crianças), e cultivarão uma a atitude de experimentadores prudentes. (RICHARD, 1911; BINET, 1920). A visão experimentalista da Educação e da Pedagogia ganha nume- rosos e fervorosos adeptos no mundo ocidental, produtores e consumidores de muita e variada investigação e publicação4. De facto, como diz Charbonnel (apud CORREIA, 1998, p. 26), nesse esforço de investigação e divulgação “[...] inventaram e escreveram uma disciplina, criaram livros, contribuíram abun- dantemente para uma visão do mundo, da criança, do homem e da sociedade [...]”, de tal modo que “[...] não foram os psicólogos que deram lições aos pedagogos, mas o inverso.” É importante recordar que em 1911, já no contexto das grandes refor- mas republicanas no sector educativo, foram criadas as Faculdades de Letras e três Escolas Normais Superiores (Lisboa, Porto e Coimbra), que tinham o fim promover a alta cultura pedagógica e habilitar para o magistério dos liceus, das escolas normais primárias e superiores e para a admissão ao concurso de inspectores do ensino.” (DECRETO DE 21 DE MAIO DE 1911). Em 1912, precisamente no mesmo ano em que se fundou em Genebra o Instituto J. J. Rousseau, foi criado na Universidade de Coimbra (Faculdade de Letras), por 17 iniciativa de Alves dos Santos, o primeiro laboratório português de Psicologia Experimental (GOMES, 1995; ABREU; OLIVEIRA, 1999), seguindo-se a sua criação noutras instituições, sempre com o intuito de proporcionar uma for- mação baseada nas competências de observação e de experimentação. (SAMPAIO, 1971; FERNANDES, 1979). Ao mesmo tempo (1911–1912), começaram a ser leccionadas, nas Faculdades de Letras de Coimbra e de Lisboa, as disciplinas de Psicologia e de Pedagogia. As vicissitudes de todo o processo de formação dos professores e inspectores, que certamente estava longe do ideal estabelecido pela legislação, levaram, já na reforma de João Camoesas (1923), à proposta de criação de uma Faculdade de Ciências da Educação onde se faria a formação dos professores de todos os graus. Esta proposta não se concretiza, porém, tal como não se concretizam muitos outros objectivos, sobretudo os de investigação, por falta de meios. O português Faria de Vasconcelos (1880–1939) é, talvez, a mais importante figura portuguesa desta época no campo da pedagogia; Rogério Fernandes (1979, p. 118) considera como “[...] nota constante de todos os seus estudos, o entendimento do carácter rasgadamente científico da pedagogia Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo contemporânea, ciência autónoma que, recorrendo embora aos dados e con- tribuições de outras ciências, se libertou do empirismo e criou o seu próprio método.” Criador do Instituto de Orientação Profissional, a linha geral do seu pensamento e da sua prática assenta essencialmente na vertente psicologi- zante e experimental do pensamento pedagógico. Mas Faria de Vasconcelos, tal como Adolfo Lima (1874-1943), João de Barros (1881-1960), João de Deus Ramos (1878-1953), Álvaro Viana de Lemos (1881-1972), Alves dos Santos (1866-1924), António Sérgio (1883-1969), António Aurélio da Costa Ferreira (1879-1922) e outros, tiveram atrás de si toda uma herança que pas- sou pelo pensamento e pela prática tanto de homens de além fronteiras, como Froebel (1782-1852) e Pestalozzi (1746-1827), como de nacionais, de que destacamos Feliciano de Castilho (1800-1875) e João de Deus (1830-1896). Por outro lado, o seu pensamento, expresso também em diversas publicações5, elaborou-se no contacto directo com o que na Europa de melhor se pensava e fazia em matéria educativa, e de que há a destacar o estágio, por parte de muitos deles, no Instituto J. J. Rousseau. (NÓVOA, 1987; PATRÍCIO, 2000). As condições sociais, culturais e económicas do país não estavam, porém, a par do pensamento avançado destes precursores; contradição que se manterá por 18 muitos anos. (CARVALHO, 1986). Deve assinalar-se que este movimento de construção de uma peda- gogia de base científica ultrapassava as fronteiras da Europa, podendo assinalar-se a sua presença na América Latina (FRANCO, 2003) e do Norte, ainda que com várias origens, ritmos e particularidades culturais, mas sempre com a preocupação de dar resposta rigorosa e eficaz à evidente incapacidade de a pedagogia clássica responder às novas necessidades (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2002; PLANCHARD, 1982) − necessidades essas que tam- bém passavam, dentro do espírito positivista, por pôr cobro às crendices e superstições populares. Como disse Richard (1911, p. XII) “Falando propria- mente, estas tentativas não procedem do espírito científico, mas mais de uma fé sincera e ardente no valor absoluto da pessoa humana.” Referindo-nos apenas aos Estados Unidos (LAGEMANN, 1997) recor- demos que movimento começou com autores como Thorndike (1874-1949), da Universidade da Colúmbia, e Bobbitt (1876-956), da Universidade de Chicago. O primeiro, na sua Educational Psychology (1903) procurou aplicar à Educação os métodos das ciências exactas e rejeitar “as opiniões espe- culativas”. O segundo, com a sua obra The curriculum (1918), ainda hoje Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo uma referência, teve um papel de relevo na teoria do currículo, propondo estudos empíricos em ordem à sua determinação científica e aplicação nas escolas, a partir da análise ocupacional e dos papéis exercidos pelos adultos. A sua acção estendeu-se também à área da administração escolar; propondo Bobbit, neste domínio, para as escolas, o mesmo tipo de “administração cien- tífica” que, a partir de Taylor, se vinha aplicando na indústria. Mas também houve opositores a todo este frenesim experimentalista, sobretudo quando pretendia aplicar directamente à educação as leis formula- das pela psicologia experimental. A observação, como metodologia de estudo em Ciência(s) da Educação e nas Ciências Humanas, era utilizada segundo rígidas regras (segundo o paradigma positivista) que exigiam que o investi- gador adoptasse uma maior neutralidade e distanciamento face às situações observadas. Um dos grandes opositores a esta postura, como não podia dei- xar de ser, foi o próprio filósofo Dilthey (falecido em 1911), para quem [...] esta ciência pedagógica universalista, que a partir da finali- dade da educação dá as regras para a sua realização, abstraindo das diferenças dos povos e dos tempos, é uma ciência retrógrada. Ela pertence ainda ao sistema das ideias com que no século XVII e XVIII pensavam regular, por princípios, toda a vida da sociedade 19 humana. (DILTHEY apud SANTOS, 1973, p. 483). Segundo Dilthey, a Pedagogia não deveria deixar de ser uma reflexão sobre as grandes finalidades educativas da humanidade, em cada época e sociedade, o que não deixa de ser verdade, pelo menos em parte, e como noutros lugares tentámos demonstrar. (BOAVIDA; GARCÍA DE DUJO, 2007). Entre outros opositores conta-se o já referido Gaston Richard (1911) que colocava a questão de sujeitar as crianças a experiências, como se cobaias fossem. Segundo este autor (professor da Universidade de Bourdéus) [...] uma experiência educativa não pode ser de modo algum con- fundida com um estudo experimental da criança ou com um estudo comparado das instituições e dos meios escolares. Por maioria de razão, é impossível estudar experimentalmente os resultados de uma iniciativa pedagógica. Não podemos fazer experiências nas crianças como nos pombos ou nas cobaias. Nenhum governo, nenhuma Igreja, nenhuma associação, poderá ter a ideia de sub- meter dois grupos de crianças a métodos de instrução opostos com Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo o objectivo de demonstrar a excelência de um e a acção corruptora do outro. (RICHARD, 1911, p. XIII). E, curiosamente, o mesmo autor acrescenta, reconhecendo a comple- xidade de factores que rodeiam os fenómenos escolares e a impossibilidade da sua redução a um esquema de causalidade linear: “[...] uma experiência escolar está de tal modo ligada às outras manifestações de carácter nacional que seria pouco provável poder prever o seu resultado específico.” (RICHARD, 1911, p. XIII). A invocação destes opositores ilustra as grandes dificuldades de construção da “Ciência da Educação”, e chama a atenção para a tensão per- manente entre a necessidade de “pensar” a educação e de a “praticar”, entre o método experimental e o especulativo. (COLOM; RINCÓN, 2004). B) Escola Nova e autonomização da Pedagogia Como diz ainda Correia (1996, p. 18), “[...] a Pedagogia Experimental distingue-se do Movimento da Escola Nova, não tanto pela ênfase acrescida que ela atribui à ‘objectividade’ e à ‘cientificidade’ [...].” 20 Mas pelo facto desta objectividade e cientificidade se sustentarem em pro- jectos de racionalização educativa diferentes. “A Pedagogia Experimental estrutura-se na busca de uma normatividade e tecnicidade fundamentadoras de tecnologias educativas, o Movimento da Escola Nova, por sua vez, atribui uma ênfase acrescida a uma racionalidade prática apoiada na figura do edu- cador informado”. Acima de tudo, no caso da Escola Nova, vingava a ideia de agir para transformar e fazer evoluir a educação segundo as leis do desen- volvimento natural e social e, desse modo, emancipar o educando. Foi assim com Montessori e com Dewey. A autonomização da Pedagogia em relação à Psicologia, não era nem defendida nem tentada senão por raras excepções. Um dos poucos exem- plos talvez se possa encontrar na Pedagogia Científica (1909) de Montessori (1870–1952). Segundo esta pedagoga, a Pedagogia não é uma questão de aplicação dos conhecimentos da Psicologia à Educação, nem pode ter por base o estudo e a medida dos indivíduos a educar; ela implica muito mais do que isso, é uma acção permanente a realizar em diversas dimensões (muito Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo essencialmente na construção de ambientes sociais e educativos propícios) em ordem à transformação dos comportamentos e das mentalidades. Recorde-se o seu empenho na Educação para a Paz testemunhável num conjunto de confe- rências nesse sentido (MONTESSORI, s.d.), ultrapassando, portanto, em muito, as informações que a Psicologia pode fornecer à actividade educativa. (JARES, 2002). John Dewey (1859-1952) deixará, em todo o mundo, marcas indeléveis no pensamento pedagógico da primeira metade do século XX, preco- nizando uma pedagogia ligada à vida e aos interesses da criança, integrada no seu próprio desenvolvimento, e em que a escola, em lugar de preparar para a Democracia, seja ela um espaço vivo de Democracia. Segundo Dewey (2004), a escola devia aproximar-se o mais possível das condições concretas em que as aprendizagens se fazem e as competências se desenvolvem, sob pena de se afastar irremediavelmente da sociedade em que se integra e das suas necessidades. Em Portugal, esta linha de cariz mais sociológico do que experimen- talista, é representada por autores como Adolfo Lima que, na sua “Pedagogia Sociológica” (1936, p. 113), define Pedagogia como “[...] a ciência aplicada que, baseando-se no estudo sistemático da natureza da criança (Pedologia), 21 estabelece um sistema de leis e de princípios fundamentais em que deve basear-se a Educação do ser humano (Sociologia).” (CANDEIAS; NÓVOA; FIGUEIRA, 1995). Para António Sérgio (1918), a educação deveria responder às necessidades essenciais do indivíduo, permitindo [...] desenvolver o humano em cada espírito, emancipar os indivíduos […] dar à juventude a capacidade de um contínuo movimento, a iniciativa intelectual»; mas tudo isso em ordem ao progresso social, colectivo, que habilitasse os Portugueses «para uma vida mais humana, mais progressiva, mais fecunda. (SÉRGIO, 1918, p. 9). A escola era a verdadeira mola de transformação da sociedade, “[...] é a escola trabalhando, e não na praça pública a barricada, quem pode vir a fundar a verdadeira democracia.” (SÉRGIO, 1915, p. 255). Nesse sentido propunha uma radical transformação da escola, do ensino e da política da investigação. (FERNANDES, 1979). Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo A extrema individualização a que se deveria chegar para cumprir o programa da Escola Nova (respeitar as pessoas e dar a cada um a sua oportunidade) criava, contudo, problemas na organização escolar, com conse- quências no plano das práticas educativas e do sucesso das mesmas e a que não se soube dar a resposta devida. Como escreve Gilbert (1983, p. 118), o sistema “[...] cristaliza divisões que talvez sejam menos intelectuais do que sócio-culturais e, consagrando a ideologia providencialista do dom, contribui para manter a sociedade hierárquica que queria abolir.” Por outro lado, é necessário recordar que se o movimento da Escola Nova vai radicar nas concepções românticas de feição naturalista (as leis da natureza, a sua harmonia e perfeição), e assenta, por outro lado, nas condi- ções de informação científica que, sobretudo a Psicologia e a Biologia, iam proporcionando, não pode deixar de ser visto à luz das necessidades sociais e económicas que a industrialização tinha provocado. Assim se compreende que defenda uma educação realista contra a educação formalista anterior, implicando, portanto, as correlativas valorizações da iniciativa individual, da capacidade de decisão, do sentido crítico, da criatividade e da liberdade de movimentos que uma sociedade dinâmica produz e exige, e de que a socie- 22 dade americana e o pragmatismo foram, respectivamente, o modelo vivo e a fundamentação teórica. Em síntese, podemos dizer que as duas tendências que vemos cruza- rem-se neste período mostram bem a complexidade do fenómeno educativo. Trata-se de uma realidade que não se compadece com simplificações, coloca problemas de toda a ordem nos mais diversos domínios e exige respostas muito variadas no plano da reflexão e da prática. E não pode deixar, por isso, de nos surpreender pela demonstração do carácter verdadeiramente anti- nómico do conceito de educação (QUINTANA CABANAS, 2002; COLOM CAÑELLAS, 2007) que neste período se veio a desenvolver. Tudo aponta para a necessidade de um novo tipo de racionalidade que não se compadeça com simplificações e esquemas redutores; para a necessidade de uma racio- nalidade complexa que tenha em conta os maior números de factores e de objectivos para a educação, “[...]ao mesmo tempo que os consiga articular no sentido duma visão minimamente coerente.” (BOAVIDA; AMADO, 2006, p. 187). É esse, em grande parte, o grande desafio que se vai colocar ao período seguinte. Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo 3– O período da autonomia e da institucionalização académica Aos grandes movimentos de renovação pedagógica dos finais do século XIX e primeiro quartel do século XX, seguiu-se um extraordinário declínio, em grande parte devido a razões ideológicas e políticas que haviam de fazer eclodir a 2ª Grande Guerra. Por outro lado, os nefastos efeitos desta conflagra- ção mundial, imediatos e a longo prazo, vieram a fazer-se sentir, entre muitos outros campos, nos domínios da educação e do pensamento pedagógico. Em Portugal acresce a tudo isso a acção do Estado Novo que inau- gurou todo um longo período de quarenta anos de “invisibilidade” e de estagnação das Ciências Humanas e, mormente, das Ciências da Educação; de facto [...] as ditaduras opõem-se ao progresso do conhecimento em geral e ao das Ciências Humanas em particular. Não há investiga- ção, avanço no domínio científico, sem discussão, troca de ideias, imaginação sem entraves, elaboração livre de modelos, etc. o que supõe necessariamente liberdade de pensamento, de trabalho e de opinião − tudo o que ditadura reprime, por princípio [...]. (GIL, 2005, p. 36). 23 No campo das Ciências da Educação, não só se paralisou toda a investigação que vinha detrás, como se fez até esquecer a importância e a relevância do pensamento pedagógico produzido em Portugal, e no Mundo Ocidental, desde os fins do séc. XIX −, e na linha de estudos pedagógicos que vinham do século XVI − pensamento que, como já dissemos, importa estudar e retomar em muitos aspectos. (ANDRADE, 1982). Foi preciso esperar pelos anos 70 para que se desse o renascimento “em força” de uma “pedagogia científica”, que teve como contexto, um forte crescimento dos sistemas educativos e de formação. (RUAN-BORBALAN, 2003; ESTRELA, 2007). Em grande medida a investigação educativa desta época procurava fundamentar-se na lógica do paradigma positivista, o que, segundo Nóvoa (1991, p. 27), traduzia uma preocupação de “legitimação académica” dos diversos grupos de especialistas em Ciências da Educação. São dessa época, por exemplo, muitos estudos (FLANDERS, 1970; BENNET, 1976; KOUNIN, 1977; GAGE, 1963, 1978) centrados sobre a relação entre competências, estilos e métodos de ensino, e gestão da aula por parte Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo do professor (o “processo”) e o comportamento/desempenho dos alunos (o “produto”). Contudo, se podemos considerar que esta época marca o apogeu da perspectiva positivista (behaviorista) na investigação educacional, podemos afirmar também que se inicia aqui até aos nossos dias, e internacionalmente, se não a sua substituição, pelo menos a sua coexistência com a investigação de carácter fenomenológico-interpretativo. Segundo Úrsula Casanova e David Berliner (1997), a eleição de Kennedy, as lutas pelos direitos civis das minorias étnicas, a guerra do Vietname, constituem os traços principais da contextualiza- ção política e social das novas exigências na investigação em ciências sociais. Os métodos de estudo tradicionais, quantitativos, não se mostravam capazes de responder aos novos problemas, como os da compreensão das “desvanta- gens” das etnias minoritárias, etnias e minorias essas que já não era necessário ir ao estrangeiro investigar, mas que se encontravam no próprio país. Trata-se de uma época representada pela obra de autores de grande e continuada influência (invoque-se, como exemplo, as obras dos america- nos Philippe Jackson, 1968, Ogbu, 1974, e dos ingleses David Hargreaves, 1972, Martin Hammersley, 1976, Peter Woods, 1979,1980, Sara Delemont, 24 1984, 1987), inspirada, em boa medida, no trabalho realizado pela Escola de Chicago na primeira metade do século XX6. Abriram-se, com efeito, de modo progressivo, as portas para outras fundamentações (do interaccionismo ao construtivismo, passando pela fenomenologia e etnometodologia) e a outros paradigmas pós-positivistas – o paradigma mediacional, o paradigma eco- lógico etc. – e pós-modernos-sócio-crítico, colaborativo, etc. (estes últimos, a partir dos anos 90 até aos nosso dias. Confiram-se, a este propósito, Estrela, 2007, Denzin; Lincoln, 2003. A evolução iniciada nos anos 70 tem-se traduzido, também, na pro- gressiva perda de influência da Psicologia, por um lado, a favor da Sociologia e dos contributos de muitas outras áreas disciplinares, como a Antropologia, a Economia e a História; por outro lado, a favor do aparecimento de disciplinas novas, especificamente viradas para determinadas problemáticas do âmbito educativo: Educação Comparada, Políticas Educativas, Teoria do Currículo, Relação Educativa e Pedagógica, Educação Social, Teoria e Modelos de Formação de Professores, Administração e Gestão Educacional, etc. Estrela (2007, p. 18) considera “[...] este desejo afirmado de autonomia em relação ao imperialismo das ciências fundamentais como um dos traços relevantes dos Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo anos 60/70. Embora se trate de uma autonomia mais desejada do que efec- tivamente conseguida [...].” A) A institucionalização universitária É o período da abertura de cursos em Ciências da Educação em universidades europeias e americanas. Pode considerar-se que estamos diante de uma época caracterizável por um novo impulso da investigação no campo educativo, realizada na perspectiva das mais diversas ciências humanas, e diferentemente dos períodos anteriores (AVANZINI, 1976), enquadrada de forma persistente e sistemática pelas instituições universitárias de pesquisa e de ensino; mas é também o período em que a formação em Ciências da Educação se abre a um público que deixando de estar exclusivamente desti- nado à docência procura novas profissionalidades no sector educativo, que se estende muito para lá da escola. Uma das grandes consequências desta abertura é o surgimento de novas problemáticas (não só teóricas, mas também relativas à delimitação, nem sempre pacífica, dos territórios disciplinares e profissionais), que exi- gem um esforço de clarificação e de construção de saberes especializados. 25 Pode dizer-se que, para além de algum peso das tradições locais e nacionais (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2002), foi a dialéctica entre, por um lado, as exigências dos campos profissionais e das políticas educativas, e, por outro, as ofertas de formação, que levou à diferenciação entre as instituições forma- doras, no que respeita aos objectivos e à estrutura curricular dos seus cursos. Atendendo à cronologia da criação das Faculdade de Ciências da Educação verifica-se que elas começam por surgir entre 1965 e 1968 no Quebec (Universidades de Laval, Otava, Montreal), agrupando-se os seus professores em departamentos de administração educacional, fundamentos de Educação, Educação Comparada, etc.7. Em França, “As Ciências da Educação” (agora já no plural) entraram oficialmente nas universidades com a criação, em 1967, de uma Licenciatura em Bourdéus, com Jean Chateau, em Caen, com Mialaret, e em Paris/Sorbonne, com Maurice Debesse. Na Bélgica o primeiro curso surge em Louvaina, no ano de 1969. Há aqui vários aspectos importantes a assinalar; um deles tem a ver com a própria designação. Como diz Mialaret (1999, p. 9), “[...] a escolha da expressão ‘Ciências da Educação’ não consiste em dar roupa nova a uma Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo velha prática; não é nem o resultado de uma moda, nem a expressão de uma pretensão vã por parte dos docentes desta área; trata-se, ao contrário, de qualquer coisa de mais profundo e que corresponde a uma nova realidade [...]” − realidade essa que acompanha a crescente investigação em Educação realizada no quadro das mais diversas disciplinas, criando a necessidade de um campo autónomo e de um agrupamento disciplinar e interdisciplinar focando o mesmo objecto. Para Avanzini (1995, p. 6), esta designação, adoptada à falta de melhor e contra o recurso a neologismos difíceis de aceitar (“antropogogia”, “educologia”), “[...] a passagem ao plural traduz uma mutação epistemológica bem vinda, porque reconhece que o estudo das práticas educativas releva necessariamente de muitas abordagens que contribuem, cada uma de per se, para o conhecimento dessas práticas sob diversos ângulos, e sem que nenhuma chegue a esgotar a análise e a dar conta da sua complexidade.” Segundo Plaisance e Vergnaud, [...] nesta nova designação manifesta-se o cuidado de afirmar não somente uma abordagem científica da Educação, mas também o alargamento da noção de pedagogia: alargamento em relação 26 a um público de adultos (tendo em conta a pouca propriedade de uma expressão como ‘pedagogia dos adultos’), alargamento para além dos problemas da didáctica ou da prática educativa. (PLAISANCE; VERGNAUD, 1993, p. 13). Há, portanto, nesta designação, o reflexo da multidisciplinaridade destas ciências ao mesmo tempo que uma polarização em torno do carácter científico da investigação em Educação. Carácter que exige não só uma con- cepção aberta de ciência como, também, o alargamento do próprio conceito de Educação, impondo novos conteúdos, novas metodologias de investigação e formulação, e novos objectivos para os estudos nesta área (ESTRELA, 2007); impondo, ainda, a ideia da impossibilidade de construção de uma ciência unificada neste domínio. Colom Cañellas (2007, p. 49) a este propósito diz que: “[...] esta mudança de designação permitiu transformações metodoló- gicas, pois a reflexão conceptual ou de experimentação, como métodos da Pedagogia, deram lugar a um tratamento plurimetodológico das Ciências da Educação, originários da multiplicidade de métodos e de enfoques próprios das demais Ciências Sociais.” Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo Por outro lado, há que ter em conta o surgimento, pela via da insti- tucionalização das Ciências da Educação, nas Universidades, de um novo processo de afirmação destas ciências, um processo de dimensão social e eco- nómica. Como diz Debeauvais (1982, p. 39): “[...] uma disciplina define-se também pelo grupo de especialistas que se reclamam dela e são reconhecidos sob o plano moral e sob o plano material pelas instituições universitárias e pela sociedade que financia essas universidades.” Albano Estrela (1999, p. 10), por seu lado, afirma que o suporte institucional conferido pelas Universidades, está na base da verdadeira explosão de investigação que se tem realizado no domínio da Educação, independentemente das polémicas epistemológicas e das resistências e pruridos dos que “[...] têm manifestado alguma relutância a abrir-se a áreas e a saberes que originam partilha de financiamentos e de poderes e que poderão vir a pôr em causa – directa ou indirectamente − algu- mas das suas práticas.” Em Portugal, com efeito, só a partir da queda do regime do Estado Novo, em Abril de 1974, se verifica o renascimento das Ciências Humanas e, no caso vertente, das Ciências da Educação8. Pode dizer-se que uma das primeiras, se não a primeira das manifestações das Ciências da Educação, se realizou em 1974, no antigo Instituto Nacional de Educação Física (INEF, hoje 27 Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade Técnica de Lisboa), a partir de um Seminário Internacional em que a problemática era a observação de classes e a formação de professores. Trata-se de um tempo em que, como disse Albano Estrela (1999), podemos referir-nos às Ciências da Educação, como “Ciências à revelia”, já que não havia especialistas em Ciências da Educação nos lugares de decisão e, também, porque todos os decretos destina- dos a enquadrar legalmente a criação de Faculdades ou Cursos de Pedagogia eram revogados. Esta resistência, mesmo depois do 25 de Abril, parece mostrar o receio que o poder político tem de uma reflexão científica e fundamentada no âmbito da Educação; temendo talvez que assim seja reduzida a sua área de inter- venção, ou diminuída a legitimidade do seu poder decisório, frequentemente dominado pela ideologia e de acordo com opções políticas. Ou temendo até que a reflexão e a investigação transformem a Educação num campo de reivin- dicação de melhores condições de ensino, ou de professores mais preparados, ou (quem sabe?) de uma Educação menos repetitiva e conservadora e mais moderna, exigente e interveniente em termos sociais e culturais. Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo Em 1980 são criadas, finalmente, as Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, em Lisboa, Porto e Coimbra; mas só em 1984, Bártolo Paiva Campos, representando a Universidade do Porto, Albano Estrela, repre- sentando a Universidade de Lisboa, e Joaquim Ferreira Gomes, da Universidade de Coimbra, apresentaram propostas de Licenciatura em Ciências da Educação. No Porto o curso inicia-se no ano lectivo de 1987/88, ao passo que em Lisboa e Coimbra teve início um ano depois, 1988/1989. O pretexto e a motivação política para a sua criação tem o seu suporte na publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) pela Assembleia da República, pre- cisamente em 1987, Lei que, além de muito mais, reconhece que “o espaço escolar é um espaço educativo holístico, por essa razão espaço partilhado por figuras profissionais que não circunscrevem aí a sua a sua pertinência somente como docentes.” (ROCHA; NOGUEIRA, 2007; LOPES; COELHO; PEREIRA; FERREIRA; LEAL; LEITE, 2007). A ligação privilegiada (até porque institucional) destes três cursos com a Psicologia não deixou de ser fonte de algumas ambiguidades e equívocos na afirmação da especificidade das Ciências da Educação. Contudo, a gestão dessa «dependência» também se pode dizer que tem sido diferente consoante 28 as instituições, tornando os curricula dos respectivos cursos bastante diferencia- dos e dando a cada Faculdade uma identidade própria que também contribui para a riqueza deste domínio do saber. De então para cá novos cursos surgiram em Universidades públicas. Um destaque deve ser feito à criação da Licenciatura “em Educação” no Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho (IEP), com início no ano lectivo de 1993/1994; mais recentemente, já a partir de 2000, foram criados cursos de licenciatura em Ciências da Educação, nas Universidades de Évora, do Algarve, da Madeira, da Beira Interior e dos Açores (neste caso, trata-se de um segundo ciclo em Educação). Também as Universidades priva- das (Universidade Católica, Universidade Lusófona) têm feito investimentos na formação “inicial” nesta área. A reestruturação dos cursos em concordância com o processo de Bolonha, será, certamente, a partir de agora em Portugal e na Europa, um marcante e provocante ponto de viragem na formação, na investigação e na afirmação social das Ciências da Educação. Como diz José Alberto Correia (1996, p. 21), as licenciaturas “[...] potenciam a criação de um espaço legítimo e potencialmente crítico e eman- cipatório [...]”; mas, como também diz Albano Estrela (1999, p. 12), “[...] só Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo em finais dos anos 80, inícios de 90, é que se começaram a fazer sentir, de modo sistemático, os resultados da investigação, nas nossas universidades.” Diz ainda o mesmo autor que: [...] os mestrados, os doutoramentos em Ciências da Educação rea- lizados nas Faculdades de Psicologia e de Ciências da Educação, criadas em 1980, e nas áreas ou Departamentos de Educação das Universidades (e, aqui será de sublinhar o papel pioneiro assu- mido pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa), […] constituíram-se em pulmão de um corpo científico próprio, pelo qual a investigação começou a respirar normalmente. (ESTRELA, 1999, p. 12). Na afirmação deste corpo científico tem vindo progressivamente a ser relevante a existência de investigações em domínios que escapam à habitual repartição dos saberes entre Sociologia e Psicologia, e que se afirmam especí- ficos de uma área própria e autónoma, Pedagogia ou Ciências da Educação. A Formação dos Professores e dos Educadores, a par da investiga- ção, tem-se mantido como preocupação de algumas instituições universitárias, tais como o IEP do Minho e os Departamentos de Ciências da Educação de diversas Faculdades e Universidades, bem como, do IEC (Instituto de Estudos 29 da Criança, também da Universidade do Minho (IEC), a que se deve acrescen- tar a acção das ESES − Escolas Superiores de Educação (Ensino Politécnico). Contudo, as Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação têm deixado escapar de si mesmas a formação inicial dos professores e de educadores, restringindo-se à formação de Técnicos Superiores de Educação, quando na realidade os docentes são, ainda, o grande grupo de profissionais que poderão beneficiar (e participar) de muita da investigação que esta família de ciências vai produzindo. Mas este afastamento é também prejudicial à inves- tigação naquele domínio, na medida em que corre o risco de se afastar das preocupações e dos problemas que aí têm lugar, aprofundando o fosso entre a teoria e a prática − um fosso que, afinal, se quer ver colmatado quer no domí- nio da investigação quer no domínio da actividade docente. B) As Associações, a investigação e a imagem das Ciências da Educação As Associações de investigadores e de diplomados em Ciências da Educação têm exercido em todo o mundo um importante papel no Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo desenvolvimento e disseminação da investigação, por um lado, e na defesa dos interesses “corporativos” dos profissionais diplomados nesta área, por outro. Exemplificando com as que se centram nos objectivos de investigação, podemos invocar associações internacionais de grande prestígio, tais como: a American Educational Research Association (AERA), fundada já em 1916, hoje com mais de 25000 membros e uma das mais prestigiadas em todo o mundo; a American Educational Studies Association (AESA), fundada nos EU, em1968; a Association Francophone Internationale de Recherche Scientifique en Education (AFIRSE), com sede em França, fundada em 1990, com secções em diversos países, como em Portugal e no Brasil; a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), fundada no Brasil em 1976, e vocacionada para o desenvolvimento do ensino de pós-graduado e da pesquisa na área da Educação. Em Portugal este movimento associativo também se tem feito sentir, devendo ser invocada a acção da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (S.P.C.E) no domínio da investigação, e a recente criação da Associação Nacional dos Licenciados em Ciências da Educação (ANALCE ), virada para a defesa de âmbito profissional dos diplomados nesta área. 30 Pode afirmar-se que 1991, ano da criação da S.P.C.E, se tornou, por isso mesmo, um ano de referência. O surgimento e as iniciativas desta associa- ção deram azo a muitas mudanças e consequências importantes no campo das Ciências da Educação, tais como as assinaladas por Albano Estrela (1999): maior vitalidade da investigação, não se limitando à educação escolar, mas estendendo-se à formação profissional, à formação de adultos e à educação comunitária e social; expansão e diversificação regional dos centros de ensino superior em que se pratica a docência e a pesquisa no domínio educacional; constituição de uma comunidade de investigadores, docentes e outros profissio- nais ligados à Educação e em interacção mediada por diversas publicações e encontros. As Ciências da Educação na actualidade revelam um forte dinamismo na investigação das diversas problemáticas que a Educação vai colocando. Problemáticas essas que, como em todas as outras Ciências Humanas e Sociais, evoluem ao longo do tempo. De entre os sinais de todo este dina- mismo, em Portugal, podem considerar-se: Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo A emergência recente dos diversos pólos de investigação e de ensino já referidos. – As múltiplas iniciativas destinadas a congregar especialistas e a divulgar conhecimento produzido nas mais diversas áreas das Ciências da Educação; salientamos, pelo seu impacto traduzido no número de participantes e de comunicações apresentadas, a iniciativa anual da Secção Portuguesa da AFIRSE, que em Fevereiro de 2008 concretiza já o seu XVI Colóquio; na mesma linha, devem mencionar-se outras reuniões científicas, como os Congressos da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (o 9º em 2007), os numerosos Colóquios Internacionais promovidos pelo Centro de Psicopedagogia da Universidade de Coimbra, os Congressos Luso-Brasileiros de História da Educação, e muitos outros. As Actas e outras publicações surgidas a partir destes encontros constituem uma fonte importante para o estudo do estado da arte e do impac- to da investigação em Educação no nosso país. – Um lugar de destaque, no quadro de toda esta dinâmica, deve ser dado às diversas publicações periódicas9, que, apesar das muitas 31 crises, sobrevivem (com raras excepções) e levam a um público maior o que de melhor se tem produzido nesta área. Conclusão No final de um esboço histórico que pretendeu traçar, em linhas gerais, o percurso das Ciências da Educação, embora com um olhar de síntese e reali- zado a partir de Portugal, pode concluir-se que esse percurso se fez em estreita relação com as diversas “crises” do pensamento científico e que levaram à necessidade e correlativa construção de novos paradigmas. Elas acompanha- ram também a evolução do pensamento sobre a Educação (do que ela é e do que deve ser) e, mais do que isso, não deixaram de interagir com os diversos discursos filosóficos, científicos e ideológicos que se foram produzindo em torno do próprio conceito de Humano, onde, paulatina mas seguramente, passaram a caber noções como subjectividade, identidade, autonomia, direi- tos individuais, democracia, e tantos outras. Elas estiveram presentes, de forma Revista Educação em Questão, Natal, v. 32, n. 18, p. 7-39, maio/ago. 2008 Artigo mais ou menos discreta, lá onde os políticos traçaram linhas de rumo para as diversas e complexas vertentes dos sistemas educativos. Elas estiveram atentas e, por vezes, apoiaram as práticas educativas nos mais diversos domínios em que essas práticas adquirem expressão. Nesse sentido, pode dizer-se que na história das Ciências da Educação, e mais concretamente na história das diversas disciplinas desta família de ciências, deparamos com a construção de um património de conhe- cimentos estritamente associados aos diferentes planos em que a própria Educação pode ser perspectivada: filosófico, científico e praxeológico. E esta conclusão só por si poderia levar-nos a muitos outros questionamentos e rumos de desenvolvimento no quadro da mesma preocupação pela história destas ciências (por exemplo, o predomínio de determinas problemáticas na inves- tigação consoante as épocas, etc.); optámos por um, aquele que, do nosso ponto de vista, mais directamente responde a uma preocupação pela identi- dade (social e histórica) e pela fundamentação epistemológica das Ciências da Educação. 32 Notas 1 Uma designação proposta por Nanine Charbonnel (1988) e retomada por Nóvoa (1991, 1998) e Ramos do Ó (2003). 2 Artigos publicados no Nouveau Dictionnarie de Pédagogie, dirigido por Fernand Buisson. As nossas referências a estes artigos far-se-ão com base na tradução portuguesa de 1984, em Sociologia, educação e moral. Porto: RES. 3 Trata-se da transcrição do artigo do autor, primeiramente publicado na célebre Revista de Educação e Ensino (v. 2, 1887, p. 155, 1887), intitulado “A necessidade de preparação peda- gógica no professorado português.” 4 Segundo Roger Gilbert (1983, p. 93) um inquérito feito em Berlim, em 1870, sobre “[...] o conteúdo das representações mentais das crianças de Berlim, ao entrarem para a escola [...]” é o primeiro em data dos estudos psicopedagógicos, na linha do que há-de vir a ser a Escola Nova. Seguiram-se outros como: Credo pedagogique, de J. Dewey (1897), La fatigue intelec- tuelle, de Binet (1898); Talks to teachers, de W. James (1899); Educational psychology, de Thorndike (1913), e muitas mais. Refiram-se também revistas científicas como: Pedagogical semi- nary, (1891); Actualités psychologiques et pédagogiques (1906); L’Ère nouvelle (1922), etc. 5 João de Barros (1920), O problema educativo português. Lisboa. António Aurélio da Costa Ferreira (s/d). 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In: Sciences Humaines (n. 142, octobre, 2003). 8 Ressalve-se, porém, a criação, ainda nos anos 60, do Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Gulbenkian. 9 Sem pretendermos ser exaustivos, registamos: Revista Portuguesa de Pedagogia (da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, criada em 1960, e desde então publicada regularmente); Revista Portuguesa de Educação (do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho), Revista de Educação (Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa); Inovação (I. E. E. suspensa), Revista da Universidade de Aveiro – Série: Ciências da Educação; Educação, Sociedade e Culturas (Ed. Afrontamento e Universidade do Porto). Psicologia, Educação e Cultura (Colégio dos Carvalhos, Porto); Revista Lusófona de Educação (Revista da Universidade Lusófona); Investigar em Educação (Revista da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação). 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