IF's: Expressão Particular das Experiências Políticas da Classe Trabalhadora PDF
Document Details

Uploaded by AudibleOnyx3474
Universidade Federal do Maranhão
João Carlos Cichaczewski
Tags
Summary
Este artigo discute os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) como resultado das experiências de luta da classe trabalhadora brasileira a partir dos anos 1970. O texto explora como a classe trabalhadora construiu instrumentos de resistência, culminando em propostas de educação profissional que se originaram nos debates sindicais dos anos 1980.
Full Transcript
Artigos IF's: UMA EXPRESSÃO PARTICULAR DAS EXPERIÊNCIAS POLÍTICAS DA CLASSE TRABALHADORA BRASILEIRA NO SÉCULO XX IFs: UNA EXPRESIÓN PARTICULAR DE LAS EXPERIENCIAS POLÍTICAS DE LA CLASE TRABAJADORA BRASILEÑA EN EL SIGLO XX IFs: A PA...
Artigos IF's: UMA EXPRESSÃO PARTICULAR DAS EXPERIÊNCIAS POLÍTICAS DA CLASSE TRABALHADORA BRASILEIRA NO SÉCULO XX IFs: UNA EXPRESIÓN PARTICULAR DE LAS EXPERIENCIAS POLÍTICAS DE LA CLASE TRABAJADORA BRASILEÑA EN EL SIGLO XX IFs: A PARTICULAR EXPRESSION OF THE POLITICAL EXPERIENCES OF THE BRAZILIAN WORKING CLASS IN THE XX CENTURY DOI: https://doi.org/10.9771/gmed.v15i3.54513 João Carlos Cichaczewski1 Cloves Alexandre de Castro2 Resumo: Este artigo versa sobre os Institutos Federais de Educação, Ciências e Tecnologia (IF’s) como produto das experiências de luta da classe trabalhadora brasileira a partir da sua reorganização, nos idos dos anos da década de 1970. O acúmulo constituído pela classe trabalhadora naquele processo resultou em instrumentos de luta e resistência contra as estruturas responsáveis pelas precárias condições de vida da população. Essas ferramentas de luta e resistência foram organizadas e transformadas em instituições de representação na dimensão em que novos sujeitos sociais emergiram na cena como atores políticos. Ao chegar ao governo, por meio de uma coalizão política de centro, constroem uma proposta de educação profissional cuja origem encontra-se nos anais do debate sindical dos anos de 1980. Palavras-chave: Capitalismo. Estado. Movimentos Sociais. Trabalho. Educação. Resumen: Este trabajo trata de los Institutos Federales de Educación, Ciencia y Tecnología (IF’s) como producto de las experiencias de lucha de la clase trabajadora brasileña a partir de su reorganización, en el tiempo de la década de 1970. El acúmulo constituído por la clase trabajadora en aquel proceso resultó en instrumentos de lucha y resistencia contra las estructuras responsables por las precarias condiciones de vida de la población. Estas herramientas de lucha y resistencia fueron organizadas y transformadas en instituciones de representación en la dimensión en la cual nuevos sujetos sociales emergieron en la escena como actores políticos. Cuando llegaron al gobierno, por medio de una coalición política de centro, construyeron una propuesta de educación profesional cuyo origen se encuentra en los anales del debate sindical de los años de 1980. Palabras clave: Capitalismo. Estado. Movimientos Sociales. Trabajo. Educación. Abstract: This paper deals with the Federal Institutes of Education, Science and Technology (IF’s) as a product of the experiences of the Brazilian working class struggle after its reorganization, in the early 1970s. The accumulation constituted by the working class in that process resulted in instruments of resistance and struggle against the structures responsible for the precarious living conditions of the population. These tools of resistance and struggle were organized and transformed into institutions of representation in the dimension in which new social subjects emerged on the scene as political actors. When they reached the government, through a political coalition of the center, they built a proposal for professional education whose origin lies in the annals of the union debate of the 1980s. Keywords: Capitalism. State. Social Movements. Work. Education. Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 448 Artigos Introdução Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) representaram uma evidente transformação nas políticas públicas de Educação Profissional e Tecnológica (EPT) promovidas pelo Estado brasileiro: de 1909 a 2003 foram instituídas 140 unidades de ensino profissional, de 2003 a 2016 foram abertas 504, totalizando uma rede de 644 escolas (FORNARI, 2017, p.62). Trata-se de um crescimento de quase 500% na oferta de Educação Profissional Tecnológica (EPT). Porém, essa vertiginosa ampliação não é o único aspecto relevante dessa experiência. Houve também um movimento de interiorização. Em 2013, o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que 85% dos campi dos IFs estavam fora das capitais estaduais: 176 campi estavam em municípios com menos de 50.000 habitantes e, destes, 45 estão em municípios com menos de 20.000 habitantes (TCU, 2013, p.09). Um terceiro, e não menos importante, aspecto que contrasta com as políticas de EPT desenvolvidas anteriormente reside nos objetivos que, segundo o MEC à época, essas instituições deveriam alcançar: uma formação cidadã voltada à inclusão e a cultura democrática; e, a contribuição para um desenvolvimento econômico local, regional e soberano (BRASIL, 2008). Entendemos que esses aspectos, que julgamos se tratar de uma ruptura nas políticas educacionais de EPT se comparada às experiências anteriores, só podem ser compreendidos em sua totalidade se retrocedermos um pouco no tempo e observarmos os movimentos anteriores dos sujeitos responsáveis pela sua execução. Para Vázquez (2011) “a essência não se manifesta de maneira direta e imediata em sua aparência, e que a prática cotidiana – longe de mostrá-la de forma transparente – não faz se não ocultá-la” (VÁZQUEZ, 2011, p.32). Dessa forma, o executado nunca é a totalidade daquilo que foi pensado, ao passo que o pensado nunca é um produto de si próprio, mas determinado pelas condições materiais. As duas situações são permeadas de contradições que, se forem subtraídas da análise, limitam a compreensão do objeto ou recaem em um idealismo bizarro (desagregado, caótico). A totalidade dessa questão se expressa justamente na relação estabelecida entre o que se pensa e o que se executa, a partir das determinações e contradições aí presentes. Entendendo a práxis como a atividade humana consciente e objetiva – ou seja, teórica e prática, pensada e executada – compreendemos o processo histórico como o resultado não intencional do conjunto de práxis intencionais de indivíduos ou grupos sociais na sociedade. Ou, nas palavras de Sanchéz Vàzquez: Os atos dos indivíduos concretos como seres conscientes, isto é, suas práxis individuais, integram-se em uma práxis comum que desemboca em um produto ou resultado. Podemos relacionar cada uma dessas práxis com uma intenção original, mas não do mesmo modo a práxis coletiva na qual cada uma dessas atividades individuais se integra. (VÁSQUEZ, 2011, p. 339) Nesse sentido, o presente trabalho inicia pela constatação de um movimento político iniciado no Brasil na década de 1970 e formado por, basicamente, três matrizes políticas distintas. Esse movimento se desenvolve, ganha a dimensão de uma estratégia política e passa a apresentar-se como uma alternativa democrática em suas pautas e popular em suas origens, disputando os sentidos das políticas públicas em geral e as políticas de EPT em particular. Quando alçada ao posto de chefe do poder Executivo, os Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 449 Artigos fundamentos dessa estratégia comparecem em maior ou menor medida nas políticas por ela implementadas, entre essas os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). Constituição de uma alternativa política Ao enquadrar sua investigação na constituição dos movimentos sociais na região da Grande São Paulo na década de 1970, Eder Sader realizou um estudo sobre os movimentos sociais que protagonizaram uma recomposição política da classe trabalhadora brasileira entre os anos de 1970 e 1980. O autor constatou uma região em processo vertiginoso de crescimento, iniciado antes mesmo de 1970: por conta da industrialização, na década de 1950, São Paulo se tornou a “cidade que mais cresce no mundo” (SADER, 1988, p.67). Com o crescimento, veio também a necessidade de modernização da indústria que precisou se realocar em regiões diferentes das antigas “zonas fabris” da capital paulista e, é claro, com as indústrias migravam também seus trabalhadores: “as famílias operárias foram seguindo a rota das indústrias, aproveitando as vias de acesso e a montagem dos equipamentos urbanos que se fazia em função delas” (SADER, 1988, p. 68). Tendo como objeto uma população de trabalhadores formada majoritariamente por migrantes, o grande fluxo migratório foi um aspecto ao qual o autor deu especial importância: Em 1970, do total da população economicamente ativa apenas 31% não haviam passado pela situação da migração; 34% eram migrantes chegados em São Paulo há menos de 10 anos; e 35%, migrantes chegados a mais tempo. Em 1980, as pessoas que haviam migrado a menos de 10 anos e viviam na Grande São Paulo somavam 3.384.000 pessoas, das quais 1.871.000 vinham de Estados do Sudeste e 993.000 de Estados do Nordeste. (SADER, 1988, p.89) Esses migrantes, ao chegarem na metrópole, buscaram espaços de socialização: família, conterrâneos e vizinhos, constituíram “a base de apoio para a obtenção de emprego, da casa, da documentação, das informações necessárias para a inserção na cidade desconhecida” (SADER, 1988, p.97). Porém, se por um lado o local de moradia representava um ambiente para o merecido descanso da labuta e de encontro com os seus, por outro significava o espaço onde as angústias e problemas tinham a chance de serem compartilhados e, de alguma maneira, tornados coletivos: “a população favelada cresceu em cerca de 30% ao ano na década , e ao seu final era estimada em quase um milhão de pessoas só no município da capital. Mais de três milhões viviam em cortiços.” (SADER, 1988, p.114). No cenário de uma ditadura militar, onde todo tipo de reunião ou tentativa de organização vinda da classe trabalhadora era impetuosamente reprimida, qualquer forma de luta que pretendesse ser travada deveria levar em consideração antes a possibilidade de perseguição por parte das forças de repressão do regime. Porém, em 1974 esse quadro começa a dar sinais de mudanças: “o MDB teve quase 4 vezes a votação da ARENA” no município de São Paulo, resultados eleitorais que, “ao expressarem tão fortemente a existência de uma opinião pública de oposição, abriram um campo de referência e legitimação para comportamentos de rebeldia, resistência, contestação” (SADER, 1988, p.118). Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 450 Artigos O autor aponta ainda para a atuação mais destacada neste terreno do que chama de “três matrizes discursivas” ou “três instituições em crise que abrem espaço para novas elaborações” (SADER, 1988, p. 144): Da Igreja Católica, sofrendo a perda de influência junto ao povo, surgem as comunidades de base. De grupos de esquerda desarticulados por uma derrota política, surge uma busca por “novas formas de integração com os trabalhadores”. Da estrutura sindical esvaziada por falta de função, surge um “novo sindicalismo”. (SADER, 1988, p.144) Nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) – organismos de base da Igreja Católica, onde “os leigos deixariam de ser meros 'fregueses' ou presentes passivos” (SADER, 1988, p.151) –, os encontros periódicos pautados pela própria realidade dos participantes propiciaram um campo fértil para o desenvolvimento de uma cultura organizativa entre aqueles trabalhadores (migrantes e moradores de periferia) que já se encontravam muito próximos, social e geograficamente. Em tempos de alta vigilância, a Igreja apresentou-se como um espaço relativamente seguro para discutir questões como a do “menor abandonado, os conflitos matrimoniais, o custo de vida, as drogas, as eleições” (SADER, 1988, p.159) e outros assuntos mais que fossem da realidade imediata dos participantes. De acordo com os estudos de Eder Sader, boa parte dos movimentos surgidos nos locais de moradia da classe trabalhadora no ABCD paulista nesse período têm origem ou sofreram alguma influência dos processos de organização promovidos pela Igreja Católica. É o caso dos relatos apresentados pelo autor sobre o clube de mães da periferia sul (SADER, 1988, p. 199 a p.225) e do movimento de saúde da periferia leste (SADER, 1988, p.261 a p.277). O primeiro desdobrou-se no Movimento Custo de Vida que, a partir das mulheres organizadas nos clubes de mães, reivindicava o controle sobre o custo de vida, o aumento real de salários e a construção de escolas e creches (SADER, 1988, p.214), chegando inclusive a ter seus militantes mais destacados eleitos para exercer mandatos legislativos a nível estadual e federal em 1978, utilizando-se da legenda do MDB (SADER, 1988, p.224). Já o segundo, conquistou postos de saúde na sua região e ainda o inédito acolhimento, por parte do poder público, de uma reivindicação central do movimento: o controle social exercido através de conselhos de saúde, com representação permanente dos moradores do bairro atendido (SADER, 1988, p.275). Com relação ao “novo sindicalismo”, o autor apresenta o processo de constituição da Oposição Metalúrgica de São Paulo (OMS), que precisava estabelecer-se enquanto força política capaz de pressionar os patrões por conquistas trabalhistas, driblar a repressão do Estado ditatorial e ainda enfrentar a diretoria de seu sindicato, aliada dos patrões e do Estado (SADER, 1988, p.232). Descreve ainda o processo organizativo que alça o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo a um posto de sindicato de massas (SADER, 1988, p.296), dirigindo as principais greves do período que contribuíram decisivamente no desgaste político à ditadura militar e, em consequência disso, para o seu declínio enquanto regime político. Ao descrever o processo ocorrido com a OMS a partir de 1973 – processo esse considerado pelo autor uma “virada” política no sentido de priorizar a inserção em movimentos localizados em cada fábrica, com pautas locais, em detrimento da disputa dos rumos do sindicato como um todo, que se encontrava sob forte repressão e com margens de atuação cada vez mais estreitas –, Sader descreve como se Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 451 Artigos articularam nesse campo a disputa político-institucional, a organização sindical e as lutas nos locais de moradia: Para a compreensão da “virada” ocorrida na história da Oposição Metalúrgica de São Paulo nesses anos, torna-se indispensável a menção a 3 conjuntos de acontecimentos que, naquele momento, expressavam mudanças nas relações sociais e políticas. Em primeiro lugar o início da chamada “descompressão política”, materializada nas eleições de novembro de 1974 e na votação recebida pelo MDB. […] Em segundo lugar as vitoriosas greves de seções – sobretudo ferramentarias – e operações tartaruga nas empresas automobilísticas de São Bernardo, que produzem estímulo a todo movimento operário. Em terceiro lugar a extensão de mobilizações de moradores da periferia – em torno de reivindicações ligadas ao ônibus, escolas, creches e ao custo de vida –, a partir de clubes de mães, comunidades de base, etc. (SADER, 1988, p.237) Em finais da década de 1970, o desenvolvimento desses movimentos, aparentemente dispersos e fragmentados, recebe amplo apoio social e se consolida como uma força de oposição ao regime militar: “nos seus primeiros 50 dias de governo, o general Figueiredo se defrontaria com nada menos que 100 greves” (SADER, 1988, p.306). E mais: “nos bairros de toda Grande São Paulo formavam-se comitês de apoio à greve. Aquelas organizações que expressavam a “sociedade civil” em oposição ao regime militar […] assumiram a luta dos metalúrgicos como sua” (SADER, 1988, p.310). Nesse sentido, as greves na região do ABCD Paulista, apesar de fazerem questão de dar foco à pauta trabalhista e procurarem se afastar do que chamavam de “greve política”, por sua própria existência, já se configurava como um ato de afronta à ditadura e, por isso, recebia apoio de amplos setores da sociedade. Nos diz o autor: “Com a greve de 1980, o movimento realmente extravasou seus objetivos econômicos. Ele enfrentou o regime esboçando uma alternativa dos trabalhadores para a transição em curso” (SADER, 1988, p.310). A respeito das correntes marxistas de esquerda, o autor relata um processo de grande dispersão e fragmentação em vários grupos pequenos, causado principalmente por dois fatores: a repressão estatal e as divergências políticas – essas últimas em especial, diziam respeito ao caráter da sociedade brasileira, o caráter da revolução, o papel das classes nesse processo e os rumos para a construção do partido revolucionário (SADER, 1988, p.173). A influência desses grupos também se deu de forma dispersa e fragmentada, seja atuando diretamente nos espaços de discussão e organização que estavam sendo construídos nos bairros e nos sindicatos (SADER, 1988, p.171), seja por meio de jornais onde apresentavam sua linha política (SADER, 1988, p.176). Da mesma forma, não foram poucos os casos de militantes que se desligaram dessas correntes e passaram a atuar individualmente nos movimentos que irrompiam (SADER, 1988, p.175), transportando até esses a cultura político organizativa que os havia formado enquanto militantes. No conjunto da obra, os movimentos analisados por Eder Sader contribuíram sobremaneira para a formação de um processo muito mais amplo que extravasou os limites das pautas localizadas. Nos diz o autor: Os movimentos sociais foram um dos elementos da transição política ocorrida entre 1978 e 1985. […] Colocaram a reivindicação da democracia referida às esferas da vida social, em que a população trabalhadora está diretamente implicada: nas fábricas, nos sindicatos, nos serviços públicos e nas administrações nos bairros. (SADER. 1988, p.313) Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 452 Artigos Apesar de não aparecer claramente na pauta de nenhum dos movimentos estudados por Sader, a democracia acabou por sobressair-se como a maior conquista destes. Eder Sader localiza esse processo no patamar de condição necessária para a efetivação da transição para o regime democrático: Os movimentos sociais constituídos na década de 70, com as formas de expressão que eles instituíram, passaram a constituir um elemento da vida política do país. Suas promessas, inscritas numa memória coletiva, podem ser reatualizadas. E elas são, mesmo, condição para uma efetiva democracia entre nós. (SADER. 1988, p.315) Dessa forma, assim como as experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo se desdobraram no sentido da promoção da democracia, também as experiências que se seguiram foram pautadas pela questão democrática. Ao interpretarmos o processo estudado por Sader (1988), fica patente que a premência de melhorias na qualidade de vida apresentou à classe trabalhadora do ABCD paulista a necessidade de organização. Tendo perdido seus instrumentos organizativos anteriores à ditadura militar, essa classe então busca constituir novos instrumentos a partir dos locais de moradia e de trabalho. As lutas sociais da década de 1970 desafiaram – mesmo que incondicionalmente – os aparelhos de repressão do regime e constituíram-se, no cenário nacional, como uma qualificada força de contestação, recebendo amplo apoio de setores que se organizavam pela restituição do regime democrático no Brasil. Apesar de a pauta da democracia não estar claramente apresentada em nenhuma das suas reivindicações, nos desdobramentos posteriores desses movimentos ela irá estabelecer-se elemento central das novas formas organizativas adotadas. É o caso da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT): “um partido político, por que os sindicatos e a luta das entidades sociais são insuficientes e incapazes de desenvolver um projeto político e de lutar pela tomada do poder” (DIRCEU, 1986, p.36). Esse processo de reorganização da classe trabalhadora é um dos aspectos que julgamos relevantes para compreender como a pauta democrática ganha força e passa a estabelecer-se como um tema recorrente e norteador dos processos que se seguiram. Uma alternativa democrática e popular A década de 1980 no Brasil se inicia com a organização e mobilização de amplos setores da sociedade brasileira. Não faltavam exemplos de experiências construídas pelo proletariado em nível internacional: União Soviética, China, Iugoslávia, Albânia, Vietnã, Coreia, Cuba, Nicarágua, etc. Todas experiências que apresentavam avanços e limites em suas estratégias. Nesse sentido, a tarefa iminente era observá-las e aprender com elas. Aqui o tema da democracia novamente surge, agora não mais apenas como um antagonismo à ditadura militar, mas também como uma contraposição aos regimes estabelecidos nos países do chamado “socialismo real”. Sobre isso, nos diz Francisco de Oliveira: Há que reconhecer como procedimento estratégico e não apenas tático a necessidade da democracia. Não apenas como “espaço” de expansão, como libertação temporária do sufoco de regimes repressivos, para preparar-se “o assalto do poder”. Sobretudo como cultura política é que a democracia se faz necessária para o movimento operário e o movimento socialista. E não menos importante, como via para a intervenção das classes dominadas no Estado. Pois do que se trata fundamentalmente é dessa intervenção; todas as tentativas anteriores, que faziam da destruição seu leit-motiv, deram no que deram: a Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 453 Artigos construção de outro Estado, que pode vir a ser mais repressivo que o propriamente burguês. (OLIVEIRA, 1986, p.28, grifos originais) Procurando contribuir com a elaboração teórica e prática do partido, Plínio de Arruda Sampaio também desenvolveu reflexões a esse respeito: Pode um processo de reformas na estrutura do capitalismo no contexto de um Estado democrático burguês (e o burguês aí serve para mostrar a limitação do adjetivo democrático) servir ao fortalecimento dos setores populares? Minha resposta é sim, desde que se cumpram quatro condições básicas: - primeira, ligar estreitamente as propostas de reformas econômicas, sociais e políticas às reivindicações e lutas concretas que os setores mais avançados do povo vem travando, de modo a não dissociar propostas e luta política nem diluí-las em fórmulas tecnocráticas que almejam tão- somente a correção de “disfuncionalidades” do sistema vigente; - segunda, não limitar as medidas aos restritos mecanismos de redistribuição da riqueza e da renda manejados exclusivamente pelo aparelho do Estado burguês, mas introduzir nesses mecanismos instâncias de participação popular que assegurem mais ingerência da massa na coisa pública; - terceira, organizar as lutas pelas reformas propostas de modo a obter, simultaneamente, dois resultados: a conquista da reivindicação e a elevação do nível de consciência política e de organização de todos os que dela participarem; - quarta, não descuidar, mesmo no bojo das “lutas reformistas”, da propaganda socialista, mostrando que as reivindicações em pauta, mesmo que atendidas, não solucionarão a questão mais profunda da exploração capitalista, da dominação burguesa, do caráter irracional e predatório da acumulação capitalista, do modo de vida desumano que esse regime impõe às pessoas. (SAMPAIO, 1986, p.120) Nesse sentido ainda, tratando das propostas e do programa político do PT, Marilena Chauí elenca a necessidade de uma “clara distinção entre três redes de sociabilidade ou de socialização: o trabalhador como produtor, o trabalhador como sindicalista e o trabalhador como cidadão” (CHAUÍ, 1986, p.72). Ao discutir a constituição de um sentimento de dignidade entre os trabalhadores Chauí apresenta também sua concepção de democracia e o papel que ela tem a cumprir no movimento operário que se organizava: “Ruptura com a fragmentação alienadora, criação e desenvolvimento de uma realidade comunitária para a liberdade – a koinônia tôn eleuthêron (a comunidade de homens livres). Democracia” (CHAUÍ, 1986, p.73, grifos originais). Ao analisar as críticas dirigidas a essa construção, dividindo-as à esquerda e à direita, Chauí identifica naquelas provenientes desta última uma espécie de restrição democrática: Evidentemente, no caso da direita, a convocatória (e, via de regra a pura e simples provocação) tem alvo preciso. Golpeando o PT, pretende, como sempre pretendeu, impedir e bloquear a cidadania das classes populares. (CHAUÍ, 1986, p.74) Defendendo que “a democracia não pode ser automaticamente deduzida do liberalismo, mas nasce no interior do universo liberal através das lutas sociais e populares pelo alargamento do Estado de Direito e sobretudo pela criação de novos direitos e de garantias novas de liberdade” (CHAUÍ, 1986, p.83), a autora aponta também para a ampliação e o fortalecimento dessas lutas como caminho para enfrentar as restrições impostas, já que “nossos liberais, cientes dos riscos transformadores da democracia, sempre julgaram e julgam natural e necessário tratar a questão social como questão de polícia e não de política” (CHAUÍ, 1986, p.83). Chauí faz uma referência clara à caracterização de Florestan Fernandes sobre o desenvolvimento da sociedade brasileira e aponta a pauta democrática como caminho para a superação dessas Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 454 Artigos particularidades. Ao tratar da constituição da burguesia no Brasil, Fernandes (1976) não observa um conflito aberto com as antigas oligarquias agrárias, diferentemente do que ocorreu nos principais países das economias centrais. Pelo contrário, essa “nova” classe dominante no Brasil carrega consigo a tradição mandonista das oligarquias (por ser produto delas) e tem uma tendência a aliar-se ao capital internacional contra a classe trabalhadora nacional. É a essa questão que Chauí se refere ao tratar do “bloqueio à cidadania das classes populares” sempre pretendida por aquilo que ela chama de “direita”. Sobre a problemática dessa “cidadania negada” pelas elites às classes populares, Emir Sader desenvolveu pertinente reflexão ao apontar como caminho para superação dessa condição a constituição de uma plataforma democrática e anticapitalista a “partir dos problemas que bloqueiam centralmente a extensão dos direitos básicos a toda a cidadania (SADER, 1986, p.168)”. E continua: O objetivo central na luta pela democratização radical da sociedade se confunde com a recuperação do sentido original da democracia – poder do povo. Uma luta que, portanto, tem que conter seus passos a diante e seus retrocessos, na medida em que consegue avançar na construção de um poder alternativo na sociedade, contra a concentração e o monopólio do poder no aparelho burocrático repressivo a que, em última instância, continua a reduzir a instituição de exercício do poder na sociedade capitalista. (SADER, 1986, p.169, grifos originais) Uma concepção democrática e popular de Educação Profissional e Tecnológica – EPT Tendo setores do movimento sindical como uma de suas mais importantes bases de sustentação, o processo que desembocou na fundação do PT, quase que naturalmente, exigia também uma posição sobre a recomposição da organização sindical brasileira no pós-ditadura militar. Nesse sentido, o processo de fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) é liderado praticamente pelos mesmos sujeitos que fundam o PT: “a partir do momento em que se funda a CUT e ela passa a ter praticamente 99% de seu pessoal ligado ou mesmo filiado ao PT, nós passamos a querer que esse relacionamento se tornasse mais fácil, que a compreensão acerca do papel de cada um existisse com mais facilidade” (Luiz Inácio Lula da Silva, apud GADOTTI; PEREIRA, 1989, p.160). Nesse sentido, a CUT configura-se como parte integrante e orgânica do processo histórico de desenvolvimento do projeto político que tem sua expressão mais geral na constituição do PT. Segundo Emir Sader: A CUT, as Pastorais da Terra e do Menor, as Comunidades Eclesiais de Base, as associações populares nos bairros puderam se constituir em um manancial insubstituível de experiências de base, que dá ao PT um selo de identidade com os “de baixo” e que serve como referência social inalienável de seu horizonte político. (SADER, 1986, p.163) A preocupação com a formação profissional de seus filiados e da classe trabalhadora brasileira em geral é um tema recorrente nas formulações da CUT, e aparece logo no congresso de fundação da CUT, em 1983. No artigo 31 das resoluções do Congresso Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT) de agosto, que trata das Secretarias Nacionais e do Instituto Nacional de Formação, fica estabelecido que: “a Direção Nacional organizará um Instituto Nacional de Formação, encarregado de promover em nível nacional a formação sindical, profissional, social e política dos filiados à CUT” (CUT, 1983, p.18). Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 455 Artigos No ano de 1991, já em seu quarto congresso nacional, a entidade realizou uma caracterização da situação da educação brasileira. Assim como Marilena Chauí – e outros autores citados anteriormente – observou uma tendência à produção de restrições à cidadania por parte da elite brasileira, assim também a CUT em seu congresso nacional verificou um sistema educacional voltado à manutenção dessas restrições: Nosso sistema educacional, em lugar de ser instrumento de promoção do desenvolvimento social e econômico da população e também um instrumento de construção da cidadania plena, continua favorecendo a elitização de alguns e a manutenção do sistema de exploração de muitos. (CUT, 1991, p. 33) O diagnóstico aponta ainda para o problema da desigualdade educacional e dos baixos investimentos promovidos pelo Estado brasileiro com relação às políticas públicas em Educação: Outro grave problema da escolarização no Brasil é a sua distribuição desigual pela população, o que está diretamente relacionado à má distribuição de renda do país, que por sua vez é consequência do modelo de desenvolvimento econômico brasileiro, que priorizou o desenvolvimento de alguns setores e abandonou completamente os setores sociais. O setor da educação foi abandonado irresponsavelmente. O Brasil não emprega, hoje, mais de 3,6% do PIB em educação pública, enquanto países desenvolvidos ou mesmo países ainda não economicamente desenvolvidos, mas que conseguiram superar suas deficiências educacionais, empregam cerca do dobro desse valor (Canadá 7,7%, Cuba 7,1%, URSS 7,2%, Japão 5,6%). (CUT, 1991, p.33) No mesmo documento, é ainda possível observar o esforço da central em formular propostas para aquilo que avalia como sendo problemático na área da educação. Nesse sentido, o subitem “a escola que queremos” destaca os pontos principais que deveriam ser considerados em uma formulação sobre a educação que esteja de acordo com a sua perspectiva: Em nossa concepção, a escola pública para o trabalhador deverá ser alegre, competente, séria, democrática e, sobretudo, comprometida com a transformação social, gratuita em todos os níveis e para todos. Deverá vir a ser uma escola mobilizadora, a serviço da comunidade, centro irradiador da cultura popular, capaz de recriá-la permanentemente. […] o fim da educação é a formação da consciência crítica, predominando a ideia de liberdade. (CUT, 1991, p.33) E, na sequência, firma posição sobre o formato de escola que defende, onde novamente é possível observar a recorrente temática da democracia: Uma escola democrática, onde os conselhos de escola, democraticamente eleitos, com poder deliberativo, tenham como tarefa central a elaboração dos planos de educação, com a participação dos trabalhadores. […] Uma escola de tempo integral, que tenha no trabalho seu princípio educativo e que possa superar as dicotomias entre o trabalho manual e intelectual, a teoria e a prática, a formação geral e a formação profissional. (CUT, 1991, p.34) No 5º CONCUT, ocorrido no ano de 1994, a temática da educação ultrapassa os limites da seção específica para o tema e aparece também na seção de “Plano de Lutas”, quando da abordagem sobre ações possíveis para a ampliação dos postos de trabalho no país, no subitem “A CUT na campanha pelo emprego”: “A ação contra o desemprego deve se orientar pelas seguintes diretrizes: […] e) Política de formação profissional adequada às novas exigências do mercado de trabalho e com participação da representação sindical” (CUT, 1994, p.9). No mesmo sentido, ao relatar a possibilidade de retrocessos nas políticas trabalhistas internacionais, a resolução de 1994 indica o ensino técnico e profissional como uma Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 456 Artigos das prioridades elencadas e apresentadas documentalmente à Organização Internacional do Trabalho (OIT): Frente a esses ataques, o grupo dos trabalhadores apresentou um documento intitulado “A OIT à véspera do século XXI”, que assinala a grave crise social vivida no mundo, caracterizada por uma pobreza crescente, e define como prioridades a regulamentação das horas de trabalho, a realização do pleno emprego, a elevação do nível de vida, a garantia de um salário mínimo para todos, a extensão da segurança social, a proteção da vida e da saúde dos trabalhadores, o reconhecimento do princípio da igualdade de remuneração por trabalho igual, o reconhecimento do princípio da liberdade sindical, do direito de negociação coletiva, o estabelecimento de meios de proteção à maternidade e à infância, a proteção dos interesses dos imigrantes e a garantia do ensino técnico e profissional em condições de igualdade e oportunidade. (CUT, 1994, p.39) Para além disso, o mesmo congresso reservou uma seção exclusiva sobre Educação Profissional, onde elenca algumas diretrizes sobre sua concepção a respeito do tema, destacando seu caráter emancipador relacionado a um projeto global. Aqui ressurge a questão da cidadania, apontando agora essa modalidade educacional como meio de alcançá-la e procurando distanciar-se das diretrizes que a concebem como sinônimo de treinamento profissional: A formação profissional é, numa concepção cutista, parte de um projeto global e emancipador. Portanto, deve ser entendida como exercício de uma concepção radical de cidadania. A CUT recusa a concepção de formação profissional como simples adestramento ou como mera garantia de promoção da competitividade dos sistemas produtivos. (CUT, 1994, p.58) O combate à dualidade educacional no sistema educativo brasileiro, também é uma preocupação abordada na resolução do congresso: A formação profissional é patrimônio social e deve ser colocada sob a responsabilidade do trabalhador e estar integrada ao sistema regular de ensino, na luta mais geral por uma escola pública, gratuita, laica e unitária, em contraposição à histórica dualidade escolar do sistema educacional brasileiro. (CUT, 1994, p.58) Três características da forma escolar proposta na resolução têm especial relevância na concepção da central sobre Educação Profissional. Nesse sentido, a escola deve ser democrática, laica e unitária: Democrática no acesso e na permanência da população na sua gestão. Laica, pois não cabe à escola tratar de credos, mas do conhecimento científico. Entretanto, a escola deve respeitar a diversidade étnica, cultural e religiosa do país, especialmente aquelas que foram oprimidas em nosso processo histórico. Unitária de caráter científico, tecnológico e politécnica, tendo o trabalho como princípio educativo, organizador de sua estrutura, seu currículo e seus métodos. Unitária também na organização do Sistema Nacional de Ensino. (CUT, 1994, p.58) Sobre a gestão da política de formação profissional, a central se posiciona ainda na defesa de que esta “deve estar submetida ao controle direto do Estado e que os trabalhadores devem intervir nesse processo, participando, através de suas organizações, da definição, da gestão, do acompanhamento e da avaliação das políticas e dos programas” (CUT, 1994, p.59). Defendendo, além disso, a “formação profissional como parte de um sistema regular de ensino e de políticas públicas que promovam o acesso ao mundo do trabalho” (CUT, 1994, p.59), a CUT também se compromete a “lutar pela constituição de centros públicos de formação profissional devidamente integrados ao sistema nacional de educação, com Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 457 Artigos dotação orçamentária específica e sistema democrático e transparente de gestão e fiscalização” (CUT, 1994, p.60). No ano de 1997, o 6º CONCUT em seu eixo de “Estratégia”, definiu uma “Proposta da CUT para a política industrial, geração de empregos e renda” em que foi citada a importância da formação profissional: A elevação da produtividade industrial deve resultar em benefício social e não em demissão em massa de trabalhadores e crescente precarização e informalização do mercado de trabalho. Para tanto, são essenciais a ampliação dos investimentos em educação, pesquisa científica, tecnologia e formação profissional, e a reconstrução, modernização e expansão da infra-estrutura econômica e social em transportes, energia, telecomunicações, habitação, saúde e saneamento. (CUT, 1997, p.25) No mesmo eixo ainda, ao tratar de “Propostas para uma política de cidadania”, novamente o tema foi considerado: A CUT considera como prioritária a construção de um projeto alternativo de âmbito global, que dê conta de garantir todos os direitos dos trabalhadores: emprego, salário digno, educação básica e profissional, seguridade social, habitação etc. Por isso, consideramos insuficientes a implementação de políticas que tenham como objetivo apenas minimizar os efeitos negativos do neoliberalismo. (CUT, 1997, p.32) Já ao tratar das políticas permanentes a serem desenvolvidas junto à juventude, a resolução denuncia que “a maior parte do orçamento público destinado à formação profissional continua sendo gerida e controlada por empresários que oferecem cursos nas áreas de maiores interesses do capital, desconsiderando a formação do jovem enquanto cidadão” (CUT, 1997, p.75). Nesse sentido, ao propor três formas de abordagem para a temática da juventude, elenca o eixo “Juventude e mercado de trabalho”, definindo-o da seguinte forma: Essa abordagem permite discutir os impactos da reestruturação produtiva em relação aos jovens e a definição de políticas de educação básica e profissional, juntamente com políticas de geração de emprego. Sobre educação profissional, é importante estar atento para o tipo de profissão que apresenta maiores perspectivas num mercado de trabalho que vem sofrendo transformações constantes. (CUT, 1997, p.76) No que diz respeito às políticas permanentes da central voltadas a contribuir com a erradicação do trabalho infantil, as resoluções novamente apresentam uma preocupação em combater a dualidade educacional, determinando uma “Campanha Nacional em Defesa da Educação” que contemplasse, dentre outros pontos, a luta “pela extinção da dualidade entre educação profissional e educação para a cidadania, atualmente existente, integrando os dois conteúdos nos currículos escolares” (CUT, 1997, p.78). Assim, sendo produto do mesmo processo histórico que reorganiza a classe trabalhadora brasileira e funda o PT, a CUT desenvolve em seu programa político concepções sobre políticas educacionais e, mais especificamente, sobre políticas de EPT. Essas concepções se fundamentam em pressupostos comuns aos movimentos que estão também no bojo do mesmo processo irrompido no final da década de 1970, ou seja, fundamenta-se em uma determinada leitura sobre as particularidades do desenvolvimento capitalista no Brasil e, por consequência, na formação do Estado brasileiro. Nesse sentido, a perspectiva política colocada desenvolve-se também para os mais amplos aspectos da vida social, dentre eles a pauta da Educação e, mais especificamente, a educação profissional, pois Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 458 Artigos Num mercado de trabalho altamente competitivo, o padrão de comportamento estimulado e predominante foi o da corrida individualista às posições superiores. A busca por “qualificação”, entendida como habilitação para ocupações mais procuradas pelas empresas, está estampada no enorme crescimento das escolas técnicas e profissionais, dos cursos noturnos e mesmo em geral da escolarização das classes trabalhadoras. (SADER, 1988, p.87) Àqueles sujeitos que organizam seus movimentos, “permanecendo na esfera privada das histórias familiares, restava a projeção dos mesmos sonhos na figura dos filhos. E por isso também a pressão por escolas foi algo tão forte nessas décadas. Preparar os filhos para talvez alcançarem o que não alcançaram os pais” (SADER, 1988, p.114). Nesse sentido, os fundamentos para a ruptura nas políticas de EPT que vinham sendo desenvolvidas localizam-se no mesmo processo histórico que constitui os fundamentos da alternativa política produzida pelos trabalhadores brasileiros no período pós-ditadura. IFs: produto indireto e contraditório das lutas da classe trabalhadora brasileira Com o declínio do regime militar abriu-se um período de intensa disputa política entre projetos societários distintos, sobre os rumos da sociedade brasileira em geral e das políticas educacionais em específico: Fechando-se o ciclo da ditadura civil-militar, a mobilização nacional para a transição democrática levou à instalação do Congresso Nacional Constituinte em 1987. A sociedade civil organizada, por meio de suas entidades educacionais e científicas, mobilizou-se fortemente pela incorporação do direito à educação pública, laica, democrática e gratuita na Constituição. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012, p.21) Configurou-se, assim, dois campos opostos na disputa dos rumos das políticas educacionais em EPT da década de 1990. Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012) descrevem essas duas perspectivas da seguinte forma: A questão da educação tecnológica está presente no campo da educação sob duas perspectivas. Uma que a identifica com a educação que aborda conhecimentos associados às tecnologias utilizadas nos processos de produção e, assim, pode formar pessoas para o manejo social e profissional dessas tecnologias para ocuparem um espaço específico na divisão social e técnica do trabalho. […] Outra perspectiva é aquela que fundamentou a defesa de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional na década de 1980 (rejeitada por uma manobra do Senado) que, em seus termos teóricos e práticos, propiciasse a superação da concepção educacional burguesa que se pauta pela dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual e entre instrução profissional e instrução geral. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012, p.40) Nessa mesma perspectiva, Ciavatta (2012) ainda aponta que “este é o sentido da história da formação profissional no Brasil, uma luta política permanente entre duas alternativas: a implementação do assistencialismo e da aprendizagem operacional versus a proposta da introdução dos fundamentos da técnica e das tecnologias, o preparo intelectual” (CIAVATTA, 2012, p.88). Dessa forma havia, por um lado uma defesa da EPT como mero aprendizado de técnicas, por outro uma perspectiva de formação profissional centrada no desenvolvimento humano, onde o estudante, muito além de conhecer as técnicas e tecnologias, deveria compreender as bases sobre as quais se assentam o desenvolvimento dessas técnicas, Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 459 Artigos pois “o homem não é somente um ser cognitivo (capaz de desenvolver esquemas mentais) mas também epistêmico (cuja natureza compreende a capacidade e a necessidade de conhecer)” (RAMOS, 2012, p.119). Contrapondo-se a essas reformas que “constituíram um processo que representou a redução da política pública, ou seja, a diminuição da ação do Estado como executor de políticas públicas de caráter social” (BRASIL, 2004, p.54), o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP) congregava diferentes setores organizados da classe trabalhadora e intelectuais da área com o intuito de promover debates acerca das possibilidades do desenvolvimento de uma formação técnica integrada à formação geral. Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012) nos apresentam, de forma resumida, esse contexto: A origem recente da ideia de integração entre a formação geral e a educação profissional, no Brasil, está na busca da superação do tradicional dualismo da sociedade e da educação brasileira e nas lutas pela democracia e em defesa da escola pública nos anos 1980, particularmente, no primeiro projeto de LDB, elaborado logo após e em consonância com os princípios de educação na Constituição de 1988. Com a volta da democracia representativa nos anos 1980, recomeça a luta política pela democratização da educação com o primeiro projeto de LDB que, sob a liderança do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, teve intensa participação da comunidade acadêmica e o apoio de parlamentares de vários partidos progressistas. Nele se buscava assegurar uma formação básica que superasse a dualidade entre cultura geral e cultura técnica, assumindo o conceito de politecnia. O que significava tentar reverter o dualismo educacional através de um de seus mecanismos mais efetivos, a subordinação no trabalho e na educação. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012, p.87) Porém, esse projeto de LDB produzida no âmbito do FNDEP não obteve sucesso: O projeto de uma nova LDB foi apresentado pelo deputado Octávio Elísio em dezembro de 1988, dois meses depois de promulgada a Constituição, incorporando as principais reivindicações dos educadores progressistas, inclusive referentes ao ensino médio. O longo debate em torno do Projeto Original e do Substitutivo Jorge Hage foi atravessado pela apresentação de um novo projeto pelo Senador Darcy Ribeiro, e este foi o texto aprovado em 20 de dezembro de 1996, como Lei n.9.394. […] o Decreto n.2.208/97 regulamentou a educação profissional e sua relação com o ensino médio. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012, p.36) Segundo Frigotto, “o caráter minimalista e desregulamentador da nova LDB (Lei no 9.394/1996) coadunava-se tanto com a estratégia de impor pelo alto um projeto preconcebido, quanto com a tese do “Estado mínimo”, com a tríade do ajuste estrutural: desregulamentação, descentralização e privatização” (FRIGOTTO, 2018a, p.25). Esse movimento, no campo da EPT, materializou-se na promulgação do Decreto nº 2208/97, que vinculava diretamente as demandas dessa modalidade educacional aos ditames do chamado “mundo do trabalho” (que aqui se torna sinônimo de mercado de trabalho): A educação profissional de nível básico é modalidade de educação não-formal e duração variável, destinada a proporcionar ao cidadão trabalhador conhecimentos que lhe permitam reprofissionalizar-se, qualificar-se e atualizar-se para o exercício de funções demandadas pelo mundo do trabalho. (BRASIL, 1997, art. 4) Além disso, e ao nosso ver mais grave, o referido decreto ainda proibia explicitamente a integração do ensino médio à formação profissional: “a educação profissional de nível técnico terá organização curricular própria e independente do ensino médio” (BRASIL, 1997, art. 5). Não se tratava, portanto, de apenas não implementar a integração da formação geral (ensino médio) com a educação Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 460 Artigos profissional, mas de garantir que não houvesse nenhuma possibilidade de isso acontecer mesmo que de forma autônoma. Nesse sentido, os setores organizados em torno do FNDEP se colocariam em posição imediatamente contrária a essa medida: A gênese das controvérsias que cercam a revogação do Decreto n.2.208/97 e a publicação do Decreto n. 5.154/2004 está nas lutas sociais dos anos 1980, pela redemocratização do país e pela “remoção do entulho autoritário”. Temos como marco, de modo particular, a mobilização do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, em defesa de um sistema público e gratuito de educação, que deveria tomar forma no capítulo sobre a educação na Constituinte e em uma nova Lei de Diretrizes de Bases da Educação. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012, p.22) Dessa forma, “o embate para revogar o Decreto n.2.208/97 engendra um sentido simbólico e ético-político de uma luta entre projetos societários e o projeto educativo mais amplo” (FRIGOTTO, CIAVATTA, e RAMOS, 2012, p.52). Com a vitória eleitoral, no ano de 2002, da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), abre-se então a possibilidade de o campo popular buscar formas de reverter os processos ocorridos nas políticas de EPT na década de 1990 e de avançar no sentido de integrar a formação geral ao ensino técnico. O primeiro passo para isso deveria ser a revogação do Decreto nº 2208/97: Não é difícil perceber que o amplo leque de forças de esquerda que reiteradamente buscaram eleger Luiz Inácio Lula da Silva inscreve-se, de uma ou de outra forma, na tradição do projeto de desenvolvimento nacional popular comprometido com reformas estruturais. [...] No campo educacional, tratava-se de, imediatamente – assim se expressava o projeto do candidato Lula – revogar o Decreto n.2.208/97 uma espécie de ícone do caráter autoritário e mercantilista das reformas. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012, p.13) Porém, a simples revogação do Decreto nº 2208/97 não seria suficiente para colocar em curso um novo projeto de educação profissional, seria necessária a promulgação de um novo decreto em substituição àquele, que viria a ser o Decreto nº 5154, publicado em 23 de julho de 2004. Com essa alteração então, abre-se a possibilidade do desenvolvimento de formas integradas de formação profissional que, para além do ensino estritamente técnico-operacional, pudesse discutir os conhecimentos humanos que estão na base das técnicas. Segundo o MEC (2004): Essa compreensão ampla da educação difere da tradição da formação profissional, que, desde suas origens, é conduzida a se vincular demasiadamente aos fins e valores do mercado, ao domínio de métodos e técnicas, aos critérios de produtividade, eficácia e eficiência dos processos. (BRASIL, 2004, p.11) O mesmo documento ainda ressalta que “sem a estreita ligação à educação básica, a educação profissional correrá sempre o risco de se tornar mero fragmento de treinamento em benefício exclusivamente do mercado e dos interesses isolados dos segmentos produtivos” (BRASIL, 2004, p.12). No ano de 2004 estava em curso, portanto, um movimento do Estado brasileiro centrado na concepção de que a EPT deve ser “um processo de construção social que ao mesmo tempo qualifique o cidadão e o eduque em bases científicas, bem como ético-políticas, para compreender a tecnologia como produção do ser social, que estabelece relações sócio-históricas e culturais de poder” (BRASIL, 2004, p.7). E ainda: Propõe-se uma escola que contribua para a superação da estrutura social e desigual brasileira mediante a reorganização do sistema educacional. Assim, é preciso superar Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 461 Artigos definitivamente a concepção que separa a educação geral e propedêutica da específica e profissionalizante, a primeira destinada aos ricos e a segunda aos pobres. (BRASIL, 2004, p.21) Dessa forma, parece nítida que a intenção do Estado brasileiro naquele momento histórico, ao alterar as concepções das políticas públicas em EPT, não era apenas de promover mudanças de forma na execução dessas políticas. Muito além disso, essas alterações encontram-se profundamente vinculadas a uma estratégia política que extravasa os limites das políticas educacionais. Trata-se de um elemento particular dentro de uma totalidade estratégica. Na I Conferência Nacional de Educação Profissional e Tecnológica, Fernando Haddad, então ministro da educação, comenta a revogação do Decreto nº 2208/97 e as possibilidades de integração do ensino médio à formação profissional: Por fim, refiro-me ao ensino médio integrado, dever do Poder Público estadual e federal. Depois de revogado o Decreto no 2.208/97, não podemos impor o ensino médio integrado, mas penso que devemos fomentar, induzir e apoiar as iniciativas que buscam essa integração. […] Penso que o decreto que hoje regulamenta a matéria é consistente, considerando que abre as possibilidades da concomitância, do pós-médio e do integrado. Enfim, libera os sistemas educacionais, sobretudo os estaduais, que têm a seu encargo o ensino médio, para modular a oferta deste conforme as circunstâncias de cada região, de cada cidade, de cada estado. A flexibilidade da legislação acarreta-nos uma responsabilidade muito grande, que é a de fomentar com seriedade o ensino médio integrado. (BRASIL, 2007, p.38) No ano de 2008, ao apontar a implementação dos IFs, o MEC destacava a importância dessa política pública em um sentido estratégico amplo: “o que está em curso, portanto, reafirma que formação humana e cidadã precede a qualificação para o exercício da laboralidade e pauta-se no compromisso de assegurar aos profissionais formados a capacidade de manter-se permanentemente em desenvolvimento” (BRASIL, 2008, p.6). Destaque-se também a dupla perspectiva de, por um lado contribuir para a construção de um país soberano e, por outro, de dar passos em direção à inclusão social de setores excluídos das benesses da modernidade. A pauta da soberania se apresenta como sinônimo de um desenvolvimento autônomo e sustentado. Há ainda a perspectiva da inclusão, que se relaciona com a pauta das restrições democráticas operadas pelas elites brasileiras contra os setores populares. Essa perspectiva aqui ocorre relacionada à pauta da cidadania. Nesse sentido, o documento do MEC apresenta o seguinte: Em síntese, esse novo desenho constituído traz como principal função a intervenção na realidade, na perspectiva de um país soberano e inclusivo, tendo como núcleo para irradiação das ações o desenvolvimento local e regional. O papel que está previsto para os Institutos Federais é o de garantir a perenidade das ações que visem a incorporar, antes de tudo, setores sociais que historicamente foram alijados dos processos de desenvolvimento e modernização do Brasil, o que legitima e justifica a importância de sua natureza pública e afirma uma educação profissional e tecnológica como instrumento realmente vigoroso na construção e resgate da cidadania e da transformação social. (BRASIL, 2008, p.23) E ainda: Atuar no sentido do desenvolvimento local e regional na perspectiva da construção da cidadania, sem perder a dimensão do universal, constitui um preceito que fundamenta a ação do Instituto Federal. O diálogo vivo e próximo dos Institutos Federais com a realidade local e regional objetiva provocar um olhar mais criterioso em busca de Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 462 Artigos soluções para a realidade de exclusão que ainda neste século castiga a sociedade brasileira no que se refere ao direito aos bens sociais e, em especial, à educação. (BRASIL, 2008, p.24) O mesmo documento destaca também a importância da integração entre formação técnica e o conhecimento geral na execução dessa estratégia para a EPT: É importante destacar a proposta curricular que integra o ensino médio à formação técnica (entendendo-se essa integração em novos moldes). Essa proposta, além de estabelecer o diálogo entre os conhecimentos científicos, tecnológicos, sociais e humanísticos e conhecimentos e habilidades relacionadas ao trabalho e de superar o conceito da escola dual e fragmentada, pode representar, em essência, a quebra da hierarquização de saberes e colaborar, de forma efetiva, para a educação brasileira como um todo, no desafio de construir uma nova identidade para essa última etapa da educação básica. (BRASIL, 2008, p.27) O texto ainda é recorrente em utilizar duas expressões: as ideias de formação cidadã e de desenvolvimento socioeconômico, a primeira voltada a uma forma específica de instrução do indivíduo e a segunda à função desse sujeito formado em sua relação com a coletividade a qual pertence. Nesse sentido, o documento caracteriza os IFs como “uma estratégia de ação política e de transformação social” (BRASIL, 2008, p.21) e que “atuar no sentido do desenvolvimento local e regional na perspectiva da construção da cidadania, sem perder a dimensão do universal, constitui um preceito que fundamenta a ação do Instituto Federal” (BRASIL, 2008, p.24). Ou seja, são dois os eixos argumentativos na defesa da implementação dos IFs como política pública: uma perspectiva de formação humana voltada à constituição da autonomia dos indivíduos e outra de desenvolvimento social pautado no avanço das forças produtivas materiais. Eixos esses que se inter-relacionam e desdobram-se no decorrer do documento. Eliezer Pacheco, secretário de Educação Profissional e Tecnológica do MEC no período de 2005 à 2012, ao abordar o processo de concepção dos IFs afirma: “em síntese, esse novo desenho constituído traz como principal função a intervenção na realidade, da perspectiva de um país soberano e inclusivo” (PACHECO, 2015, p. 18). O objetivo primeiro dos IFs, de acordo com sua lei de criação, e ao qual deve reservar obrigatoriamente a metade de suas vagas é “ministrar educação profissional técnica de nível médio, prioritariamente na forma de cursos integrados, para os concluintes do ensino fundamental e para o público da educação de jovens e adultos” (BRASIL, 2008, art 7. I). Relacionando isso às perspectivas apresentadas anteriormente, Frigotto observa que “tanto em relação ao PROEJA, quanto ao ensino médio integrado, a questão central é de compreensão de seu sentido social na perspectiva da cidadania política e econômica das gerações de jovens e adultos em formação” (FRIGOTTO, 2018b, p.141). Entretanto, o confronto entre o projeto das elites e projeto das classes populares não se apresentou de forma aberta durante os governos do projeto democrático e popular. Pelo contrário, o que se verificou foi uma tentativa de conciliação entre interesses dos dois projetos. Dessa forma, se por um lado os governos do PT apresentaram reformas no campo educacional no sentido de ampliar o acesso dos setores populares, por outro abriram os cofres públicos para o financiamento de vagas no ensino privado. Caso exemplar diz respeito ao Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), que teve a maior parte dos seus recursos destinados ao Sistema “S” (sistema de educação Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 463 Artigos profissional gerido pelas federações patronais e financiado pelo desconto de 1% do salário de cada funcionário das empresas associadas e com recursos do fundo público), promovendo uma forma de educação desenvolvida nos marcos da teoria do “capital humano” e combatida por amplos setores ligados à educação que foram base de apoio para se chegar à presidência. Sobre isso, Frigotto nos oferece uma advertência e uma reflexão que julgamos importante reproduzir: Por esse caminho, continuaremos negando a efetiva cidadania política, econômica, social e cultural à geração presente e à futura de nossa juventude. Essas opções nas políticas de formação profissional e técnica contrastam com o acúmulo do debate educacional crítico na busca de superar o desmanche da educação pública nos 21 anos de ditadura civil-militar sob a égide da ideologia do capital humano do pensamento economicista. O contraponto a esse desmanche foram os debates sobre o resgate do sentido da educação pública, universal, gratuita e laica, mas com a perspectiva da escola unitária e da formação humana omnilateral e politécnica. Uma concepção que buscou efetivar uma demarcação antagônica no plano teórico, epistemológico e ético-político à visão mercantil de educação. Esta concepção foi confrontada de forma avassaladora pela doutrina do neoliberalismo, na década de 1990, assumida como política de governo por Fernando Henrique Cardoso e seu Ministro da Educação, ao longo dos dois mandatos. Mas a questão desconcertante é, em parte, por que até mesmo nas experiências de gestões populares o ideário da educação politécnica desapareceu até no plano da batalha das ideias? O que prevaleceu foi a perspectiva da escola cidadã, a escola candango, a escola plural, certamente importantes no plano cultural na consideração das diferenças, mas limitadas para confrontar a natureza das relações sociais de produção, relações de classe e, portanto, de desigualdade. (FRIGOTTO, 2018b, p.128) Portanto, não se pode considerar os IFs um “raio em céu azul”, nem muito menos produto exclusivo das mentes geniais de meia dúzia de intelectuais. Trata-se, antes de um produto histórico com raízes profundas que remetem à feridas crônicas da sociedade brasileira ao passo que também concebem tratamentos para elas. Trata-se, portanto, de uma ruptura com as políticas de EPT desenvolvidas até então no Brasil e teve sua possibilidade de existência condicionada pelo avanço político-organizativo da classe trabalhadora e suas vitórias pontuais na luta de classes. Considerações finais As lutas da classe trabalhadora brasileira durante as décadas de 1970 e 1980 produziram instrumentos políticos que organizaram as pautas dessa classe em diferentes frentes. Esses instrumentos cumpriram um papel fundamental no processo de reorganização dessa classe no período pós ditadura militar, exemplos deles são o FNDEP, a CUT e o próprio PT. Os IFs são a materialização de uma política pública que tem no ensino médio integrado à educação profissional sua principal referência. Trata-se da experiência que sintetiza a posição política de um projeto societário determinado, frente às políticas de EPT. O ensino médio integrado assume aqui um patamar de mediação tática entre a necessidade de qualificar a força de trabalho para o desenvolvimento econômico e a formação de indivíduos na sua integralidade humana. A proposta de integração, além disso, é caracterizada também como um caminho possível para a superação da dualidade educacional no Brasil e para a promoção de uma formação cidadã vinculada a um projeto de desenvolvimento autônomo. Dualidade essa promovida por uma classe dominante sem tradição democrática e acostumada a governar Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 464 Artigos por meio de medidas autocráticas, por que filha da antiga aristocracia e associada subordinadamente aos grandes capitais estrangeiros. Portanto, a caracterização sobre a sociedade brasileira e as saídas possíveis para a superação dessa realidade, desenvolvidas no bojo da rearticulação da classe trabalhadora brasileira nas décadas de 1970 e 1980, estão nos fundamentos onde se edifica e sustenta a proposta político- pedagógica dos IFs. Assim, os IFs são uma experiência educacional profundamente vinculada à tradição recente de lutas da classe trabalhadora brasileira, que não existiria sem essa. Não são uma revolução nem uma contrarrevolução, trata-se antes de um avanço pontual nos marcos da institucionalidade burguesa, crivado por contradições, mas fundado em uma estratégia política que pretendia contribuir com o processo histórico de superação das relações de exploração capitalistas. Os limites dessa nova institucionalidade são coincidentes aos limites próprios da estratégia democrática e popular. Referências: BRASIL (1997). Decreto nº 2.208, de 17 de abril de 1997. Regulamenta o § 2 º do art. 36 e os arts. 39 a 42 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2208.htm. Acesso em: 4 jun. 2019. BRASIL (2004). MEC/SETEC (portal de internet). Proposta em Discussão: Políticas Públicas para a Educação Profissional e Tecnológica. Brasília: SETEC. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf/p_publicas.pdf. Acesso em: 11 de mar. 2019. BRASIL (2007). MEC/SETEC. I Conferência Nacional de Educação Profissional e Tecnológica, 2006, Brasília. Anais e deliberações da I Conferência Nacional de Educação Profissional e Tecnológica. Brasília. 243 p. BRASIL (2008). MEC/SETEC. Concepção e Diretrizes: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia. 23p. Disponível em:. Acesso em: 24 de jun. 2019. Central Única dos Trabalhadores – CUT (1983). Resoluções do 1º Congresso Nacional da Classe Trabalhadora (1º CONCLAT). Disponível em: https://www.cut.org.br/arquivos/congressos. Acesso em: 28 jan. 2019. Central Única dos Trabalhadores – CUT (1991). Resoluções do 4º Congresso Nacional Da CUT (4º CONCUT). Disponível em: https://www.cut.org.br/arquivos/congressos. Acesso em: 28 jan. 2019. Central Única dos Trabalhadores – CUT (1994). Resoluções do 5º Congresso Nacional Da CUT (5º CONCUT). Disponível em: https://www.cut.org.br/arquivos/congressos. Acesso em: 28 jan. 2019. Central Única dos Trabalhadores – CUT (1997). Resoluções do 6º Congresso Nacional Da CUT (6º CONCUT). Disponível em: https://www.cut.org.br/arquivos/congressos. Acesso em: 28 jan. 2019. CIAVATTA, M. (2012). A formação integrada: a escola eu trabalho como lugares de memória e identidade. In: FRIGOTTO, G., & CIAVATTA, M., & RAMOS, M.. Ensino Médio Integrado: Concepção e contradições. São Paulo: Cortez. p. 83-106. CHAUI, M. (1986). PT "leve e suave"? In: SADER, Emir (Org.). E agora PT: caráter e identidade. São Paulo: Brasiliense. Cap. 3. p. 43-99. DIRCEU, J. (1986). Os desafios do PT. In: SADER, Emir (Org.). E agora PT: caráter e identidade. São Paulo: Brasiliense. Cap. 2. p. 35-42. FERNANDES, F. (1976). A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. 413 p. Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 465 Artigos FRIGOTTO, G., & CIAVATTA, M., & RAMOS, M. (2012). A gênese do decreto n. 5.154/2004: um debate no contexto controverso da democracia restrita. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. Ensino Médio Integrado: Concepção e contradições. São Paulo: Cortez. p. 21-56. FRIGOTTO, G. (2018a). Contexto da problemática do objeto da pesquisa, objetivos, categorias de análise e procedimentos metodológicos. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia: Relação com o ensino médio integrado e o projeto societário de desenvolvimento. Rio de Janeiro: LPP-UERJ. Cap. 1. p. 17-39. FRIGOTTO, G. (2018b). Indeterminação de identidade e reflexos nas políticas institucionais formativas dos IFs. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia: Relação com o ensino médio integrado e o projeto societário de desenvolvimento. Rio de Janeiro: LPP- UERJ. Cap. 6. p. 125-149. FORNARI, L. T. (2017). Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia: Possibilidade para Contribuir com a Emancipação Humana. 2017. 434 f. Tese (Doutorado) -Sociologia Política, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em:. Acesso em: 20 abr. 2020. GADOTTI, M., & PEREIRA, O. (1989). Pra que PT: Origem, Projeto e Consolidação do Partido dos Trabalhadores. São Paulo: Cortez. 370 p. PACHECO, E. (2015). Fundamentos políticos-pedagógicos dos Institutos Federais: diretrizes para uma educação profissional e tecnológica transformadora. Natal/RN: Editora IFRN. OLIVEIRA, F. (1986). Qual é a do PT? In: SADER, Emir (Org.). E agora PT: caráter e identidade. São Paulo: Brasiliense. Cap. 1. p. 9-35. RAMOS, M. (2012). Possibilidades e desafios na organização do currículo integrado. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. Ensino Médio Integrado: Concepção e contradições. São Paulo: Cortez. p. 107-128. SADER, E. (1986). O que é que está escrito na estrela?. In: SADER, Emir (Org.). E agora PT: caráter e identidade. São Paulo: Brasiliense. Cap. 7. p. 153-176. SADER, E. (1988). Quando novos personagens entraram em cena: Experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo 1970-1980. São Paulo: Paz e Terra. 329 p. SAMPAIO, P. de A. (1986). O PT na encruzilhada. In: SADER, Emir (Org.). E agora PT: caráter e identidade. São Paulo: Brasiliense. Cap. 5. p. 111-140. Tribunal de Contas da União – TCU (2013). Auditoria operacional Fiscalização de orientação centralizada: Rede Federal de Educação Profissional. TCU 02606220119, Relator: JOSÉ JORGE, Data de Julgamento: 13/03/2013. Brasília. VÁSQUEZ, A. S. (2011). Filosofia da práxis. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular. 446 p. Notas 1 Doutorando em Educação na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Mestre em Educação Profissional e Tecnológica. Analista de tecnologia da informação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense. Membro do Grupo de Pesquisa - Lutas Sociais, Trabalho e Educação (Lute). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9221850678839778. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6325-5471. E-mail: [email protected]. 2 Doutor em Geografia. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense/Campus Blumenau. Membro do Grupo de Pesquisa e Estudos em Gestão, Políticas e História da Educação Profissional e Tecnológica (GPHEPT). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3122759041294108. Orcid: https://orcid.org/0000- 0001-5383-6563. E-mail: [email protected]. Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 466 Artigos Recebido em: 18 de mai. 2023 Aprovado em: 18 de dez. 2023 Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.15, n.3, p.448-467, dez. 2023. ISSN: 2175-5604 467