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Paulo Nader. Cap. 4,5,6,12.pdf

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Segunda Parte O DIREITO E SEUS ATRIBUTOS DE VALIDEZ Capítulo 4 CONCEITO DO DIREITO Sumário: 15. Aspectos gerais. 16. Direito e adaptação social. 17. Cultura e natureza do Direito. 18. A definição do Direito. O Direito subjetivo. 19. Ordem jurídica. 20. Direito, Moral e Regras de Trato Social. 21. A...

Segunda Parte O DIREITO E SEUS ATRIBUTOS DE VALIDEZ Capítulo 4 CONCEITO DO DIREITO Sumário: 15. Aspectos gerais. 16. Direito e adaptação social. 17. Cultura e natureza do Direito. 18. A definição do Direito. O Direito subjetivo. 19. Ordem jurídica. 20. Direito, Moral e Regras de Trato Social. 21. A ideia do Direito Natural como divisor de correntes. 15. ASPECTOS GERAIS Ainda que o jurista não apresente uma definição formal do Direito, nem haja cogitado a respeito, necessariamente há de ter um conceito daquele objeto. Isto é forçoso, de vez que não é possível conhecer e utilizar bem um sistema jurídico sem a prévia representação intelectual do Direito. Como se posicionar diante de inda gações relativas à efetividade, como as que envolvem os problemas de obrigato riedade das leis injustas ou das leis cm desuso, sem a prévia convicção do que seja Direito? Pode-se afirmar que esse conceito, um dos mais nobres versados na Filo sofia do Direito, uma vez alcançado pelo espírito, será diretor do pensamento e das ideias quanto a numerosas questões. Sem que o analista identifique, previamente, aquela noção, não poderá desenvolver, por exemplo, a sua teoria da interpretação. A resposta ao quid Jus? há de ser uma postura intelectual amadurecida para não ser provisória, ou não se alimentar na contradição. É que a coerência lógica do pensamento jurídico deve ser cultivada a partir de consonâncias com a noção de Direito, que atua como uma espécie de norma constitucional para o jurista. Embora se possa buscar com empenho essa harmonia, a verdade é que a perfeição está por existir também nos domínios da Filosofia do Direito, onde presumidamente atuam espíritos lógicos. O saber do sujeito cognoscentc pode evoluir mediante etapas. Possuidor da noção científica do Direito, o jurista, que em algum tempo conheceu o Direito apenas vulgarmente, no futuro poderá conhecê-lo pela via filosófica. Atingido este grau de conhecimento, a noção se revela com caracteres definitivos, suscetível de modificação cm face, apenas, de radicais mudanças doutrinárias. 42 Filosofia do Direito | Paulo Nader Enquanto a definição é juízo externo, que se forma pela indicação de carac teres essenciais, conceito ou noção é juízo interno que revela apreensão mental. Com a posse ou o saber, pelo qual se distingue o gênero da espécie ou uma espécie de outra, o espírito exercita o pensamento, reflete. O Direito enquanto conceito é objeto em pensamento; enquanto definição, é divulgação de pensamento mediante palavras. O conceito pode ser expresso tanto pela definição como por formas desen volvidas. Para a primeira, há regras técnicas ditadas pela Lógica.1 Para a segunda, o espírito voa livre. O expositor pode limitar-se ao plano de suas ideias, ou pretender descortinar determinadas concepções. Esta ordem de estudos é significativa não apenas porque reúne um acervo de informações, mas porque contribui para uma tomada de opiniões na medida em que oferece opções doutrinárias diferenciadas. Nenhuma outra ciência possui questionamento de ordem conceptual tão pro funda quanto a do Direito. Os juristas, por sua vez, recebem uma carga de influên cia das correntes filosóficas, fato esse natural, pois o Direito se acha intimamente ligado à Filosofia. Atuando sobre o espírito ao nortear a conduta social, o Direito ocupa-se de questões polêmicas, que exigem reflexão e juízos de valor. Não há como se elaborar Direito, ou aplicá-lo sem filosofia. O espírito do jurista há de estar receptivo à lei, mas ao mesmo tempo sensível à teleologia do Direito, e o fim deste é sempre o bem-estar dos homens cm sociedade ou a organização do Estado. Além da influência que a Filosofia exerce no Direito por meio de suas linhas de pensamento, há de se destacar que ela também o faz pela contribuição direta de alguns filósofos, que inseriram reflexões sobre o fenômeno jurídico em seus sis temas, como o fizeram Tomás de Aquino, Hcgcl, Kant, entre outros expoentes do pensamento filosófico. Entre as várias questões que o tema em foco apresenta, uma é de ordem preli minar e diz respeito à possibilidade de o espírito elaborar um conceito geral para o Direito. Paulo Dourado de Gusmão abordou o problema, distinguindo inicialmente as correntes filosóficas que admitem um conceito universal do Direito das que se contrapõem a esse entendimento. Entre estas situou os céticos e os agnósticos. Os primeiros negariam a existência de constantes no Direito como decorrência da plu ralidade de elementos ditados pela experiência, que impediriam a indução de um conceito válido para todos os sistemas. Em sua postura empirista, os agnósticos não admitiriam o exame filosófico do Direito, reconhecendo possível apenas a elabora ção de conceito particular aplicável a determinados ordenamentos.2 Na contraposi ção das doutrinas empiristas e racionalistas, Gustav Radbruch aderiu às primeiras, sustentando a tese de que a noção do Direito, que é geral, universal e necessária, deve ser alcançada dedutivamente da ideia do Direito, de quem depende, e esta não seria outra senão a justiça.3 A existência de uma pluralidade de sistemas jurídicos, 1 2 3 A definição não deve conter o termo do objeto definido, sob pena de se incidir em tautologia. Definitiofit per genus proximum et differentiam specificam. A linguagem da definição deve ser simples, clara e concisa. Filosofia do Direito. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 67. Filosofia do Direito. 4. ed. Coimbra: Arménio Amado, Editor, Sucessor, 1961, l 9 v., p. 100. Cap. 4 I Conceito do Direito pensamos, não é um obstáculo para se alcançar o conceito do Direito. Este pode ser elaborado pelo filósofo do Direito a partir de sua experiência. Tanto o método in dutivo quanto o dedutivo são valiosos nessa tarefa. Uma vez captados certos dados reais pela observação, poder-se-ão desenrolar operações dedutivas. A formulação de um conceito do Jus exige a participação da experiência pelo fornecimento de elementos e os contributos da razão, pois esta generaliza e elabora sínteses. Não só o conceito do Direito, mas o pensamento jurídico em geral é direcio nado por essa metodologia. Embora possua como ponto de partida a experiência, a construção científica do Direito caminha no sentido de fornecer ao jurista postula dos que orientem o seu raciocínio, como o da afirmação da superioridade da norma constitucional cm relação à ordinária. Quando se proclama que a liberdade é um direito subjetivo inseparável do homem, a fonte de tal pensamento não poderá ser outra senão a sua própria realidade objetiva. Afasta-se, assim, nos quadros da ciên cia, a fundamentação transcendental que se opera pelas vias religiosa e metafísica. Entre as múltiplas correntes filosóficas do Direito, verificamos duas tendên cias fundamentais, uma de índole espiritualista, que situa o valor justiça como ele mento essencial e preeminente, além de proclamar a existência do Direito Natural; outra c de natureza positivista, que valoriza apenas os dados fornecidos pela expe riência, identificando o fenômeno jurídico com a norma ou com o fato e admitindo por Direito apenas o institucionalizado pelo Estado. A par de tais divergências, que são de ordem estrutural, é possível, todavia, se encontrar um denominador comum entre as diversas correntes filosóficas do Direito. Ao se afirmar que o Direito tem algo a ver com a norma, com o fato e também com o valor, não se poderão apre sentar objeções sérias; igualmente quando se diz que o Direito é um processo de adaptação social, possui caráter evolutivo e, além de um conteúdo nacional, reúne elementos universais. Nos Estados democráticos, o Direito se apresenta como instrumento da justi ça e visa a proporcionar o bem-estar dos indivíduos, a inserção social, o progresso coletivo. Nos Estados totalitários, constitui aparelho de dominação; meio de efeti vação ou permanência da ideologia institucionalizada. Neles, em primeiro lugar, o Direito é posto na salvaguarda dos interesses do Estado e de seus dirigentes; preser vada esta ordem de prioridades, tutela os valores privados desde que compatíveis com os públicos. Roberto Lyra Filho atenta para uma contradição em que incidem os protagonistas dos Estados totalitários, pois, quando lutam por transformações “só reclamam direitos, só pedem justiça, só postulam liberdades juridicizadas e sonham, tão só, com outra ordem normativa da convivência humana...”4 É imperiosa a convergência de interesses entre o Estado e a sociedade. Os Poderes constituem apenas instrumento de formação e cumprimento da ordem ju rídica substancialmente justa. Dada a natureza cambiável da sociedade, o Direito deve acompanhar as transformações que nela se operam. Os fatores sociais são, 4 Razões de Defesa do Direito. Brasília: Obreira, 1981 - Discurso de Patrono dos Bacharelan dos em Direito da Universidade de Brasília, lido em 25 de julho de 1981. Filosofia do Direito | Paulo Nader tambcm, fatores de evolução da ordem jurídica, daí a necessária sintonia entre o legislador e os fatos da cpoca. 16. DIREITO E ADAPTAÇÃO SOCIAL É um fato de nossa experiência que o homem depende do meio social para de senvolver o seu potencial criador e manter o equilíbrio psíquico. E no contexto da sociedade onde vai buscar os recursos que lhe são indispensáveis. O homem não pode, todavia, limitar-se à condição de usuário daquela grande fonte. Ao mesmo tempo cm que aufere os seus benefícios, deve desenvolver esforços no sentido de conservá-la. O funcionamento da sociedade pressupõe comando e ordem c, para tanto, é preciso, de um lado, que se organize a estrutura de poder e, de outro, que se estabeleça um ordenamento jurídico. Este não apenas cria as normas que disci plinam a conduta interindividual como institucionaliza os modelos de organização social. Tanto o poder quanto o Direito, surgem em decorrência da necessidade imperiosa de se preservarem as condições de vida coletiva. O poder cria o Direito e a ele se submete em suas funções de planejar e promover o bem-estar social. Mediante órgãos distintos o poder desempenha, ainda, a tarefa de aplicar o Direito nas relações sociais. Relativamente ao poder, o Direito estabelece as condições e os limites de seu exercício. O Direito Positivo se apresenta na sociedade como um processo de adaptação social, isto porque é criado como a fórmula da segurança e da justiça. Como todo processo de adaptação, o Direito é elaborado em função de uma necessidade. Não fora a carência social de disciplina e de distribuição de justiça, razão não existiria para se cogitar sobre o Direito. Este se justifica na me dida em que logra efetiva adaptação, que não se obtém por qualquer conteúdo nor mativo. Para que o Direito seja efetivo processo de adaptação é indispensável que preencha vários requisitos. Em primeiro lugar, é necessário que esteja devidamente ajustado ao momento histórico, em consonância com os fatos da época. As normas jurídicas devem não apenas ordenar as relações sociais como também consagrar fórmulas que expressem o querer coletivo. Se as leis não refletem, na linguagem de F. Gény, a natureza positiva das coisas,5 não há como se falar cm adaptação social. Quando se diz que o legislador deve respeitar a vontade social, não se quer declarar que o povo detenha fórmulas jurídicas mais convenientes e sim que ao se preparar um texto legislativo devem-se eleger valores e buscar soluções compatíveis com as pretensões dominantes. A sociedade possui problemas heterogêneos que ameaçam a sua estabilidade e nem sempre possui a consciência das fórmulas mais adequadas de resolvê-los, pois compete ao poder a pesquisa das diversas soluções e escolha daquela que se antecipa como instrumentalmente capaz e sem o risco de tomar vulneráveis outros interesses sociais. Para que o Direito guarde correspondência de modo permanente com os fatos sociais, é imperioso que o legislador se mantenha vigilante quanto à evolução his 5 Método de Interpretación y Fuentes en Derecho Privado Positivo. Madrid: Editorial Réus S.A., 1925, p. 538. Cap. 4 | Conceito do Direito 45 tórica, acompanhe a jurisprudência c introduza, com oportunidade, alterações no ordenamento jurídico. O Direito deve ser contemplado, hodiemamente, não ape nas como órgão dissipador de conflitos. A sua missão atual deve ser também a de promover o homem, dando-lhe condições para desenvolver o seu potencial de vida e cultura. O Direito contemporâneo há de incentivar a cultura, economia, esportes, lazer, pois a sua função não é de sujeito passivo que se mantém de prontidão para ditar regras diante de conflitos. Ao analisar, com prospectiva, o quadro social, deve o legislador atuar com previsibilidade, dispondo de seu mecanismo coercitivo para preservar o equilíbrio na sociedade. Ao elaborar uma lei, o legislador há de prepará-la de tal modo que possa ser um efetivo processo de adaptação social. Para se aferir essa qualidade é indispen sável que se examinem os efeitos sociais provocados pela lei durante a sua vigên cia. Se não logrou efetividade, ou não proporcionou bem-estar à sociedade, não há como se considerá-la processo de adaptação social. Pensamos que tanto o sistema Continental de Direito quanto o da Common Law acham-se aptos à criação de regras com aquele potencial. Embora se possa, teoricamente, presumir nas regras costumeiras aquela adaptação, o fato é que o sistema de Direito codificado é mais ágil para encetar mudanças e ajustar o ordenamento jurídico às transformações que se registram no quadro social. Com este sistema, todavia, corre-se o risco de se es tabelecerem normas artificiais e divorciadas da realidade social, risco esse inexis tente nos sistemas de Direito consuctudinário. O fenômeno de recepção do Direito estrangeiro gera, muitas vezes, modelos jurídicos distanciados dos fatos; todavia, não há necessidade de se eliminar tal procedimento na prática legislativa, pois isso implicaria renúncia a uma importante fonte ofertada pelo Direito Comparado. Os cuidados, sim, deverão ser redobrados quando se pretender assimilar o Direito alienígena, tarefa essa que invariavelmente requer adaptações no Jus Receptandi. 17. CULTURA E NATUREZA DO DIREITO Conceber o fenômeno jurídico como processo de adaptação social equivale a identifícá-lo como objeto cultural, como algo elaborado pelo homem para suprir as suas carências. No quadro da ontologia regional situamos o Direito no mundo da cultura, que reúne objetos materiais c espirituais, aqueles com suporte corpóreo e estes não; todos, porém, compreendendo a realização de valores. Em nossa opinião, o suporte espiritual do Direito consiste na conduta social, pois as normas jurídicas visam a alcançar o comportamento das pessoas, impondo-lhes determinados pa drões de convivência. Ao induzir a conduta, o Direito Positivo realiza valor, e o va lor que tenta realizar é o da justiça. Enquanto realiza sempre valor, expressa apenas uma tentativa de consagração do justo. Isto porque a justiça não é mera convenção da lei, mas medida que objetiva o equilíbrio, a adequação entre o que se dá, ou o que se apresenta, e o que se recebe, fórmula nem sempre atingida pelo legislador. Embora o papel do legislador seja precipuamente o de captar o pensamento jurídico nas correntes sociais, as tarefas que executa são relevantes e complexas, notadamente as que envolvem matéria técnica como a das leis e códigos de pro 46 Filosofia do Direito | Paulo Nader cesso. O legislador há de ser também um crítico, pois se de um lado deve zelar para que o ordenamento expresse o sentimento coletivo, deve ter a sua atenção desper tada para os valores do justo. Compreender o Direito como objeto cultural ou pro cesso de adaptação social não significa adesão à doutrina positivista. Entendemos que o Direito Positivo deva fundar-se no querer social e ainda na ordem natural das coisas. A tendência é que o querer social se revele em plena sintonia com aque la ordem, pois apenas por uma forte perturbação na sociedade pode chegar-se ao divórcio entre ambos, oportunidade em que o legislador deverá induzir a adaptação dos fatos sociais ao Direito Natural. O Direito não é um fenômeno transitório, pois corresponde a necessidades sociais permanentes. Transitória c cambiável pode ser a forma com que se apre senta seu campo normativo, que deve acompanhar a evolução dos fatos sociais. O Direito Positivo conserva, contudo, um coeficiente de universalidade e perma nência, justamente na parte que consagra princípios do Direito Natural, como o da preservação da vida e da liberdade humanas. A ordem jurídica deve expressar, a um só tempo, a realidade social e os postulados do Direito Natural. Entendido este não como normas que definem a conduta, mas como princípios norteadores que orientam o legislador em sua tarefa de elaborar as leis, não constitui obstáculo ao processo de adaptação. Universal, eterno e imutável é a sua principiologia, que deve ser assimilada pelo legislador, que dispõe de flexibilidade e alternativa na sua aplicação. O conceito de Direito Natural não se apresenta uniforme nos trata dos de Filosofia do Direito. Rejeitando qualquer concepção de índole metafísica, já que a ciência deve operar com dados práticos e objetivos, vimos sustentando a noção de um Direito Natural firmado na experiência, plenamente conjugado à realidade humana. A sua grande fonte é a natureza do homem. O Direito Natu ral, por seus princípios básicos, revela ao legislador o suporte jurídico que há de proteger o homem para que possa realizar o seu potencial para o bem, potencial esse impresso em sua natureza. Esta, por sua vez, se acha posta em nosso campo de observação, acessível pelas vias da experiência e da razão. O Direito Natural exerce influência no Direito Positivo que, em grande parte, desenvolve os seus postulados. Não há, todavia, como se admitir, ontologicamente, a existência de apenas uma ordem, ainda na hipótese de perfeita harmonia entre a ordem positiva e a natural. Pelo acima exposto, podemos concluir que não há qualquer obstáculo ou di ficuldade para se chegar, na prática, ao Direito como processo dc adaptação social, partindo-se do entendimento de que o Jus Positum é objeto cultural e deve fundar- -se nos princípios do Direito Natural. 18. A DEFINIÇÃO DO DIREITO. O DIREITO SUBJETIVO Quem pretende elaborar a definição do Direito deve primeiramente concei tuá-lo, compreendê-lo amplamente, pois só podemos indicar os caracteres de um objeto na medida em que o conhecemos. A arte dc definir é arte de derivação de conceito. Tão complexa quanto a tarefa de conceituar o Direito é defini-lo. Entre Cap. 4 | Conceito do Direito 47 uma c outra deve haver perfeita simetria, pois quem expressa deve fazê-lo na for ma de seu pensamento. Tratando-se a palavra Direito de um termo análogo, antes de elaborarmos a sua definição devemos esclarecer, obrigatoriamente, a acepção considerada. Em sua dimensão positiva, Direito é o conjunto de normas de conduta social, imposto coercitivamente pelo Estado, para a realização da segurança, segundo os princípios de justiça. Assim definido, o Direito reúne três elementos primordiais: fato, valor e norma. Como processo de adaptação social, o Direito nasce dos fatos e se destina a discipliná-los. Direta ou indiretamente toda norma jurídica dirige o comportamento social. Ao indicar a conduta exigida, o Direito revela juízo de valor. As normas jurídicas, de um modo ou de outro, compelem o homem à ação justa. Para que os fatos consagrem os valores do justo e com isto a sociedade al cance equilíbrio e harmonia, há de haver normas práticas c objetivas que indiquem modelos de conduta, ou estabeleçam os limites da licitude. A norma é o instrumen to prático do Direito, pois regula o fato cm função de determinado valor que se pre tende adotar socialmente. Tais elementos configuram, no seu conjunto, a chamada Teoria Tridimensional do Direito, desenvolvida e enriquecida pelo jurisfilósofo brasileiro Miguel Reale. Para atender às suas necessidades de vida, a pessoa natural deve se orientar em conformidade com as leis naturais e as normas sociais, situadas estas na esfera do Direito, da Moral e das Regras de Trato Social. As normas religiosas, como já destacamos, ao direcionarem a conduta social, apoiam-sc em determinadas con cepções morais. As normas jurídicas são de natureza prescritiva; indicam o com portamento a ser adotado em determinada circunstância e o fazem coercitivamen te, dada a possibilidade de o ser humano violar a determinação. Já as leis naturais, regidas por um determinismo absoluto, possuem enunciados de índole descritiva. A liberdade do ser humano faculta-lhe o descumprimento das normas jurídi cas, não das leis da natureza. Estas são invioláveis e punem a simples tentativa de desobediência, pois, verificada uma causa, o efeito ocorre inapelavelmente. Diante de uma lei da Física, por exemplo, ao ser humano cumpre apenas buscar o seu conhecimento, a fim de se orientar adequadamente. As leis da Física admitem, por exemplo, sob determinadas condições, aparelhos mais pesados do que o ar. Se a navegação aérea descumpre as exigências, ter-se-á a tragédia em consequência. As leis naturais são, ainda, imutáveis e universais; as jurídicas, diversamente, devem acompanhar a dinâmica dos fatos, para não perderem a condição de processo de adaptação social. Elas se diversificam no âmbito internacional, pois cada povo tem seus costumes, tradições, necessidades peculiares, conjunto de fatores que influen cia diretamente na elaboração de suas leis. Como objeto cultural o fenômeno jurídico implica criação humana. Esta se faz diretamente pela sociedade, com o Direito consuetudinário, ou por órgãos do Estado. Ordinariamente é o Poder Legislativo quem elabora o Jus scriptum, em bora não se deva amesquinhar a contribuição do Judiciário no aperfeiçoamento da ordem jurídica. Conquanto nos países filiados ao sistema Continental de Direito, a 48 Filosofia do Direito | Paulo Nader missão constitucional desse Poder seja a de aplicar normas preexistentes, o que se faz com discernimento c certa criatividade, há de se lhe reconhecer ainda um labor fecundo na definição do Direito Positivo. Sem chegar a constituir-se em órgão- -fonte, pois não possui liberdade para revogar leis, o Poder Judiciário enriquece e beneficia o Direito Positivo, pois de princípios gerais dispersos no ordenamento induz regras de comando jurídico, que se impõem socialmente pelo prestígio da jurisprudência. Os órgãos de onde emanam as regras jurídicas não integram o ser do Direito. Não há como se confundir o autor com a obra. Esta leva o estilo daque le, mas possui ser e existência individuais. Relativamente à coação, força a serviço do ordenamento jurídico, embora de importância irrecusável, não chega a integrar o ser do Direito, pois é fator apenas contingente. A coercibilidade, força cm potên cia, se nos afigura como um dos traços distintivos do Direito. Além de se manifestar objetivamente como normas disciplinadoras do con vívio social, o Direito se revela também em dimensão subjetiva: poder de agir e de exigir, que o Jus Positum proporciona ao sujeito ativo de uma relação jurídica. Esta face do Direito, identificada pelos romanos por jus facultas agendi, na falta de um nomen iuris específico, como se dá na Alemanha com o vocábulo Berechti- gung, em nossa língua é denominada direito subjetivo. Este engloba duas esferas: a da licitude e a da pretensão. A primeira se identifica com o campo de liberdade - agere licere - definido pelo Direito objetivo, enquanto a segunda consiste no po der de se exigir do sujeito passivo da relação jurídica o cumprimento de seu dever. Consequentemente, podemos definir o direito subjetivo como a possibilidade de agir e de exigir aquilo que as normas de Direito atribuem a alguém. Uma vez situado o Direito Positivo como processo de adaptação social, como objeto cultural, implicitamente, o situamos como instrumento a serviço da causa humana: meio utilizado pela coletividade para tomar possível a ampla interação social. Em última análise, o Direito existe para garantir o funcionamento da socie dade e ao mesmo tempo preservar a dignidade da pessoa humana. Os direitos subjetivos são apenas dimanações da ordem jurídica, ou são a po tência determinante daquela ordem? A matéria se apresenta em sede de discussão filosófica. É claro que a instauração da ordem jurídica visa à tutela dos interesses fundamentais da pessoa humana, mas é também imperioso que, no plano da vali dade prática, a definição dos direitos subjetivos se faça a partir do Direito objetivo. O intérprete seguro, consciente da teleologia da lei, dá às normas o sentido compa tível com a proteção aos interesses fundamentais da pessoa humana. Estes devem influenciar o ordenamento jurídico tanto no momento de sua elaboração quanto na oportunidade da exegese. A rigor, não se pode falar em direito subjetivo destacadamente da ordem posi tiva. Direito subjetivo haverá na medida em que o Direito objetivo dispuser. Antes disso, é correto se dizer interesses fundamentais e só por impropriedade de lingua gem poder-se-á atestar a existência de um direito subjetivo independente da ordem de legalidade. Quem há de comandar a ordem jurídica positiva é o Jus Naturae, que abrange os interesses fundamentais da pessoa humana. Estes induzem e condicio Cap. 4 | Conceito do Direito nam a criação do Jus Positum e tambcm influenciam na revelação do significado e extensão das normas jurídicas. A projeção da ordem jurídica natural nos instru mentos legais se faz em larga amplitude. A postura de reserva ou de prevenção em face do Direito Natural não invalida a presente ordem de raciocínio. Que se atribua outra denominação àqueles interesses fundamentais, ou que se os considere um campo estritamente ético, ainda assim permanecem com o comando indireto da organização e disciplina da sociedade. Havemos de reconhecer, todavia, que nem todos os direitos subjetivos mantêm conexão com o Direito Natural. Há prerro gativas legais estabelecidas à revelia dos estatutos éticos. Em contrapartida, há imperativos de ordem moral não sancionados pelo legislador. Uma ordem jurídica verdadeiramente acorde com a instância superior do Jus, em que os direitos sub jetivos se identificam com a Moral, é uma questão de aperfeiçoamento do Direito Positivo. Esta deve ser a meta permanente dos cultores da ciência.6 19. ORDEM JURÍDICA 19.1. Noção geral. Ordem jurídica é uma qualidade do Direito Positivo; é o sentido de harmonia e coerência lógica das normas vigentes. Ordem significa disposição adequada das partes de um todo. Pressupõe, portanto, pluralidade de elementos. Para que um conjunto alcance a sua causa final é indispensável que as suas diversas partes estejam dispostas em um nexo de complementaridade. A ideia de fim é essencial, pois só haverá ordem se o conjunto estiver apto a realizar o objetivo para o qual existe. Ao entrar em um laboratório de análises clínicas, por exemplo, o leigo poderá ter uma impressão de desordem à vista da disposição de equipamentos, frascos, soluções, reagentes, pois desconhece a função de cada qual e da dinâmica dos procedimentos. A visão do profissional que ali trabalha é diferente, pois a disposição de todos aqueles objetos no espaço físico é racional e prática para o trabalho que ali desenvolve. A ideia de fim, ora enfatizada, integra a definição de ordem adotada por Goffredo Telles Júnior: “Ordem é a disposição conveniente de seres (de meios) para a consecução de um fim. ” Tal a ideia de har monia e complementaridade que a ordem contém, que o eminente jurista-filósofo oferece uma alternativa de definição: unidade do múltiplo.1 A noção de ordem jurídica reúne a ideia de ordem c de Direito. A sua causa material se compõe da pluralidade de leis, decretos e outras formas de expressão do Direito. A ordem jurídica não consiste na soma deste conjunto, mas na harmonia e no encadeamento lógico de normas contidas nestas fontes. A definição da ordem jurídica é tarefa ao alcance apenas dos verdadeiros juristas, que desconsideram as normas colidentes entre si, as violadoras da Lei Maior, as incompatíveis com a te- leologia dos institutos. A ordem jurídica contém uma única voz de comando', uma plena coerência na diversidade dos assuntos regulados. 6 7 Sob o aspecto conceptual, na obra Introdução ao Estudo do Direito, capítulo 30, abordo amplamente a temática do direito subjetivo. Op. cit., v. 2, § 56, p. 271. 50 Filosofia do Direito | Paulo Nader Por mais competente e dedicado em suas funções, o legislador não consegue elaborar a ordem jurídica, embora seja esta a sua missão. Dada a enorme extensão do ordenamento, formado por excessivo número de leis, que abrangem numerosos institutos jurídicos, a plena harmonia das normas c sempre um alvo a ser persegui do por todos os segmentos atuantes na vida jurídica. Além do legislador, a doutrina e a jurisprudência exercem importante papel nesta definição. Uma vez que a lei nem sempre se apresenta em condições de ser aplicada como a sua linguagem sugere, prima facie, entende Michel Troper que o legislador não cria normas, apenas enunciados. A norma só passaria a existir quando ocorres se a significação do enunciado, e esta é atribuída pela instância julgadora, mediante a interpretação da lei.8 Esta opinião se revela tecnicista, nada prática e implica uma subversão da ordem, pois, implicitamente declara que os casos sub judice somente terão uma norma reitora a posteriori, quando de sua interpretação em juízo. Ora, quando se afirma que a anterioridade da lei é um princípio de segurança jurídica, a referência é à anterioridade das normas e não dos enunciados. A conclusão dc Michel Troper não se aplica também às cláusulas gerais e aos conceitos jurídicos indeterminados, de vez que a própria norma, para ganhar operabilidade, autoriza o julgador a preencher as suas lacunas. A apuração da ordem jurídica tende a se tomar tarefa complexa e fugidia à medi da que se multiplicam as fontes formais do Direito, provocando a inflação legislativa. A ampliação do Direito Positivo gera a divisão do seu campo normativo, levando à formação dc novos ramos, sub-ramos e microssistemas. A visão da totalidade da ordem jurídica toma-sc, então, inacessível aos cultores do Direito, por mais sábios e bem informados que sejam. Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892- 1979), gênio brasileiro do século XX, dos nossos juristas foi o que produziu mais extensa mente. O seu extraordinário legado abrange o Direito Privado como um todo, enquan to a sua produção na esfera do Direito Público limitou-se ao Direito Constitucional e ao Direito Processual Civil (v. item 150.1). Diante da expansão da árvore jurídica, a tendência é nossos autores se dedicarem a campos normativos mais restritos. As especialidades exigem dc seus cultores, imperiosamente, a noção dos princípios e normas situados em áreas diversas, mas que afetem a compreensão do campo investigado. Qualquer que seja o instituto ou o ramo a que se dedique, o jurista deverá buscar a sua compreensão a partir de estudos centrados na Cons tituição da República. 19.2. Coerência do ordenamento e normas antinômicas. No discurso ló gico não há lugar para a incoerência, para a quebra de harmonia, pois a sua com posição se funda na razão e os métodos adotados guiam, conduzem o pensamento ao encontro da verdade científica. Para que o Direito cumpra a sua finalidade, não pode se dissociar da Lógica, pois há de se orientar por critérios que harmonizem o seu conjunto normativo, forneçam subsídios ao intérprete c se façam presentes 8 Op. cit., p. 76. Cap. 4 I Conceito do Direito na solução dos problemas encaminhados aos tribunais. A cssencialidade da Lógica Jurídica não pode ser colocada em dúvida; discutível, sim, o tipo de raciocínio mais adequado na análise dos casos concretos. Quando o operador jurídico depara com duas normas antinômicas, eviden temente apenas uma c obrigatória, sendo possível a conclusão de que ambas, por motivos diversos, não integrem a ordem jurídica. Antes de concluir pela existência da contradição, o operador exaustivamente deverá ter esgotado os recursos lógicos de que dispunha para excluir a hipótese de conflito apenas aparente. Pode ser que uma norma contém regra geral, enquanto a outra dispõe sobre exceção. Em uma boa técnica legislativa, a exceção vem em parágrafo do artigo, enquanto a regra geral, no caput. Com alguma frequência as duas orientações se apresentam em ar tigos ou até mesmo cm seções distintas; daí a temeridade de se interpretar as partes sem o conhecimento prévio do todo. Configurada a antinomia, ou seja, para determinado suposto normativo haver duas normas com disposições diversas, o método deverá ser de depuração, a fim de se identificar a norma prevalente. Em primeiro lugar devem ser considerados os tipos de fontes. Se uma provém de lei e a outra, de decreto, não sendo o ato de competência exclusiva do executivo, prevalecerá a norma legal. Quando no conflito concorre uma lei federal com uma estadual, a Lei Maior deverá ser consultada para a definição da esfera autorizada a disciplinar a matéria. Se a competência for concorrente, vigente será a da lei fe deral. Se as normas conflitantes integrarem fontes de igual natureza, a prevalência será a promulgada em segundo lugar. Esta orientação não prevalecerá, todavia, diante do princípio “Lexposterior generalis non derogat legipriori speciali” (“a lei geral posterior não derroga a especial anterior”). Tratando-se de normas antinô micas presentes no mesmo ato legislativo, a prevalência deverá ser da que se har monizar com a orientação geral do texto ou do instituto jurídico correspondente. Entre a lei e a jurisprudência há de haver plena harmonia, mas isto não impede que a fonte legislativa contrarie a orientação dos tribunais, salvo se as normas pro mulgadas forem inconstitucionais. Com as súmulas vinculantes o Supremo Tribunal Federal fixa a interpretação da ordem jurídica, a qual passa a ser obrigatória para as jurisdições de grau inferior e para os atos administrativos. Tais súmulas, todavia, podem perder a sua vigência se lei posterior, regular, alterar a sua orientação. 19.3. Espécies de contradições jurídicas. As contradições, a seguir con sideradas, situam-sc no plano legislativo e não na ordem jurídica, pois esta, por definição, consiste em um todo normativo harmônico. As contradições foram clas sificadas por Karl Engisch em cinco modalidades: a) contradições técnicas; b) con tradições normativas; c) contradições valorativas; d) contradições teleológicas; e) contradições de princípios.9 9 Introdução ao Pensamento Jurídico. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1968, p. 254. 52 Filosofia do Direito | Paulo Nader Por contradições técnicas Engisch considera a falta de homogeneidade na terminologia adotada pelo legislador em diferentes textos e exemplifica com a noção de funcionário público, diversamente adotada no Direito Administrativo e em sede Penal. Nas contradições normativas a antinomia se localiza na dualidade de conduta prevista no ordenamento: enquanto uma proíbe, a outra ordena. De um lado, o or denamento “prescreve a obediência incondicional às ordens de um superior e, ao mesmo tempo, proíbe a prática de certos atos puníveis O exemplo a que recorreu Karl Engisch nos parece mais de contradição aparente. Nas contradições valorativas as disposições consagram valores antitéticos. Como se sabe, o valor, ao lado da norma e do fato, c um dos componentes do Direi to. Ao elaborar uma lei, o legislador emite juízos de valor, estimativas, que variam entre o bem e o mal, entre o bom e o ruim, ou seja, adota os valores positivos ao mesmo tempo em que rejeita os negativos. Se uma ou várias leis adotam valores que se contrapõem, tcr-sc-á configurada a hipótese sub examine. Na opinião de Engisch, diante de uma contradição da espécie deve-se considerar a possibilidade de eliminação do conflito mediante a técnica da interpretação. Com menor incidência são as contradições teleológicas, manifestas quando se apura que os fins colimados não são alcançáveis por falta de meios: “O legisla dor visa a um fim com determinadas normas, mas através de outras normas rejeita aquelas medidas que se apresentam como as únicas capazes de servirem de meio para se alcançar tal fim. ” Engisch considera a possibilidade de, na prática, a hipó tese configurar: a) uma lacuna insusceptível de preenchimento; b) uma contradição normativa e, como tal, ser solucionada.10 É a partir de princípios gerais e específicos que se elabora a ordem jurídica, aplicando-se o método dedutivo. Posteriormente, o intérprete, valendo-se do mé todo indutivo, revela os princípios norteadores do ordenamento. Nas contradições de princípios constata-se a presença, nas leis, de guias ou diretivas incompossíveis. Pensamos que, na hipótese de a hermenêutica ser impotente para solucionar o con flito, deve-se recorrer ao princípio da ponderação de bens. Da maior gravidade é a contradição entre os princípios segurança jurídica e justiça, pois enquanto o primeiro orienta no sentido de se aplicar a norma ainda que injusta, o valor justiça desconsidera como jurídica a norma que atenta contra os seus princípios funda mentais. Como diz Karl Engisch, “nestas formulações vai implícito um complexo de questões que transcende o problema das possíveis contradições9*.u O problema do conflito entre os dois valores tem sido objeto de nossos reiterados estudos e dos quais resultaram a Concepção Humanista do Direito.12 10 11 12 Op. cit., p. 259. Op. cit., p. 263. A Concepção Humanista do Direito é estudada no Capítulo 6, intitulado Justiça e Segurança Jurídica. Cap. 4 | Conceito do Direito 20. DIREITO, MORAL E REGRAS DE TRATO SOCIAL 53 A nossa compreensão sobre o Direito não estará completa se não tivermos consciência de que não é ele o único instrumento de controle da sociedade e se não soubermos distingui-lo, claramente, das demais normas sociais. É que, ao seu lado, atuando sobre o comportamento interindividual, existem os campos da Moral, Re ligião e das Regras de Trato Social, que não encerram antinomias ou conflitos en tre si e atuam cumulativamente, desenvolvendo funções próprias, colimando fins convergentes e complementares. Tanto as normas jurídicas quanto as não jurídicas são fundamentais à convi vência e harmonia entre os indivíduos, mas são as primeiras que tomam possível a sociedade. Esta perspectiva de pensamento encontramos em Alberto Trabucchi, para quem o Direito se distingue dos demais instrumentos de controle porque cons titui o “princípio de coesão social, sem o qual a sociedade civil se dissolveria na anarquia“.13 As normas não jurídicas, além de influenciarem o Direito, contri buem para o bem-estar social. O Direito se distingue dos demais instrumentos de controle social sob vários aspectos. Em primeiro lugar apenas ele se subordina ao comando estatal. Embora nem todas as normas jurídicas sejam criadas pelo Estado, haja vista as de proce dência consuetudinária, o fato c que ele exerce o controle do Direito, definindo-lhe o sistema, além de promulgar leis. É também o único instrumento que possui a reserva de força como garantia de sua efetividade. Os demais contam apenas com mecanismo de constrangimento psíquico. A teleologia do Direito é a da garantia das condições básicas de convivência social. Ainda que a função do Direito se amplie atualmente para atender ao bem-estar e progresso dos homens, a sua meta básica é de promover a ordem na sociedade, e o valor do justo de que se ocupa é o que diz respeito apenas à essa ordem. O Direito não visa, portanto, a esgotar a potencialidade desse valor nas relações sociais. No convívio social existem, assim, questões de justiça que escapam ao controle das regras jurídicas e se subordinam a outros processos normativos. Não é pelo conteúdo de suas normas que o Direito se distingue, uma vez que regula um grande acervo de fatos pertinentes, também, à esfera Moral, como os relativos à incolumidade da vida e da liberdade. Há fatos ligados às Regras de Trato Social que, em determinadas circunstâncias, figuram como objeto de normas jurídicas, como as convenções sobre protocolo. Afirmar, como Michel Tropcr, que “não existe ação humana que não possa ser regrada pelo direito ”,14 c incidir em verdadeira heresia jurídica. Cabe à Ciência do Direito, com apoio da Filosofia e Sociologia Jurídicas, redimensionar o campo legítimo de atuação do legislador. 13 14 Instituciones de Derecho Civil. Trad. espanhola da 15. ed. italiana. Madrid: Revista de Dere- cho Privado, 1967, v. 1, § 1, p. 3. Op. cit., p. 87. 54 Filosofia do Direito | Paulo Nader Dc todos os instrumentos de controle social apenas o Direito apresenta atri- butividade, que é a sua prerrogativa de conferir exigibilidade. As normas jurídi cas tanto quanto as demais espécies impõem deveres, mas apenas elas possuem estrutura imperativo-atributiva, isto é, além de definir deveres, atribuem direitos subjetivos. Quem desrespeita a norma moral ou a uma regra de trato social não pode ser compelido autarquicamente a promover reparações. Situação diversa é a do indivíduo que causa danos a alguém, pois o órgão judicial poderá ser acionado pelo lesado c coercitivamente promover o ressarcimento. Não só o Direito, mas todas as normas de conduta social são dotadas de san ções para a hipótese de quebra do dever. Todavia, a sanção jurídica, diferentemente das demais, atinge o plano material ou dc liberdade do indivíduo, enquanto as demais normas alcançam apenas o plano espiritual. A sanção jurídica pode esta belecer a pena pecuniária ou a privativa dc liberdade, mas as demais se limitam à censura, reprovação, expulsão do grupo, remorso. As normas jurídicas, em face do princípio da segurança jurídica, estabelecem as sanções que poderão ser aplicadas na hipótese de sua violação. Previamente os interessados poderão avaliar o tipo de sanção incidente e a sua intensidade. Isto não sucede com as demais normas so ciais, que não são codificadas. Quem pratica a delação contra colegas certamente será criticado pelos membros de seu grupo. A reação deste, todavia, geralmente não é previsível. Desde que a missão do Direito é regular o convívio e prover a ordem social, via de regra as suas normas se referem apenas ao plano externo das pessoas, de tal modo que, uma vez observada objetivamente a conduta exigida, a obrigação estará devidamente satisfeita. Não importa, assim, se o devedor, com má vontade ou revolta, pague ao seu credor. No mesmo sentido as Regras dc Trato Social, que se contentam geralmente com a exterioridade da conduta. As regras morais, ao contrário, impõem-se fundamentalmente no plano da consciência. Um exemplo prático esclarece a distinção: se por falta de oportunidade o indivíduo não pratica um delito, não terá cometido infração legal, mas terá capitulado diante das regras morais. Há hipóteses, todavia, em que ao Direito é relevante apurar o plano da intencionalidade e isto ocorre diante apenas de algum fato concreto. O cirurgião, v.g., que leva à morte o seu paciente poderá ou não ter cometido delito. Impõe-se, nessa hipótese, a pesquisa do elemento subjetivo, finda a qual poder-se-á classifi car o fato como lícito ou ilícito. 21. A IDEIA DO DIREITO NATURAL COMO DIVISOR DE CORRENTES Embora tenhamos dedicado capítulos específicos às doutrinas do Direito Na tural e do Positivismo Jurídico ao desenvolvermos o estudo Filosofia do Direito Contemporânea, julgamos necessárias aquelas noções, ainda que propedêuticas, na fase inicial desta obra. Isto porque carregam consigo ideias básicas, em função das quais se define o perfil do homo juridicus e o mérito de questões. A ideia do Direito Natural, como se verá, constitui um verdadeiro divisor entre as correntes doutrinárias. De um lado, há os juristas que reconhecem a sua Cap. 4 | Conceito do Direito 55 existcncia e, de outro, os que a rejeitam. Aqueles são chamados jusnaturalistas e estes, juspositivistas. Múltiplos são os fundamentos de uma e de outra corrente; daí, como diz Michel Troper, “épreferívelfalarmos dejusnaturalismos epositivis- mos, no plural”}' Entre as mais diversas correntes jusnaturalistas, talvez o deno minador comum seja o entendimento de que o Direito Natural contem orientação substancialmente justa. A ideia do Direito Natural surgiu com as primeiras reflexões em tomo das leis, na Grécia antiga, com Heráclito de Éfeso (provavelmente 535-470 a.C.) c Só- focles (494-406 a.C.). Heráclito sustentava a existência de uma lei universal eterna - o logos - responsável pela harmonia entre os opostos e reveladora das normas de conduta. Na conhecida tragédia Antígone, Sófocles se refere à existência de leis não escritas, imutáveis, etemas, superiores aos decretos dos reis. Daquela época aos nossos dias, muitas têm sido as concepções em tomo desta ordem superior e, em nenhum momento da história, a ideia foi abandonada. Isto se justifica porque a só existência do Direito Positivo implica admitir que não há limites para o Estado na elaboração da ordem jurídica. Como esta conclusão é incompatível com o senso ético, o homo juridicus é levado a projetar a esfera do Direito Natural. Mais no passado do que no presente, muitos pensadores conceberam a ideia de um Direito Natural de origem divina e que seria etemo, imutável e universal. Alguns o identificavam como um conjunto de princípios, enquanto outros iam além e formulavam verdadeiros códigos de Direito Natural. Tal concepção aba lou a credibilidade da doutrina, pois, se aquele Direito seria universal c imutável, como se explicar a divergência de pensamento entre os expositores? O escorço histórico revela três grupos de jusnaturalismo, que se diversificam em razão da fonte concebida: o jusnaturalismo cosmológico, que deriva o Direito Natural da ordem natural das coisas; o teológico, para quem ele emana direta mente da vontade divina e o jusnaturalismo antropológico, que indica a natureza humana como a grande fonte, de onde os juristas-filósofos recolhem os princípios, a partir dos quais deverão ser elaboradas as leis. Na pós-modemidade prevalece o jusnaturalismo antropológico. A experiência revela os princípios fundamentais do Direito Natural; para tanto o pesquisador adota o método indutivo. Observando o que há de peculiar na pessoa humana, a sua na tureza física c espiritual, seus anseios, instintos, tendências, o investigador infere os princípios pertinentes ao direito à vida, à liberdade, à igualdade, dentro de uma equa ção social. Ou seja, o meu direito termina onde começa o direito do meu semelhante. O método pelo qual se chega aos grandes princípios é o indutivo; posteriormente, ao se elaborarem os códigos o legislador segue o método dedutivo: dos princípios consagrados conclui as numerosas regras de organização e de conduta social. A ideia do Direito Natural contribui para o aperfeiçoamento da ordem jurídi ca e das decisões judiciais, impregnando-as com o justo substancial. Ao elaborar as 15 Op. cit., p. 21. 56 Filosofia do Direito | Paulo Nader leis, inspirando-sc naquela fonte, o legislador resguarda a dignidade da pessoa na tural, tutela os direitos humanos. Especialmente diante das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, os juizes possuem aberturas para consagrar o princípio da cticidade em suas decisões. Para a doutrina positivista, por Direito devem-se entender apenas as regras de conduta ou de organização social impostas pelo Estado. Seus adeptos entendem que a propalada ideia do Direito Natural nada mais seria do que um conjunto de princípios de natureza ética, destituídos de poder de coerção. O pensamento posi tivista considera Direito apenas a ordem institucionalizada pelo Estado. Para ele, nada há de jurídico além dos princípios c normas convencionais. Admitir a possi bilidade de ditames superiores seria relativizar o Direito Positivo. A evolução histórica das instituições jurídicas culmina, no primeiro quartel do século XXI, por apresentar, em nosso país, uma ordem jurídica afinada, de um modo geral, com o Jus Naturae. Para esta conclusão, basta a consulta à Lei Maior, que identifica o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. E este princípio tem influenciado a elaboração de leis e de sentenças judiciais. A par deste princípio, os direitos humanos fundamentais estão consagrados de um modo satisfatório no elenco dos direitos e garantias fun damentais, ex vi do artigo 5o da Constituição Federal. Tais referências indicam a influencia do Direito Natural na elaboração da ordem jurídica. Nos Estados democráticos de Direito, dado o inerente respeito à dignidade da pessoa humana, os juristas não se preocupam tanto em destacar a importância do Direito Natural. Este e seus derivados - direitos humanos - são objeto de exalta ção notadamente nos regimes totalitários, de exceção, quando os juristas visam a formar uma consciência em tomo da ilegitimidade da ordem jurídica, carecedora dos instrumentos básicos da igualdade de oportunidade e de leis substancialmente justas. A consciência formada constitui um passo para a implantação do Estado de Direito. Capítulo 5 DIMENSÃO AXIOLÓGICA DO DIREITO Sumário: 22. A noção de valor. 23. Valor e ontologia. 24. Direito e valor. 25. Classificação dos valores jurídicos. 22. A NOÇÃO DE VALOR Pelo fato de o homem não bastar a si próprio, investiga a natureza na busca de objetos que supram as suas carências. Por não se contentar com a satisfação de suas necessidades primárias, concebe inventos e constrói o mundo cultural. Procura adaptar o mundo exterior à sua vida ao mesmo tempo em que cuida de sua própria adaptação à realidade objetiva. Nessa pesquisa de recursos, o homem classifica os objetos cm positiva e negativamente valiosos, tanto que favoreçam ou contrariem os fins a que visa alcançar. Em relação a um objeto, o homem pode emitir juízo de realidade e juízo de valor. Pelo primeiro, o sujeito cognoscente procura conhecer o objeto, inteiran do-se de suas peculiaridades e características. Ao pesquisador não importa, nesse processo, as reações que o objeto lhe proporciona nem estão em jogo as suas pre ferências. Há de constatar a realidade tal como ela se lhe apresenta. Conhecido o objeto, é natural que o homem proceda ao juízo de valor, momento em que consi dera tanto as propriedades ou qualidades que são oferecidas por aquele quanto as suas próprias necessidades. No universo das coisas, segundo Garcia Morente, nada há indiferente para o homem, pois todas possuem valor, positivo ou negativo.1 Pensamos que a assertiva é verdadeira se considerarmos os interesses do gênero humano, não os do indivíduo concreto. Este, diante de um objeto, pode apresentar três reações distintas: sentimento de aprovação, de rejeição, de indiferença. Um aparelho ortopédico, consultado o interesse do gênero humano, é objeto que en cerra valor positivo. Em face, porém, de um indivíduo em particular, que dele não necessita, é algo indiferente. Embora nos seja familiar a noção de valor, complexa e difícil é a sua teori zação, a começar pelo problema de sua definição, que não é possível pelo método 1 GARCÍA MORENTE, Manuel. Op. cit., p. 294. Filosofia do Direito | Paulo Nader lógico, segundo o qual definitio fitper genus proximum et differentiam specificam. Isto porque a ideia de valor é considerada conceito-limite, carecendo de outros conceitos em que se possa fundar. Tanto quanto se diz que “ser é o que é”, pode-se afirmar que “valor é o que vale”, consoante Lotze c Miguel Reale.2 O conceito de ser c de valor são irredutíveis. Na polêmica sobre o problema da localização dos valores, a corrente do subjetivismo axiológico, defendida por Ortega y Gasset, Meinong, Christian von Ehrenfels, entre outros, sustenta a tese de que os valores não têm validade por si, visto que o sujeito atribui significado às coisas de acordo com a reação positiva ou negativa que lhe provocam. Para Ortega, o sujeito confere dignidade ao objeto, atribuindo-lhe valor conforme o prazer ou agrado que lhe traz. Ehrenfels pensa que um objeto c valioso na medida em que o desejamos. O objetivismo axiológico, seguido notadamente por Max Scheler e Nicolai Hartmann, julga que a existência dos valores independe do sujeito, pois prescindem de estimativa ou conhecimento. Os valores teriam existência em si e por si. Para Hartmann, os valores são essências que integram a ordem do ser ideal, existem autonomamente e possuem o caráter de princípios, não dependendo, assim, de rea lização. Segundo Max Scheler, os valores independem da variedade de formas de projeção e continuam existindo ainda que as coisas se modifiquem. O valor da ami zade não desaparece quando alguém pratica um ato de traição ao amigo. Para Sche ler c Hartmann, os valores formam uma ordenação hierárquica absoluta e imutável, que pode ser intuída em um conteúdo apriorístico. A intuição axiológica conduziria a resultados tão categóricos c claros quanto aos da Lógica e da Matemática, mas da mesma forma que as expressões dessas ciências de objetos ideais não são acessíveis à compreensão de todos, há os que não são capazes de atingir a perfeita intuição dos conteúdos axiológicos. Tal concepção à luz do Direito foi criticada por Hein- rich Hcnkel, pois a intuição certeira c a hierarquia absoluta levariam à elaboração de sistemas jurídicos homogêneos, mas bastaria um breve estudo comparatista das ordenações jurídicas para se constatar a diversidade das valorações.3 Para que alguém atribua valor a um objeto é preciso que este reúna proprie dades que satisfaçam às necessidades daquele. A par de tal entendimento, pode-se cogitar de uma escolha universal de valores, comuns ao gênero humano pelo que este possui de constante, pelo que lhe é próprio. Assim considerando, é inequívoco o caráter absoluto dos valores. Foi sob esse ângulo que Garcia Morente, ao desen volver a análise ontológica dos valores, afirmou que eles são absolutos.4 Para o fi lósofo espanhol, os valores seriam alheios ao tempo, ao espaço e à quantidade. Ao tempo, porque os valores não se modificariam historicamente, ainda que houvesse divergência de opiniões em épocas diferentes. Dizer, por exemplo, que há ações que foram consideradas justas cm uma fase e injustas em outra não seria uma ob 2 3 4 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 187. HENKEL, Heinrich. Introducción a la Filosofia del Derecho. Madrid: Taurus, 1968, p. 397. GARCÍA MORENTE, Manuel. Op. cit., p. 298. Cap. 5 I Dimensão Axiológica do Direito jeção, pois seria o mesmo que se apregoasse que antes de Pitágoras o seu teorema não seria verdadeiro ou que, antes de Newton, não havia a lei de gravidade. Os va lores seriam alheios ao espaço, pois não perderiam a sua qualidade com a variação de lugares. Assim, um quadro não poderia ser belo em uma cidade c feio em outra. Em relação à quantidade, os valores também seriam independentes, pois não seria possível contá-los ou dividi-los. Para Garcia Morente os valores não seriam coi sas, nem elementos das coisas, nem integrariam a categoria do ser, mas do valer. Enfim, para ele “os valores são qualidades de coisas, qualidades irreais, qualidades alheias à quantidade, ao tempo, ao número, ao espaço, e absolutas”. Entre os caracteres dos valores, a exemplo de Miguel Reale, distinguimos a bipolaridade, incomensurabilidade, implicação, referibilidade, preferibilidade e graduação hierárquica. Bipolaridade significa que a cada valor positivo cor responde um negativo: amor e ódio, justiça e injustiça. Incomensurabilidade é a nota que corresponde à não quantificação dos valores, no sentido de que estes não podem ser dimensionados em números. Assim, não há como se julgar que um qua dro artístico seja duas ou três vezes belo. A característica de implicação consiste no fato de que os valores se realizam historicamente em um processo que influi na realização de outros valores. A seleção de valores não se faz por acaso, mas de acordo com um sentido ou direção, afigurando-sc tal necessidade de sentido ou re feribilidade como outra de suas características. Conforme Miguel Reale, os valores são entidades vetoriais, no sentido de que apontam sempre para um determinado fim.5 A nota de preferibilidade revela que a escolha ou opção entre valores implica a identificação do sujeito com o objeto valorativo em determinado momento. A adesão a um valor corresponde a um juízo de preferencia. Os valores se apresen tam ao espírito humano como um leque de múltiplas opções, pelo que impõem a organização de uma ordem de preferência, de uma graduação hierárquica. Esta existe também no mundo do Direito, tanto no que se refere aos valores jurídicos quanto aos valores referidos pelo ordenamento. Relativamente à classificação dos valores, apresentamos uma listagem gené rica elaborada por Max Scheler: valores úteis (adequado, inadequado, conveniente, inconveniente); valores vitais (forte, fraco); valores lógicos (verdade, falsidade); valores estéticos (belo, feio, sublime, ridículo); valores religiosos (santo, profano); valores éticos (justo, injusto, misericordioso, desapiedado). Os valores jurídicos foram situados entre os de natureza ética. Ao traçar a hierarquia dos valores, Max Scheler discriminou a seguinte ordem: valores religiosos, éticos, estéticos, lógicos, vitais, úteis.6 23. VALORE ONTOLOGIA Não estão acordes os filósofos quanto à situação dos valores perante o quadro da ontologia regional, pois enquanto alguns reconhecem a sua autonomia ôntica, 5 6 REALE. Miguel. Op. cit., p. 190. Apud GARCÍA MORENTE, Manuel. Op. cit., p. 300. Filosofia do Direito | Paulo Nader outros lhe negam essa possibilidade. Os objetos, materiais ou espirituais, que cer cam os homens e envolvem seu pensamento, distribuem-se por faixas ontológicas, que possuem caracteres e métodos próprios. Ao elaborar o seu quadro da ontologia regional, Carlos Cossio contempla os objetos ideais, naturais, culturais c metafísicos, mas indaga-se: os valores se classificam em uma das categorias ali dispostas ou virtualmente possuem nature za independente, constituindo uma faixa ontológica à parte? Alguns pensadores reduzem os valores à condição de simples componentes dos objetos culturais, sem expressão própria. Tais objetos, que se formam pela atividade humana dirigida, além de determinado suporte corpóreo ou espiritual, reúnem valores. Integrando o mundo da cultura, o Direito apresenta suporte não corpóreo, formado pela con duta social, c valor. Desde que o mundo axiológico pode ser referido como sujeito de um juízo lógico, pensamos que deva ter presença autônoma no quadro da onto logia regional. Em estudo anterior, sob a influência de Recaséns Siches, situamos os valores entre os objetos ideais de conotações próprias.7 Sob alguns estímulos, notadamente de Miguel Reale, evoluímos em nossa concepção, reconhecendo, atualmente, plena autonomia nos valores. Não obstante estes se apresentem im pregnados nos objetos reais, apenas se projetam e sem exaurimento. Eles não se identificam com as coisas em que se corporificam, apenas se manifestam. Antes de serem consagrados, existem como princípios, consoante as doutrinas de Max Schcler e Nicolai Hartmann. Se há notas comuns entre valores e objetos ideais, nem por isso aqueles se reduzem nestes. A bipolaridadc, característica essencial aos valores, é apenas possível entre os objetos ideais e enquanto estes são quanti ficáveis, aqueles são imensuráveis. 24. DIREITO E VALOR Que o Direito tem algo a ver com valores é um fato da experiência. A controvérsia surge quando se questiona o grau de importância do valor na for mação do Jus Positum. As estimativas não apenas fazem parte do Direito como integram a própria vida humana. Sc há um compartimento filosófico que se acha profundamente teorizado, mas cuja compreensão se funda na experiência do cotidiano, esse é o do mundo dos valores. O ato de viver implica valorar. Estabelecendo planos de vida, o homem atribui valor às coisas na medida cm que, por suas propriedades, satisfaçam aos seus interesses. O ato de viver exige o ato de criação de meios que viabilizem a existência; a criatividade é seletiva, discriminadora, pois o homem procura desvencilhar-se do que lhe parece o mal e realizar o que lhe parece o bem. A ação humana é busca permanente do posi tivamente valioso, do que atende às necessidades do ser racional. Nem sempre se logra êxito na procura. Os objetos culturais, que resultam do trabalho do ho mem, realizam sempre valores. Embora estes possam ser negativos, o empenho 7 Introdução ao Estudo do Direito. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, § 30, p. 66. Cap. 5 | Dimensão Axiológica do Direito 61 do homem é no sentido de concretizar os valores positivos, aqueles que suprem as suas necessidades. Como o Direito é processo elaborado, não produto espontâneo da natureza, o valor é um de seus componentes básicos. É que o engenho humano, como objeto cultural, realiza valor. Parte de um macroprojeto de vida, o Direito é instrumento de aprovação do bem e de rejeição do mal. Ao disciplinar o convívio social em qualquer aspecto, o Direito apresenta um juízo de valor. A lei, ao proibir uma conduta, emite juízo de reprovação. O critério da fonte elaboradora assenta-se em base ética. Ao captar a noção de bem no mundo objetivo, onde a natureza humana é dado fundamental, a Moral limita c condiciona a ação do legislador, levando-o a acatar certos princípios. A formação da ordem jurídica, que visa à conservação e ao progresso da sociedade, não se processa aleatoriamente, mas à luz de postulados éticos, e o Direito criado não apenas é irradiação de princípios morais como tam bém força aliciada para a propagação e respeito desses princípios. Nem todos os valores jurídicos dimanam, todavia, da Moral. Valores outros integram a justiça em seu sentido amplo, como os relativos aos esportes, à cultura, à saúde, à produção das riquezas. Tendo em vista que o quadro social é móvel e exige a reformulação jurídica permanente, novas regras de conduta social são cogitadas. O poder elabo- rador planeja esquemas normativos capazes de manter íntegro o edifício social c, para tanto, mediante reflexão e juízos de valor, impregna a nova realidade jurídica com o sentido do justo. Ainda quando falho o critério da fonte, haverá normas consagrando valores, embora negativamente. Além de realizar valores, o Direito dispõe sobre valores, isto porque, ao dis ciplinar as relações de convivência, procura exercer a proteção dos bens que pos suem significado para o ser racional. A vida, a liberdade, o patrimônio são valores relevantes para o homem, já que essenciais à sua vida. Eles são valores exponen ciais e alvo da maior atenção do homem. Em cada norma jurídica vislumbramos dupla incidência valorativa: o valor humano e o jurídico. A norma refere-se a algo que o homem estima e o faz consagrando valores jurídicos, como a justiça e se gurança. A seleção dos valores humanos que deverão ser alcançados pelas normas compete à Política Jurídica, mas esta se vale dos subsídios da Sociologia Jurídica e Filosofia do Direito. A ciência da coletividade indica focos de atrito social à estrutura de poder, enquanto a scientia altior do Direito aponta os desajustamentos éticos. Embora qualquer filosofia seja reflexão incondicionada, o legislador parte sempre, em suas investigações éticas, de ideologias que comandam o Estado. A Filosofia do Direito aplicada se apresenta, assim, interligada c dependente da Fi losofia do Estado. Ao tutelar os interesses humanos, as normas podem buscar o bem comum pela proibição de uma conduta que se reconhece perniciosa, ou impondo a reali zação de um comportamento que se julga necessário. Isto é uma decorrência da característica de bipolaridade, segundo a qual a todo valor positivo corresponde um negativo. O legislador pode empregar uma linguagem onde realce valores posi tivos e apenas indiretamente exclua, ou condene os negativos. Se o texto legislado 62 Filosofia do Direito | Paulo Nader dispõe que a liberdade é um direito fundamental e a ser preservado sob pena de determinadas consequências, implicitamente, contém uma regra de proibição. Po deria, diferentemente e como alternativa, referir-se ao valor negativo ou desvalor, vedando expressamente condutas de cerceamento da liberdade. Esta é um valor positivo, enquanto o cerceamento do amplo direito de ir-e-vir é valor negativo ou desvalor. Tanto os valores jurídicos quanto os tutelados pelo Direito possuem um nú cleo imutável e uma parte suscetível de variação e que evolui historicamente. Como o Direito é uma ordem racional que se refere ao ser humano em socieda de e não possui conteúdo puramente convencional, já que expressa fundamental mente a natureza de seus destinatários, há de apresentar um acervo de princípios, regras básicas e valores permanentes. Paralela e secundariamente, esse substrato jurídico se desdobra em elementos mais específicos, que vão reger diretamente a realidade social. As alterações que se processam no meio social em decorrência dos avanços científicos e tecnológicos impõem uma revisão nos valores sociais. A própria Moral positiva não se acha infensa a transformações. Conforme Evandro Agazzi adverte, a reflexão moral deve acompanhar o surto de progresso, sob pena de não ser tomada a sério.8 No âmbito da Moral, o desenvolvimento implica, de um lado, a consideração e análise dos novos fatos e, de outro, a adoção de diversos valores sintonizados com a realidade. O senso moral não pode ficar alheio diante do fenômeno de transplante de órgãos animais, de métodos anticoncepcionais, da inseminação artificial. Enquanto o substrato jurídico é imutável, o seu desdobramento é cambiável. A liberdade, como valor humano puro, é categoria permanente e indissociável do ser racional. Em sua concreção, tal valor alca nça formas variáveis no tempo e no espa ço. Isto ocorre, também, com a justiça, que é o valor máximo do Direito. Há o justo, cujas medidas se modificam de acordo com as altitudes c latitudes, c há o justo abso luto, que, por se referir a fatos não convencionais, que expressam o natural existente no homem, apresenta fórmulas tão permanentes quanto a natureza humana. Os valores se fazem presentes nos sistemas jurídicos por intermédio de nor mas; emergem-se com os padrões de conduta ou modelos de organização estabe lecidos pelo poder. Ao seguir as normas jurídicas, os destinatários destas realizam valores, aqueles que o poder social reconheceu como oportunos ao equilíbrio so cial. Os valores jurídicos não guardam, todavia, absoluta dependência às normas, visto que se manifestam também em princípios consagrados ao longo dos tempos. Com alguma frequência, os tribunais recorrem aos princípios gerais de Direito na solução de casos. Ainda que se identifique a natureza desses princípios com os do ordenamento jurídico, há de se admitir a hipótese de se recorrer à heterointegração na busca de princípios aplicáveis. E essa ocorre sempre que o sistema não oferece o recurso que se procura. O valor advirá, então, do Direito Natural, Direito Com parado, costumes, entre outras fontes. 8 AGAZZI, Evandro. A ciência e os valores. São Paulo: Loyola, 1977, p. 127. Cap. 5 I Dimensão Axiológica do Direito Dc acordo com a doutrina dc Rudolf von Ihcring, ao expor a sua teoria do fim , o Direito é telcológico, pois é um mecanismo que se ordena para a realização dc fins. Considerada o motor do Direito, a ideia do fim não se confunde com os valores. A ideia do fim constitui apenas uma expressão metodológica, pois cor responde a algo que se acha diferido, não presente e que exige implementação, um iter onde se deverá recorrer a meios adequados. E o alvo a ser atingido é re presentado sempre por um valor. Uma vez eleito o valor fundamental, estrutural, que se erige em fim do Direito, devem ser criadas as estruturas normativas que viabilizarão o desiderato. Na relação entre valores e fins, pensava Garcia Máynez que os primeiros condicionavam os segundos, pois os homens elevam à categoria de fim o que estimam valioso.9 Tomando-se a paz como o fim do Direito, como concebia Ihering, verificamos que ela c um valor, o qual, uma vez considerado o fim do Direito, pressupõe recursos sociais que induzam a vivência de valores que, no seu conjunto, promovem aquilo a que se aspira, ou seja, a paz. Os valores fazem parte da essencialidade do Direito. Este logra o seu fim na medida em que contém valores positivos. Em grande parte, a justificação do Direito se faz pela qualidade dos valores que encerra. Divergem, nesse ponto, as versões positivistas. A mais radical, como a assumida por Hans Kclsen com a sua Teoria Pura, não procede à análise dos valores, já que o Direito seria uma estrutura normativa a comportar qualquer conteúdo. As correntes espiritualistas reivindicam certos padrões éticos como suposto da legitimidade e validade intrínseca dos or denamentos. Objeto de grande questionamento é a chamada lei injusta, cujo estudo, por sua amplitude e complexidade, faz parte do cerne da Filosofia do Direito. Partindo da noção de que o Direito é instrumento para a realização da justiça, elevada esta à categoria de elemento essencial, alguns pensadores, de formação jusnaturalista, contestam validade à lei injusta, negando-lhe o selo de juridicidade. O modo como se concebe o Direito é a chave condicionadora da matéria. Sc se erige o valor jus tiça à condição de meta optata, não há como se reconhecer validade na lei injusta. O raciocínio há de ser lógico, como lógica é a conclusão dc que um objeto deixa de existir como tal no momento cm que lhe venha a faltar um componente essencial. Considerando que o objetivo imediato do Direito é proporcionar à sociedade as condições de equilíbrio ao seu exercício, vemos na segurança o valor jurídico de primeiro grau. A realização da justiça é um anseio, um complemento da maior im portância, que há de ser perseguido permanentemente e que nunca se exaure. Como o quadro social se acha em constante devenir e com ele o ordenamento jurídico, o aperfeiçoamento dos instrumentos do justo é uma busca perene. Para os centros de elaboração de normas jurídicas, tanto a ideia de justiça quanto a de Direito Natural devem figurar como referência nos processos seletivos, influenciando ainda, em consequência, nas etapas de interpretação e aplicação do Direito. 9 GARCÍA MÁYNEZ, Eduardo. Filosofia dei derecho. 2. ed. México: Editorial Porrua S.A. 1974, p. 414. 64 Filosofia do Direito | Paulo Nader A dimensão axiológica atua, no Direito, como fonte legitimadora, c a sua impropriedade gera problemas de efetividade que, em cadeia de efeitos, podem levar à perda de vigência. Observa-se, pois, que o injusto na lei não implica repú dio imediato. Se assim ocorresse, os sistemas jurídicos seriam vulneráveis, pois a sua validade objetiva dependeria da concordância de seus aplicadores quanto ao seu conteúdo ético. Embora se possa buscar na ordem natural das coisas as pautas axiológicas, com transparência de critérios objetivos, é inevitável a divergência nas avaliações. Se o critério do justo pudesse ser aferido mediante esquemas mate máticos, dever-se-ia considerar o valor justiça como elemento essencial ao Direito, com o peso de todas as consequências lógicas. Dado que o habitat do homem é o meio social, ele aspira ao estado de ordem e de justiça. Para obter a concreção de tais valores, em um processo de adaptação extraorgânica, o homem elabora o Direito. Este é um ordenamento cujo escopo é impor a vivência daqueles valores. Tanto os valores jurídicos quanto os da expe riência em geral são percebidos nitidamente pelo espírito humano, embora nem todos saibam defini-los. Enquanto a teorização dos valores é atividade intelectual ao alcance apenas de uma classe de filósofos, os homens atuam c interagem socialmente movidos por pautas axiológicas. O conhecimento que a generalidade dos homens possui é de natureza vulgar, adquirido pela vivência prática e produto da observação. Assim, não há quem não possua as noções de amor e ódio, prazer e dor, justiça e injustiça. Também por experiência, os homens elegem uma escala preferencial de valores. A índole das pessoas, sua personalidade e caráter revelam-se pela seleção e hierarquia de valores. Assim como a personalidade humana é evolutiva, também o é a tábua individual de valores. Esta se modifica também, cm certa medida, com transformações que se operam na vida humana. 25. CLASSIFICAÇÃO DOS VALORES JURÍDICOS Por ser a expressão do bem e devido ao seu amplo alcance, a justiça é o valor excelso que há de orientar na elaboração c aplicação do Direito. A justiça subs tancial, aquela que efetivamente proporciona o seu a cada um, é uma síntese de diversos valores jurídicos. Uma vez alcançada, outros valores se realizam, como a paz social, a liberdade, o bem comum. Com a aplicação da fórmula substancial mente justa não pode haver afronta àqueles outros valores. Tal não ocorre, todavia, em função do valor segurança jurídica que, além de um saber a que se ater, pro porciona a certeza de que a ordem jurídica contempla os interesses fundamentais da pessoa humana. Atenta contra o valor segurança jurídica o magistrado que, no afa de dar a cada um o que é seu, dentro de uma relação jurídico-processual con creta, abandona o critério legal e julga conforme a sua consciência, ainda que por uma decisão substancialmente justa. Justiça e segurança são os valores jurídicos fundamentais que, uma vez consagrados no ordenamento, dotam o Direito de um indispensável conteúdo ético. Em sua ampla compreensão, a dimensão da justiça não se limita a critérios reguladores de fatos. A ordem jurídica não será justa se Cap. 5 | Dimensão Axiológica do Direito omissa diante de questões sociais relevantes ou se deixar de estabelecer estímulos à realização de valores humanos ou sociais. Garcia Máynez classificou os valores jurídicos em três categorias: a) valores jurídicos fundamentais: justiça, segurança jurídica e bem comum, que, em seu conjunto, formam a ideia do Direito; b) valores jurídicos consecutivos: liberdade, igualdade e paz social; c) valores jurídicos instrumentais: valores que permitem a aplicação dos fundamentais e consecutivos. Nesta última categoria incluiu as garantias constitucionais, que atuam como instrumento à realização de valores ju rídicos de outras espécies.10 A ideia do bem comum, valor indicado por Tomás de Aquino como a cau sa final do Direito, é alcançada socialmente quando os membros da sociedade não carecem de recursos, materiais ou espirituais, indispensáveis à sua vida. Para Heinrich Hcnkel, a ideia do bem comum, que corresponde à regra fundamental de todo ordenamento jurídico, “existe anteriormente à toda conformação jurídica a que serve de diretriz e de convergência”.11 Pensamos que a ideia do bem comum, em certo sentido, acha-se compreendida no conceito de justiça social, valor esse comprometido com a distribuição mais equânime das riquezas. 10 11 GARCÍA MÁYNEZ, Eduardo. Op. cit., p. 439. HENKEL, Heinrich. Op. cit., p. 612. Capítulo 6 JUSTIÇA E SEGURANÇA JURÍDICA Sumário: 26. Considerações prévias. 27. Acepções do vocábulo Justiça. 28. Justiça, Direito e Moral. 29. Justiça e Religião. 30. Noção e espécies de Justiça como valor jurídico. 31. Regras de Trato Social como prática do justo. 32. O princípio da dignidade da pessoa humana. 33. Equidade. 34. John Rawls e a Justiça equitativa. 35. Segurança jurídica. 36. Concepção humanista do Direito. 26. CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS Podemos colocar em dúvida se a ideia de justiça é um dado essencial à noção de Direito; não, todavia, cm relação à Filosofia do Direito, da qual constitui objeto de grande abordagem. No plano conjetural, esta disciplina rectrix se esvazia de conteúdo se o pensador a exercita com abstração daquele valor excelso. O significado do valor justiça para o Direito não é idêntico para os juristas - -filósofos em geral. O de formação idealista tende a situar a justiça como a causa final do Direito. Este seria conjunto de normas impostas pelo Estado para a reali zação do justo. Destarte, se o ordenamento não se harmoniza com o grande valor, ter-se-á lei e não Direito. Em contrapartida, o homo juridicus de inclinação positivista identifica o Jus com os modelos normativos, independentemente de seu conteúdo axiológico. Ou seja, haverá Direito ainda que a lei se revele injusta. Em sua análise, relevante para o jurista c a constatação da constitucionalidade e ausência de qualquer outro vicio da lei, para que esta se apresente como Direito. Contenta-sc, pois, com a realização do valor segurança jurídica, considerado este tão somente como um saber a que se ater. Desde o início da vida gregária, o sentimento de justiça acompanha os seres humanos. A convivência sempre exigiu a prática do justo, ainda quando se conce bia este valor equivocadamente, à vista da sensibilidade ética e dos padrões atuais. Pensava-se que o instituto da escravidão, a discriminação contra a mulher c os estrangeiros, a Lei de Talião, correspondiam ao ideário do justo. A noção de justiça traz em si o princípio da alteridade, pois ser justo consiste em praticar a conduta devida em face de alguém. Como anotava Aristóteles, em 68 Filosofia do Direito | Paulo Nader Ética à Nicômaco, duas são as pessoas envolvidas na prática da justiça e dois os objetos distribuídos. Se a justiça é a meta optata do Direito, seu grande alvo, não constitui, entre tanto, um valor exclusivo deste instrumento de controle social. A segurança jurídi ca é, também, importante valor a ser consagrado pelo legislador c considerado nas decisões judiciais. Cumpre à Filosofia do Direito, conforme anteriormente salien tado, buscar a harmonia entre ambos c, não sendo isto possível, orientar quanto à prevalência à vista dos casos concretos. 27. ACEPÇÕES DO VOCÁBULO JUSTIÇA Na terminologia jurídica a palavra justiça constitui um termo análogo, pois se aplica em dois sentidos afins: de um lado, como valor a ser realizado nas relações interindividuais sob o comando da lei; de outro, como órgão público responsável pela aplicação do Direito aos casos concretos. Neste sentido, na mitologia grega havia a deusa da Justiça Diké, filha de Zeus e Themis, simbolizada por uma estátua em que se apresenta sustentando na mão esquerda uma balança, onde o equilíbrio dos pratos revela a precisão do julgamento; na mão direita uma espada, sinal da força como garantia do cumprimento da decisão; os olhos bem abertos indicavam a procura da verdade. Na simbologia romana, a deusa Iustitia, a expressar a impar cialidade das decisões, se apresentava com os olhos vendados. Embora mais associado à esfera jurídica, o valor justiça diz respeito, ainda, a outros instrumentos de controle social, como a Moral, a Religião e as Regras de Trato Social. A ideia do justo se encontra enraizada cm todas as sociedades civilizadas e a ação do tempo c no sentido de adaptá-la aos avanços sociais, aper feiçoando-a também na medida cm que se reconhece a extensão da dignidade da pessoa humana. Em realidade, as sociedades são civilizadas quando seus membros e instituições se orientam em conformidade com a noção mais elevada de justiça. 28. JUSTIÇA, DIREITO E MORAL Não pode haver o justo divorciado da moral, nem ações morais que não sejam substancialmente justas. As noções de justiça e moral são indissociáveis. A moral constitui uma ordem que se identifica com o bem. Este é o seu valor e sua causa final. A noção de bem não é unívoca entre os filósofos. Foi identificada, na Gré cia antiga, pelos epicuristas, como tudo aquilo que proporciona prazer à pessoa, enquanto para os estoicos o bem consistia na resignação, no desprendimento, na superação das paixões. Como os valores em geral, a ideia de bem não é definível à vista da lógica for mal. A noção geral que encerra, pensamos, consiste na promoção da pessoa natural em seu mais amplo sentido, sem prejuízo do semelhante. Sc determinada prática favorece a pessoa sem restrições e não se revela nociva ao semelhante, participa, naturalmente, da noção de bem. Quando a ação proporciona sensações agradáveis, mas causa danos à saúde, não configura o bem, pois desestabiliza a pessoa em um Cap. 6 | Justiça e Segurança Jurídica 69 de seus valores básicos. Se uma iniciativa harmoniza os diversos interesses do in divíduo, ela não chega a configurar o bem quando se contrapõe a interesse legítimo do semelhante. Enquanto a justiça requer alteridade, pois somente se c justo em face de ou trem, na moral ela pode estar ausente, pois há os deveres da pessoa para consigo, como o de preservação da saúde e conservação da vida. As noções de justiça e moral se confundem, ou são distintas? A justiça se fundamenta na moral ou constitui a medida deste instrumento de controle social? Inegavelmente o âmbito da moral é mais extenso do que a esfera do justo, pois, além de formar o conteúdo deste valor, alcança a pessoa natural também fora do contexto social, em sua individualidade. Ambas, porém, possuem domínio mais amplo do que o Direito, que se contenta com o mínimo ético, ou seja, com o míni mo de moral necessária ao bem-estar social. Recorrendo-se à geometria, tem-se que o círculo maior corresponde à Moral, enquanto o menor, ao Direito. Todavia, tais círculos não são concêntricos, pois nem todos os fatos alcançados pela Moral são regulados pelo Direito e vice-versa. Dado o nível de conexidade entre as duas esferas da Ética, os círculos correspon dentes são secantes: cada qual possui um domínio exclusivo e uma faixa comum. A justiça, diversamente da moral, se caracteriza na conduta adotada, seja esta uma ação ou omissão. Revela-se no forum externum, no âmbito da conduta mate rializada. Ainda que bem intencionado o agente, o seu comportamento se qualifica como injusto quando se distancia dos critérios legais c impõe danos a outrem. Já a avaliação moral se orienta pelo forum intemum, de acordo com o desejo íntimo do autor da conduta. A Moral contribui na elaboração das normas jurídicas, influenciando o seu conteúdo valorativo. Para o positivismo radical o Direito independe da Moral e o juiz, ao aplicar as normas jurídicas nos casos concretos, não deve se reportar aos princípios morais. Os argumentos éticos seriam irrelevantes na solução dos problemas. Nunca é demais se invocar a lição de Giorgio dei Vecchio, aplicável às relações entre o Direito e a Moral: há conceitos que se distinguem, mas que não se separam. Na formação das leis, o legislador, além de selecionar os fatos a serem regu lados, há de considerar os valores na definição das normas. O valor é a medida a ser considerada na escala entre o bem e o mal, o proveitoso e o inútil, o saudável e o nocivo. Na seleção dos valores, o legislador há de consultar a experiência social, suas tradições, seus costumes. Especificamente ao se posicionar na escala entre o bem e o mal, necessariamente há de consultar a moral social e, também, a moral natural. Aquela se compõe das estimativas presentes na consciência popu lar, variável, conseguintemente, no tempo e no espaço. A moral natural retira seus princípios da ordem natural das coisas, considerando as condições da vida do ser humano e da natureza em geral. Se a sociedade registra uma decadência em seus costumes, caberá ao legislador, em lugar de absorver os valores consagrados, in fluenciar as mudanças na moral social a fim de ajustá-la à moral natural. 70 Filosofia do Direito | Paulo Nader Na aplicação da ordem jurídica aos casos concretos, dada a abstratividade das normas e ao fato dc que, ao julgar, cumpre-lhe considerar a ordem jurídica como um todo c não as leis isoladamente, os juizes dispõem, quase sempre, do poder de solucionar as questões em conformidade com os imperativos de justiça e estes se apresentam sempre com um conteúdo moral. A lógica de lo razonable, de Reca- séns Siches, contribui para a solução justa dos casos. 29. JUSTIÇA E RELIGIÃO O mundo da natureza, formado pela materialidade orgânica e inorgânica, su jeita às leis regidas pelo princípio da causalidade, não satisfaz à totalidade das ne cessidades das pessoas naturais, que, cientes de suas carências, criam o mundo da cultura, constituído por objetos corpóreos e incorpóreos, em uma ação destinada a adaptar a realidade exterior às suas necessidades primárias c secundárias; aquelas, voltadas à sobrevivência e estas, ligadas à ordem, à satisfação espiritual, ao con forto. O mundo da cultura, no qual se insere o Direito, a Moral, as Regras de Trato Social, se forma sob o impulso do princípio da finalidade; cada iniciativa criadora se explica por uma ideia de fim a ser alcançado. E a Religião, também se insere no mundo cultural? É criada pelos seres hu manos, visando a suprir suas lacunas espirituais? A resposta depende da visão do homo religiosus, pois não há uniformidade de pensamento a respeito. Sc concebe mos os princípios fundamentais da cultura religiosa como revelação, algo desco berto pela crença, havemos de concluir que a Religião se localiza na esfera metafí sica. A doutrina religiosa seria um desdobramento da verdade revelada. A Religião, todavia, por outra corrente doutrinária, é considerada criação humana, hipótese que a situa no mundo da cultura. Dentro desta perspectiva de pensamento, a angústia existencial, a desigualdade e os sofrimentos terrenos indu ziriam a humanidade a formular uma resposta confortadora, capaz de conciliar os espíritos e a aceitar, resignadamente, seu próprio destino. Independente da conclusão em tomo daquelas indagações, o certo é que a Religião, por suas numerosas seitas e crenças, orienta o comportamento segundo a ordem moral. A paz de espírito, a harmonia social e a felicidade supraterrena se riam alcançadas com a prática do bem. Além dc orações - diálogos com o Criador - , o pensamento religioso induz o respeito ao semelhante e às instituições sociais. Nesta perspectiva, a Religião encontra na Moral uma grande fonte de subsídios e esta, um forte argumento para se impor às consciências. Como a noção de bem é captada na ordem natural das coisas, considerando- -se a natureza e a condição humana, a interpretação que dela se faz não é unívoca. Varia no tempo e no espaço. Para o catolicismo, por exemplo, contraria a noção de bem o controle de natalidade por meios artificiais, opinião não compartilhada pela generalidade das crenças e seitas. Com fundamento na ideia de bem, a Religião se posiciona diante do justo, orienta a conduta, condena certas práticas. O sacerdote e o pastor, em suas prele Cap. 6 | Justiça e Segurança Jurídica 71 çõcs, com a interpretação cm tomo do bem, influenciam os indivíduos, as famílias, os grupos sociais em geral, contribuindo, assim, para a prevalência da justiça nas relações. A Religião pode contribuir ao aperfeiçoamento das leis, como via de regra ocorre, mas também criar obstáculos ao avanço das instituições jurídicas. Em nos so país, o Direito de Família se manteve retrógrado durante boa parte do século XX, graças à pressão da Igreja que, pretendendo tutelar o matrimônio, combateu a instituição do divórcio, resistiu à inovação de sc criarem outras entidades fami liares, como a união estável, e impediu o reconhecimento da igualdade de direitos entre os filhos. Embora a ciência contemporânea distinga os diferentes instrumentos de con trole social, tal compreensão não repercute na prática de todos os povos. Em deter minadas culturas, a Religião ainda domina a organização social. 30. NOÇÃO E ESPÉCIES DE JUSTIÇA COMO VALOR JURÍDICO A ideia em tomo da justiça nas ações humanas surgiu na Antiguidade, a partir do momento em que os nossos ancestrais tomaram consciência de sua individua lidade, distinguindo as coisas que lhe eram próprias das pertencentes a outrem. É natural, instintivo no ser humano, a avaliação das condutas, das práticas sociais, à luz da experiência e da razão, aprovando-as, ou censurando-as, tomando por refe rência a ideia de bem, que lhe é imanente. A neutralidade diante de fatos relevantes é incomum e configura estado de alienação. Esta indiferença praticamente inexiste quando os fatos tocam, direta mente, aos interesses da pessoa. Quando está em jogo uma causa social, a falta de espírito comunitário leva à apatia, à omissão. A justiça c referência, objeto de busca ou de discussão, não apenas quando se consideram os bens materiais, a sua distribuição, mas diante dos amplos c diversi ficados interesses das pessoas. Justiça é um tema inexaurível, sempre atual e que, ao longo dos tempos, desa fia as reflexões c assertivas dos filósofos. Embora o homem comum não desenvol va reflexões sistemáticas em tomo do tema, possui algo precioso que é o sentimen to do justo, pelo qual procura guiar-se e avaliar as condutas. Não se confundem o sentimento e a ideia do justo. Aquele c intuitivo, espontâneo, cultivado a partir dos primeiros anos de vida, já a ideia de justiça é resultado de reflexões, para as quais sc conjugam a experiência c a razão. Tão elevado o significado da justiça para os membros da sociedade que estes, diante de uma conduta injusta e nociva ao semelhante, são capazes de reagir soli dariamente e de forma imprevisível. Crimes que abalam comunidades despertam- -lhes reações de várias intensidades: ora são as passeatas com cartazes, ora com medidas hostis como a de paralisação do trânsito, às vezes chega-se à exacerbação de atear fogo em repartições policiais. Com as medidas hostis, os agentes incidem em contradição: agem em função de um sentimento nobre de justiça, mas pratican 72 Filosofia do Direito | Paulo Nader do conduta reprovável, injusta, passível de penalização. Ve-se, pois, que não basta o sentimento ou instinto de justiça; é indispensável a educação ou condicionamen to para a prática do justo. Pode-se afirmar que a justiça constitui condição essencial para o bem-estar das pessoas, daí a necessidade de se envidarem todos os esforços, intelectuais e práticos, para a sua prevalência. Moralmente é tão indispensável quanto o ar at mosférico o é para a conservação da vida. Como a todo valor positivo corresponde um negativo ou dcsvalor, a injustiça é a prática contrária à justiça. Avaliada sob este plano, a conduta pode ser classifi cada como justa ou injusta, pois não há meio-termo. O valor justiça não comporta níveis quantitativos, diversamente da injustiça, que admite graus de intensidade. Alem da justiça humana, fala-se na justiça divina, força superior capaz de in terferir nas relações de vida. É um recurso invocado pelo homo religiosus quando a justiça humana se revela falha ou insuficiente para dar o seu a cada um. É um conforto espiritual para quem se vê prejudicado pela instância humana. Continuamos convictos de que a fórmula romana de Justiça - dar a cada um o que é seu - constitui a melhor síntese da noção do justo. Suum cuique tribuere é um critério perene, definitivo, porque se abstrai do seu de cada um; não define nem indica o quinhão a ser dado ao outro. Cabe aos juristas-filósofos transformar o abstrato em concreto c dizer, em cada caso, o que c o seu de cada um. A Institutionum D. Iustiniani se inicia com a definição de Justiça, consagran do aquela fórmula subjetivamente, como virtude humana: (,lustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuens” (“Justiça é a constante e firme von tade que dá a cada um o seu direito”). Vê-se, pois, que o elemento-chave da noção se reduz ao pronome possessivo “seu”, que não se identifica por um critério único. Ora implica igualdade, ora proporcionalidade. Ser justo é tratar, igualmente, a todos que se encontram na mesma situação. Os quinhões devem ser distribuídos proporcionalmente, porém, na medida em que se diversificam as condições das pessoas a quem se pretende fazer justiça. A ideia de quinhão é ampla: pode ser a remuneração, a pena privativa de liberdade, o prêmio, a repreensão, uma assistên cia jurídica, um tratamento médico-hospitalar, uma pensão etc. Quanto mais a sociedade se desenvolve e ganha em complexidade, seja pela crescente densidade demográfica, avanços científicos c tecnológicos, desafios são lançados ao legislador, cuja missão é buscar novas fórmulas que garantam a distri buição da justiça. A economia possui uma grande presença nas leis e, consequen temente, se acha regulada conforme os princípios de justiça. Para o marxismo, a economia compõe a infraestrutura social, que determina a superestrutura, formada pelo Direito, Moral, Política e demais processos culturais. Esta visão, porém, é unilateral ou reducionista, pois o Direito nem sempre é resultante da economia. Ao lado desta atuam diversos fatores, como a moral, a educação, a ideologia entre outros. Em contrapartida, o próprio Direito constitui instrumento utilizado pelo Estado para direcionar a economia. Serge-Christophe Kolm enfatiza a presença da economia na teoria da justiça contemporânea: "... a moderna teoria da justiça Cap. 6 | Justiça e Segurança Jurídica è o produto da necessária nova aliança entre a economia e a filosofia. É possível concebê-la como uma mente filosófica em um corpo econômico - e uma mente sem corpo é tão irreal, ou pelo menos tão impotente, quanto pode ser perigoso e desarticulado um corpo sem mente. A justiça é importante não apenas para o Direito e todos os segmentos da so ciedade, como também para outras ciências humanas, como destaca Serge-Chris- tophc Kolm: “A justiça é o verdadeiro tema do direito, uma preocupação central da política, um tópico essencial da sociologia e da psicologia/'2 Sc a justiça c da maior importância para o ser humano, natural que todas as cicncias que dele se ocupem dispensem a sua atenção para esse valor excelso. O quinhão a ser conferido pode contemplar a capacidade, o mérito ou a ne cessidade. A primeira diz respeito à aptidão para o desempenho de funções, a pro dutividade; o mérito é pertinente ao valor pessoal, como ao de um herói que ins creveu seu nome na história e constitui um exemplo de bravura e combatividade; a necessidade diz respeito à justiça social. Esta deve estar sempre presente onde há carência de recursos, cabendo à União, aos Estados e Municípios a sua implemen tação. De importância crescente neste início de milênio, a justiça social, por seu significado, extrapola os lindes de cada país isoladamente, para ser considerado como prática devida entre Estados soberanos. A solidariedade entre os povos deve prevalecer, tais as desigualdades existentes. Ao lado de nações ricas e poderosas, outras há cm desenvolvimento c cujas populações, em sua grande maioria, vivem aquém da linha de pobreza. Para a superação de tal estado não bastam as ajudas eventuais dos Estados desenvolvidos nem as iniciativas de organizações não go vernamentais. É indispensável a atuação permanente de entidades supraestatais, tanto na elaboração de projetos como na sua agilização. Na justiça entre particulares deve haver a igualdade entre o quinhão que se dá e o que se recebe. Tal espécie de justiça é denominada comutativa. Mais presente nas relações de compra e venda, quando o preço corresponde ao valor do objeto, deve estar na generalidade dos contratos, como na locação, permuta, prestação de serviço, empreitada. Malgrado a liberdade para a celebração de tais negócios jurídicos, o ordenamento civil impõe a boa-fé em todas as etapas contratuais. Diz- -se que a justiça é distributiva, quando o Estado participa em um de seus poios, impondo encargos, ou atribuindo vantagens. A justiça aplicada no âmbito criminal integra esta espécie. Geral é a modalidade atribuída a Tomás de Aquino, segundo a qual os particulares contribuem para o bem comum de acordo com parâmetros fixados em lei, daí ser chamada também de legal. O quinhão dos indivíduos é de finido de acordo com as suas possibilidades. E a justiça que alcança determinados tipos de tributos e serviços, como a prestação do serviço militar. Semelhante à distinção entre a justiça humana e a divina é a que envolve a justiça convencional e a substancial. A primeira é de natureza histórica e tem por 1 2 Teorias Modernas da Justiça. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000,1.1, p. 4. Op. cit., 1.1, p. 4. 74 Filosofia do Direito | Paulo Nader fundamento critérios consagrados pela sociedade, em lei ou costumes, enquanto a segunda toma por referência outro parâmetro: a noção mais elevada de bem ou a ordem natural das coisas. O normal é a harmonia entre as duas espécies, mas nem sempre a justiça convencional s

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