Direito humano à alimentação adequada - PDF

Summary

Este artigo discute o direito humano à alimentação adequada no Brasil, analisando a desigualdade e a pobreza como fatores que afetam a universalização desse direito. Aborda dados da FAO e do IBGE sobre a situação da fome e da desnutrição no país, com ênfase na evolução histórica da situação, instrumentos e políticas públicas para enfrentá-las.

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Direito humano à alimentação adequada aqui, em relação ao Comentário Geral 12, é que apesar de apontar ele- mentos essenciais, estabelece previamente uma delimitação conceitual, apresentando uma proposição estática para o DHAA. Essa formulação não se coaduna com uma noção em m...

Direito humano à alimentação adequada aqui, em relação ao Comentário Geral 12, é que apesar de apontar ele- mentos essenciais, estabelece previamente uma delimitação conceitual, apresentando uma proposição estática para o DHAA. Essa formulação não se coaduna com uma noção em movimento dialético e fruto de disputas políticas e conflitos econômicos e, portanto, em constante atualização, considerando os contextos e os tempos históricos (Corrêa; Oliveira, 2019). Um conceito em constante construção que traduzisse um movimento dinâmico seria mais condizente com a origem do processo de lutas que instituiu os diretos humanos ao longo da história, associado à tradição revolucionária, como avaliado e mencionado. A sequência de proposições, normas e acordos internacionais insti- tuídas, ao longo das últimas décadas, consolida como um direito humano fundamental o acesso permanente de todas as pessoas à alimentação ade- quada e de qualidade. Entretanto, mesmo com a aprovação desse conjunto de normativas, não se deve avaliar a materialização do DHAA de forma simplista e descontextualizada, considerando todos os indivíduos, a priori, como sujeitos de direito e, portanto, aptos a exercê-los, sem ponderar as reais e verdadeiras condições para sua efetivação (Corrêa; Oliveira, 2019). 3. Desigualdade e pobreza no Brasil: a indivisibilidade e a interdependência da questão O Brasil, instado por pactos e normativas internacionais, aprovou uma série de instrumentos e políticas, nas duas últimas décadas, na perspectiva de garantir o DHAA. Em 2005, teve início um processo de discussão que promoveu a formulação de programas e a aprovação de leis definindo estratégias para a realização progressiva desse direito. Nesse sentido, foi homologada a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), em 2006, considerada um passo importante nessa direção (ABRANDH, 2010). Em 2010, já tardiamente, o DHAA passa a ser assegurado entre os direitos sociais da Constituição Federal do Brasil, com a aprovação da Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 143, p. 121-139, jan./abr. 2022 129 Aguiar, O.B.; Padrão, S.M. Emenda Constitucional n. 64. Entretanto, celebrados, em 2018, os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o direito de estar livre da fome e da má nutrição e de ter acesso permanente à alimentação adequada não faz parte da realidade concreta de parcela significativa da população brasileira e mundial. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimen- tação e a Agricultura (FAO), em 2005, 852 milhões de pessoas sofriam de fome crônica no mundo e, desse total, 10% estavam gravemente desnutridas nos países em desenvolvimento, como o Brasil. Segundo estimativas desse mesmo organismo, em 2010, eram 925 milhões, ou seja, quase 15% da população mundial que padecia de fome permanen- temente (Leão, 2013). Relatório referente ao período de 2011-2013 indica um decréscimo no número de habitantes que apresentavam fome crônica no mundo, atingindo 842 milhões de pessoas. De acordo com a agência, esse resultado pode ser atribuído à recuperação econômica no mundo, com aumento da produção de alimentos, após a crise do capitalismo que se evidenciou a partir do ano de 2008 (FAO, 2013). Nos anos seguintes, no entanto, a tendência de queda no número de pessoas atingidas pela fome é revertida, voltando a crescer. Os 815 mi- lhões que viviam nessa situação em 2016 passam para quase 821 milhões como vítimas da fome, em 2017 (FAO et al., 2018). Os dados da FAO para o ano de 2019 continuam indicando uma tendência de crescimento, com o número ultrapassando os 821 milhões de pessoas, o que representa algo em torno de 11% da população mundial (FAO et al., 2019). Caso seja considerada a prevalência da insegurança alimentar moderada e grave, baseada na escala de insegurança alimentar, que passou a ser utilizada pelo órgão, o cenário é ainda mais crítico. A população em situação de insegurança alimentar, que representa a quantidade de pessoas que pas- sam fome somadas àquelas sem acesso estável a alimentos suficientes para suprir sua necessidade alimentar durante o ano todo, é estimada pela FAO et al. (2019) em quase 2 bilhões de pessoas no mundo. No Brasil, as altas taxas de desnutrição e subalimentação que prevaleceram no país, em décadas passadas, foram sendo reduzidas 130 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 143, p. 121-139, jan./abr. 2022 Direito humano à alimentação adequada sistematicamente até o início dos anos de 2010. Dados da FAO indicam que, em 1990, mais de 20 milhões de brasileiros eram considerados desnutridos, número que em 2004 passou para 12,6 milhões e em 2007. para 7,4 milhões de brasileiros. Esse decréscimo contínuo possibilitou a saída do país do mapa da fome, divulgado pela ONU, indicando uma redução de 82,1%, o que significa que o número de pessoas atingidas pela fome ficou abaixo de 5% da população, em 2014 (Leão, 2013). No entanto, não se pode considerar que o problema tenha sido debelado. Os últimos dados divulgados, pela mesma organização, indicam que os números voltaram a crescer a partir de 2016. A FAO estima que em torno de 5,2 milhões de brasileiros estavam nessa situação em 2017, com uma tendência de crescimento, o que significa um aumento real em relação aos anos anteriores (FAO et al., 2018). Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís- tica (IBGE, 2018) sobre o estado de pobreza no país, apresentados neste ensaio como um dos principais obstáculos ao acesso aos alimentos, que provoca fome e má nutrição na população, corroboram essa assertiva. A população em situação de pobreza, considerada aquela que vive com menos de R$ 406,00 por mês, passou de 25,7%, em 2016, para 26,5%, em 2017, o que indica um acréscimo de dois milhões de pessoas que passa- ram a viver em situação de pobreza no país. Contingente que totalizava, naquele ano, 54,8 milhões de pessoas que, provavelmente, viviam em situação de insegurança alimentar ou atingidas pela fome (IBGE, 2018). A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, realizada pelo IBGE (2019), divulgada em 2019, com dados referentes a 2018, confir- ma a tendência de crescimento da desigualdade e da pobreza no país. Os indicadores apontam que a renda média do 1% de trabalhadores mais ricos subiu de R$ 25.593 para R$ 27.744, uma alta de 8,4%. Já se considerarmos os 5% mais pobres da população, o rendimento do trabalho caiu 3,2%. Neste último grupo de trabalhadores, o ganho médio mensal baixou de R$ 158 para R$ 153. A mesma pesquisa indica, ainda, que a renda média do topo da pirâmide, em 2018, era 33,8 vezes maior que o rendimento médio da Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 143, p. 121-139, jan./abr. 2022 131 Aguiar, O.B.; Padrão, S.M. metade da população com menores rendimentos, cuja renda média mensal girava em torno de R$ 820 (IBGE, 2019). Como o aumento do rendimento médio do 1% mais rico no país, o grupo de pouco mais de dois milhões de pessoas abocanhou R$ 34,8 bilhões de toda renda produzida no Brasil. De acordo com Neri (2019), em 2015, a pobreza aumentou 19% no país, representando 3,6 milhões de pessoas, já no período de 2015 a 2017 o crescimento atingiu 33%. O aumento da fome e da pobreza no país está conexo ao crescimento da desigualdade social que, grosso modo, mede a distância entre as pessoas (Neri, 2019). O aumento da desigualdade sugere que as famílias estão cada vez mais distantes em relação às pos- sibilidades de prover suas necessidades básicas. O estudo aponta que a desigualdade social manteve um aumento persistente nos últimos anos. Enquanto a renda da metade mais pobre da população, nos últimos sete anos, caiu cerca de 18%, o 1% mais rico teve um acréscimo de quase 10% no seu poder de compra. Essa concentração de renda desbanca, inclusive, o período histórico considerado, até então, o pico de desigualdade no país no ano de 1989 (Neri, 2019). Segundo o autor do estudo, o pesquisador Marcelo Neri, os dados têm como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2019 e o índice de Gini, que é um medidor global de desigualdade, portanto, passível de avaliações comparativas em relação a outros países. O comportamento do índice de Gini para o período entre 2012 e 2019, apresentado pelo estudo (Neri, 2019), indica que a desigualdade decresce desde o primeiro trimestre de 2012, partindo de 0,6128, até o último trimestre de 2014, quando atingiu o seu nível mais baixo, 0,6003 nessa escala. A partir do primeiro trimestre de 2015, volta a crescer atingindo seu pico, 0,6291, no primeiro trimestre de 2019. Os valores da escala de Gini vão de “0 a 1”, indicando que quanto mais o índice se aproxima de um (1), maior é a desigualdade. Como o intervalo na escala é circunscrito a um pequeno intervalo, os valores apontados são bastante significativos. Os dados acerca da desigualdade, indicados pelo índice de Gini no es- tudo mencionado, são condizentes com o comportamento dos indicadores 132 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 143, p. 121-139, jan./abr. 2022 Direito humano à alimentação adequada de pobreza analisados no mesmo estudo. A proporção de pobres em 2012 atinge 10,52%, caindo para 8,38% em 2014 e voltando a subir até alcançar 11,18% em 2017, último ano apresentado na análise, com tendência à manutenção do crescimento. Os menores percentuais de pobreza coin- cidem com os menores indicadores de desigualdades, ou seja, o ano de 2014, quando o país saiu do Mapa da Fome divulgado pela ONU. Portanto, é possível correlacionar tais dados, indicando que a fome, a pobreza e a desigualdade social constituem um tripé que caminha, normalmente, na mesma direção, ainda que os acréscimos e os decréscimos não variem nos mesmos percentuais ou proporções. Essa assertiva, embasada nos dados mencionados, aponta que a desigualdade social e a pobreza tendem a ser interdependentes e inter- -relacionadas, além de promover a fome e obstaculizar o DHAA, em espe- cial, quando atingem patamares insustentáveis como no final da década de 1980, pico da concentração de renda no país, e após 2014 quando a desigualdade volta a crescer. Importa ressaltar que as variações desses indicadores, que muitas vezes ocorrem de forma abrupta, coincidem como os grandes ciclos políticos vividos no país (Souza, 2018). Minimizar as desigualdades sociais parece não ser tarefa fácil. A história das sociedades, até a contemporaneidade, tem sido marcada pela divisão das pessoas em grupos, caracterizada por diferentes formas de estratificação social, tendo como traço comum a desigualdade social. As classes sociais, como são concebidas atualmente, se corporificam nas sociedades burguesas, originárias das revoluções protagonizadas pela burguesia que superaram os Estados absolutistas, nos séculos XVIII e XIX. Consolidadas no mundo ocidental, apesar da origem revo- lucionária, essas sociedades não aboliram os diferentes grupos sociais característicos daquelas que as antecederam, mantendo a estratificação e a desigualdade social, modificando, apenas, as condições e as formas de opressão. A relação de produção estabelecida entre as classes nessas sociedades, ou seja, entre trabalhadores e capitalistas é marcada pelo antagonismo de interesses, pela subordinação, exploração e alienação, Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 143, p. 121-139, jan./abr. 2022 133 Aguiar, O.B.; Padrão, S.M. além do enriquecimento de uma classe em detrimento da pauperização de outra, fato que perpetua a concentração de renda, apropriada por uma ínfima parcela da população (Montaño; Duriguetto, 2011). Os dados que atualizam essas desigualdades são capturados em diferentes sociedades e períodos históricos e apresentados em diversos estudos (Piketty, 2014; Souza, 2018). No Brasil, a história social conforma uma concentração de renda no topo da hierarquia, com caráter inercial, que expressa uma profunda desigualdade conectada à dinâmica política nacional. Importa ratificar que o percurso político e institucional no país ocorre combinado com a trajetória de altas concentrações de renda (Souza, 2018). Mesmo no período em que a desigualdade social aferida foi a mais baixa dos úl- timos anos, como no de 2014, esse fato se deu em função de políticas de inclusão e não de mecanismos de redistribuição de renda, ou seja, o impacto positivo não foi resultado de mudanças estruturais na política tributária, por exemplo, mas de políticas sociais de caráter compensatório e focalizado. A acanhada tributação direta sobre a renda e a propriedade não favorece uma política distributiva mais ampla e duradoura, com reflexos no médio e longo prazos. “Uma sociedade com uma pequena elite abastada e uma massa empobrecida tende a ser radicalmente di- ferente de uma sociedade em que a hierarquia de renda ou riqueza é relativamente achatada, ainda que ambas tenham a mesma renda per capita” (Souza, 2018, p. 23). Considerando a colossal concentração de renda no país, as perspec- tivas para que o Brasil caminhe progressivamente para níveis de desi- gualdades menores são bastante limitadas. A quantidade significativa de recursos econômicos acumulados nas mãos de poucos lhes afiança um robusto capital político capaz de garantir uma posição privilegiada na direção da vida social. Mesmo que haja um compromisso político nessa direção, não há na história da economia mundial países que tenham partido de níveis de concentração tão acentuados e conseguido atingir índices menores, semelhantes aos de países desenvolvidos. Seria como “realizar um feito inédito” (Souza, 2018, p. 378). 134 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 143, p. 121-139, jan./abr. 2022 Direito humano à alimentação adequada A situação de fome, que ainda persiste no Brasil e mundo, tende a oscilar conforme indicadores sociais e de desenvolvimento, que impactam os investimentos públicos, a oferta de serviços, o emprego, o acesso ao cré- dito e, obviamente, a pobreza e a desigualdade social, e estão associados às crises do capital. Se considerarmos que crises cíclicas são inerentes ao sistema capitalista e que a desigualdade social tem acompanhado toda a história das sociedades, então manteremos a fome como um espectro de difícil solução. Considerações finais A universalização do DHAA permanece, ainda, como uma meta importante da humanidade a ser atingida no século XXI. O conturbado e longo caminho para o reconhecimento do acesso permanente ao ali- mento como um direito fundamental e universal no mundo, bem como a dificuldade para sua materialização, indica que se trata de um tema complexo que envolve muitos interesses econômicos, políticos e sociais. A perspectiva de que existe um caminho viável e exequível para materializar o DHAA, de forma permanente e equânime, mesmo na sociedade do capital, está colocada por parte dos movimentos sociais e ativistas dessa causa. Essa assertiva se expressa em posições que ava- liam que a direção para avançar na garantia da Soberania Alimentar e da Segurança Alimentar e Nutricional, superando a fome e a realidade de violações ao Direito Humano à Alimentação Adequada, estaria na possibilidade de a sociedade civil, em um primeiro momento, exigir a instituição de políticas sociais de combate à fome e à pobreza, e, na etapa seguinte, na capacidade de a população e de os titulares de direitos, de posse dos instrumentos de exigibilidade disponíveis, exigirem a mate- rialização e a garantia no atendimento aos direitos humanos. Portanto, os obstáculos apresentados poderiam ser superados pela capacidade de organização e enfrentamento da sociedade civil. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 143, p. 121-139, jan./abr. 2022 135 Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

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