Resumo Finais: Introdução à Asiriologia - PDF
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Este documento contém um resumo sobre o surgimento da cidade na Mesopotâmia e as inovações tecnológicas associadas. Explora duas teorias sobre o surgimento das cidades, as inovações relacionadas com a arquitectura, a cerâmica, a roda, a metalurgia e a escrita, e discute o desenvolvimento do Estado e o papel do divino na sociedade mesopotâmica. São apresentados exemplos como a cidade de Uruk.
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**INTRODUÇÃO À ASSIRIOLOGIA (RESUMOS)** **O SURGUIMENTO DA CIDADE NA MESOPOTÂMIA E AS INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS ASSOCIADAS:** **O surgimento da cidade:** As primeiras cidades da Mesopotâmia surgiram principalmente no Sul, sobretudo por se tratar de uma zona mais fértil e com uma maior disponibilidad...
**INTRODUÇÃO À ASSIRIOLOGIA (RESUMOS)** **O SURGUIMENTO DA CIDADE NA MESOPOTÂMIA E AS INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS ASSOCIADAS:** **O surgimento da cidade:** As primeiras cidades da Mesopotâmia surgiram principalmente no Sul, sobretudo por se tratar de uma zona mais fértil e com uma maior disponibilidade de culturas. A questão que se levanta sobre a forma como se sucedeu surgimento da cidade ainda é alvo de grandes discussões e debates. Será a cidade consequência de uma aldeia ou terá surgido do nada? Há duas grandes teorias sobre o surgimento da cidade: - **Teoria de Gordon Childe:** É a teoria mais antiga, que nos diz que a cidade teria surgido compacta, nuclear (isto é, com um único núcleo), hierárquica e com uma muralha bem definida. Ou seja, Gordon vê a cidade já como um todo. - **Novas teorias:** Nós últimos anos, no entanto, começou a surgir uma nova teoria/visão sobre o surgimento da cidade. Estas novas teorias dizem que, na realidade, a cidade quando surge seria multicêntrica (isto é, tem diferentes núcleos), formada por várias ilhas (estamos a falar de uma região de pântanos) que poderiam ter casa qual a sua cintura de muralhas (para defesa ou proteção contra inundações). Ou seja, acredita-se que ao longo do tempo as várias ilhas teriam acabado por se fundir numa só, dando origem à cidade. Exemplos: Esta ideia está presente, por exemplo, na cidade de Uruk (que é uma das mais antigas) e na cidade de Lagash. **Grandes inovações tecnológicas que associamos à génese da cidade:** O surgimento da cidade é acompanhado por uma série de grandes inovações tecnológicas a ela associadas. - **Arquitetura monumental:** É algo que nós não vemos nos assentamentos anteriores (antes de 3600 a.C.). Trata-se de uma arquitetura sobretudo ao serviço do templo e das divindades. - **Cerâmica estandardizada:** O aparecimento da cerâmica estandardizada (ou em série) é outra característica associada ao surgimento da cidade e mais especificamente ao período de Uruk (o período em que se desenvolvem as primeiras cidades). No período de Uruk aparece um tipo de taça que é conhecido como a taça de bordo biselado -- taças que eram fabricadas à mão ou através da utilização de um molde, produzidas em massa, não apresentam um grande cuidado e rigor (as paredes da taça são largas) e acredita-se que a sua utilidade estivesse relacionada com a produção de pão. - **Roda:** A roda aparece no período de Uruk, utilizada inicialmente para o torno (isto é, para a confeção de diferentes tipos de cerâmica) e depois também para os próprios transportes. Os primeiros vestígios que temos de roda na utilização para transporte remonta a c. 3500 a.C. A roda aparece também representada em várias ilustrações, como é o caso do "Estandarte de Ur". - **Domesticação dos animais de carga:** a domesticação dos animais de carga dá-se na sequência do surgimento da invenção da roda e dos transportes. - **Metalurgia:** Associados à cidade, surgem os centros de transformação metalúrgica. A metalurgia tem uma função importantíssima para a criação de utensílios de uso doméstico e do próprio armamento (como lanças, machados, argolas e pregos). Muitos destes metais eram adquiridos nas zonas de montanha e depois transportados por via fluvial até aos centros das cidades (onde eram transformados em diferentes peças). - **Muralhas:** Características do urbanismo, as muralhas possuíam funções relacionadas com a defesa da cidade e possivelmente com a proteção contra as inundações (de forma a limitar os estragos das cheias). As muralhas fazem a separação entre aquilo que é o mundo da cidade, o espaço ordenado, o espaço da população sedentarizada e o mundo que está para lá da cidade, um mundo caótico, onde há perigos, onde o rei não consegue manter a sua autoridade. Para além disso, a muralha era vista também como o símbolo de poder da própria cidade (o espaço dentro da muralha é aquele que o governante governa) -- quando um governante conquistava uma cidade estrangeira destruía as muralhas (a destruição das muralhas é uma imagem de poder para a pessoa que conquista e um sinónimo de aniquilação para aquele que é derrotado). - **Escrita:** Utilizada primeiramente para o sumério e logo a seguir para o acádico. - **Glíptica:** A glíptica, associada aos selos cilíndricos, aparece a par da escrita. Apesar dos selos já serem utilizados anteriormente (na forma de selo estampa), é agora que se passa a usar o selo cilíndrico, que era mais prático para imprimir uma imagem. Os selos cilíndricos eram confecionados em vários tipos de pedra (um material de valor) e nessa pedra era gravada uma imagem (que seria posteriormente impressa na argila). Os selos cilíndricos possuíam várias funções: marca de propriedade de um indivíduo; uma espécie de assinatura; selar tabuinhas e documentos (validava as transações), selar jarros (que continham diferentes tipos de produtos) e proteção do indivíduo (função apotropaica). Estas peças são muito importantes porque se encontram muito em contexto de escavação (desde o funerário e religioso, até ao doméstico) e também devido às cenas nelas representadas (que nos permitem olhar para a civilização mesopotâmica de vários pontos de vista). - **Escultura:** A escultura não nasce com o urbanismo (já existia no período do neolítico), no entanto, temos sobretudo nesta fase um tipo de escultura que está sobretudo associada com o divino ou associadas ao divino. **O exemplo da cidade de Uruk:** A cidade de Uruk é uma cidade com uma planta mais ou menos circular, situada junto ao rio Eufrates e cuja planta apresenta dois distritos -- Kullaba e Eanna. Assim como acontece com o caso da cidade de Lagash, que apresentava vários núcleos antes de se unificar num único só, é possível que essa mesma ideia estivesse presente nestes dois distritos de Uruk: Kullaba e Eanna seriam dois núcleos separados, cada qual com o seu templo principal, e que a dada altura se terão unificado para constituir uma só cidade. Acredita-se que o distrito de Kullaba seria o mais antigo, datado entre c. 4500-3500 a.C., e que o distrito de Eanna teria surgido um pouco mais tarde, entre c. 4000-3500 a.C. Não é ao acaso que temos um período da história da Mesopotâmia denominado com o nome da cidade (Período de Uruk), uma vez que se trata de uma das primeiras cidades, do local onde apareceram os testemunhos mais antigos de escrita e por ser uma cidade que, do ponto de vista arqueológico, forneceu muita informação. Nas várias campanhas de escavação da cidade de Uruk definiram-se 18 estratos arqueológicos distintos (correspondentes aos vários períodos de ocupação da cidade): - Período de Obeid (5000-4000 a.C.): nesta escavação surgiram cerâmicas típicas (caracterizadas por serem peças de cor clara, com pintura monocromática) e começam a aparecer peças de cálculo. - Transição do período de Obeid para o de Uruk Tardio: aparecem os cones de argila (que serviam para decoração) e algumas ferramentas de pedra. - Período de Uruk Tardio (estrato X, em c. 3800 a.C.): aparecem as taças de bordo biseladas. - Período de Uruk Médio (c. 3600 a.C.): aparecem os selos cilíndricos. - Período de Uruk Final (c. 3200 a.C.): aparece a arquitetura monumental e a escrita. - Na passagem de Uruk Final para Jemdet Nasr: são construídas as muralhas de Uruk e aparece uma peça cerimonial conhecida como o vaso de Uruk. Isto tudo nos serve para perceber que, no caso da cidade de Uruk, não aparece tudo no mesmo estrato e ao mesmo tempo, mas de certa forma está tudo ligado ao fenómeno que é surgimento da cidade. **O DESENVOLVIMENTO DO ESTADO E O SERVIÇO AO DIVINO:** **O desenvolvimento do Estado e a figura do En:** Durante o período de Uruk (que decorre entre c. 4000 e 3000 a.C.) começa a aparecer uma multiplicidade de cidades, que depois se prolongam durante o período dinástico inicial. A partir do Período Dinástico Inicial (c. 2900 a.C.) vamos observar outros aspetos importantes relacionados, de certa forma, com o surgimento e a proliferação da cidade, que será o desenvolvimento do Estado (consolidação de cidades-estado organizadas) e o aparecimento de uma figura que se assume como chefe/governante, o En (o desenvolvimento da cidade exige uma gestão mais forte). O soberano será designado neste período como En e não como rei, uma vez que detinha funções de administração da cidade e funções como sacerdote (ou seja, era simultaneamente um chefe religioso e um líder secular -- o aspeto religioso não se distingue do aspeto secular). Algumas das primeiras evidências que apontam o surgimento de uma figura que se destaca das demais, ainda datadas no período de Uruk, encontram-se não só nas estátuas como também nas ilustrações. Esta figura tem já alguma importância e essa importância é evidente nas características que ela apresenta -- a barba, o saiote e também o turbante. O Estado e a figura principal (que é o sacerdote governante) estão ligados ao divino e ao serviço do divino. A figura do En está ao serviço de uma divindade, é o representante da divindade em terra (o En é sobretudo o lugar tenente da divindade). **Panteão sumério-acádico:** Cada cidade-estado tem um governante (um "En") e, por sua vez, cada uma delas está associada a uma divindade tutelar (que é a divindade principal dessa cidade). Cada cidade-estado tem, portanto, o seu panteão (a cidade de Uruk, por exemplo, tem um panteão presidido pela deusa Inanna). No entanto, independentemente de haver um panteão diferente para cada uma destas cidades, isso não significa necessariamente que não partilhem os mesmos deuses (por exemplo, a deusa Inanna também faz parte do panteão de Eridu, apenas não é a divindade principal). No fundo, a única coisa que varia de panteão para panteão seria a forma como este se organiza. Se pensarmos num todo, os deuses são praticamente os mesmos e com base nesta ideia, podemos falar de um panteão sumério-acádico (um panteão que englobaria as divindades de todas estas cidades). **AS INTERAÇÕES COMERCIAIS E OS MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO:** **As interações comerciais:** Na Mesopotâmia existia a falta de muitos materiais, como é o caso da madeira, da pedra e de minerais. Os poucos materiais que existiam não eram suficientes para satisfazer as necessidades. Apesar da Mesopotâmia utilizar preferencialmente outros tipos de materiais para as estruturas arquitetónicas, ainda assim a pedra e a madeira não deixam de ser necessárias. Desde muito cedo, a partir do IVº milénio a.C., a Mesopotâmia vai desenvolver extensas redes comerciais (que chegam a lugares tão longínquos como o Egito e o atual Afeganistão). Será através dessa extensa rede que vão adquirir os materiais de que necessitam e que vão circular ideias e influências, que marcaram tanto a Mesopotâmia como as regiões que com ela contactam (encontramos peças tipicamente mesopotâmicas em locais como o Chipre -- selo cilíndrico em pedra preta, com ornamentação em ouro). Principais locais de contacto estabelecidos com a Mesopotâmia: - Afeganistão (Lápis Lazúli) - Vale do Indo (Cornalina) - Arábia (Cobre) - Zona do planalto Iraniano (Madeira, estanho, algum cobre e prata) - Anatólia (Prata e Cobre) - Zona da Síria, Levante e Líbano (Madeira, basalto e mármore) - África (Ouro e Marfim) **As fontes:** Tirando a parte mais arqueológica, que tipo de fontes nós temos para tentar perceber como é que eram os edifícios na antiga Mesopotâmia? Há dois tipos de fontes para estudar as estruturas: - **Fontes Histórico-Documentais:** Os textos que nos falam sobre estas estruturas (como de um templo, uma zigurate ou um palácio) costumam ser textos de louvor. São maioritariamente textos e inscrições de louvor aos deuses ou ao monarca (enquanto rei construtor), que mencionam a magnificência do edifício finalizado. Eles não costumam oferecer aspetos técnicos. - **Fontes iconográficas:** Trata-se de fontes que nos podem oferecer algumas informações sobre a variedade de materiais utilizados nas estruturas e a sua planimetria. Exemplos de fontes iconográficas: Estela da torre de babel -- contém um desenho daquilo que seria a fachada principal da zigurate e a indicação de como seria a planta do templo que estaria no topo. Tabuinha de Sippar -- dá-nos a representação de um edifício e indica-nos a quantidade de tijolos que teriam sido empregues na construção do mesmo. Estátua do soberano de Lagash (Gudea) -- apresenta-nos uma inscrição sobre a construção do templo do deus Ningirsu. As fontes iconográficas podem ser ainda subdivididas em: Fontes iconográficas bidimensionais (Baixos-relevos, Glíptica e Pinturas murais) e Fontes iconográficas tridimensionais (Maquetes). **Os materiais de construção:** - **Argila:** A argila foi um material usado desde muito cedo para vários fins distintos, como fins escultórios (pequenas estatuetas), para a escrita e também para a construção. Na construção a argila era utilizada sobretudo para o fabrico de adobe, o principal material de construção na antiga Mesopotâmia. Esta junção de argila e matéria vegetal (palha), que origina o chamado adobe, era utilizada para o fabrico de tijolos, que podiam ser feitos à mão ou através da utilização de um molde. Estes tijolos eram geralmente secos ao sol ou cozidos ao fogo (embora fosse uma forma mais dispendiosa para o fazer). A argila tinha várias vantagens -- é um material económico (sobretudo se for seco ao sol), é um material facilmente trabalhável, tem uma ótima resposta à amplitude térmica e também possui uma ótima adaptabilidade (pode ser moldada com várias formas e dimensões). Por outro lado, também tinha as suas desvantagens: é um material que se deteriora facilmente. Para além de ser um material de construção, a argila era também muito utilizada para fins decorativos, como é o caso da utilização de cones feitos da mesma para revestir colunas. - **As canas e os juncos:** As canas e os juncos eram comumente utilizadas na forma de camadas que intercalavam outras camadas feitas de tijolos -- esta técnica, conhecida como a técnica de Chaînage (muito utilizada em construções como é o caso das zigurates) tinha como propósito garantir alguma solidez e estabilidade à estrutura. As canas e os juncos também eram utilizadas na construção dos tetos, das camas e ainda das próprias janelas. - **Pedra:** A pedra pode ser considerada um material subsidiário da argila (e não propriamente como um material primário de construção). Ela era utilizada sobretudo nas fundações de estruturas (principalmente nas estruturas mais importantes, como é o caso dos templos e dos palácios), nas reparações de pequenas ruturas que surgiam nos muros, utilizada nos pavimentos e ainda em estruturas hidráulicas. Para além de ser um material subsidiário da argila, a pedra era ainda um material decorativo. Contudo, a pedra é um tipo de material que acarreta consigo algumas desvantagens -- Primeiramente porque se trata de uma matéria pouco abundante na Mesopotâmia (disponível em quantidades reduzidas demais para sustentar as grandes construções). Em segundo, pela dificuldade de aprovisionamento (que ia desde a tarefa de extração e transporte, até à própria confeção). No fundo, tudo aquilo que vimos ser vantagens na argila tornou-se desvantagens na pedra. - **Betume:** O betume foi outro material muito utilizado na construção de edifícios. Trata-se de uma espécie de petróleo que existe na própria natureza e que era utilizado sobretudo como matéria de ligamento entre os outros materiais (por outra palavras, era uma espécie de argamassa que detinha uma excelente capacidade aderente e de ligação). Para além disso, o betume também teria uma boa capacidade de impermeabilidade e podia ser utilizado para a iluminação ou fins medicinais. - **Madeira:** A madeira era um material utilizado principalmente nos tetos, nas colunas (que depois eram revestidas com outros materiais) e nas portas. Tal como acontece com a pedra, a madeira era sobretudo um material subsidiário da argila. Novamente à semelhança do material da pedra, a madeira também não era um material muito abundante na Mesopotâmia e a que existe é sobretudo o choupo (uma madeira muito resinosa) e a palmeira (que era péssima para a construção). Esta escassez levava a uma necessidade de abastecimento e aprovisionamento no exterior. - **Metal:** O metal é outro material que aparece nos edifícios, principalmente como decoração (a faixa decorativa em bronze das portas de Balawat é um excelente exemplo disso). O metal era utilizado para selagem, isolamento de algumas estruturas e, tal como a pedra e a madeira, servia como elemento de auxílio na construção. **O TELL, A CIDADE, O TEMPLO E O PALÁCIO:** **O Tell:** O Tell (que significa colina artificial em árabe) é o acumular dos destroços que sobraram de uma arquitetura feita em argila de uma cidade que se foi degradando ao longo tempo. Os edifícios foram desabando e formaram uma espécie de colina artificial. Trata-se, no fundo, das ruínas de uma cidade. Por cima desta camada, que foi desabando com o decorrer do tempo, podia ser construída uma nova cidade. Alguns dos elementos e materiais que foram utilizados para a construção das casas da camada anterior podiam ainda ser aproveitados pelos novos assentamentos. **A Morfologia das cidades:** Dentro daquilo que era a morfologia das cidades da Antiga Mesopotâmia é possível distinguir sobretudo três tipos: as cidades de formato circular, ortogonal e ainda triangular. - **Cidades circulares:** As cidades mais antigas costumavam apresentar um plano circular. Neste tipo de cidade a parte considerada mais importante encontrava-se sempre no centro (o palácio era um edifício central). A cidade de Uruk e a cidade de Mari são dois exemplos de cidades que apresentam um formato circular. - **Cidades ortogonais:** Estas cidades podem apresentar um perímetro mais quadrangular ou mais retangular. São cidades que apresentam uma planta com ângulos retos. A cidade da Babilónia, a cidade de Dur Katlimu e a cidade de Ebla são três exemplos de cidades que apresentam este tipo de formato. - **Cidades triangulares:** A planta triangular era outro tipo de morfologia da cidade que se poderia encontrar na Antiga Mesopotâmia, embora não sejam tão comuns como as duas anteriores. A cidade de Assur é um dos exemplos mais conhecidos dentro desta categoria. - **Outras:** Existem ainda cidades com morfologias completamente atípicas, que não se encaixam em nenhuma destas três categorias, apresentando um plano mais disforme. A cidade de Nínive poderia ser um exemplo disso. **Outros aspetos sobre a cidade:** **A muralha:** Um dos aspetos mais essenciais da cidade é a muralha, que faz uma separação entre aquilo que é o espaço da cidade (o espaço ordenado e da população sedentarizada), do mundo que se encontra para lá dela (o mundo caótico, repleto de perigos) e que tinha como função principal garantir a defesa da cidade. Todo este sistema defensivo era composto pelo muro (que tinha a altura habitual entre os 12 e os 15 metros), pelas várias torres de defesa (que tinham como funções principais a defesa, o acesso à parte de circulação da muralha e o garante de uma maior estabilidade do muro), pela abertura ao longo muralha e, embora não fosse regra geral, podia ainda conter um fosso (escavado na parte externa) e uma glacis (uma rampa de terra que reforçava a proteção e garantir a estabilidade do muro). **As ruas:** Um segundo grande aspeto relacionado com o espaço da cidade são as ruas -- é graças às ruas que era possível fazer uma melhor organização da circulação e uma divisão da cidade em vários setores distintos, evacuar as águas (através dos sistemas de evacuação que se encontravam por baixo delas), ventilar a cidade e ainda iluminar (a entrada de luz solar nas habitações seria mais difícil se as casas estivessem todas juntas e as ruas não existissem). **O modelo das casas:** As casas normalmente seguiam um modelo comum, feitas através dos mesmos materiais de construção, com tetos rasos, janelas na parte superior das paredes, compostas por um ou mais pisos e ainda organizadas em torno de um espaço central, que era o pátio. As casas serviam para vários aspetos distintos, para além de servirem como habitação, também podiam ser usadas para o armazenamento de bens da família e o desenvolvimento de tarefas diárias várias de alguns habitantes. **Arquitetura: Arquitetura monumental e doméstica** - Para que seja possível identificar um determinado edifício dentro do espaço da Antiga Mesopotâmia é necessário reconhecer qual seria a sua função principal. É através da cultura material, que foi encontrada dentro do próprio aparelho arquitetónico (estrutura), que podemos reconhecer a eventual função de um edifício. - **Arquitetura monumental:** A arquitetura monumental pode ser dividida em dois conjuntos principais -- a arquitetura religiosa (onde o templo é o edifício principal -- cuja sala mais importante é a cella, o espaço onde o deus permanece) e a arquitetura civil (onde o palácio é o edifício principal -- cuja sala mais importante é a sala do trono). - **Arquitetura doméstica:** Dentro daquilo que designamos ser a arquitetura doméstica, destacamos as estruturas familiares (o espaço de habitação da família) e as estruturas de uso comunitário (estruturas que eventualmente serviam para reuniões de comunidade e armazenamento de bens comuns). **Arquitetura religiosa:** Na arquitetura religiosa nós podemos distinguir três grandes fases: 1. Esta primeira fase corresponde, no fundo, ao aparecimento dos primeiros templos. Esta fase prolonga-se pelo V e IV milénio a.C. e caracterizava-se pela existência de grandes terraços ou plataformas proto-urbanas, em cima das quais seria construído o templo. Tinha uma tipologia algo diferenciada. 2. A partir da primeira metade do III milénio a.C. começam a aparecer templos com um formato oval ou com ângulos arredondados. 3. No final do III milénio a.C., aparecem as chamadas zigurates, cuja existência não impede necessariamente a presença de outros templos. **Arquitetura religiosa -- Templo:** O templo é uma edificação em altura, que se caracteriza pela existência habitual de um terraço ou plataforma aberta e que se destaca das outras estruturas da cidade. Este tipo de edificação destaca-se dos restantes através de algumas características próprias que apresenta, como é o caso da presença do altar (onde se encontraria uma estátua), de uma mesa de oferendas (diante do qual se encontraria o primeiro elemento) e ainda dos próprios muros do templo (que se diferenciariam dos restantes, uma vez que apresentam uma constituição mais larga, mais robusta e apresenta ainda um tipo de decoração externa diferente daquela que poderíamos encontrar numa habitação). A partir do IIIº milénio a.C. começa a haver uma maior facilidade de identificação e diferenciação daquilo que é a estrutura do templo. É a partir daqui que começa a aparecer uma nova tipologia de templos (o exemplo principal que nós conhecemos dentro desta nova tipologia de templos poderia ser o Templo Oval de Khafajeh). **Arquitetura religiosa -- Zigurate:** A Zigurate aparece na terceira fase que caracteriza a arquitetura religiosa, mais especificamente a partir da segunda metade do IIIº milénio a.C. Trata-se de uma construção com vários níveis, que era acessível por intermédio de uma escadaria monumental e que abriga, no topo, um templo. A Zigurate é uma consequência natural daquilo que já vem de trás, é uma consequência natural do uso de tijolo cru, acumulado num núcleo central, destinado a formar um terraço (de uma plataforma maciça que já estava presente nos templos em períodos anteriores). Só que agora vai ter não só um terraço, mas também vários patamares distintos (que podem ir dos 3 aos 7). O padrão e as técnicas vão-se aperfeiçoando ao longo do tempo, embora não se trate de uma mudança muito significativa. Em termos de arquitetura em si, sabemos que a Zigurate possuía normalmente no seu interior uma camada de tijolos secos intercalada com outra de canas e juncos. O acesso era feito através de escadarias articuladas entre si. A própria palavra "zigurate" que vem de uma palavra acádica ziqqurratu (que por sua vez deriva de um verbo, Zaqârum) indica-nos o propósito propriamente dito da estrutura -- significa precisamente "construir em altura" ou "estar alto". Por outras palavras, está relacionada com a ideia de elevar, de estar mais próxima do domínio celeste (a Zigurate vai ancorar o domínio celeste e terreno). A Estela de Oslo e a Tabuinha de Esagil são dois exemplos de fontes que nos apresentam informações valiosas sobre as zigurates e nos ajudam a reconstruir uma imagem mental daquilo que seriam. A Estela de Oslo dá-nos uma ideia dos diferentes níveis que a zigurate teria e do plano do templo que encimava a torre. A Tabuinha de Esagil apresenta-nos algumas informações acerca da Zigurate da Babilónia, como as dimensões da base, a dimensão dos diferentes níveis e ainda o número de câmaras que o templo poderia possuir. **Arquitetura palaciana: Palácio** O palácio aparece um pouco mais tarde, referido nos textos sumérios sob a designação de "e.gal" (a casa grande) onde habita o "lu.gal" (o homem grande). Os primeiros palácios a serem identificados datam os finais do IIIº milénio a.C. (mais concretamente de c. 2600 a.C.) e tornam-se um competidor direto com o próprio templo. Alguns dos primeiros identificados foram o Palácio de Kish e o Palácio de Eridu (que datam o IIIº milénio a.C.). Características gerais de um palácio: - O palácio e o templo, em termos de arquitetura em si, partilham algumas características -- a monumentalidade (enquanto a monumentalidade dos templos estava relacionada com a altura, a dos palácios estava mais associada à largura), as dimensões e a própria constituição dos muros (assim como acontece nos templos, cujos muros apresentam uma constituição mais larga e robusta, também os muros dos palácios vão apresentar características distintas daquelas que se viam nas habitações domésticas). - Os materiais e as técnicas utilizados na construção dos palácios são relativamente idênticos aos das restantes estruturas. Continua-se a usar aqui o tijolo cru (na parte interna da estrutura) e o tijolo cozido (na parede externa). As fundações poderiam ser feitas em pedra. - Trata-se de um edifício com uma entrada monumental. Contudo, assim como podemos observar no caso particular do palácio de Mari, poderia existir mais do que uma entrada (uma para o palácio propriamente dito e outra reservada para a entrada de veículos, carroças e animais) - As várias salas do palácio encontravam-se dispostas em torno de um pátio central, a sala principal era a sala do trono, possivelmente poderia conter um nível superior e apresentava uma planta retangular. O palácio na idade do bronze (IIº milénio a.C.): Um dos exemplos mais conhecidos de palácios do IIº milénio a.C. é o do Palácio de Mari. Neste período continua a haver a presença dos pátios e apresenta uma planta retangular (embora não tão comprida como a dos palácios anteriores). Era feita uma divisão do espaço interno em diferentes secções (no caso do palácio de Mari existia, por exemplo, um setor de acolhimento do palácio, um setor relacionado com a economia, com os armazéns, com as cozinhas, uma zona da dependência das mulheres e ainda um setor dos templos -- embora este último caso seja uma característica particular de Mari), apresentava um setor central que constituía o coração do próprio palácio (no qual se incluía a sala do trono) e a sala do trono era normalmente uma sala retangular. O palácio na idade do Ferro (Iº milénio a.C.): No primeiro milénio, mais concretamente entre os séc. IX e VII a.C., desenvolvem-se sobretudo os palácios assírios (no norte), que têm um peso mais forte no sentido da arte imperial. Um exemplo emblemático de um palácio assírio deste período é precisamente o palácio de Dur-Sharrukin. As características que se destacam nos palácios assírios da idade do ferro (Iº milénio a.C.) são a introdução do uso da pedra, o uso frequente da escultura como decoração (*lamassu* e lajes com baixos-relevos) e a divisão mais notória entre a área destinada à realização das funções reais (o *babanu*) e a área de residência privada do soberano (o *bitanu*). A sala do trono é normalmente, tanto no Iº milénio a.C. como no IIº e eventualmente no IIIº, uma sala de planta retangular e alongada e o trono está normalmente num dos lados mais estreitos da parede. O palácio torna-se a sede de um poder que assume características específicas, muito precisas e definidas, um poder que podemos considerar imperial. Portanto, não é apenas a sede de um grande reino, mas a sede de um verdadeiro império. **ANÁLISE DO *HINO DE LIPIT-ISHTAR* -- A IDEOLOGIA REAL** **Contextualização histórica do texto:** O período de Ur III (c. 2100 a.C.) foi um período de grande desenvolvimento em termos da arte e da economia e de grande florescimento da literatura. Contudo, o período de Ur III e a sua dinastia acabam por cair devido a pressões tanto internas como externas (que vêm do Elam a Este e do povo Amorrita a Norte e Oeste). Em c. 2003 a.C. acabará por cair abrindo espaço para um novo capítulo na história da Mesopotâmia -- o designado Período Babilónico Antigo. Ainda antes da ascensão de Hammu-rabi ao trono da Babilónia (que ocorre na segunda fase desta cronologia), há um período de disputa que é protagonizado por duas cidades: Isin e Larsa. Estas duas cidades rivais vão disputar entre si para chegar à hegemonia e poder que havia sido anteriormente alcançado pelos soberanos de Ur. Neste contexto, a cidade de Isin acaba por liderar e sobrepor-se a Larsa, sobretudo no reinado do rei Lipit-Ishtar. Reinado de Lipit-Ishtar: Lipit-Ishtar foi o quinto governante da primeira dinastia de Isin e o seu reinado poderia ser datado mais ou menos a partir de c. 1930 a.C. O seu reinado é de grande importância porque é um dos poucos em que dispomos de legislação (Lipit-Ishtar compilou um conjunto de sentenças que tomou durante o seu reinado) e em termos de literatura (é dentro da literatura de Lipit-Ishtar que encontramos o *Hino de Lipit-Ishtar*). **Características do Hino de Lipit-Ishtar:** - **Uma fonte paradigmática para o estudo da ideologia real mesopotâmica:** o *Hino de Lipit-Ishtar* contém um conjunto de ideias, símbolos e metáforas que expressam o pensamento dos antigos mesopotâmios em relação ao poder e instituição real. - **Transversalidade do discurso:** Alguns aspetos e as metáforas presentes ao longo do *Hino de Lipit-Ishtar,* na realidade, já aparecem referidos muito antes na história. Nesse sentido, podemos dizer que é um hino que apresenta uma transversalidade do discurso ao longo dos 3 milénios de história desta civilização. - **Caráter pseudo-autobiográfico (Eu...):** O texto está construído na primeira pessoa, portanto, podemos considerar que se trata de um texto de caráter pseudo-autobiográfico. Contudo, é importante não esquecer que o hino não terá sido escrito pelo próprio, mas sim encomendado e eventualmente feito por um escriba. - **Linguagem carregada de simbolismo e hiperbolizada:** O hino apresenta uma linguagem própria carregada de simbolismo e que podemos considerar hiperbolizada (isto é, uma figura de linguagem que exagera ou amplifica características). O hino atribui a Lipit-Ishtar uma série de características que só um "super homem" poderia possuir (características que um homem comum jamais seria capaz de possuir). - **Objetivo:** Esta ideologia real (patente não só no *Hino de Lipit-Ishtar* como noutras fontes) pretende demonstrar uma meta a atingir e não propriamente um realismo efetivo. Aquilo que se pretende é exaltar e elevar a figura do rei e da sua dinastia. **Análise do Hino de Lipit-Ishtar:** **Filiação objetiva / subjetiva:** Ideia de que há em Lipit-Ishtar uma filiação mais objetiva e outra mais subjetiva -- ele é filho de uma mãe humana (filiação objetiva), mas ao mesmo tempo é considerado filho do deus Enlil, um dos deuses supremos do panteão sumério-acádico (filiação subjetiva). Esta ideia, no fundo, é uma forma de legitimação do monarca na Antiga Mesopotâmia. **O cedro (ideia de resistência e valor):** O cedro é uma das árvores mais resistentes que há -- as ideias de firmeza e estabilidade características do cedro são, no fundo, ideias que se procuram canalizar para a própria figura do rei (o rei é aquele que garante um reinado firme e estável). Por outro lado, a madeira proveniente do cedro é também um material de qualidade que escasseia na Mesopotâmia -- dessa forma, o cedro está associado à ideia de algo que é luxuoso e valioso. Mais uma vez, são ideias que se procura transmitir para a figura do monarca (o rei é único e valioso). **Características físicas inigualáveis (o rei é um "super homem"):** Na linguagem mesopotâmica, que utiliza muito referências às partes do corpo humano, o ato de levantar a cabeça está relacionado com a ideia de confiança e orgulho (o rei é uma figura de orgulho e que transmite confiança). O rei é invencível, possui uma força que não pode ser equiparada -- procura-se canalizar para a sua figura as ideias de força, virilidade, juventude, inteligência e ainda beleza (no fundo, características físicas inigualáveis que tornam o monarca num "super homem"). **Equiparação do rei às figuras do leão, dragão, águia, touro e bisonte:** Trata-se de um conjunto de animais que são considerados invencíveis. O rei, por sua vez, é o único que é capaz de dominar estes animais que são aparentemente indomesticáveis. Dessa forma, o monarca incorpora em si mesmo os traços de invencibilidade, força, poder e vigor característicos deste conjunto de animais (o rei é o expoente máximo da força, do vigor e da ação, é o paradigma do poder e da autoridade). **O Lápis Lazúli (ideia de valor e divino):** A referência que é feita ao Lápis Lazúli pode ser equiparada à do cedro, no sentido em que se trata também ela de uma matéria rara e preciosa, que não é encontrada dentro da Mesopotâmia (ideia de que o rei é uma figura valiosa). O Lápis Lazúli pode ainda remeter à associação aos deuses, uma vez que se trata de uma matéria azul, uma cor associada ao divino (ou seja, o rei está associado ao divino). **Características mentais extraordinárias (bom sentido analítico, inteligência e bom orador):** O rei tem "bons olhos" no sentido em que não há nada que lhe escape, ele sabe tudo (ou seja, o rei é astuto e inteligente). O rei tem "boa boca" no sentido em que é ele que emana a ordem (a única ordem que os súbditos devem seguir), ele consegue resolver conflitos, impor justiça e negociar com outros congéneres através da palavra (ou seja, o rei é um bom orador). O rei tem "sentidos lúcidos" no sentido em que tem um bom sentido analítico. Estas ideias reunidas fazem do monarca uma figura com características mentais extraordinárias (às características físicas inigualáveis, juntam-se ainda as intelectuais). **A realeza atribuída ao rei / o rei como representante das divindades na terra:** São as divindades que concedem ao monarca o poder de governar, através das insígnias da realeza (ceptro) e das capacidades que um monarca normalmente precisa para exercer o poder (sabedoria e entendimento). Para além de lhe serem entregues as insígnias da realeza e as capacidades de que precisa, as divindades concedem-lhe ainda proteção e favorecimento de que precisa. Por outras palavras, a realeza é algo que é atribuído ao rei pelas divindades (nos textos da antiga Mesopotâmia, a realeza aparece como algo que desce dos céus e é entregue a um ser humano) e o rei é o representante das divindades na terra. Ao agir em conformidade com os deuses, cumprindo aquilo que é a sua missão, o rei consegue assegurar um reinado longo e estável -- no fundo, há uma espécie de interligação e reciprocidade entre o rei e o mundo celeste. **Figura do pastor:** Assim como a figura do pastor, o rei salvaguarda, protege e orienta o seu rebanho (isto é, a sua população) -- o rei e o povo são uma unidade indissociável. Afirmar que o rei é um pastor está de certa forma a invocar o poder absoluto que ele tem -- é o rei que guia e apascenta o seu rebanho. O rei é o pastor de todos e não há ninguém que esteja para lá da sua sombra. **Figura do pastor:** O monarca é simultaneamente um lavrador na medida em que é aquele que traz a prosperidade para a sua população e que é o irrigador que abre canais e abastece as cidades. É o rei que providencia, traz bem-aventurança e garante a subsistência -- ideias que transmitem aspetos da sua liderança. Resumidamente, o rei é aquele que guia e protege a população e é aquele que é capaz de trazer a prosperidade. **Ideia de equilíbrio, estabilidade e ordem:** É o rei que garante a estabilidade e a ordem. Sem a figura do monarca não existe Mesopotâmia, não há equilíbrio e não há vida -- cenário de caos e desordem. **Reciprocidade e complementaridade entre o rei e o mundo celeste:** Existe uma relação de reciprocidade que estabelece entre o mundo divino e a instituição real --O rei é abençoado pelas divindades, que lhe entregam a realeza, e em contrapartida o rei tem de cumprir a sua missão divina como representante das divindades na terra, tem de cumprir a sua função como sumo-sacerdote (deve garantir o culto, as orações e os sacrifícios, deve alimentar e cuidar da própria esfera divina). **A figura do rei como um exemplo a seguir:** O rei dá o exemplo que deve ser seguido pelos seus súbditos, não só na oração e nos sacrifícios que ele próprio oferece à divindade (que demonstra a sua humildade e respeito para com a esfera divina), mas também nas várias esferas distintas. **Qualidades militares e função de guerreiro:** Para além de ser o exemplo no que respeita ao culto, o rei também é um exemplo no próprio campo de batalha -- o rei é um guerreiro que lidera as suas tropas. Para além de ter a função de derrotar os oponentes, estender o seu poder e assegurar as vitórias na guerra em nome das divindades, o rei enquanto guerreiro tem ainda a obrigação de defender a sua população. Faceta mais guerreira. **O garante máximo da justiça:** Ideia de que o rei é o garante máximo da justiça. É a sua sabedoria que lhe permite ser justo e garantir a estabilidade. A aplicação de sentenças, de modo a assegurar esta justiça e estabilidade, é sinónimo de uma boa governança (um aspeto muito vincado na Estela de Hammu-rabi). Ninguém consegue igualar o rei, nem atentar contra a sua sentença -- Só a decisão do rei é justa e não pode ser revogada porque por de trás da decisão dele está a divindade. Faceta mais ligada à justiça. **A ESTELA DE HAMMU-RABI -- ASPETOS RELACIONADOS COM A JUSTIÇA** **A aplicação da justiça:** Como funcionava o sistema de justiça na Antiga Mesopotâmia? Nós não possuímos muita informação sobre a forma como se operava o sistema de justiça, a única informação da qual temos conhecimento advém precisamente da epistolografia (a maioria retirada das cartas e dos contratos jurídicos). Através desta documentação conseguimos perceber que um processo judicial se dividia em **duas etapas:** 1. Na primeira etapa deste processo era feita a apresentação das partes em conflito diante dos juízes. Apresentavam-se diante dos juízes levando não só testemunhas como eventuais provas. 2. Para além da apresentação do caso diante dos juízes, ambas as partes teriam ainda de passar por uma segunda etapa, que era o juramento divino (tinham de jurar perante os deuses que aquilo que afirmavam diante dos juízes era verídico). Outros aspetos sobre os processos judiciais: - O rei podia regular determinados casos onde se procedia ao apelo jurídico. - Só o rei é que tinha o poder de decisão em caso de pena de morte. - Em casos mais complexos (quando os juízes e o rei não conseguem chegar a uma decisão/sentença) podia ser acionado o ordálio (um julgamento que não se faz por via real, mas por via divina). Ativa-se a esfera celeste e os próprios deuses são chamados a julgar (nomeadamente o deus Rio). - Como era feita a prova por ordálio? Trata-se de uma prova de imersão na água. Ambas as partes em conflito são levadas até um rio e mergulhadas à vez. Se a pessoa sair ilesa e não for tomada pela água, isso significa que tinha razão, caso contrário, estava errada. **Alguns aspetos introdutórios sobre a Estela de Hammu-rabi:** - A Estela de Hammu-rabi é uma estela feita em basalto, composta por uma imagem no seu topo (onde estão representadas as figuras do rei Hammu-rabi e do deus Samas) e por uma inscrição cuneiforme que ocupa o restante da peça (que contém um prólogo, um conjunto de 282 artigos e um epílogo). - Esta peça resulta de uma tradição plurissecular (uma tradição que já tem séculos) e, paralelamente, da atividade singular de Hammu-rabi (o monarca compilou uma série de decretos e sentenças do seu reinado). - A Estela de Hammu-rabi não tem propriamente uma compilação de leis que abranja todos os setores de uma sociedade (não prevê todas as situações passivas de ocorrer e é omissa em várias questões). Ela apresenta, muito pelo contrário, uma formulação que é casuística -- isto é, apresenta um conjunto de leis associadas a aspetos muito específicos e concretos da sociedade. - A formulação das leis é composta por dois elementos: a Prótase (a parte inicial da formulação, normalmente formulada no passado) e a Apódose (a segunda cláusula da frase, normalmente formulada no futuro). Todos os artigos seguem esta estrutura (caso e consequência). - Apesar de se tratar de uma estela de cariz judicial, acredita-se que poderia ser um elemento que tinha como intuito exaltar o rei (vincar o poder do rei enquanto garante da justiça). O texto em si não tinha o propósito de ser consultado. Era uma demonstração de poder do próprio Hammu-rabi. **Análise da Estela de Hammu-rabi:** A parte de cima da peça contém uma representação, na qual podemos observar a figura do deus Samas, que segura nas suas mãos as insígnias reais (a argola e a vara de medição), e a figura do próprio Hammu-rabi, que faz um gesto com a mão em sinal de reverência. Através das insígnias reais que estende na direção de Hammu-rabi, o deus está a entregar-lhe a realeza. Ao entregar a realeza a Hammu-rabi, a divindade está a conceder-lhe automaticamente a justiça (uma vez que se trata de uma facetas da realeza). A inscrição cuneiforme, que ocupa o espaço restante da peça, contém: um prólogo onde é feita uma apologia ao rei e às conquistas encabeçadas por Hammu-rabi; um conjunto de 282 artigos (leis casuísticas que se aplicavam a aspetos específicos da sociedade) e um epílogo onde fica patente a questão do porquê de se inscrever esta compilação de leis numa estela e um conjunto de maldições (que pretendia impedir qualquer tentativa de atentado contra a estela). Para além de nos apresentar alguns aspetos relacionados com a justiça e a realeza, a estela dá-nos ainda uma perspetiva daquilo que seria a própria sociedade e a sua forma de organização: estratificação da sociedade e questões relacionadas com a família e o casamento. **A importância do património e a tripartição da sociedade:** Na antiga Mesopotâmia um dos princípios mais importantes era o patrimonial, uma das maiores preocupações era proteger o património (conjunto de bens e materiais de uma família). A estratificação deriva da posição que os indivíduos ocupam numa escala social que era projetada segundo as possibilidades económicas (dualidade: dependência económica ou independência económica). A estela apresenta-nos de forma relativamente pormenorizada como era feita a tripartição desta sociedade: Awilum (a aristocracia/nobres, que se encontram no topo da sociedade), Maskenum (os camponeses, que compunham a esmagadora maioria da população) e Wardum (os escravos, que representavam uma minoria na sociedade). 1. **Wardum:** Um termo que vem de um verbo que significa descer (o Wardum é aquele que está mais abaixo ou que desceu na escala social). São escravos que constituem a minoria da sociedade (não podemos considerar a sociedade mesopotâmica como uma sociedade esclavagista, como a acontecia na antiga Grécia ou antiga Roma, onde o grosso do trabalho era feito pelos escravos). Dentro do grupo dos Wardum podemos distinguir duas categorias: aqueles que se viram obrigados a vender-se como escravos para saldar dividas (aqueles que se escravizaram de modo a fazer frente às suas dívidas) e os escravos "à força" (que resultam sobretudo de deportações militares, após a tomada de alguma cidade ou reino). 2. **Maskenum:** Um termo que vem de um verbo que significa curvar-se. Os Maskenum são habitantes livres, que não estão ligados ao palácio e ao templo (são um grupo livre, mas economicamente dependente). Eles são compostos essencialmente por camponeses, que constituem a esmagadora maioria da população. Eles dependem do seu trabalho para sobreviver (o trabalho que eles efetuam em diferentes parcelas de terra, constitui o seu "ganha-pão" e a sua fonte de subsistência). 3. **Awilum:** Um termo que significa à letra "homem livre". Awilum é o grupo que se encontra no topo desta pirâmide social. São compostos essencialmente pelos indivíduos mais abastados da sociedade (os nobres/aristocratas). No fundo, é um grupo que não necessita de outros para a sua subsistência (eles são economicamente independentes). As pessoas que compõem este grupo têm o poder de comprar e estender terras e outros bens do seu património. Entre eles podemos encontrar indivíduos ligados à administração palaciana, proprietários e usufrutuários de terras e parcelas (diferente dos Maskenum, que tinham de entregar aquilo que extraíam da terra ao proprietário do palácio ou do templo, os Awilum eram os proprietários e o que extraiam era para benefício próprio). **Questões relacionadas com a família e casamento:** A questão do casamento (o dote e o contra-dote): Um dos aspetos principais sobre a questão do casamento era passar a autoridade de uma filha, que estava a chegar à idade de casar, para a esfera da autoridade do marido (ao casar, a filha deixa de estar sobre a autoridade do pai e passa a estar sobre a influência da autoridade do marido). O pai entrega à filha um dote (uma espécie de proteção da própria mulher em caso de divórcio) e para compensar o pai pela perda da filha (que era mais um membro da família que trabalhava em prol do património da família) e do respetivo dote, recebe o chamado contra-dote (uma espécie de compensação). Este dote podia ser uma quantia em dinheiro, bens ou ainda propriedade (exemplos: quantias de prata/estanho, vasos de ouro, animais, vestes de luxo, escravos, etc.). O contra-dote, assim como é expectável de ser, tem de ser semelhante ao valor do dote, para que haja um certo equilíbrio. Se por alguma razão a mulher fosse repudiada ou se divorciasse em caso de maus-tratos, a filha retornaria à casa paterna levando consigo o dote (que lhe foi atribuído inicialmente pelo pai). O regime matrimonial na civilização mesopotâmica era um regime monogâmica (ou seja, o indivíduo deveria ter apenas uma conjugue). No entanto, se a esposa fosse estéril e não pudesse ter filhos, o marido podia tomar uma segunda mulher (caso a segunda mulher conseguisse ter filhos, eles seriam considerados como se fossem filhos da primeira mulher). Apesar do regime ser monogâmico, o rei podia ter duas esposas, independentemente de uma delas ser estéril ou não. Para que a mulher possa ser considerada como esposa de determinado indivíduo é necessário que haja um contrato de matrimónio. Se a esposa fosse apanhada a trair o marido, ela e o seu amante seriam sujeitos a um julgamento de ordálio. A questão da família (adoção, herança e sucessão): O casal podia adotar uma criança -- não só por questões de infertilidade, mas também para aumentar a própria produtividade e património da família. Em termos de adoção podemos dizer que existe uma diferença entre aqueles que são adotados à nascença (não podem posteriormente ser reclamados pelos pais biológicos) e aqueles que são adotados mais tarde (se o filho desejar sair mais tarde da esfera da autoridade da família que o adotou, eventualmente poderia fazê-lo). Relativamente à herança, sabemos que são os filhos varões que têm o direito ao património. No caso de se tratar de um filho adotado, também ele teria os mesmos direitos aquando da herança. Concluindo: Podemos dizer que todas estas leis tinham em comum a defesa do património (que estava muito dele assente na terra/propriedade). **ANÁLISE DA CARTA A.1258+ AS SÚPLICAS ENDEREÇADAS AO REI** - É uma carta que aparece indicada com o número de edição "A carta A.1258+". - Esta carta enquadra-se no tópico da justiça **O cotexto em que se insere:** Hammu-rabi e Zimrî-Lîm são reis durante o mesmo período, o primeiro na Babilónia e o segundo no reino de Mari (com capital na cidade de Mari). Mari é um reino nesta altura que lutava pela hegemonia, tal como Hammu-rabi lutava. Esta carta foi encontrada em Mari. Séc. XVIII a.C. -- período de Hammu-rabi. Um documento que não tem muito a ver com a estela de Hammu-rabi. A tiptologia é completamente distinta. Mas a história também se faz através do cruzamento de fontes. Não nos podemos esquecer que nesta altura no período de Hammu-rabi e Zimrî-Lîm nós estamos numa Mesopotâmia amorrita. Os amorritas estabelecem-se na Mesopotâmia, mas absorvem a cultura local -- isto é importante porque o sincretismo religioso e culturais que se havia observado em períodos anteriores, também os amorritas vão absorver a cultura anterior sumério-acádica. Isto é importante porque na própria carta nós vemos elementos que são mais da cultura anterior sumério-acádica, mas vemos outros elementos que são sobretudo de uma cultura amorrita. Quando nós falamos em sincretismo e na absorção de outra cultura, falamos sempre no processo de conservação e manutenção da tradição e incorporação de traços novos. Por outro lado, tudo isto está paralelamente ligado com a ideia de dimorfismo social, isto é, a existência de duas componentes sociais -- uma componente nómada e uma componente sedentária. O dimorfismo social é muito mais vincado no reino de Mari (a norte), do que na Babilónia (no sul). **Arquivos Reais de Mari:** Palácio Real de Zimrî-Lîm -- o texto foi recuperado dentro da zona alta da cidade, mais concretamente no palácio real. Neste palácio real encontrou-se um dos maiores espólios documentais da história da Mesopotâmia e da história do próximo oriente antigo. Nós não podemos falar, no caso de Mari, de uma biblioteca e sim de um arquivo, daí o nome que se costuma dar à coletânea de textos que se recuperou, os chamados arquivos reais de Mari. Aquilo que nós encontramos nos chamados arquivos reais de Mari são sobretudo documentos que se prendem com a administração interna e cartas. A parte da epistolografia é essencial para conseguirmos reconstituir certas partes da história do séc. XVIII a.C. em particular, nomeadamente em termos das relações diplomáticas. Muito daquilo que nós conhecemos de Hammu-rabi vem daqui dos arquivos reais de mari. Para além da epistolografia há outra tipologia de textos muito variados, como contratos, oráculos divinos, entre outros. Mas a esmagadora maioria é ou documento administrativos ou cartas. A esmagadora maioria da documentação que está nos arquivos reais de Mari é do reinado de Zimrî-Lîm (apesar de ele ter antecedentes dinásticos no trono, mas a esmagadora maioria vem do período de Zimrî-Lîm -- que vai de 1775 a.C. a 1762 a.C. -- o mesmo período do próprio Hammu-rabi). A carta que vamos analisar faz parte dos arquivos reais de Mari. Documentação variada produzida no momento e arquivada; Importância da Epistolografia; **Tipologia de fonte:** Como é que nós podemos classificar esta fonte? É uma carta atípica (é uma carta, mas é também um salmo, que muitos historiadores classificam como carta salmo). É uma carta com toda aquela fraseologia típica das cartas, mas ao mesmo tempo também contém dentro dessa carta uma fraseologia que se aproxima mais dos salmos (que normalmente são dedicados a uma divindade e que contêm um tipo de linguagem de louvor -- neste caso específico é de louvor aos deuses, mas também de louvor ao próprio soberano). É uma carta atípica dentro dos arquivos reais de mari, mas não é um texto atípico no conjunto de textos da Mesopotâmia em geral (há outros textos inclusivamente anteriores que são mais ou menos semelhantes). Essa tipologia de carta salmo também se prende com o remetente da carta. O remente da carta (quem envia a carta) é um escriba. Todo esta fraseologia de louvor, que também é muito típica de outro tipo de textos, é possível porque o remente é um escriba. Ele é um escriba erudito que está por dentro de vários aspetos literários e ele escreve não só na língua da altura (em acádico), mas ele escreve também em sumério -- ou seja, nós temos uma carta salmo, mas que para além disso é bilingue (está escrita em acádico e sumério). **Principais temáticas do texto:** - Justiça: O principal assunto da carta é a justiça. Neste sentido, algumas das ideias que aparecem expressas na carta podem estabelecer um paralelo com outros textos da mesopotâmia (como é o caso do poema do justo sofredor e o livro de Jó, do antigo testamento -- o primeiro caso temos alguém que escreve um texto em honra de um deus, que se queixa da sua situação que é desesperante e que diz que sofre sem compreender aquilo que fez para sofrer / o segundo é também um sofredor, que no caso também sofre de uma forma que é apresentada como algo injusto no sentido em que ele não fez nada de errado para estar na posição em que está). Muitas vezes há paralelos estabelecidos entre esta carta, o poema da Mesopotâmia designado com o poema do justo sofredor e também o livro de Jó. A temática é mais ou menos paralela. A justiça é a temática principal, sendo que o escriba apela ao rei para que se faça justiça e ele apresenta o seu caso, a situação em que se encontra como se fosse um caso apresentado diante de juízes (que compõe uma das duas grandes etapas de um julgamento). Uma das provas que ele apresenta para fortalecer o seu caso é a própria carta. Ele é um escriba que foi afastado do seu posto, mas ele alega que não fez nada de mal, sempre cumpriu as suas funções, portanto, é injusto que ele tenha sido afastado da sua função. Ao apresentar esta carta, sendo a carta bilingue, então assim sendo a carta já é ela própria uma prova de que o escriba é capaz de levar a cabo as suas funções. - Sofrimento: Outra temática da carta é o sofrimento. O escriba queixa-se de estar numa situação um pouco desesperadora. - Poder real: No meio de tudo isto, está o poder real. O escriba apela ao rei, porque o rei é o único que é capaz de reverter a situação em que se encontra. - Poder divino: Mas o rei só será capaz de reverter a situação em que ele se encontra porque, como vimos no Hino de Lipit-Ishtar, o rei age de acordo com a vontade divina. O rei só tem o poder de estabelecer a justiça porque esse poder emana do divino. Autor: O autor é um escriba. Nesse sentido nós podemos entender esta carta como um objeto que é ele próprio demonstrativo das suas capacidades, ele usa fraseologia que é típica, demonstrando que de facto tem capacidade para exercer o cargo que exercia até então até ser afastado. O escriba foi afastado do seu posto porque alguém o caluniou (foi a intervenção de outro ser humano que o caluniou diante do rei) e em sequência afastado do seu ofício. **Estrutura do texto:** Podemos dividir o texto em várias partes distintas: 1. Apologia ao rei enquanto lugar-tenente das divindades (l. 3-22) Autoridade absoluta é do panteão divino. 2. Louvor ao soberano (l.23-30) Este louvor ao soberano permite ancorar a ação do soberano (sobretudo uma ação no campo da justiça) numa dimensão cósmica, estabelecendo uma sincronia entre as suas valências (as capacidades do próprio rei) e as bênçãos divinas que lhe são apresentadas na parte anterior da carta. O facto de o rei exercer, praticar a justiça e pôr em ordem o seu reino, insere-se uma ação que realidade é cósmica (porque tem um pacto não só no nível terreno, mas também noutros níveis, nomeadamente no nível divino). Estas duas primeiras partes estão no fundo interligadas. 3. Descrição do sofrimento do escriba (l.2'-19') Aflição traduz-se numa injustiça. Este sofrimento, a aflição e a angústia em que se encontra traduzem uma injustiça. É injusto ele ter sido afastado do posto, uma vez que o escriba sempre foi, segundo alega, fiel ao soberano. 4. Petição (l. 20'-23') É feito um apelo à reversão da situação em que ele se encontra. Nestas últimas linhas estabelece uma equiparação entre o papel do monarca em termos de justiça e o deus-solar. **Análise da fonte:** - Louvor ao rei e aos deuses. L. 2 "rei justo, amado de Nunamnir" -- O escriva endereça a carta ao rei, mas já especificando o assunto central da carta que é a justiça (daí a expressão "rei justo"). Se o rei é justo e se é aquele que aplica a justiça então só o rei poderá solucionar a vida deste escriba que lhe escreve. Nunamnir é um título de Enlil. L.22' "Possa o rei investigar o meu caso" -- Frase com que encerra a carta. Assim como no início, ele encerra da mesma forma tendo em mente o assunto principal da justiça. Na sequência da abertura do texto são citadas várias divindades, mais ou menos da mesma forma que acontece no Hino de Lipit-Ishtar (embora as divindades não sejam as mesmas), sendo que cada uma outorga ou capacita o rei de uma forma distinta. Esses deuses referidos, muitos deles fazem parte do panteão que nós podemos considerar como o panteão mais tradicional sumério-acádico e outros deuses que podemos considerar como pertencentes ao mundo amorrita (daí aquela ideia do sincretismo religioso e cultural, e do dimorfismo, no sentido em que em Mari permanecem essas duas vertentes populacionais com diferentes estilos de vida -- a ideia de dimorfismo está mais carregada aqui do que no sul, Mari que é um entreposto comercial importante onde passam várias rotas, está mais exposta; para além disso, o dialeto falado em Mari aproxima-se muito de outros dialetos com influências que vai recebendo sobretudo de Este e Oeste). O panteão divino referido na carta: Enlil (ou Nunamnir); An; Ea (ou Nudimmud ou Enki); Ninhursag; Dagan; Utu (ou Šamaš); Adad (ou Addu); Ištar (ou Eštar). As divindades Enlil, Na e Ea são divindades tradicionais sumério-acádicas, representantes dos três domínios cósmicos. Dagan é uma divindade amorrita e uma divindade principal da região do Médio Eufrates. É uma divindade que aparece na mitologia dos semitas ocidentais e pensa-se que é uma divindade associada ao cereal (tendo em conta que Mari encontrava-se numa região mais sub desértica a disponibilidade de cereais era mais diminuta -- daí a ideia de ter e apelar a esta divindade). Utu, Adad e Istar -- São divindades relacionadas com os astros e com os fenómenos climatéricos. O deus Addu (a versão ocidental de Addad) é o deus supremo na Síria, na região do levante; O reino de Mari nesta altura (séc. XVIII a.C.) é um reino vassalo dos reinos da Síria ocidental. Ao ser vassalo dos reinos da Síria ocidental a divindade suprema nessa teologia torna-se também a divindade suprema no próprio reino de Mari. Todos estes deuses são referidos na carta, cada um com um papel distinto e responsável por atribuir uma valência ao rei. O rei é detentor da designada *ilūtum* (a capacidade divina), embora não esteja expressa neste texto em si, nós vemo-la noutras cartas e documento epistolar do reino de Mari. Ao ser escolhido para exercer a realeza, ele é revestido com a *ilūtum* (um conceito abstrato que transmite a ideia de uma natureza/capacidade divina). De todos estes deuses destacam-se para a análise sobretudo o deus solar (que é o deus da justiça) Utu / Šamaš e também se destaca o deus Addad / Utu. L.14 "Šamaš colocou na mão o ceptro e a justiça e doou extensos países para governar" -- A função de Šamaš é neste texto doar o ceptro (outro símbolo ou instrumento da realeza) e também colocar a justiça nas mãos do rei. L.21 "O rei, símbolo da realeza, que com a sua coroa brilhante reluz" -- esta ideia de o rei ter uma coroa brilhante, de o próprio rei difundir a luz prende-se precisamente com o facto de Šamaš lhe ter outorgado a justiça. O facto de Šamaš ser o deus sol está de certa forma associada à coroa brilhando, da luz. L.16 "A quem Adad, o grande herói dos deuses, o proeminente, o filho de Anum, o inspetor dos canais do céu e da terra, o doador de vida a todos os seres, Deu de presente uma arma poderosa, (com a qual) não encontra oponente" -- Enquanto o deus da justiça (Šamaš) lhe dá um ceptro, um objeto físico, o deus Addu por sua vez dá-lhe uma arma poderosa (a arma que esteve presente no combate primordial, o combate de criação do mundo. A divindade da ordem, que neste caso é Addu, utilizou-a e agora doa ao rei de Mari). Se o deus Šamaš entrega a justiça e se o deus Addu entrega a arma que esteve envolvida no combate primordial, então por inerência o rei torna-se o garante da ordem (a ordem que relembra o início do mundo) e a própria justiça. Sendo que por outro lado o deus Šamaš e Addu são normalmente deuses que aparecem também para além dos domínios específicos (Šamaš é o deus Sol e o Addu é o deus das tempestades) são muitas vezes os deuses que mais aparecem citados em caso de adivinhação, em diferentes presságios de adivinhação (um presságio é no fundo o futuro, é uma visão). Estes deuses asseguram de alguma forma se o rei cumprir todas as normas o futuro de bem aventurança para o reino e também para o próprio rei. Ou seja, ideia de que o rei é o rei da justiça e simultaneamente da ordem (através das armas que ordenaram o mundo no início dos tempos). L.3 "Ao rei que An e Enlil nomearam firmemente para a realeza desde o puro ventre" -- Por outro lado, tudo isto acontece porque o rei é escolhido/nomeado desde o puro ventre. Isto significa a ideia de predestinação e quase formatação, ou seja, o rei quase que é encaixado num molde pré-definido pelos deuses. O rei é moldado e formatado para aquela função específica. - Sofrimento Depois desta primeira parte mais dedicada ao louvor ao rei e às divindades, segue-se uma parte do texto onde o escriba começa a relatar o seu sofrimento. Se anteriormente encontrávamos uma linguagem mais apologética (uma parte que se assemelha aos salmos, aos hinos), agora nesta parte do texto temos uma linguagem que se aproxima mais das lamentações. É sobretudo no relato do sofrimento que nós conseguimos estabelecer um paralelo com textos: o poema do justo sofredor e o livro de Jó. Agora entramos nessa parte do texto mais de lamento que é parecida de certa forma a certas referências destes dois textos. L. 2' "Como... não conheço lugar onde me aninhar" L. 5' "uma casa estrangeira transformou-se na minha morada" O não ter lugar onde me aninhar significa que o escriba não tem um sentimento de pertença. Se nós pensarmos na sociedade mesopotâmica para um habitante sentir que pertence a algum lado ele precisa de uma casa (que podia ser quase um sinónimo de ninho). A ideia do ninho é muito típica deste período e sobretudo de Mari, porque estamos numa sociedade que é sedentária e nómada (nos grupos mais nomádicos utilizava-se muitas vezes esta ideia de ninho). Há aqui uma noção do espaço, que é um espaço físico (a casa ou o ninho), mas é também a ideia sobretudo do ponto de vista humano (se eu não tenho casa/ninho então eu não tenho relações, nem estou enquadrada do ponto de vista social numa determinada sociedade). Na frase da linha 2 existe um espaço incompleto, devido a uma fragmentação na própria tabuinha. No entanto, muitos autores propõem para a reconstituição dessa linha a palavra Etemmu (a frase seria: Como um Etemmu, não conheço lugar onde me aninhar). O que é um Etemmu? Quando um ser humano morre na Mesopotâmia ela entra num outro domínio, que é o domínio dos mortos. Deixa de ser um ser humano, mas passa a ser um Etemmu. Um Etemmu é uma palavra de difícil tradução, é algo que sobre do indivíduo, que continua a ter necessidade de se alimentar e beber, no entanto, não é a presença corpórea como seria quando esse indivíduo estava vivo. O Etemmu tem de estar no seu novo domínio, o mundo dos mortos, para ele estar no mundo dos mortos em paz ele precisa de comida que é dada pelos familiares. Se os familiares não levarem a cabo os rituais e não alimentam o seu antepassado, então o Etemmu sai do inframundo e anda a vaguear pelo mundo dos vivos e atormenta a família. Esta equiparação do escriba em sofrimento a um Etemmu possivelmente, prende-se com esta ideia do vagabundo, ele anda por aí a vaguear, sem um sítio, uma família, ninho, casa e relações pessoais. Comparação com os outros textos: Ludlul tab I, v. 50 "Fui expulso da minha casa, vagueei pelo exterior" (a ideia expressa é muito idêntica à da carta do escriba: não tem casa, anda a vaguear como se fosse um vagabundo) Jb. 21, 28 "Dizeis \'Onde está a casa do tirano?'" (Também Jó deixa de ter um sítio, um espaço, uma casa) Toda esta lamentação nos leva à ideia de que um enraizamento de um determinado indivíduo dentro do seio da sociedade se opera em três níveis diferentes: mundo terreno, espaço real e o domínio das relações sociais e humanas. L. 4' "Ando às voltas nas ruas como um vagabundo, o lamento fez-me baixar a cabeça" Vemos aqui mais uma vez a ideia do vagabundo. Esta referência à cabeça erguida, assim como vimos no Hino de Lipit-Ishtar, está associada a uma ideia de orgulho e firmeza. O oposto ("baixar a cabeça") significa quase como a própria derrota, falta de coragem e orgulho. Ludlul tab I, v. 73 "A minha cabeça orgulhosa curvou-se para o chão" Jb. 10, 15 "Se sou inocente não ousarei levantar a minha cabeça, cheio de vergonha e repassado de misérias" Esta ideia de cabeça baixada, associada a derrota e vergonha, está também presente nestes dois textos. Jó afirma-se inocente, no entanto, tantas são as vergonhas que ele passa que não tem já coragem para levantar a cabeça. Em termos da imagem, a imagem é a mesma nos três documentos (um do séc. XVIII a.C., outro do séc. XII a.C. e outro que teria sido composto ainda mais tarde). L.7' "Fui afligido pela doença dos olhos comum aos escribas" O escriba tem uma doença que lhe afeta a zona dos olhos, que é, no fundo, o órgão essencial para o escriba. Primeiro o escriba relata sentimentos de vergonha e de não pertença e depois passa para um sentimento mais físico -- a doença que o acomete e o impede de o levar a cabo a sua função como deveria. L.10' "Estou tão fraco que os meus joelhos já não me conseguem transportar" Ideia de fragilidade, debilidade, como se o sofrimento fosse total, como se o sofrimento fosse total, como se tudo que lhe está a passar o deixasse como uma espécie de morto vivo. - O apelo ao rei (o final da carta) O final da carta dá-se com o apelo que o escriba dirige ao rei. O apelo ao rei inicia-se com uma declaração de lealdade (L.18' "o meu coração está colocado no lugar do meu senhor" -- uma afirmação de que é leal e de que não atende a outro senhor se não o rei). Ele escuta a palavra do senhor e é fiel ao mesmo. Só tem um senhor, esse senhor é Zimrî-Lîm e é lá que está colocado o seu coração, que é no fundo, não só o sítio dos sentimentos. Portanto, ele dirige-se ao rei que sempre seguiu como sendo fiel para que estabelece a justiça, para que olhe para o seu caso. Afirmar a justiça real, pedir justiça ao rei, é o mesmo que apelar à justiça divina (porque o rei age consoante as divindades). L.23' "\[Ó meu senhor\] que a sua palavra majestosa saia \[seja\] por mim como um sol" -- o aspeto mais importante desta declaração é a parte "saia por mim como um sol" que apela novamente à ação judicial do rei (equiparando o rei e o seu futuro herdeio, ao deus Šamaš). **PERSPETIVAS GERAIS SOBRE O SISTEMA RELIGIOSO MESOPOTÂMICO** **Os testemunhos escritos e o panteão sumério-acádico:** É dos primeiros períodos da história da Mesopotâmia que nós temos muito daquilo que são os testemunhos escritos sobre a religião e os deuses. Nós temos desde esta altura vários textos, como listas divinas (listas de deuses dos vários sítios distintos da Mesopotâmia), mitos e hinos que nos ajudam a compreender como era de facto o sistema religioso mesopotâmico. Apesar de nessa altura termos uma Mesopotâmia que está muito fragmentada em cidades-estado, cada uma com as suas respetivas divindades tutelares e panteões organizados de forma distinta, podemos ainda assim falar de uma forma mais genérica de um panteão sumério-acádico (apesar de estarem fragmentadas entre si, isso não significa que no seu todo as divindades veneradas por casa cidade não sejam as mesmas). Se nós conjugarmos todos estes textos de tipologia distinta (listas divinas, mitos e hinos) podemos falar inicialmente de um panteão sumério e já no período acádico (quando entra em cena a mitologia semita) de um panteão sumério acádico. **Os três domínios cósmicos:** De acordo com a mundivisão mesopotâmica, o mundo poderia ser dividido em três domínios cósmicos: o plano celeste (deuses), o plano terreno (ser humano) e o Infra-mundo (pós vida). Se imaginarmos o mundo do ponto de vista esférico, a terra seria representada por uma espécie de ilha, circundada toda ela por água e delimitada pelas montanhas (os Zagros a oriente e os Tauros a ocidente) -- é neste domínio onde se encontram os seres humanos e onde o soberano, escolhido pelas divindades, exerce o seu poder. Acima do plano terreno teríamos o domínio celeste, o nível mais elevado do cosmo, onde se encontravam os deuses. Por baixo da terra, está o infra-mundo, o domínio do pós-via (o mundo dos mortos). As águas so Abzu, controladas pelo deus Enki, encontram-se mais ou menos nesse domínio, logo abaixo da terra. **Divisão dos deuses em diferentes categorias:** **Os deuses dos espaços:** - O de cima (céu) -- o deus An - O do ar (atmosfera/intermédio entre o céu e a terra) -- o deus Enlil - O de baixo (terra) -- o deus Ea e o deus Enki Nota sobre Enlil: Apesar do deus Enlin estar associado ao ar, se nós formos aos mitos que têm referências cosmogónicas (à criação do mundo) podemos vê-lo como um deus que ficou com a terra. Ou seja, apesar de Enlil ser um deus associado ao espaço da atmosfera, também ele pode aparecer muitas vezes associado à terra. Nota sobre Enki: Enki é uma palavra que significa à letra "senhor da terra" (En é senhor e Ki significa terra). O deus Enki aparece associado à terra, mas sendo ele o deus das águas subterrâneas, seria uma terra mais ligada ao infra-mundo -- que está debaixo da terra). **A tríade astral:** - O deus Lua -- O deus Nanna / Sin - O deus solar -- O deus Utu / Samas - A deusa Vénus -- A deusa Inanna / Istar **Os deuses climáticos:** - Exemplo: O deus da tempestade e das chuvas (Iskur/Adad/Addu) **As deusas da vegetação (as deusas mães):** - A deusa Ninursague **O mundo divino imaginado à semelhança do mundo humano:** Na Antiga Mesopotâmia o mundo divino era na realidade imaginado à semelhança daquilo que era o próprio mundo humano (o mundo divino parte de certa forma do mundo humano). Nesse sentido, à semelhança do que acontece com a sociedade Mesopotâmica, também o mundo divino apresenta uma hierarquia, organização e especializações. A ideia de que o mundo divino apresenta uma hierarquia definida, com deuses que presidem, é evidente sobretudo a partir da segunda metade do IIº milénio a.C. Se o mundo divino é imaginado conforme o mundo humano, para além de terem alguém que preside, também eles possuem uma especialização -- como na própria sociedade, os deuses têm os seus domínios próprios (o deus Samas, por exemplo, é o deus da justiça). Para que o mundo divino faça sentido, tal como a sociedade, é necessário que toda esta multiplicidade de divindades tenha de ser agrupada e organizada -- organizada não só em termos dos ofícios e funções que desempenha, mas também em termos das próprias relações (familiares, por exemplo). Nesse sentido, há vários grupos divinos como é o caso dos Anunnaki e dos Igigi. Se os deuses são pensados de acordo com a sociedade humana, então também eles precisam de uma casa -- o templo ou a zigurate. A estátua que se encontra dentro do templo ou da zigurate não é pensada meramente como um objeto, mas como a própria manifestação do deus -- sendo o deus esta estátua é necessário que sejam feitos todos os cuidados que os seres humanos precisariam (ideia de culto e conservação do espaço físico da divindade). **O contrato entre o mundo divino e humano:** Existe na Mesopotâmia uma ideia de contrato entre o mundo divino e o mundo humano, uma ideia de reciprocidade e complementaridade (assim como vimos no *Hino de Lipit-Ishtar*). É espectável que o soberano, cujo poder e realeza foram atribuídos pela divindade, cumpra a sua missão que era conduzir o país, ser um bom militar, estabelecer a justiça e cumprir os rituais. A divindade, por sua vez, irá garantir que o rei tenha uma vida longa, entendimento e boa palavra. Se o soberano cumprir o seu papel, então o contrato não será quebrado. **Diferença entre sagrado e divino:** O que é que se entende como sagrado e divino? **Divino:** O divino é algo que é divino por si próprio, é algo abstrato, é aquilo que transcende o ser humano (que transcende o ser humano, as capacidades do ser humano, as habilidade e competências do ser humano). Apesar do divino ser um espaço sobre-humano, para lá das dimensões meramente humanas, os antigos mesopotâmios tentaram ainda assim arranjar formas de aproximar o seu mundo ao mundo do divino. É através dos textos (os mitos), dos materiais, da iconografia, da estatuária e ainda dos próprios rituais (gestos, indumentária, cores, luz e cheiro) que os seres humanos conseguem fazer uma aproximação ao mundo divino (tornar aquilo que é abstrato em concreto). Uma tentativa de aproximar aquele mundo que é transcendente ao domínio humano. **Sagrado:** O sagrado é algo que parte da ação humano, porque uma comunidade humana assim o definiu (assim o definiu porque tem características e qualidades que parecem divinas. A sacralização implica uma ação humana. Esta ideia é visível sobretudo na figura do rei (o rei é um ser humano, mas possuindo eles capacidades que o aproximam do divino, os seres humanos assumem-no como tendo um caráter sagrado). **Religião oficial e Religião pessoal:** Ainda dentro do domínio do divino nós podemos falar da religião, que pode ser uma religião oficial (estatal) ou uma religião mais pessoal (uma piedade pessoal). **Religião oficial:** Quando nós falamos da religião oficial, referimo-nos a uma religião que parte do estado e é controlada pelo estado. No caso da religião oficial, sabemos que há diferenças de cidade para cidade, diferenças entre os panteões, que podem suscitar a existência de diferentes calendários litúrgicos e diferentes teologias. Relativamente à própria natureza das divindades podemos falar de divindades políades (isto é, da pólis, as divindades tutelares), divindades nacionais (como Marduk para a Babilónia -- que não é apenas uma divindade políada, mas também uma divindade do estado da babilónia "nacional"), divindades universais (seriam quase como nacionais, a diferença é que se refere a um grande império; Ashur poderia ser considerado como uma divindade imperial durante o apogeu da Assíria) e ainda divindades dinásticas (uma família reinante tem, assim como todas as famílias particulares, uma divindade da família). **Religião pessoal:** Por outro lado, quando falamos em religiosidade pessoal estamos a falar de um ambiente/espaço que é mais doméstico, onde cada família a título particular leva a cabo os seus rituais. Relativamente à própria natureza das divindades dentro deste setor mais doméstico (da religião pessoal) podemos falar em divindades familiares (divindades de uma família a título particular) e as divindades pessoais (um deus com o qual a pessoa se identifica, a quem apela numa situação de necessidade). Estes deuses da religião pessoal podem ser conhecidos do panteão. Outro aspeto que é visível na religiosidade pessoal (e não tanto na religião estatal) são os *daemons.* Os *daemons* são entidades (não deuses) que nós poderíamos considerar semi-divinas e que possuem uma natureza numinosa (mas que não é equivalente à de um deus principal). Estas entidades agem muitas vezes em prol de divindades principais (poderiam ser uma espécie de ajudantes/auxiliares). Os *daemons* não são necessariamente criaturas boas ou más, contrariamente, são entidades que podem ter simultaneamente uma ação benéfica ou nefasta com o ser humano. Apesar de muitos deles possuírem feições que parecem demoníacas, isso não significa que sejam demoníacos. Os *daemons* eram sobretudo encontrados dentro do ambiente mais familiar e possuíam uma função protetora -- a população costumava utilizá-los na forma de amuletos ao peito ou pequenas estatuetas, colocadas nas janelas das habitações. *Daemon* Pazuzu: O Pazuzu é um exemplo emblemático que pertence a este grupo de *daemons*. Trata-se de uma entidade assustadora, com feições monstruosas, garras ao invés de pés e asas (que estavam associadas aos ventos). Contudo, apesar desta descrição dar a entender que o Pazuzu não era uma entidade com uma ação benéfica, a verdade é que não se tratava de uma entidade propriamente maligna. O *daemon* Pazuzu era uma entidade que protegia mulheres grávidas e as crianças pequenas -- ele combatia outro ser (a *daemon* Lamashtu) que os antigos mesopotâmicos julgavam ser responsável por raptos de bebés, crianças e ainda por provocar abortos (para combater a *daemon* Lamashtu, os mesopotâmios utilizavam Pazuzu). **A DEUSA INANNA / ISHTAR** **Dimorfismo social e o Sincretismo religioso:** Para perceber a deus Inanna/Ishtar e o porquê de não ser designada unicamente como Inanna ou como Ishtar, temos de recordar que a mesopotâmia é palco da instalação de vários povos distintos. Mesmo no período de Uruk ou no período dinástico inicial, quando nós falamos de um período sumério, nós falamos de sumérios, mas não nos podemos esquecer que já se encontram lá os próprios semitas (que começam a aparecer no IVº milénio a.C., vindos da zona da península arábica, em várias vagas distintas de migração). Portanto, se nós pensarmos na primeira fase de urbanismo, duas das primeiras cidades são a cidade de Uruk e a cidade de Mari, são duas cidades circulares, mas uma é suméria e a outra já é uma cidade semita. Isto tudo para percebermos que desde os primeiros tempos os sumérios não estão sozinhos, eles convivem com os semitas. No início do IIIº milénio a.C. durante o período dinástico antigo a esmagadora maioria da população é suméria, mas já existem cidades que já são semitas e os semitas já convivem com os sumérios. Quando passamos ao período Acádico (em 2334 a.C.) passamos a ter uma dinastia que é de origem semita e que vai unificar toda a mesopotâmia e a partir dessa altura o processo de sincretismo a nível cultural, mas também a nível religioso, solidifica-se e torna-se mais visível. Mas esse sincretismo religioso não ocorre apenas no período acádico, se já anteriormente os sumérios e os semitas convivem, então isso significa que o processo de sincretismo já estava a ocorrer. Se nós pensarmos numa divindade como Inanna, é uma divindade com determinadas características e uma divindade suméria (Inanna é um nome sumérios que aparece nos textos em sumério). Essa Inanna tem características que são comuns com uma deusa que não é suméria, mas semita (uma deusa que aparece nos textos acádicos sob o nome de Ishtar). A Ishtar semita/acádica partilha traços com a Inanna suméria -- ao partilharem os mesmos traços a Inanna suméria e a Ishtar acádica vão-se fundir, vão-se sincretizar. A dada altura ocorre o tal processo de sincretismo (este processo é comum com outras divindades; Inanna-Ishtar é só um exemplo deles). O caso de Inanna/Ishtar é talvez o caso mais complexo, porque ela é uma deusa multifacetada (é a deusa da guerra, do amor, da sexualidade, da fecundidade, da fertilidade, é uma deusa com um caráter astral -- é tudo isso e assim é mais complexo). Quando é que se inicia exatamente o processo simbiótico? Quais as características que são de cada uma (o que é mais de Inanna e mais de Ishtar)? Antes deste sincretismo, conseguimos chegar a essas eventuais facetas de cada uma? O processo simbiótico começa a ser mais evidente quando passa a haver outra língua falada na mesopotâmia que passa a ser a língua principal, que é o acádico. Os primeiros historiadores, dos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX, dizem que Inanna (suméria) está sobretudo associada a uma faceta de Inanna mais "simpática". É uma deusa sobretudo associada à fertilidade, ao amor e muitos destes autores estavam interessados num arquétipo da deusa mãe (um arquétipo que vem já neolítico, com algumas das estatuetas que são encontradas, como é o caso da estatueta do período de Halaf). Como o interesse era o estudo deste arquétipo de uma divindade mãe, a Inanna suméria também foi associada a essa característica de mãe, mais maternal. Por oposição, a Ishtar semita/acádica foi identificada com uma faceta mais agressiva, mais violenta, uma deusa guerreira, uma deusa associada à violência que advém da própria guerra e em vez de ser uma deusa associada ao amor, aqui é vincada mais a característica da sexualidade. Estas ideias, no entanto, foram postas em causa. Estas ideias foram postas em causa por que aquela questão do sincretismo já se ter operado tão para trás no tempo que não é possível dizer taxativamente que Inanna e Ishtar eram daquela determinada forma. Para além disso, todas estas ideias são um pouco devedoras do próprio período em que foram primeiramente avançadas. Os sumérios são os primeiros habitantes da antiga mesopotâmias, os inventores da escrita e os criadores de algumas das primeiras cidades e depois dos sumérios, a partir da dinastia acádica os semitas instalam-se na mesopotâmia, sendo que os semitas acabam por absorver os sumérios e os semitas tomam o poder dos sumérios à força (os semitas estão associados a essa faceta mais guerreira e violenta). Para além disso, os semitas do passado eram muitas vezes associados aos semitas do presente da altura dos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX (a população árabe), que acaba por ser aos olhos de grande parte dos historiadores como sendo sempre o outro. Esta ideia da violência e de uma faceta mais guerreira por parte dos semitas, por parte da cultura acádica, deve-se a esse contexto e não propriamente uma realidade. Isto tudo para dizer que não podemos estabelecer esta diferenciação. Inanna/Ishtar tem todas estas características, o que era mais de Inanna e mais de Ishtar não podemos atualmente dizê-lo. **A deusa Inanna/Ištar:** Primeiramente, esta deusa aparece representada de forma simbólica, a deusa Inanna / Ishtar é a primeira divindade que é representada de forma antropomórfica na Mesopotâmia. É talvez uma das primeiras divindades a ser representada de forma simbólica na história da mesopotâmia. Nos dois exemplares da impressão de dois selos cilíndricos (c. 3100-2900 a.C. -- final do período de Uruk) vemos representações naturalistas (representação de 3 animais em ambas, eventualmente um rebanho) e em cima do rebanho temos num caso o símbolo de uma roseta e no outro de uma estrela. A estrela de oito pontas é o símbolo de Inanna, porque um dos primeiros aspetos que nos aparecem na arte é aspeto mais astral, o aspeto da deusa inanna/ishtar associado ao planeta vénus. Ao mesmo tempo que aparecem estes símbolos na arte, nos textos começam a aparecer algumas expressões associadas (como é o caso da "estrela da manhã" e a "estrela da tarde" -- referem-se a Inanna-Ishtar, que é o planete Vénus). Esta caraterística astral aparece desde o início. A característica astral também está, se fizermos equiparação com o outro selo cilíndrico que tem uma flor de oito pontas, a característica astral está também associada à característica mais vegetal. Não só o facto de Inanna-ishtar ser uma divindade astral, que está vincado nos primeiros exemplares iconográficos que nós temos, como também o aspeto mais ligado à fecundidade e à fertilidade (a estrela e a roseta -- são dois símbolos de Inanna-Ishtar). A par destes símbolos (a estrela de oito pontas e a roseta) outro símbolo que também aponta para o mundo vegetal é o pilar de juncos. O pilar de juncos aparece também numa cronologia muito recuada, que datam ainda do período de Uruk final. Este símbolo que está ligado a Inanna/Ishtar e que aparece nesta cronologia vai-se manter até ao final de civilização mesopotâmica (?). O pilar de juncos tanto aparece na arte como a arte influência a própria escrita, o pilar de juncos transforma-se num signo pictográfico da escrita. O signo com o qual se assinalava o nome da deusa. Nas tabuinhas, nos primeiros tempos da escrita, quando o escriba queria escrever o nome da deusa, utilizava este signo, que é o pilar de juncos. O que é o pilar de juncos na prática? É no fundo um conjunto de juntos que fazem parte do próprio mundo vegetal, sobretudo da região sul, da Mesopotâmia, que são juntos, torcidos sobre si mesmos e atados com diferentes nós -- isso significa que nós temos um elemento vegetal que está dominado, que está controlado. Ou seja, o que o pilar de juncos nos indica é que a deus inanna ishtar é uma deusa que domina a natureza, que controla o elemento vegetal e dominar a natureza é na prática controlar a vida, a fertilidade e ter poder sobre esse mesmo mundo. O rei/ En ao deter o poder ele controla o mundo natural. Muitas vezes os espaços sobre qual o rei exercia o poder é visto como um jardim e sobre esse jardim o rei exerce o seu poder e ele só exerce esse poder porque Inanna Ishtar lhe deu esse poder. Ela é a deusa que dá o poder, ela é deusa do governo (ela tem várias facetas que no fundo todas elas são indicativas dessa ideia). Todas estas vertentes (ideia da fecundidade, fertilidade e o caráter astral) são vertentes de um domínio maior que é o poder e governança (uma vegetação que é controlada e dominada, alguém estabelece sobre ele o seu domínio). Impressão de selo cilíndrico (c. 3300-3000 a.C.) -- Está representada a figura do En (com os seus símbolos, o saiote, turbante, etc.) que tem nas mãos ramos, com rosetas nas pontas de cada um, que utiliza para alimentar um rebanho. Na imagem é possível observar os próprios pilares de juncos que definem os limites da imagem. No fundo, o que a imagem pretende transmitir é que estamos num domínio organizado e dominado, que é o domínio da deusa Inanna Ishtar -- e isso vê-se não só pelos limites da cena, mas também pelas próprias rosetas que saem dos ramos com os quais o En (o sumo-sacerdote/governador da cidade) alimenta o rebanho (ele alimenta o rebanho através da simbologia associada à própria deusa Inanna Ishtar). O En está meio que a alimentar o rebanho com o poder da deusa, que é um poder de domínio, que é passado no fundo para ele. Essa simbologia remete para uma natureza dominada. O próprio En detém o poder que emana em primeira instância da própria deusa. Para que ele possa estar representado daquela forma, invocando todas aquelas metáforas, ele precisa-se de se ligar à deusa Inanna/Ishtar. Para além das imagens começam a aparecer nos textos as primeiras referências à deusa como a "estrela da manhã" e a "estrela da tarde" -- o caráter astral já é muito antigo, tal como o caráter da fertilidade. As primeiras imagens e os primeiros e textos que aparecem desta divindade são muito recuados, sendo que eventualmente já são uma mescla destas duas identidades resultante do dimorfismo da mesopotâmia. **O ciclo de Inanna e Dumuzi:** A relação entre estes dois deuses, Inanna e Dumuzi. É uma tipologia de textos muito variada, que conta narrativas como a descida de Inanna ao infra-mundo e cantigas. "Eu não te carreguei para seres minha escrava!/(...)/ Minha noiva, não devias tecer pano para mim!/ não devias fiar lã para mim!/não devias pentear lã de cabra para mim!/tu não devia distorcer os fios para mim!" Nesta cantiga em particular estamos já no contexto do noivado entre ambos (a proposta de noivado que Dumuzi faz a Inanna). Dumuzi promete a Inanna igualdade caso os dois se tornem esposos. Isto acontece porque a deusa Inanna Ishtar não é uma deusa que neste tópico específico, da vida mais a nível doméstico, de encaixe no papel tradicional da sociedade -- porque ela é uma deusa do poder. Se ela é uma deusa do poder, nunca poderia haver subjugação. A deus Inanna Ishtar nunca é uma deusa não só que evoque o papel feminino na sociedade e também não é uma deusa associada ao caráter maternal. "Deves colocar a tua mão direita nos meus genitais/enquanto a tua mão esquerda repousa sobre a minha cabeça/aproximando a tua boca da minha boca e tomando os meus lábios na tua boca" «Depois de a senhora de \[...\] ter descido a Kurnugil/ Nenhum touro montou uma vaca, \[nenhum burro engravidou uma Jenny\]/ Nenhum jovem engravidou uma rapariga na \[rua (?)\]/ O jovem dormiu no seu quarto privado, a menina dormia na companhia de amigos». O impacto do aprisionamento de Inanna Ishtar no infra-mundo é a nível universal, a nível cósmico. Os próprios deuses deixam de ter relações quando Inanna-Ishtar está aprisionada no infra-mundo. A sexualidade de Inanna-Ishtar está associada a fertilidade e fecundidade de todo os cosmos. Inanna Ishtar vai para o infra-mundo porque ela quer mais poder ainda do que já tem. O infra-mundo era presidido pela irmã de Inanna Ishtar que é a deusa Ereskigal. Inanna quer tomar o poder da irmã. Ela dirige-se ao infra-mundo, no entanto, o infra-mundo é o espaço dos mortos, muitas vezes referido como a terra da qual não se regressa. À medida que ela vi descendo vai passando por várias portas e em cada uma dessas portas ela vai perdendo um elemento, como joias, os elementos da realeza divina, a indumentária e quando chega ao infra-mundo está completamente despida -- isto significa, no fundo, se ela não tem as insígnias, as joias (que têm um significado do poder e sexual ao mesmo tempo na antiguidade), ela fica completamente despojada de tudo que é autoridade e poder. Quando chega ao infra-mundo fica aprisionada, não tem poder não pode sair. Se fica aprisionada no infra-mundo ela fica no fundo morta. A única possibilidade de sair de lá é se houver um substituto que fica no lugar dela, então vai á procura de alguém que a possa substituir e repara que Dumuzi (o seu esposo) ao invés de estar a fazer os rituais de culto (que era suposto fazer aquando da morte de alguém) estava a festejar e contente. Então Inanna decide que o substituto vais ser Dumuzi, que vais ser levado para o infra-mundo e fica aprisionado no lugar dela, permitindo assim que ela pudesse sair. **A Deusa Inanna/Ištar e a Guerra:** Outra faceta da deusa Inanna Ishtar é a guerra, Inanna também é uma deusa guerreira. Ela é talvez uma das únicas divindades na antiga-mesopotâmia que é representada de frente (todas as outras são representadas de lado). Ela pode aparecer representada de frente, toda armada, com um pé em cima de um leão (um dos animais mais associados da deusa inanna ishtar, numa das mãos ela segura uma arma comprida, representada alada e a sair dos ombros tem mais um conjunto de armas -- esta é uma forma muito comum de representação da deusa Inanna-Ishtar. Outra forma é quando ela aparece também de frente, mas ao invés de estar vestida e armada, aparece completamente nua (uma faceta mais associada à fertilidade e fecundidade). Ela é a deusa da guerra, mas a guerra não tem uma conotação negativa, a guerra tem uma conotação muito pelo contrário positiva (a guerra é uma dança, a guerra é uma festa -- diz-se que é uma dança e uma festa, porque a guerra é uma forma de impor o poder aos infratores, aos inimigos, aos perturbadores da paz e da ordem, a guerra é necessária para impor a ordem, a guerra faz parte do programa de todos os reis da antiga-mesopotâmia; um reinado na antiga-mesopotâmia só se compreende em função da diplomacia e da guerra -- é a guerra que permite extensão e imposição do poder). Outro aspeto que é mais bélico, militar e guerreiro, que também está ligado ao poder. **Conclusões sobre a deusa Inanna / Ishtar:** - Dificuldade na perceção da forma como se processa o sincretismo entre Inanna e Ištar e no reconhecimento dos traços que uma recolhe da outra (não sabemos dizer ao certo quais são características que diferenciam Inanna suméria e Ishtar semita). - Inanna/Ištar é, em primeira instância, uma divindade de poder, da governança, a divindade que concede o poder ao rei (mas não é a única). - As outras facetas contribuem e aperfeiçoam este papel. Todas as outras facetas -- a faceta da fertilidade, a faceta da vegetação, a faceta da sexualidade, a faceta do amor e a faceta da guerra -- são aspetos desta grande associação que é em primeira instância ao poder. - Trata-se de uma divindade liminar (que transita entre os vários domínios, ações e espaços), transitando entre vários domínios: o masculino e o feminino, a guerra e a paz, o amor e a sexualidade, a cidade e a estepe, o mundo superior e o mundo inferior. É uma deusa feminina que muitas vezes tem facetas associadas ao poder masculino. Ela é uma divindade bélica, mas também é ao mesmo tempo a divindade que segura a paz, que segura a ordem. Ela é a deusa do amor, mas também a deusa da sexualidade. Ela é uma deusa associada à cidade, mas também é uma deusa que nós vemos muitas vezes na estepe (o leão, por exemplo, não é um animal de cidade e é um animal que está associada a ela). Ela é a divindade do mundo superior (a divindade associada ao celeste), mas ela vai ao infra-mundo (ela transita entre diferentes planos cósmicos). - A vegetação e a sexualidade (ou seja, o mundo domesticado e em desenvolvimento) associam-se ao poder e à ordem, e, por sua vez, a ordem só é possível através da guerra e da conquista. Se somarmos todas estas partes (a vegetação, a sexualidade e a guerra) dá o poder. **ANÁLISE DO MITO DE ETANA** **Alguns aspetos sobre o mito de Etana:** Os primeiros testemunhos que nós temos do Mito de Etana remontam ao Período Babilónico Antigo (c. 2003 a.C.). Contudo, alguns dos aspetos da história já estão patentes no registo iconográfico de períodos anteriores a este. Nós temos imagens de selos cilíndricos, que datam do Período Acádico (c. 2334 a.C.), onde aparecem representadas certas temáticas da história -- como a representação de um indivíduo masculino em cima do dorso de uma águia (o rei Etana) ou da própria árvore (onde vivia a águia que Etana "utilizará" para subir aos céus e uma serpente). Isto significa que muito possivelmente a história do Mito de Etana já circulava (pelo menos por via oral) antes de aparecerem os primeiros testemunhos escritos que nós possuímos. A versão *standard* (feita a partir de vários manuscritos de vários locais e cronologias distintas) foi exumada em Nínive (data o Iº milénio a.C.) e trata-se da versão mais completa que possuímos. Este texto teve uma grande importância na Mesopotâmia e em vários territórios além dela. Esta história vai influenciar muitos outros contos e narrativas em várias geografias e tempos distintos. A importância e repercussão desta narrativa é constatada no registo escrito e iconográfico. O Mito de Etana é composto por três tabuinhas. **Mito de Etana (resumo):** Primeira tabuinha: O rei Etana, da cidade de Kish, está angustiado porque sua esposa não consegue conceber um filho, ameaçando a continuidade da sua dinastia. Para resolver isso, Etana precisa da planta do nascimento, que se encontrava no mundo divino. Segunda tabuinha: Enquanto isso, uma história paralela surge -- uma