A Sociedade Feudal - Marc Bloch - PDF

Summary

This book by Marc Bloch dives into the intricacies of feudal society, meticulously examining its formation, structure, and evolution. It explores the interconnectedness of social, economic and political elements, providing a rich and detailed understanding of the period.

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http://groups.google.com.br/group/digitalsource Marc Bloch A SOCI EDADE FEUDAL Fabricador de instrumentos de trabalho, de habitações, de culturas e sociedades, o homem é também agente tran...

http://groups.google.com.br/group/digitalsource Marc Bloch A SOCI EDADE FEUDAL Fabricador de instrumentos de trabalho, de habitações, de culturas e sociedades, o homem é também agente transformador da história. Mas qual será o lugar do homem na história e o da história na vida do homem? Título original : La societé Féodal © Editions Albin Michel, Paris Tradução de Emanuel Lourenço Godinho Revisão de Edições 70 Capa de Alceu Saldanha Coutinho Reservados os direitos para todos os países de Língua Portugues a Av. Duque de Avila, 69 r/c Esq. - 1000 - LISBOA Telefs. 55 68 98 - 57 20 01 Distribuidor no Brasil: LIVRARIA MARTINS FONTES Rua Conselheiro Ramalho, 330-340 - São Paulo Digitalizado e Formatado Por: Uther Pendragon & Dayse Duarte M MAAR RCCB BLLO OCCH H A SOCIEDADE FEUDAL ÍNDICE* Apresentação.......................................................................................... 11 Introdução - orientação geral da investigação....................................... 13. PRIMEIRO TOMO A FORMAÇÃO DOS LAÇOS DE DEPENDÊNCIA Primeira parte – O MEIO Primeiro livro – AS ÚLTIMAS INVASÕES CAP. I - Muçulmanos e Húngaros 1. A Europa invadida e cercada..................................................... 20 2. Os Muçulmanos......................................................................... 21 3. A ofensiva húngara.................................................................... 25 4. Fim das invasões húngaras......................................................... 29. CAP. II - 4 Os Normandos 1. Características gerais das invasões escandinavas...................... 34 2. Da incursão à possessão............................................................. 39 3. As possessões escandinavas: a Inglaterra.................................. 42 4. As possessões escandinavas: a França....................................... 47 5. A cristianização do Norte........................................................... 52 6. Em busca das causas.................................................................. 57. CAP. III - Algumas consequências e alguns ensinamentos das invasões 1. A desordem................................................................................ 62 2. O contributo humano: o testemunho da língua e dos nomes..... 66 3. O contributo humano: o testemunho do Direito e da Estrutura Social.............................................................................................. 72 4. O contributo humano: problemas de proveniência.................... 75 5. Os ensinamentos........................................................................ 77. Segundo livro – AS CONDIÇÕES DE VIDA E A ATMOSFERA MENTAL CAP. I -Condições materiais e tonalidades económicas 1. As duas idades feudais............................................................... 83 2. A primeira idade feudal: o povoamento..................................... 84 3. A primeira idade feudal: a vida de relação................................ 86 4. A primeira idade feudal: as trocas............................................. 91 5. A revolução económica da segunda Idade feudal...................... 94. CAP. II -Maneiras de sentir e de pensar 1. O Homem perante a Natureza e a duração................................. 99 2. A expressão.............................................................................. 102 * Este índice informa a paginação da edição digitalizada. No decorrer do texto foram inseridas, entre colchetes, as marcas de paginação referente à edição original para maior fidelidade de consulta acadêmica. 3. Cultura e classes sociais........................................................... 107 4. A mentalidade religiosa........................................................... 110. CAP. III - A memória colectiva 1. A historiografia........................................................................ 117 2. A Epopéia................................................................................. 122. CAP. IV - O Renascimento Intelectual na Segunda Idade Feudal 1. Algumas características da nova cultura.................................. 134 2. A tomada de consciência......................................................... 138. CAP. V - Os fundamentos do Direito 1. O império do costume.............................................................. 141 2. As características do direito consuetudinário.......................... 145 3. As renovações dos direitos escritos......................................... 149. Segunda Parte - OS LAÇOS DE HOMEM PARA HOMEM Primeiro livro - OS LAÇOS DE SANGUE CAP. I - A slidariedade da linhagem 1. Os «Amigos Carnais».............................................................. 154 2. A «vendetta» ………………………………………………… 157 3. A solidariedade económica..................................................... 163. CAP. II - Características e vicissitudes do laço de parentesco 1. As realidades da vida familiar.................................................. 167 2. A estrutura da linhagem........................................................... 170 3. Laços de sangue e feudalismo.................................................. 175. Segundo livro - A VASSALIDADE E O FEUDO CAP. I - A homenagem vassálica 1. O homem de outro homem...................................................... 178 2. A homenagem na era feudal.................................................... 179 3. A génese das relações de dependência pessoal........................ 181 4. Os guerreiros domésticos......................................................... 185 5. A vassalidade carolíngia.......................................................... 191 6. A elaboração de vassalidade clássica....................................... 195. CAP. II - O feudo 1. Benefício e feudo: a tenure – salário....................................... 198 2. O chasement dos vassalos........................................................ 204. CAP. III - Perspectiva europeia 1. A diversidade francesa: Sudoeste e Normandia....................... 213 2. A Itália..................................................................................... 214 3. A Alemanha............................................................................. 217 4. Fora da influência carolíngia: a Inglaterra anglo -saxónica e a Espanha dos reinos asturo-leoneses............................................. 218 5. Os feudalismos de importação................................................. 226. CAP. IV - Como o feudo passou ao património do vassalo 1. O problema da hereditariedade: «honras» e simples feudos.... 229 2. A evolução: o caso francês...................................................... 233 3. A evolução: no Império........................................................... 237 4. As transformações do feudo, vistas através do seu direito sucessório..................................................................................... 239 5. A fidelidade no comércio......................................................... 249. CAP. V - O homem de vários senhores 1. A pluralidade das homenagens................................................ 252 2. Grandeza e decadência da homenagem lígia........................... 256. CAP. VI - Vassalo e senhor 1. O auxílio e a protecção............................................................ 261 2. A vassalidade em lugar da linhagem....................................... 267 3. Reciprocidade e rupturas.......................................................... 271. CAP. VII - O paradoxo da vassalagem 1. As contradições dos testemunhos............................................ 274 2. Os vínculos de direito e o contacto humano............................ 279. Terceiro livro - OS VÍNCULOS DE DEPENDÊNCIA NAS CLASSES INFERIORES CAP. I - O senhorio 1. A terra senhorial....................................................................... 283 2. As conquistas do sistema senhorial.......................................... 285 3. Senhor e foreiros (tenanciers).................................................. 292. CAP. II - Servidão e liberdade 1. O ponto de partida: as condições pessoais na época franca..... 299 2. A servidão francesa.................................................................. 305 3. O caso alemão.......................................................................... 312 4. Na Inglaterra: as viciss itudes da vilanagem............................. 316. CAP. III - Rumo às novas formas do regime senhorial 1. A estabilização dos encargos................................................... 322 2. A Transformação das relações humanas.................................. 326. SEGUNDO TOMO AS CLASSES E O GOVERNO DOS HOMENS Primeiro livro - AS CLASSES CAP. I - Os nobres como classe de facto 1. O desaparecimento das antigas aristocracias de sangue.......... 330 2. Dos diversos sentidos da palavra «nobre», na primeira idade feudal............................................................................................ 333 3. A classe dos nobres como classe senhorial.............................. 336 4. A vocação guerreira................................................................. 337. CAP. II - A vida nobre 1. A guerra................................................................................... 341 2. O nobre em sua casa................................................................ 347 3. Ocupações e distracções.......................................................... 351 4. As regras de conduta................................................................ 355. CAP. III - A cavalaria l. A investidura............................................................................. 363 2. O Código de Cavalaria............................................................. 368. CAP. IV - A transformação da nobreza de facto em nobreza de direito 1. A hereditariedade da investidura e o enobrecimento............... 372 2. Constituição dos descendentes de cavaleiros em classe privilegiada.................................................................................. 378 3. O direito dos nobres................................................................. 380 4. A excepção inglesa.................................................................. 383. CAP. V - As distinções de classe no interior da nobreza 1. A hierarquia do poder e da categoria....................................... 386 2. Minesteriales e cavaleiros-servos............................................ 391. CAP VI - O clero e as classes profissionais 1. A sociedade eclesiástica no feudalismo................................... 401 2. Vilãos e burgueses.................................................................. 409. Segundo livro - O GOVERNO DOS HOMENS CAP. I - As justiças 1. Características gerais do regime judiciário.............................. 414 2. A divisão das justiças............................................................... 417 3. Julgamento pelos pares, ou julgamento pelos senhores?......... 425 4. A margem do desmembramento: sobrevivência e factores novos....................................................................................................... 427. CAP. II - Os poderes tradicionais: realezas e Império 1. Geografia das realezas............................................................. 432 2. Tradições e natureza do poder real.......................................... 437 3. A transmissão do poder real: problemas dinásticos................. 441 4. O Império................................................................................. 448. CAP. III - Dos principados territoriais às castelanias 1. Os principados territoriais........................................................ 453 2. Condados e castelanias............................................................ 459 3. As dominações eclesiásticas.................................................... 461. CAP. IV - A desordem e a luta contra a desordem 1. Os limites dos poderes............................................................. 469 2. A violência e a aspiração à paz................................................ 472 3. Paz e tréguas de Deus.............................................................. 474. CAP. V - Rumo à reconstituição dos estados: as evoluções nacionais 1. Razões do reagrupamento das forças....................................... 484 2. Uma monarquia nova: os Capetos........................................... 486 3. Uma monarquia arcaizante: a Alemanha................................. 490 4. A monarquia anglo-normanda: feitos de conquistas e sobrevivências germânicas........................................................... 493 5. As nacionalidades.................................................................... 496. Terceiro livro - A FEUDALIDADE COMO TIPO SOCIAL E A SUA ACÇÃO CAP. I - A feudalidade como tipo social 1. Feudalidade ou feudalidades: singular ou plural?.................... 503 2. As características fundamentais da feudalidade europeia........ 505 3. Um corte através da história comparada................................. 509. CAP. II - Os prolongamentos da feudalidade europeia 1. Sobrevivências e revivescências.............................................. 512 2. A ideia guerreira e a ideia de contrato..................................... 515. BIBLIOGRAFIA................................................................................ 518. A F ERDINAND LOT Homenagem de respeitoso e reconhecido afecto. Já foi dito, e com muita justiça, que a obra de Marc Bloch, professor da Sorbonne, renovou a visão histórica tradicional da Idade Média. No presente volume, o leitor encontrará o essencial do pensamento deste historiador que se situa entre os maiores, apesar de a sua carreira ter sido tragicamente abreviada pela sua morte heróica na Resistência, em 1944. Ele é o «historiador exemplar que estudou o passado em todos os aspectos ao mesmo tempo e utilizando todos os meios que podem servir a história. A vastidão da sua documentação é impressionante. Não se contenta com as fontes propriamente ditas, que emprega com toda a prudência... e com os trabalhos chamados de segunda mão, que examinou cuidadosamente. Recorre à linguística: a etimologia das palavras, as suas mudanças de formas e de sentido, a toponímia e a onomástica fornecem-lhe informações preciosas... Utiliza as canções de gesta... Arqueologia, geografia social, costumes agrários: nada há que lhe escape.» Em suma, «a partir dos fenómenos particulares e localizados, eleva-se o mais possível até à explicação geral que é sempre, terminantemente, de ordem psicológica». (H. Berr). «Europa de Oeste e do Centro... período dos meados do século IX até aos primeiros decénios do século XIII: eis, no espaço e no tempo, os limites do presente volume... Dentro destes limites, o tema de Marc Bloch é a sociedade chamada feudal.» Pode discutir-se a validez de tal rótulo, mas isso não tem importância: «existe uma realidade a que se aplicou esta designação e existe uma estrutura social que caracteriza esta realidade; é esta estrutura que o autor se propõe analisar da forma mais completa possível. Esta análise é pretexto de «páginas absolutamente notáveis, porque mergulham na intimidade do passado, porque provocam a reflexão sobre a atitude do homem dessa época perante a natureza [Pg 009] e a duração e, de um modo geral, sobre os dados psicológicos que são a própria essência da história» (H. Berr). Depois de recapitular o meio e de definir a mentalidade, o autor analisa os vínculos de homem para homem que caracterizam o sistema feudal, numa espécie de «participação» que esses vínculos criaram: todo um complexo de relações pessoais, de dependência e de protecção, resulta na vassalagem. Existe uma subordinação, do cimo ao fundo da escala social, dos indivíduos uns aos outros, com tudo o que ela implica, tanto no plano moral como no plano económico. «Acima dos que trabalham e até acima daqueles que rezam, estão os que batalham e para os quais a guerra é a razão de viver».(M. Bloch). Avaliar-se-á quais foram os diversos papéis desempenhados pela Igreja; depois, qual foi a acção da realeza, por um lado, e por outro, a da força «burguesa», causas de declínio e de desagregação do feudalismo. A cidade, a comuna, o «juramento dos iguais»: «foi esse, diz Marc Bloch,... o fermento propriamente revolucionário, violentamente adverso a um mundo hierárquico». Uma nova força nascia, pouco a pouco, em frente aos castelos que haviam sido durante vários séculos os únicos «pontos de cristalização» do poder. Este livro, que se tornou um clássico, está na base de toda a documentação séria sobre a Idade Média. Além do mais, a acção de um sábio como Marc Bloch, que não abordou nenhum assunto que não tenha enriquecido, nunca acaba, pois, sublinha Henri Berr, incessantemente imprime aos historiadores «impulso para ir mais longe». O objectivo que lhe era mais caro era o da «L'Évolution de l'Humanité» («A Evolução da Humanidade»): «nunca permitir que o leitor se esqueça de que a história conserva todo o encanto de uma pesquisa inacabada». PAUL CHALUS Secretário-Geral do Centro Internacional de Síntese Nota: Este trabalho reúne os tomos XXXIV e XXXIV bis da Bibliothèque de Synthèse Historique «L’Évolution de l'Humanité», fundada por Henri Berr e dirigida, depois da sua morte, pelo Centre International de Synthèse, do qual foi também o criador. [Pg 010] IN TRODUÇÃO ORIENTAÇÃO GERAL DA INVESTIGAÇÃO Não há mais de dois séculos que, sob o título La Société Féodale, um livro pode ter a esperança de dar antecipadamente uma ideia do seu conteúdo. Não que o objectivo em si seja muito antigo. Sob a sua forma latina - feodalis - data da Idade Média. Mais recente, o substantivo «feudalismo» remonta, no mínimo, ao século XVII. Porém, um e outro termo conservaram ao longo do tempo um valor estritamente jurídico. S endo o feudo, como veremos, um modo de posse dos bens reais, considerava-se feudal «aquilo que se relacionava com o feudo» - assim se exprimia a Academia - e feudalidade não só «a qualidade de feudo» como os encargos próprios desse tipo de posse. Tratava -se, disse em 1630 o lexicógrafo Richelet, de «termos palacianos», não de história. Quando se largou o sentido desses vocábulos até ao ponto de serem usados para designar um estado de civilização? «Governo Feudal» e «feudalismo» figuram, nesta acepção, nas Lettres Historiques sur les Parlements, publicadas em 1727, cinco anos depois da morte do seu autor, o conde de Boulainvilliers.1 Este é o exemplo mais remoto que uma investigação bastante cuidadosa me permitiu descobrir. Talvez que outro investigador venha a ser um dia mais feliz. Este curioso homem, Boulainevilliers, que era ao mesmo tempo amigo de Fénelon e tradutor de Espinosa, e acima de tudo virulento apologia da nobreza, a qual considerava oriunda dos chefes germânicos, com menos inspiração e mais ciê ncia, uma espécie de Gobineau* antecipado - somos tentados facilmente pela ideia de fazer dele, até mais completa informação, o inventor de uma nova classificação histórica. Pois, em verdade, é disso mesmo que se trata e os nossos estudos [Pg 011] conheceram poucas fases tão decisivas como aquele momento em que os «Impérios», dinastias, grandes séculos, cada um colocado sob a invocação de um herói epónimo, em suma, todos esses velhos moldes oriundos de uma tradição monárquica e oratória, começaram a ceder o lugar a um outro tipo de divisões, baseadas na observação dos fenómenos sociais. 1 Histoire de l'ancien gouvernameni de la France avec XIV Lettres Historiques sur les Parlements ou États-Généraux. Haia, 1727. A quarta carta tem por título Détail du gouvernement féodal et de l'établissement des Fiefs (t. I, p. 286) onde se lê: «Alarguei- me no extracto desta ordem, por a julgar adequada a dar uma ideia exacta do antigo feudalismo.» * Gobineau - diplomata e escritor francês, autor do «Essai sur l'inégalité des races humaines», cujas teses influenciaram os adeptos do racismo germânico, e de algumas obras de ficção. (N. do T.) No entanto, estava reservado a um escritor mais ilustre dar o direito de cidadania a esta noção e ao seu rótulo. Montesquieu tinha lido Boulainvilliers. O vocabulário dos juristas, aliás, não o assustava; e a linguagem literária, apenas por ter passado pelas suas mãos, não iria sair mais enriquecida com os despojos da gíria forense? Se, ao que parece, ele evitou a palavra «feudalismo», demasiado abstracta, sem dúvida, na sua opinião, foi ele, incontestavelmente, quem impôs ao público culto do seu tempo a convicção de que as «leis feudais» caracterizaram um momento da história. Do nosso país, as palavras, com o seu conteúdo, passaram às outras línguas da Europa, ou simplesmente copiadas ou, como em alemão, traduzidas (Lehnwesen). Finalmente a Revolução, erguendo-se contra o que subsistia ainda das instituições baptizadas outrora por Boulainvilliers, acabou por popularizar o nome que, com intenções totalmente opostas, ele lhe havia dado. «A Assembleia Nacional», diz o famoso decreto de 11 de Agosto de 1789, «destruiu completamente o regime feudal». Daqui em diante, como pôr em dúvida a realidade de um sistema social cuja ruína custara tantos sacrifícios? 2 No entanto, esta palavra, votada a uma sorte tão favorável, é preciso confessar que era mal escolhida. É evidente que as razões que, na origem, decidiram a sua escolha parecem bastante claras. Contemporâneos da monarquia absoluta, Boulainvilliers e Montesquieu consideravam que a fragmentação da soberania entre uma multidão de pequenos príncipes ou até de senhores de aldeia, era a singularidade mais impressionante da Idade Média. Era esta característica que eles julgavam exprimir ao pronunciarem a palavra feudalismo, pois quando falavam de feudos, referiam-se umas vezes a principados territoriais, outras a senhorios. Mas, na realidade, nem todos os senhorios eram feudos, nem todos os feudos eram principados ou senhorios. Podemos, sobretudo, duvidar de que um tipo de organização social tão complexo possa ser rigorosamente qualificado, seja por causa do seu aspecto exclusivamente político, seja, se tomarmos «feudo» em todo o rigor da sua acepção jurídica, por uma forma de direito real, entre muitas outras. As palavras, todavia, são como moedas muito usadas, à força de circularem de mão em mão perdem o seu relevo etimológico. Na sua utilização actual, «feudalismo» e «sociedade feudal» abrangem um conjunto intrincado de imagens em que o feudo propriamente dito deixou de figurar em primeiro plano. Com a [Pg 012] condição de tratar estas expressões apenas como rótulos, daqui para o futuro 2 Entre os Franceses cuja botoeira ostenta hoje uma fita ou uma roseta vermelhas, quantos sabem que um dos deveres impostos à sua ordem pela sua primeira constituição de 19 de Maio de 1802 era «combater... qualquer empreendimento tendente ao restabelecimento do regime feudal»? consagrados, de um conteúdo que ainda não foi definido, o historiador pode servir-se deles sem mais remorsos do que aqueles que sente o físico quando, desprezando a língua grega, se obstina em chamar «átomo» a uma realidade que ele passa o seu tempo a fragmentar. Trata-se de uma grave questão saber se outras sociedades, em outros tempos ou sob outros céus, não terão apresentado uma estrutura assaz semelhante, nos seus traços fundamentais, à do nosso feudalismo ocidental, a ponto de merecerem, por seu lado, ser denominadas «feudais». Voltaremos a encontrar esta questão no fim deste livro, mas ele não lhe é dedicado. O feudalismo cuja análise vamos tentar fazer é aquele que, em primeiro lugar, recebeu esta designação. Como quadro cronológico, a investigação, sob reserva de alguns problemas de origem ou de prolongamento, limitar -se-á, portanto, a esse período da nossa história que se estendeu, mais ou menos, dos meados do século IX até aos primeiros decénios do século XIII; como quadro geográfico, situar-se-á na Europa de Oeste e Central. Ora, se as datas não merecem outra justificação além do próprio estudo, os limites de espaço, pelo contrário, parecem exigir um b reve comentário.  A civilização antiga centrava-se em redor do Mediterrâneo. Escrevia Platão que «da Terra habitamos apenas esta parte que se estende desde o Faso até às Colunas de Hércules, espalhados em volta do mar como formigas ou rãs em redor de um charco».3 Apesar das conquistas, estas mesmas águas, decorridos muitos séculos, permaneciam o eixo da Romania. Um senador da Aquitânia podia fazer a sua carreira junto do Bósforo e possuir vastos domínios na Macedónia. As grandes oscilações dos preços agitavam a economia desde o Eufrates até à Gália. Sem os trigos da África, a existência da Roma imperial não poderia conceber-se, tal como, sem o africano Agostinho, a teologia católica não existiria. Em contrapartida, transposto o Reno, começava o imenso paí s dos Bárbaros, estranho e hostil. Ora, no limiar do período a que chamamos Idade Média, dois profundos movimentos nas massas humanas tinham vindo destruir este equilíbrio - não nos compete aqui averiguar em que medida ele já estava abalado por dentro - para o substituir por uma constelação de desenho bem diferente. Primeiro foram as invasões 3 Fédon, 109 b. dos Germanos, depois as conquistas muçulmanas. Na maior parte das regiões compreendidas outrora na fracção ocidental do Império, por vezes uma mesma dominação, a comunidade dos hábitos mentais e sociais, em todo o caso, unem [Pg 013] futuramente as terras de ocupação germânica. Pouco a pouco veremos juntarem-se a elas os pequenos grupos celtas das ilhas, mais ou menos assimilados. Pelo contrário, a África do Norte prepara-se para seguir outros destinos. O regresso ofensivo dos Berberes tinha preparado a ruptura, o Islão consuma-a. Aliás, nas margens do Levante, as vitórias árabes, ao fixarem nos Balcãs e na Anatólia o Antigo Império do Oriente, tinham feito deste o Império Grego. As comunicações difíceis, a estrutura social e política muito especial, a mentalidade religiosa e a ossatura eclesiástica muito diferentes das da cristandade isolam-na, cada vez mais, das cristandades do Oeste. De facto, se, a Leste do continente, o Ocidente se expande largamente sobre os povos eslavos e propaga em alguns deles, juntamente com a sua forma religiosa própria, que é o catolicismo, os seus modos de pensar e até algumas das suas instituições, as colectividades que pertencem a este ramo linguístico não deixam de prosseguir, na sua maioria, uma evolução plenamente original. Limitado por estes três blocos - o maometano, o bizantino e o eslavo- incessantemente ocupado, além disso, desde o século X com o alargamento das suas fronteiras instáveis, o feixe romano-germânico estava seguramente longe de apresentar em si mesmo uma homogeneidade perfeita. Sobre os elementos que o compunham pesavam os contrastes do seu passado, demasiado vivos para não prolongarem os seus efeitos até ao presente. Mes mo aí, onde o ponto de partida foi quase idêntico, com a continuação, certas evoluções bifurcaram. No entanto, por muito acentuadas que tenham sido essas diversificações, como poderíamos deixar de reconhecer, acima delas, uma tonalidade de civilização comum: a do Ocidente? Não é apenas com vista a poupar ao leitor o aborrecimento de pesados adjectivos que, nas páginas que vão seguir-se, onde poderia esperar-se ler «Europa Ocidental e Central», ler-se-á muito simplesmente «Europa». Na verdade, que importa a acepção do termo e os seus limites, na velha geografia fictícia das cinco «partes do mundo»? O que conta é o seu valor humano. Ora, onde germinou e se desenvolveu, para depois se espalhar pelo globo, a civilização europeia, senão entre os homens que viviam entre o Tirreno, o Adriático, o Elba e o Oceano? Isso mesmo sentiram já, mais ou menos obscuramente, o cronista espanhol que, no século VIII se comprazia em qualificar de «europeus» os Francos de Carlos Martel, vitorioso contra o Islão, ou, cerca de duzentos anos mais tarde, o monge saxão Widukind, glorificando Otão o Grande, que tinha repelido os Húngaros, como o libertador da «Europa».4 Neste sentido, que é o mais rico de conteúdo histórico, a Europa foi uma criação da alta Idade Média. Já existia quando se iniciaram para ela os tempos feudais propriamente ditos. [Pg 014]  Aplicada a uma fase da história europeia, nos limites fixados deste modo, a palavra feudalismo tem sido largamente objecto de interpretações por vezes quase contraditórias, como veremos; a sua própria existência atesta a originalidade instintivamente reconhecida ao período que ela qualifica. De tal modo que um livro sobre a sociedade feudal pode definir-se como um esforço para responder a uma pergunta posta pelo seu próprio título: q uais foram as singularidades que mereceram a este fragmento do passado ter sido destacado dos seus vizinhos? Por outras palavras, o que nos propomos tentar aqui é a análise e a explicação de uma estrutura social, com as suas conexões. Tal método, a afirmar-se fecundo pela experiência, poderá ser empregado noutros campos de estudos, limitados por fronteiras diferentes e espero que a novidade deste empreendimento fará perdoar os seus erros de execução. A própria amplitude da investigação, concebida deste modo, tornou necessário dividir a apresentação dos resultados. O primeiro tomo descreverá as condições gerais do meio social, depois a constituição dos laços de dependência de homem para homem, os quais, acima de tudo, conferiram à estrutura feudal a sua cor própria. O segundo dedicar-se-á ao desenvolvimento das classes e à organização dos governos. É sempre difícil talhar na matéria viva. Pelo menos, como o momento que viu simultaneamente as classes antigas definirem os seus contornos, uma classe nova, a burgu esia, afirmar a sua originalidade e os poderes públicos saírem do seu longo enfraquecimento, foi também aquele em que começaram a diluir-se, na civilização ocidental, os traços mais especificamente feudais, dos dois estudos sucessivamente oferecidos ao leitor - sem que tenha sido possível fazer entre eles uma separação estritamente cronológica - o primeiro será, sobretudo, o da génese e o segundo o da evolução final e seus prolongamentos. Mas o historiador não tem nada de homem livre, pois do passado apenas conhece aquilo que esse passado quer mostrar-lhe. Por outro lado, quando a matéria que tenta abarcar é demasiado vasta para lhe permitir despojar-se pessoalmente de todos os 4 Auctores Antiquissimi (Mon. Germ.), t. XI, p. 362; WIDUKIND, I, 19. testemunhos, ele sente-se sem cessar limitado, na sua investigação, pelo estado das pesquisas. Evidentemente, não encontrarão aqui a descrição de nenhuma dessas guerras rendilhadas de que a erudição, mais do que uma vez, ofereceu o espectáculo. Como suportar que a história possa ceder o lugar aos historiadores? Pelo contrário, procurei nunca dissimular, fossem quais fossem as suas origens, as lacunas ou imprecisões dos nossos conhecimentos. Não temi, com isso, correr o perigo de repelir o leitor. Ao invés, seria por apresentar sob um aspecto falsamente esclerosado uma ciência [Pg 015] que é toda movimento que se correria o risco de atrair sobre ela o tédio e a frieza. Um dos homens que mais avançou na compreensão das sociedades medievais, o grande jurista inglês Maitland, dizia que um livro de história deve fazer fome. Fome de aprender e, sobretudo, de investigar, compreenda-se. Este livro não tem desejo mais forte do que abrir o apetite a alguns estudiosos.5 [Pg 016] Título [Pg 017] Página em branco [Pg 018] Página em branco 5 Qualquer trabalho de história, por pouco que se destine a um público relativamente vasto, levanta um problema prático dos mais perturbantes ao seu autor: o das referências. A equidade exigiria, talvez, que fossem multiplicados, nas notas, os nomes dos doutos trabalhos sem os quais esse livro não existiria. Porém, com o risco de incorrer na desagradável reprovação por ingratidão, julguei que poderia deixar à bibliografia, que se encontra no fim do volume, o cuidado de guiar o leitor nos caminhos da literatura erudita. Pelo contrário, tomei como norma nunca citar um documento sem proporcionar aos trabalhadores um pouco experientes o meio de encontrar a passagem visada e de verificar a interpretação. Se a referência não estiver expressa é porque as informações fornecidas pela própria exposição, e na publicação donde é extraído o testemunho, a presença de índices bem feitos bastam para tornar fácil a busca. No caso contrário, uma nota serve de flecha indicativa. Num tribunal, a final, o estado civil das testemunhas é muito mais importante do que o dos advogados. PRIMEIRO TOMO A FORMAÇÃO DOS LAÇOS DE DEPENDÊNCIA PRIMEIRA PARTE O MEIO PRIMEIRO LIVRO AS ÚLTIMAS INVASÕ ES CAPITULO I MUÇ ULMANOS E HÚNGAROS I. A Europa invadida e cercada «Vedes desabar sobre vós a cólera do Senhor... Só há cidades despovoadas, mosteiros em ruínas ou incendiados, campos reduzidos ao abandono... Por toda a parte o poderoso oprime o fraco e os homens são semelhantes aos peixes do mar que indistintamente se devoram uns aos outros.» Assim falavam, em 909, os bispos da província de Reims, reunidos em Trosly. A literatura dos séculos IX e X, as cartas, as deliberações dos concílios, estão cheios destas lamentações.Tenhamos em consideração, na medida em que o desejarmos, a ênfase e o pessimismo natural dos oradores sagrados. Mesmo assim, neste tema continuamente orquestrado e, aliás, confirmado por tantos factos, somos forçados a reconhecer algo mais do que um lugar comum. Evidentemente, naquele tempo, as pessoas que sabiam ver e comparar, nomeadamente os clérigos, tinham a sensação de viver numa odiosa atmosfera de desordens e de violê ncias. O feudalismo medieval nasceu no seio de uma época infinitamente perturbada. Em certa medida, ele nasceu dessas mesmas perturbações. Ora, entre as causas que contribuíram para criar ou manter um ambiente tão tumultuoso, algumas existiam completamente estranhas à evolução interior das sociedades europeias. Formada alguns séculos antes, no escaldante cadinho das invasões germânicas, a nova civilização ocidental, por seu lado, aparecia como uma cidadela sitiada ou, melhor, mais do que semi-invadida. E por três lados ao mesmo [Pg 019] tempo: ao sul, pelos fiéis do Islão, Árabes ou Arabizados; a este, pelos Húngaros, ao norte, pelos Escandinavos. II. Os Muçulmanos Dos inimigos que acabamos de enumerar, o Islão era decerto o menos perigoso. Não que devamos apressar-nos a falar em decadência, a seu respeito. Durante largo tempo, nem a Gália nem a Itália tiveram algo a oferecer, entre as suas pobres cidades, que se aproximasse do esplendor de Bagdá ou de Córdova. O mundo muçulmano, com o mundo bizantino, exerceu sobre o Ocidente, até ao século XII, uma verdadeira hegemonia económica: as únicas moedas de ouro que circulavam ainda nas nossas regiões saíam das oficinas gregas ou árabes, ou então-tal como muitas outras moedas de prata imitavam-lhes as cunhagens. E se os séculos VIII e IX viram quebrar-se, para sempre, a unidade do grande califado, os diversos Estados erguidos dos seus destroços mantinham-se ainda potências temíveis. Mas daí em diante, tratava-se menos de invasões propriamente ditas do que de guerras de fronteiras. Deixemos o Oriente, onde os Basileis das dinastias amoriana e macedónica (828-1056) penosa e valentemente procederam à reconquista da Ásia Menor. As sociedades ocidentais apenas se chocavam com os Estados islâmicos em duas frentes. Em primeiro lugar, a Itália Meridional, que era como que o terreno de caça dos soberanos que reinavam sobre a antiga província romana de África: emires aglabitas de Cairuão, depois, a partir do início do século X, califas fatimidas. A Sicília havia sido pouco a pouco conquistada pelos Aglabitas aos Gregos, que a dominavam desde Justiniano e cuja última praça forte, Taormina, caiu em 902. Ao mesmo tempo, os Árabes tinham-se instalado na península. Através das províncias bizantinas do Sul eles ameaçavam as cidades, semi-independentes, do litoral tirreno e os pequenos principados lombardos de Campânia e do Beneventino, mais ou menos submetidos ao protectorado de Constantinopla. Ainda no princípio do século XI eles estenderam as suas incursões até às montanhas da Sabina. Um bando que estabelecera o seu reduto nas alturas arborizadas do Monte Argento, próximo de Gaeta, só foi aniquilado em 915, depois de vinte anos de pilhagens. Em 982, o jovem «imperador dos Romanos», Otão II, o qual, de origem saxónica, nem por isso deixava de considerar-se, não só em Itália como fora dela, o herdeiro dos Césares, partiu à conquista do Sul. Caiu na espantosa loucura, tantas vezes repetida na Idade Média, de escolher o Verão, para arrastar para essas terras escaldantes um exército habituado a climas diferentes e, enfrentando, em 25 de Julho, na costa oriental da Calábria, as [Pg 020] tropas maometanas, sofreu diante delas a derrota mais humilhante. O perigo muçulmano continuou a pairar sobre essas regiões até ao momento em que, durante o século XI, um punhado de aventureiros, vindos da Normandia francesa, guerreou indistintamente Bizantinos e Árabes. Ao unirem a Sicília com o sul da península, criaram finalmente um Estado forte que iria, não só fechar para sempre o caminho aos invasores, mas também desempenhar, entre as civilizações latinas e o Islão, o papel de um brilhante intermediário. Assim, em território italiano, a luta contra os Sarracenos, iniciada no século IX, prolongara-se durante largo tempo. Mas com oscilações de pouca importância, no que respeita à conquista de território, de uma e de outra partes. Especialmente para o catolicismo ela interessava apenas como a terra extrema que era. A outra linha de choque situava-se em Espanha. Aí, para o Islão, já não se tratava de correrias ou de efémeras anexações; ali viviam em grande número populações de fé maometana e os Estados fundados pelos Árabes tinham os seus centros nessa mesma região. Nos começos do século X, os bandos sarracenos não haviam esquecido ainda completamente o caminho dos Pirinéus. Mas tais incursões distantes eram cada vez mais raras. A reconquista cristã, iniciada no extremo norte, apesar de muitos reveses e humilhações, progredia lentamente. Na Galiza e nos planaltos do nordeste que os emires ou califas de Córdova, localizados demasiado longe, no sul, nunca tinham chegado a dominar com mão muito firme, os pequenos reinos cristãos, ora desmembrados, ora reunidos sob o domínio de um único príncipe, estendiam-se desde os meados do século XI até à região do Douro; o Tejo foi alcançado em 1085. Junto dos Pirinéus, ao invés, o curso do Ebro, apesar de tão próximo, continuou muçulmano durante bastante tempo; Saragoça apenas foi conquistada em 1118. Os combates, que aliás não excluíam de modo algum relações mais pacíficas, no seu conjunto, somente conheciam curtas tréguas. Esses combates imprimiram nas sociedades espanholas uma marca original. No que respeita à Europa «de além desfiladeiros»; apenas influíram nela na medida em que- especialmente a partir da segunda metade do século XI - forneceram à sua cavalaria ocasiões brilhantes, frutuosas e piedosas aventuras, ao mesmo tempo que aos camponeses deram a possibilidade de se estabelecerem em terras despovoadas aonde eram atraídos pelos reis ou pelos senhores espanhóis. Mas, paralelamente às guerras propriamente ditas, convém não esquecer as pilhagens e assaltos. Foi sobretudo desse modo que os Sarracenos contribuíram para a desordem geral do Ocidente. Desde longa data que os Árabes foram marinheiros. Dos seus redutos de África, de Espanha e sobretudo das Baleares, os seus [Pg 021] corsários percorriam o Mediterrâneo Ocidental. No entanto, nessas águas que poucos navios demandavam, o ofício de pirata propriamente dito era pouco rendoso. No domínio do mar, os Sarracenos, como os Escandinavos na mesma época, viam sobretudo o meio de atingir o litoral para aí praticarem frutuosas incursões. Desde 842 que subiam o Ródano até perto de Arles, e pilhavam as duas margens na sua passagem. A Camargue servia-lhes então de base normal. Mas em breve um acaso iria proporcionar-lhes, com um ponto de partida mais seguro, a possibilidade de alargarem consideravelmente as suas pilhagens. Em data que não podemos precisar, provavelmente cerca de 890, uma pequena nau sarracena, vinda de Espanha, foi lançada pelos ventos contra a costa provençal, próximo da povoação actual de Saint-Tropez. Os seus ocupantes ocultaram-se durante o dia e, depois, quando caiu a noite, massacraram os habitantes de uma aldeia vizinha. 6 Montanhosa e arborizada - chamava-se então terra dos freixos ou «Freixedo» (Freinet) - esta parcela de terreno era favorável à defesa. Tal como o haviam feito, pela mesma época, na Campânia, os seus compatriotas do Monte Argento, os nossos homens fortificaram-se num monte, no meio de espinhosos maciços e chamaram a si outros companheiros. Assim nasceu o mais perigoso dos covis de salteadores. Com excepção de Fréjus, que foi saqueada, não parece que as cidades, defendidas pelas suas muralhas, tenham sofrido directamente dessa proximidade, mas no litoral, nas cercanias, os campos foram abominavelmente devastados. Os salteadores de Freinet, além do mais, aprisionavam numerosos cativos que vendiam nos mercados espanhóis. Em breve estenderam as suas incursões para além da costa. Pouco numerosos, decerto, não parece que se tenham aventurado facilmente pelo vale do Ródano, relativamente povoado e interceptado por cidadelas ou castelos. O maciço dos Alpes, pelo contrário, permitia que pequenos grupos avançassem, de serra em serra ou de silvado em silvado: com a condição, já se vê, de serem bons trepadores. Ora, oriundos da Espanha das Sierras ou do montanhoso Magreb, estes Sarracenos, no dizer de um' monge de Saint-Gall, eram «verdadeiras cabras». Por outro lado, os Alpes, apesar da sua aparência, não ofereciam um terreno para desprezar, no que respeita a incursões. Ali se abrigavam férteis vales, sobre os quais era fácil cair de imprevisto, de cima dos montes circundantes. Tal como Graisivaudan. Aqui e além, elevavam-se algumas abadias, presas apetecidas entre todas. Acima de Suse, o mosteiro de Novalaise, cuja maioria dos religiosos fugira, foi pilhado e incendiado a partir de 906. Pelos vales circulavam especialmente pequenos grupos de viajantes, mercadores ou «romeiros» que 6 É o nome cuja lembrança é conservada no nome actual da aldeia de La Garde-Freinet. Mas, situada à beira- mar, a cidadela dos Sarracenos não se situava em La Garde, que fica no interior. iam rezar junto dos túmulos dos apóstolos. Nada havia de [Pg 022] mais tentador do que esperá-los na passagem. Cerca de 920 ou 921, peregrinos anglo-saxões foram mortos à pedrada num desfiladeiro. Estes atentados repetiram-se daí em diante. Os djichs árabes não temiam aventurar-se espantosamente longe, para o Norte. Em 940, são assinalados nas imediações do alto vale do Reno e no Valais, onde incendiaram o ilustre mosteiro de Saint-Maurice d'Agaune. Pela mesma época, um dos seus bandos crivou de flechas os monges de Saint-Gall, que faziam uma procissão pacificamente em redor da sua igreja. Este bando, pelo menos, foi disperso pelo pequeno grupo que o abade reuniu apressadamente; alguns prisioneiros, levados para o mosteiro, deixaram-se heroicamente morrer de fome. Policiar os Alpes ou os campos provençais ultrapassava as forças do Estado daquele tempo. Não havia outra solução senão a de destruir o reduto, no Freinet. Mas aí, um novo obstáculo se levantava: era quase impossível cercar essa praça forte sem a isolar do mar, por onde vinham os reforços. Mas nem os reis da região - a oeste os reis de Provença e de Borgonha, a leste, o de Itália- nem os condes, dispunham de frotas. Os únicos marinheiros experimentados, de entre os cristãos, eram os Gregos, os quais, aliás, tal como os Sarracenos se aproveitavam disso para se fazerem corsários. Não fora Marselha, em 848, pilhada por piratas da sua nacionalidade? De facto, por duas vezes, em 931 e 942, a frota bizantina apareceu diante da costa de Freinet, chamada, pelo menos em 942 e provavelmente já onze anos antes, pelo rei de Itália, Hugo d'Arles, que tinha grandes interesses na Provença. As duas tentativas não resultaram. De tal maneira que, em 942, Hugo, virando a casaca ainda no decorrer da luta, planeou aliar-se aos Sarracenos com vista, com a ajuda destes, a fechar a passagem dos Alpes aos reforços pedidos por um dos seus competidores perante a coroa lombarda. Depois o rei da França Oriental - hoje, diríamos da «Alemanha» - Otão o Grande, em 951, fez-se rei dos Lombardos. Trabalhava deste modo para edificar na Europa Central e até em Itália, uma potência que ele desejava fosse, como a dos Carolíngios, cristã e geradora de paz. Considerando-se o herdeiro de Carlos Magno, cuja coroa imperial viria a cingir em 962, julgou ser sua missão fazer cessar o escândalo das pilhagens sarracenas. Tentou primeiro a via diplomática, procurando obter do califa de Córdova a ordem de mandar evacuar Freinet. Depois, pensou em empreender ele próprio uma expedição, mas não chegou a fazê-lo. Entretanto, em 972, os salteadores fizeram uma captura importante. No regresso de Itália, Maïeul, abade de Cluny, na rota do Grand Saint-Bernard, no vale do Dranse, caiu numa emboscada e foi levado para um desses esconderijos da montanha que os Sarracenos utilizavam frequentemente, na impossibilidade de alcançarem [Pg 023] a sua base de operações em cada surtida. Só foi libertado mediante a entrega de um pesado resgate pago pelos monges. Ora Maïeul, que havia reformado tantos mosteiros, era o venerado amigo, o director espiritual e, se tal se pode dizer, o santo familiar de muitos reis e barões. Nomeadamente do Duque de Provença, Guilherme. Este alcançou no caminho de regresso o bando que havia cometido o sacrílego atentado e infligiu-lhe uma dura derrota; depois, agrupando sob o seu comando vários senhores do vale do Ródano, pelos quais mais tarde seriam distribuídas as terras recuperadas para o cultivo, organizou um ataque contra a fortaleza do Freinet. A cidadela, desta vez, sucumbiu. Para os Sarracenos, foi o fim das piratarias terrestres de grande envergadura. Naturalmente, o litoral da Provença, como o da Itália, continuava exposto aos seus ataques. Ainda no século XI, vemos os monges de Lérins preocuparem-se activamente com o resgate dos cristãos que piratas árabes tinham raptado e levado para Espanha; em 1178, uma investida fez numerosos prisioneiros, perto de Marselha. Mas o cultivo dos campos, na Provença costeira e subalpina, pôde recomeçar e os caminhos dos Alpes tornaram-se tão seguros como o eram o das montanhas europeias. Também, no próprio Mediterrâneo, as cidades comerciais da Itália, Pisa, Génova e Amalfi, haviam passado à ofensiva, desde o começo do século XI. Pela expulsão dos Muçulmanos da Sardenha, perseguindo-os até aos portos do Magreb (a partir de 1015) e da Espanha (em 1092), começaram a limpeza destas águas, cuja segurança, pelo menos relativa - o Mediterrâneo não conhecerá de novo até ao século XIX- era tão importante para o seu comércio. III. A ofensiva húngara Como pouco antes haviam feito os Hunos, os Húngaros ou Magiares tinham surgido na Europa quase subitamente e já os escritores da Idade Média, que os conheciam até demais, se admiravam ingenuamente de que os autores romanos não os tivessem mencionado. A sua história primitiva, aliás, é para nós mais obscura do que a dos Hunos. De facto, as fontes chinesas que, muito antes da tradição ocidental, nos permitem acompanhar a pista dos «Hiung-Nou», são omissas a tal respeito. Certamente que estes novos invasores pertenciam também ao mundo, tão bem caracterizado, dos nómadas da estepe asiática: povos muitas vezes de linguagens diferentes, mas espantosamente semelhantes pelo género de vida que lhes era imposto por condições comuns de habitat; pastores de cavalos e guerreiros, alimentados pelo leite das suas montadas ou pelos produtos da caça e da pesca que exerciam; acima de tudo, inimigos figadais dos lavradores das redondezas. [Pg 024] Pelos seus traços fundamentais, o magiar entronca no tipo linguístico chamado ugro-finlandês ; os idiomas de que hoje mais se aproxima são os de alguns povoados da Sibéria. Mas, no decurso das suas deambulações, o conteúdo étnico primitivo havia-se fundido com numerosos elementos da língua turca e sofrido a forte influência das civilizações deste grupo 7. A partir de 833, vemos os Húngaros, cujo nome aparece então pela primeira vez, atormentar as populações sedentárias - khanat khazar e colónias bizantinas - nas cercanias do mar de Azov. Bem depressa ameaçam constantemente cortar o caminho do Dnieper, naquele tempo via comercial extremamente activa, por onde, de porto em porto, de mercado em mercado, as peles do Norte, o mel e a cera das florestas russas, os escravos comprados em vários lugares, iam sendo trocados pelas mercadorias ou ouro fornecidos por Constantinopla ou pela Ásia. Porém, novas hordas, saídas depois deles detrás dos Urais, os Petchenegos, perseguem-nos sem trégua. O caminho do sul está- lhes vedado, vitoriosamente, pelo Império Búlgaro. Assim acossados e enquanto uma das suas fracções preferiu embrenhar-se na estepe, mais longe, para leste, a maior parte deles passaram os Cárpatos, cerca de 896, para se espalharem pelas planícies do Tisza e do Danúbio Médio. Estas vastas extensões, tantas vezes devastadas pelas invasões, desde o século IV, constituiam no mapa humano da Europa desse tempo uma enorme mancha branca. «Solidões», escreveu o cronista Reginão de Prüm. Não deve tomar-se a expressão demasiado à letra. As variadas populações que outrora tinham tido ali importantes centros, ou que apenas haviam passado por lá, tinham provavelmente deixado atrás de si alguns grupos retardatários. Especialmente tribos eslavas bastante numerosas tinham-se infiltrado naquelas paragens pouco a pouco. Mas o habitat permanecia, sem dúvida, muito escasso, do que é prova a modificação qu ase completa da nomenclatura geográfica, incluindo a dos cursos de água, depois da chegada dos Magiares. Por outro lado, depois de Carlos Magno ter aniquilado o poderio Avaro, nenhum Estado solidamente organizado fora capaz de oferecer uma resistência séria aos Grupo linguístico da Europa, de língua não indo-europeia, ao qual pertencem os Húngaros, Finlandeses, Lapões e Samoiedas. (N. da T.) 7 O próprio nome de Húngaro (Hongrois) é, provavelmente turco. Tal como, talvez, pelo menos num dos seus elementos, o de Magiar, que, aliás, parece não se ter aplicado primitivamente senão a uma tribo. invasores. Só os chefes pertencentes ao povo dos Morávios tinham conseguido recentemente constituir, no ângulo noroeste, um principado com certo poder e já oficialmente cristão: a primeira tentativa, em suma, de um verdadeiro Estado puramente eslavo. Os ataques húngaros destruiram-no, definitivamente, em 906. A partir desse momento, a história dos Húngaros toma um aspecto novo. Já não é possível chamar-lhes nómadas, no verdadeiro [Pg 025] sentido da palavra, pois encontram-se estabelecidos nas planícies que hoje têm o seu nome. Dali, porém, lançam-se em bandos sobre os países vizinhos. Não pretendem conquistar terras, o seu único fito é a pilhagem, para regressarem em seguida, carregados com o produto do saque, ao seu lugar permanente. A decadência do império búlgaro, após a morte do czar Simeão (927), abre-lhes o caminho da Trácia bizantina, que saqueiam por várias vezes. O Ocidente, especialmente, menos defendido, atraía-os. Cedo haviam entrado em contacto com ele. Desde 862, antes mesmo de transporem os Cárpatos, uma das expedições tinha-os levado até aos limites da Germânia. Mais tarde, alguns deles tinham sido contratados, como auxiliares, pelo rei desse país, Arnulfo, durante uma das suas lutas contra os Morávios. Em 899, as suas hordas caem sobre a planície do Pó; no ano seguinte, sobre a Baviera. Daí em diante, não se passa ano nenhum em que os anais dos mosteiros da Itália, da Germânia e em seguida também da Gália, não registem, ora numa província ora noutra, «pilhagens dos Húngaros». A Itália do Norte, a Baviera e a Suábia foram as que mais sofreram; toda a região na margem direita do Enns, onde os Carolíngios tinham estabelecido postos de fronteira e distribuído terras pelas suas abadias, teve que ser abandonada. Mas as investidas depressa atingiram terras situadas para além desses limites. A amplitude do caminho percorrido poderia confundir a nossa imaginação se não tomássemos em linha de conta que as longas caminhadas pastoris, a que os Húngaros outrora se haviam sujeitado percorrendo espaços imensos e que continuavam a praticar no círculo mais restrito da inculta planície do Danúbio, tinham sido para eles uma escola maravilhosa; o nomadismo do pastor, já naquele tempo também pirata da estepe, tinha forjado o nomadismo do bandido. Para noroeste, o Saxe, ou seja, o vasto território que se estendia desde o Elba até ao Reno Médio, foi atingido a partir de 906 e desde então, saqueado por várias vezes. Na Itália, são assinalados até Otranto. Em 917, pela floresta dos Vosges e pelo desfiladeiro de Saales, insinuaram-se até às ricas abadias que se agrupavam em redor do Meurthe. Daí em diante a Lorena e a Gália do norte tornam-se um dos seus terrenos familiares. Dali se aventuram até à Borgonha e até mesmo ao sul do Loire. Homens das planícies, não receiam por isso atravessar os Alpes sempre que é preciso. Foi «pelos atalhos desses montes» que, no regresso de Itália, em 924 caíram sobre a região de Nimes. Nem sempre evitaram os combates contra forças organizadas; travaram alguns, com resultados variáveis. No entanto, geralmente, preferiam avançar furtivamente através das terras: verdadeiros selvagens, que os chefes conduziam às batalhas à chicotada, mas soldados temíveis e hábeis, quando era preciso combater, nos [Pg 026] ataques de flanco, encarniçados na perseguição e engenhosos para saírem de situações difíceis. Se era preciso atravessar um rio ou um canal veneziano, apressadamente fabricavam barcas de peles ou de madeira. Para descansarem, erguiam as suas tendas de habitantes da estepe, ou entricheiravam-se dentro de alguma abadia abandonada pelos monges, para, a partir dali, baterem as redondezas. Astuciosos como primitivos, informados conforme as necessidades pelos embaixadores que enviavam à frente, menos para negociar do que para espiar, depressa tinham apreendido os meandros, assaz pesados, da política ocidental. Mantinham-se ao corrente dos interregnos, particularmente favoráveis às suas incursões, e sabiam aproveitar-se das desavenças entre os príncipes cristãos para se porem ao serviço de um ou de outro dos rivais. Algumas vezes, segundo o uso comum aos bandidos de todos os tempos, faziam- se pagar uma soma em dinheiro pelas populações que prometiam poupar; por vezes exigiam mesmo um tributo regular: a Baviera e o Saxe durante alguns anos tiveram que sujeitar-se a esta humilhação. Mas estes processos de exploração apenas eram praticáveis nas províncias limítrofes da própria Hungria. Mais longe, contentavam-se com matar e pilhar, abominavelmente. Tal como os Sarracenos, não atacavam as cidades fortificadas; quando se arriscavam a isso, geralmente fracassavam, como acontecera a quando das suas primeiras incursões cerca do Dnieper, junto às muralhas de Kiev. A única cidade importante que tomaram foi Pavia. Eram temidos sobretudo nas aldeias e nos mosteiros, frequentemente isolados nos campos ou situados nas imediações das cidades, fora das muralhas. Acima de tudo, parece, preferiam fazer prisioneiros, escolhendo cuidadosamente os melhores, não reservando, por vezes, entre uma população passada a fio de espada, senão as mulheres novas e os rapazinhos: sem dúvida para as suas necessidades e prazeres e, principalmente, para vender. Quando calhava, nem se importavam de colocar este gado humano nos próprios mercados do Ocidente, onde os' compradores nem sempre eram escrupulosos; em 954, uma rapariga nobre, capturada nas cercanias de Worms, fo i posta à venda nesta cidade 8. Na maior parte das vezes, arrastavam os infelizes até às regiões do Danúbio para os oferecerem aos traficantes gregos. IV. Fim das invasões húngaras Todavia, em 10 de Agosto de 955, o rei da França Oriental, Otão o Grande, advertido de uma incursão sobre a Alemanha do Sul, combateu, nas margens do Lech, um bando húngaro que ia de regresso. Venceu-os, depois de um sangrento combate e tirou partido da perseguição. A expedição de pilhagem, castigada desse [Pg 027] modo, seria a última. Daí em diante, tudo se confinou, nos limites da Baviera, a uma guerra fronteiriça. De acordo com a tradição carolíngia, Otão depressa reorganizou os comandos da fronteira. Foram criadas duas zonas de protecção, uma nos Alpes, sobre o rio Mur e outra, mais ao norte, sobre o Enns; esta última, depressa conhecida pelo nome de comando de leste - Ostarrichi, que nós transformámos em Áustria (Autriche) -, atingiu desde o final do século, a floresta de Viena, e em meados do século XI, a Leitha e a Morávia. Por muito brilhante que tenha sido uma façanha isolada, como a batalha do Lech, e apesar de toda a sua repercussão, não teria bastado evidentemente para acabar definitivamente com as incursões. Os Húngaros, cujo território próprio não fora atingido, estavam longe de ter sofrido a mesma derrota que outrora haviam suportado os Avaros, às mãos de Carlos Magno. A derrota de um dos seus bandos, dos quais vários já tinham sido vencidos, teria sido insuficiente para modificar o seu modo de vida. A verdade é que, aproximadamente desde 926, as suas incursões, mais impetuosas do que nunca, iam-se espaçando. Na Itália, sem batalha, terminaram também depois de 954. Para sudeste, a partir de 960, as incursões na Trácia reduzem-se a medíocres assaltos de bandoleiros. Decerto que um conjunto de causas profundas havia lentamente feito sentir a sua acção. Prolongamento de antigos hábitos, as longas caminhadas através do Ocidente seriam ainda frutuosas e coroadas de êxito? Pensando bem, podemos duvidar que o fossem. As hordas cometiam terríveis barbaridades na sua passagem. Mas não lhes era possível carregar com todos os despojos. Os escravos, que certamente se deslocavam a 8 LANTBERTUS, Vita Herriberti, c. I. em SS, t. IV, p. 741. pé, afrouxavam os seus movimentos, além disso, eram difíceis de guardar. As fontes mencionam muitas vezes fugitivos: tal como um cura da região de Reims que, arrastado até ao Berry; numa noite escapou aos seus raptores, escondeu-se num pântano durante vários dias e, finalmente, conseguiu chegar à sua terra, cheio de aventuras para contar 9. Os carros, nas deploráveis estradas daquele tempo e no meio de terras hostis, ofereciam apenas, para o transporte dos objectos preciosos, um recurso mais incómodo e muito menos seguro do que o eram para os Normandos as suas barcas, nos belos rios da Europa. Os cavalos, nos campos devastados, nem sempre encontravam alimento; os generais bizantinos sabiam bem que «o grande obstáculo contra o qual lutam os Húngaros nas suas guerras é o da falta de pastagens» 10. Durante o percurso tinham que travar mais do que um combate; mesmo vitoriosos, os bandos regressavam dizimados por tais guerrilhas. E também pelas doenças: ao terminar nos seus anais, redigidos diariamente, a narração do ano de 924, o clérigo Flodoardo, em Reims, inscrevia neles jubilosamente a noticia há pouco recebida [Pg 028] de uma «peste» desintérica à qual haviam sucumbido na maioria, segundo se dizia, os saqueadores de Nîmes. Além do mais, à medida que os anos passavam, multiplicavam-se as cidades fortificadas e os castelos, restringindo os espaços abertos, os únicos verdadeiramente propícios às incursões. Finalmente, desde o ano 930, aproximadamente, o continente estava quase liberto do pesadelo normando; reis e barões tinham daí em diante as mãos mais livres para se voltarem contra os Húngaros e para organizarem mais metodicamente a resistência. Sob este ângulo, a obra decisiva de Otão foi a constituição de zonas de protecção junto das fronteiras e não a proeza do Lechfeld. Muitos motivos, portanto, deviam influir para desviar o povo magiar de um género de empresa que, sem dúvida, cada vez proporcionava menos riquezas e custava cada vez mais homens. Mas a sua influência apenas se exerceu tão fortemente porque a própria sociedade mag iar sofria, ao mesmo tempo, poderosas transformações. Neste ponto, infelizmente, faltam-nos quase por completo as fontes: Como tantas outras nações, os Húngaros só começaram a ter anais depois da sua conversão ao cristianismo e à latinidade. Todavia, vislu mbra-se que a pouco e pouco a agricultura tomava o seu lugar a par da criação de gado: metamorfose muito lenta, aliás, e que durante muito tempo comportou formas de «habitat» intermédias entre o verdadeiro nomadismo dos povos pastoris e o sedentarismo absoluto das comunidades de puros lavradores. Em 1147, o bispo bávaro 9 FLODOARD, Annales, 937. 10 LÉON, Tactica, XVIII, 62. Otão de Freising, que sendo cruzado descia o Danúbio, pôde observar os Húngaros. As suas cabanas de caniços, mais raramente de madeira, apenas serviam de abrigo durante a estação fria; «no Verão e no Outono eles vivem nas tendas». Trata-se da mesma alternância que um pouco mais cedo um geógrafo árabe notava nos Búlgaros do Baixo - Volga. Os aglomerados, pequenos eram móveis. Muito depois da cristianização, entre 1012 e 1015, um sínodo proibiu que as aldeias se afastassem da sua igreja. Já haviam 11 partido para longe? Deviam pagar uma multa e «regressar». Apesar de tudo, perdia-se o hábito das longas cavalgadas. Sem dúvida, especialmente porque as preocupações com as colheitas se opunham dali em diante às grandes migrações de pilhagem, durante o Verão. Estas modificações no género de vida harmonizavam-se com profundas mudanças políticas, favorecidas aquelas talvez pela absorção, na massa magiar, de elementos estrangeiros - tribos eslavas de há muito quase sedentárias; cativos oriundos das velhas civilizações rurais do Ocidente. Adivinhamos vagamente, entre os antigos Húngaros, acima das pequenas sociedades consanguíneas ou funcionando como tal, a existência de grupos mais vastos, aliás sem grande fixidez: «uma vez terminado o combate», escrevia o imperador Leão o Sábio, «vêmo-los dispersarem-se para os seus clãs (γένη) e para as suas [Pg 029] tribos (φυλάι)». Era uma organização assaz análoga, em suma, àquela que ainda hoje nos apresenta a Mongólia. No entanto, desde a estadia do povo ao norte do Mar Negro, tinha sido tentado um esforço, à imagem do Estado khazar, para elevar acima de todos os chefes das hordas um «Grande Senhor» (é esta a designação que usam, de comum acordo, as fontes gregas e latinas). O eleito foi um certo Arpad. Desde então, sem que seja de modo algum possível falar de um Estado unificado, a dinastia arpadiana julgou- se evidentemente destinada à hegemonia. Na segunda metade do século X, conseguiu, não sem lutas, estabelecer o seu poderio sobre a nação inteira. Populações estabilizadas ou que, pelo menos, não migravam, a não ser no interior de um território de pequena extensão, eram mais fáceis de submeter do que nómadas votados a uma eterna dispersão. A obra consumou-se quando, em 1001 o príncipe descendente de Arpad, Vaik, tomou o título de rei 12. Um agrupamento pouco coeso de hordas de salteadores e vagabundos tinha-se transformado num Estado solidamente implantado sobre o seu pedaço de terra, à maneira dos reinos ou dos principados do Ocidente. À sua imagem, 11 K. SCHÜNEMANN, Die Entstehung des Stüdtewe.sens in Südost-europa, Breslau, s. d., p. 18-19. 12 Sobre as condições, bastante obscuras, da elevação da Hungria a reino, cf. P. E. SCHRAMM, Kaiser, Rom und Renovatio, t. 1, 1929, p. 153 e s. também, numa larga medida. Como se, por vezes, as lutas mais atrozes não tivessem impedido um contacto de civilizações, das quais a mais avançada tivesse exercido a sua atracção sobre a mais primitiva. A influência das instituições políticas ocidentais tinha sido, aliás, acompanhada de uma penetração mais profunda, que envolvia toda a mentalidade; quando Vaik se proclamou rei, havia já recebido o baptismo, tomando o nome de Estevão, que a Igreja lhe conservou, colocando-o no rol dos santos. Como todo o vasto «no man's land» religioso da Europa Oriental, desde a Morávia até à Bulgária e à Rúss ia, a Hungria pagã havia sido de início disputada entre duas equipas de caçadores de almas, cada uma das quais representava um dos dois sistemas, desde então distintos com bastante nitidez, que partilhavam entre si a cristandade: o de Bizâncio, o de Roma. Chefes húngaros tinham- se baptizado em Constantinopla; mosteiros de rito grego subsistiram na Hungria até bastante dentro do século XI. Mas as missões bizantinas, que partiam de muito longe, tiveram que deixar lugar às suas rivais. Preparada já nas casas reais, por casamentos que evidenciavam já um desejo de aproximação, a obra de conversão era activamente conduzida pelo clero bávaro. O bispo Pilgrim, especialmente, que ocupou a sé de Passau, de 971 a 991, fez o que pôde. Aspirava para a sua igreja, em relação aos Húngaros, o mesmo papel de metrópole das missões, que em relação aos Eslavos pertencia a Magdeburgo, para além do Elba e que Bremen reivindicava sobre os povos escandinavos. Por infelicidade, comparada com Magdeburgo e com Bremen, Passau não era mais do que um simples bispado, sufragâneo de Salzburgo. Que importa isso? Os bispos de Passau, [Pg 030] cuja diocese, na realidade, tinha sido fundada no século VIII, consideravam-se sucessores daqueles que, no tempo dos Romanos, tinham tido a sua sede na praça forte de Lorch, no Danúbio. Cedendo à tentação a que sucumbiam, à sua volta, tantos homens da sua condição, Pilgrim mandou elaborar uma série de falsas bulas, segundo as quais Lorch era reconhecida como metrópole da «Panónia». Faltava apenas reconstit uir esta antiga província; em redor de Passau que, quebrados todos os laços com Salzburgo, retomaria a sua qualidade pretensamente antiga, viriam agrupar-se, como satélites, os novos bispados de uma «Panónia» húngara. No entanto, nem os papas nem os imperadores se deixaram persuadir. Quanto aos príncipes magiares, se por um lado se sentiam prontos para o baptismo, faziam questão de não dependerem de prelados alemães. Como missionários, mais tarde como bispos, chamavam de preferência padres checos ou até ven ezianos; e, quando, pelo ano mil, Estêvão organizou a hierarquia eclesiástica do seu Estado, d e acordo com o papa, fé-lo sob a autoridade de um metropolita próprio. Depois da sua morte, se as lutas pela sua sucessão deram, por algum tempo, algum prestígio a certos chefes que se mantinham pagãos, afinal não atingiram seriamente a sua obra. Cada vez mais conquistado pelo cristianismo, possuindo um rei coroado e um arcebispo, o último povo oriundo da «Cítia» - como diz Otão de Freising - havia renunciado definitivamente às gigantescas pilhagens de outrora para se confinar no horizonte doravante imutável dos seus campos e das suas pastagens. As guerras, com os soberanos da vizinha Alemanha continuavam frequentes, mas dali para o futuro, eram os reis de duas naçõ es sedentárias que se defrontavam 13. [Pg 031] [Pg 032] Notas 13 A história do mapa étnico na Europa «extra-feudal» não nos interessa aqui, directamente. Note-se, no entanto, que o estabelecimento húngaro nas planicies do Danúbio teve como consequência o corte, em dois, do bloco eslavo. CAPITULO II OS NORMANDOS I. Características gerais das invasões escandinavas Depois de Carlos Magno, todas as populações de língua germânica que habitavam ao sul da Jutlândia, tornadas cristãs e incorporadas nos reinos francos, se encontravam sob a influência da civilização ocidental. Mais longe, pelo contrário, para o Norte, viviam outros Germanos, os quais, com a sua independência, tinham conservado as suas tradições particulares. As suas linguagens, diferentes entre si, mas ainda mais diferentes dos idiomas da Germânia propriamente dita, pertenciam a outro ramo daqueles que há pouco se haviam destacado do tronco linguístico comum; damos-lhe hoje a designação de escandinavo. A originalidade da sua cultura, em relação com a dos vizinhos mais meridionais, manifestara-se definitivamente na sequência das grandes migrações que, nos séculos II e III da nossa era, tinham feito desaparecer muitos elementos de contacto e de transição, quase esvaziando as terras germânicas de homens, ao longo do Báltico e nas margens do estuário do Elba. Estes habitantes do extremo Setentrião nem formavam um simples amontoado de tribos nem uma nação única. Distinguiam-se os Dinamarqueses, na Escânia, nas ilhas e, um pouco mais tarde, na península da Jutlândia; os Götar, cuja memória é hoje 14 conservada nas províncias suecas de Oester e de Vestergötland ; os Suecos, em redor do lago Malar; finalmente vários povos que, separados por vastas extensões de florestas, de planícies semi-cobertas de neve e de gelo, mas ligados pelo mar familiar, ocupavam os vales e as costas do país que em breve se chamaria Noruega. Todavia, havia entre estes grupos um ar de família muito acentuado e, sem dúvida, de misturas demasiado frequentes que aos vizinhos não podia deixar de sugerir a ideia de lhes aplicar um rótulo comum. Como nada parecia mais característico do estrangeiro, ser misterioso por natureza, do que o ponto do horizonte donde ele parecia surgir, os Germanos [Pg 033] 14 As relações destes Götar escandinavos com os Godos, cujo papel foi tão importante na história das invasões germânicas, levantam um problema delicado e a respeito do qual está longe de fazer-se um acordo entre os especialistas. de aquém-Elba ganharam o hábito de lhes chamar simplesmente: «homens do Norte», Nordman. Coisa curiosa: esta palavra, apesar da sua forma exótica, foi adoptada tal e qual pelas populações romanas da Gália: ou porque antes de aprenderem a conhecer directamente «a selvagem nação dos Normandos», a sua existência lhes tenha sido revelada por narrações vindas das províncias limítrofes; ou, mais provavelmente, porque os homens comuns a tenham ouvido nomear aos seus chefes, funcionários reais cuja maioria, no princípio do século IX, sendo oriunda de famílias austrasianas, falava geralmente o franco. De tal modo que o termo permaneceu estritamente continental. Os Ingleses, ou faziam um esforço por distingui-los o melhor que podiam, entre os diferentes povos, ou então designavam-nos, colectivamente, pelo nome de um deles, o 15 de Dinamarqueses, com os quais se encontravam mais em contacto. Estes eram os «pagãos do Norte», cujas incursões, desencadeadas bruscamente cerca do ano 800, durante perto de um século e meio, fariam gemer o Ocidente. Melhor do que os vigias que, então, no litoral, ao prescrutarem com os olhos o alto mar, estremeciam à ideia de descobrirem as proas dos barcos inimigos, ou do que os monges, ocupados nos seus scriptoria com a anotação das pilhagens, podemos hoje restituir às investidas «normandas» o seu pano de fundo histórico. Encarados numa justa perspectiva, eles aparecem-nos apenas como um episódio de uma grame aventura humana, particularmente sangrento, diga-se em boa verdade: estas amplas migrações escandinavas que, pela mesma época, da Ucrânia à Gronelândia, estabeleceram tantos novos laços comerciais e culturais. Mas a preocupação de mostrar de que modo, por estas epopeias de camponeses e de mercadores, bem como de guerreiros, o horizonte da civilização europeia foi dilatado, será objecto de um outro trabalho, dedicado às origens da economia europeia. As pilhagens e as conquistas no Ocidente - cujos primeiros passos serão aliás descritos num outro volume desta colecção - interessam-nos aqui apenas na sua qualidade de um dos fermentos da sociedade feudal. Graças aos ritos funerários, podemos reconstituir com exactidão uma frota normanda. Um navio, oculto sob um montículo de terra amontoada, era esse, de facto, o túmulo preferido dos chefes. No nosso tempo, as pesquisas, sobretudo na Noruega, trouxeram à luz do dia vários desses túmulos marinhos: embarcações solenes, na verdade, destinadas às calmas deslocações, de fiord em fiord, mais do que às viagens 15 Os «Normandos» que as fontes de proveniência anglo-saxónica põem por vezes em cena são - conforme o próprio uso dos textos escandinavos - os Noruegueses, em oposição aos Dinamarqueses stricto sensu. para terras distantes, capazes, no entanto, quando era preciso, de efectuarem longos percursos, visto que um navio, exactamente copiado por um deles - o de Gokstad - pôde, no século XX, atravessar o Atlântico de lado a lado. As «longas naves» que espalharam o terror no Ocidente eram de tipo sensivelmente diferente. Não a tal ponto, todavia, que a sua imagem não possa ser reconstituída com bastante facilidade por meio do testemunho [Pg 034] das sepulturas, devidamente completado e corrigido pelos textos. Eram barcas sem ponte, obras-primas de um povo de lenhadores, pela construção do seu madeiramento e criações de um grande povo de marinheiros pela correcta proporção das suas linhas. Compridas, em geral com pouco mais de vinte metros, podiam mover-se a remos ou à vela e cada uma transportava, em média, de quarenta a sessenta homens, sem dúvida um pouco apertados. A sua velocidade, se a avaliarmos pelo modelo feito a partir da descoberta da nave de Gokstad, atingia facilmente uma dezena de nós. Pouco do casco entrava na água: cerca de um metro, o que constituía uma grande vantagem quando era preciso deixar o mar alto para se aventurarem nos estuários, por vezes mesmo ao longo dos rios. E isto porque, para os Normandos como para os Sarracenos, as águas não eram mais do que uma via para as presas terrestres. Ainda que não desdenhassem, uma vez por outra, os ensinamentos de cristãos desertores, possuíam uma espécie de ciência inata dos rios, familiarizando-se tão rapidamente com a complexidade das suas vias que, em 830, alguns deles haviam podido servir de guias ao arceb ispo Ebbon, a partir de Reims, na fuga daquele ao seu imperador. Diante das proas dos seus barcos, a rede ramificada dos afluentes abria a multiplicidade dos seus desvios, propícios às surpresas. No Escalda, são assinalados até Cambrai; no Yonne, até Sens; no Eure, até Chartres; no Loire, até Fleury, muito a montante de Orléans. Na própria Grã-Bretanha, onde os cursos de água, além da linha das marés, são muito menos propícios à navegação, o Ouse levou-os, apesar disso, até York, o Tamisa e um dos seus afluentes, até Reading. Se as velas ou os remos não eram suficientes, recorriam à sirga. Muitas vezes, para não carregarem demasiado as naves, um destacamento seguia por via terrestre. Era preciso alcançar as margens, em fundos muito baixos? Ou, para proceder a uma pilhagem, utilizar um ribeiro de águas pouco profundas? As canoas saíam dos barcos. Pelo contrário, era necessário contornar o obstáculo de fortificações que obstruíam a corrente da água? Improvisavam um transporte por terra, para o barco; assim fizeram em 888 e em 890, para evitarem a passagem por Paris. Lá longe, no leste, nas planícies russas, os mercadores escandinavos não tinham adquirido uma longa prática destas alternâncias entre a navegação e o transporte dos navios, de um rio para outro, ou ao longo das quedas de água? Do mesmo modo, estes marinheiros admiráveis não receavam a terra, os seus caminhos e os seus combates. Não hesitavam em deixar os rios para se lançarem à caça de presas, quando era preciso: tal como aqueles que, em 870, através da floresta de Orléans, seguiram a pista dos monges de Fleury, fugidos da sua abadia à beira do Loire, seguindo os trilhos deixados pelos carros. Cada vez mais se foram habituando a utilizar cavalos, mais para as deslocações do que para os combates, a maio r parte dos quais, naturalmente, roubados [Pg 035] na própria região, ao sabor das pilhagens que faziam. Foi assim que, em 866, fizeram um grande roubo de cavalos em Anglia de leste. Por vezes transportavam os cavalos de um terreno pilhado para outro onde iam actuar; em 885, por exemplo, de França para Inglaterra 16. Deste modo, podiam afastar-se cada vez mais dos rios; não foram os Normandos assinalados, em 864, abandonando os navios no rio Charente e aventurando-se até Clermont d'Auvergne, que tomaram? Por outro lado, deslocando-se mais depressa, surpreendiam mais facilmente os seus adversários. Eram extremamente hábeis em levantar entrincheiramentos e em defenderem-se neles. Sabiam também atacar praças fortes, sendo nisso superiores aos cavaleiros húngaros. Em 888, já era longa a lista das cidades que, apesar das suas muralhas, haviam sucumbido ao assalto dos Normandos: tais como Colónia, Ruão, Nantes, Orleães, Bordéus, Londres, York, para citar apenas as mais ilustres. Em boa verdade, além do factor surpres a ter por vezes desempenhado o seu papel, como aconteceu com Nantes, assaltada num dia de festa, as velhas muralhas romanas estavam longe de se manterem bem conservadas e mais longe ainda de serem sempre defendidas com muita coragem. Quando em 888, em Paris, um punhado de homens enérgicos soube reparar as fortificações da Cité e revestir-se de ardor para o combate, a cidade, que em 845, quase abandonada pelos habitantes, havia sido saqueada e provavelmente, por mais duas vezes, tinha depois sofrido o mesmo ultraje, dessa vez resistiu vitoriosamente. As pilhagens eram frutuosas. O terror que antecipadamente elas inspiravam não o era menos. Colectividades que viam os poderes públicos incapazes de as defenderem - tais como, desde 810, certos grupos frísios - e mosteiros isolados tinham sido os primeiros a pagar um tributo. Depois, os próprios soberanos se habituaram a tal prática: por dinheiro, obtinham dos bandos a promessa de susterem as suas pilhagens, pelo 16 ASSER, Life of King Alfred, ed. W. H. Stevenson, 1904, c. 66. menos provisoriamente, ou de se voltarem para outras vítimas. Na França Ocidental, Carlos o Calvo dera esse exemplo, desde 845. 0 rei da Lorena, Lotário II, imitou -o em 864. Na França Oriental, foi a vez de Carlos o Gordo, em 882. Entre os Anglo -Saxões, o rei de Mércia fez o mesmo, talvez desde 862; o rei d e Wessex, temos a certeza de o ter feito em 872. Pela sua própria natureza, tais resgates serviam de isca sempre renovada, e, deste modo, repetiam-se indefinidamente. Como era aos seus súbditos e, antes do mais, às suas igrejas que os príncipes deviam exigir as somas necessárias, estabeleceu- se finalmente um escoamento das economias ocidentais para as economias escandinavas. Ainda hoje, entre tantas memórias dessas épocas heróicas, os museus do Norte conservam nos seus expositores surpreendentes quantidades de ouro e de prata: contributos do comércio, decerto, em larga medida, mas também e em grande escala, como dizia o padre alemão Adam de Bremen, «frutos das pilhagens». Aliás é curioso que, roubados ou [Pg 036] recebidos como resgate, sob a forma de moedas ou de jóias ao gosto do Ocidente, esses metais preciosos tenham sido geralmente refundidos para fazer novas jóias de acordo com as preferências dos seus detentores: o que constitui uma prova de que estamos em presença de uma civilização especialmente segura das suas tradições. Os prisioneiros eram também roubados e, a menos que fossem resgatados, levados para além-mar. Pouco depois de 860, são assim vendidos, na Irlanda, prisioneiros 17 negros que haviam sido trazidos de Marrocos. Acrescentemos finalmente ao retrato destes guerreiros do Norte os fortes e brutais apetites sensuais, o prazer do sangue e da destruição e, por vezes, ímpetos terríveis, um pouco loucos, em que a violência não tinha limites: tal como a famosa orgia durante a qual, em 1012, o arcebispo de Canterbury, até ali cuidadosamente poupado para ser por ele obtido um resgate, foi lapidado com os ossos dos animais consumidos no banquete. Diz-nos uma saga que um Islandés, que tinha feito campanhas no Ocidente, tinha a alcunha de «homem das crianças» porque se recusava a empalá-las na ponta das lanças «como era hábito entre 18 os seus companheiros. Isto é suficiente para fazer compreender o terror que estes invasores espalhavam à sua volta. 17 SHETELIG, Les origines des invasions des Normands (Bergens Museums Arbog, Historisk-antik varisk rekke, nr. 1), p. 10. 18 Landnamabók, c. 303, 334, 344, 379. II. Da incursão à possessão No entanto, desde o tempo em que os Normandos saquearam o primeiro mosteiro, em 793, na costa de Nortúmbria e, durante o ano de 800, forçaram Carlos Magno a organizar à pressa, na Mancha, a defesa do litoral franco, as suas empresas, pouco a pouco, haviam mudado de características, bem como de envergadura. Ao princípio, tinham sido assaltos espaçados, quando fazia bom tempo, ao longo das margens setentrionais - Ilhas Britânicas, terras baixas marginais da grande planície do Norte, falésias da Nêustria - organizados por pequenos grupos de «Vikings». A etimologia da palavra é contestada 19, mas designa sem dúvida um aventureiro em busca de lucros e de guerras; nem tão pouco se duvida de que os grupos assim formados, fora dos laços da família ou do povoado, se tenham geralmente constituido com vista à própria aventura, Apenas os reis da Dinamarca, colocados à frente de um Estado pelo menor rudimentarmente organizado, tentavam já, nas fronteiras do sul, fazer verdadeiras conquistas, sem multo sucesso, aliás. Depois, muito rapidamente, o raio de acção alastrou, As naves aventuraram-se até ao Atlántico e mais longe ainda, em direcção ao Sul. Desde 844, alguns portos da Espanha Ocidental tinham recebido a visita dos piratas. Em 839 e 860, foi a vez do Mediterráneo. As Baleares, Pisa, o Banco-Ródano, foram atingidos. O vale do Arno, subido até Fiesole, Esta incursão mediterránica, aliás, estava [Pg 037] destinada a permanecer isolada, não porque a distância fosse de amedrontar aqueles que haviam descoberto a Islândia e a Gronelândia. Não iria ass istir-se, por um movimento inverso, no século XVII, ao aparecimento dos Bárbaros ao largo de Saintonge, e mesmo até nos bancos da Terra-Nova? Mas sem dúvida que as frotas árabes eram excelentes guardas dos mares. Inversamente, as invasões incidiram cada vez mais longe no interior do continente e da Grã-Bretanha. Não existe gráfico mais eloquente do que a transcrição, num mapa, das peregrinações dos monges de Saint-Philibert, com as suas relíquias. A abadia tinha sido fundada no século VII, na ilha de Noirmo utier: estância adequada para cenobitas, 19 Foram propostas, principalmente, duas interpretações. Alguns estudiosos dizem que a palavra provém do escandinavo vik, baía; outros, vêem nela um derivado do germânico comum wik, que designa uma povoação ou um mercado. (Cf. o baixo-alemão Weichbild, direito urbano, e um grande número de nomes de lugares, tais como Norwich, na Inglaterra, ou Brunswick – Braunschweig – na Alemanha). No primeiro caso, o Viking teria recebido o nome das baías onde se emboscava; no segundo, dos burgos que umas vezes frequentava, como pacífico comerciante, outras pilhava. Nenhum argumento absolutamente decisivo pôde, até à data, ser fornecido, num sentido ou noutro. tanto mais que o mar era mais ou menos calmo, mas que se tomou especialmente perigosa quando apareceram no golfo os primeiros barcos escandinavos. Um pouco antes de 819, os religiosos fizeram construir um refúgio em terra firme, em Dées, na margem do lago de Grandlieu. Depressa adquiriram o hábito de ali se instalarem todos os anos no começo da Primavera; quando a estação rigorosa, nos fins do Outono, parecia impedir que os inimigos se aventurassem no mar, a igreja da ilha abria de novo para os ofícios divinos. Apesar de tudo, em 836, Noirmoutier, incessantemente devastada e onde o abastecimento se tornava certamente cada vez mais difícil, foi considerada impossível de manter. Então, Dées, que até aí fora um abrigo te mporário, passou à categoria de estabelecimento permanente, enquanto que mais longe, na rectaguarda, um pequeno mosteiro recentemente adquirido em Cunauld, a montante de Saumur, serviria no futuro de refúgio. Em 858, dá-se novo recuo: Dées, demasiado próximo da costa, tem por sua vez que ser abandonado e os monges fixam-se em Cunauld. Infelizmente, este lugar, sobre o Loire, tão fácil de subir, não fora bem escolhido. Depois de 862 tiveram que se transferir mais para o interior, para Messay, no Poitou. Mas ao fim de dez anos, aperceberam-se de que a distância dali ao Oceano ainda era demasiado curta. Desta vez, não pareceu que fosse protecção bastante toda a extensão do Maciço Central; em 872 ou 873, os monges fugiram até Saint-Pourçain-sur- Sioule. Mesmo aí não ficaram muito tempo. Mais longe ainda, para leste, a cidade fortificada de Tournus, sobre o Saône, foi o reduto onde, desde 875, o corpo santo, que suportara tantos solavancos pelos caminhos percorridos, encontrou enfim o «lugar de paz» de que fala um diploma real 20. Naturalmente que estas expedições de longa distância exigiam uma organização muito diferente daquela que fora suficiente para as bruscas incursões de outrora. Os pequenos bandos, cada um agrupado em volta de um «rei de mar», uniram-se pouco a pouco e assim se constituiram verdadeiros exércitos; tal como o «Grand Ost» (magnus exercitus) que, formado sobre o Tamisa e depois, após a sua passagem pelos campos da Flandres, acrescido de vários bandos [Pg 038] isolados, devastou abominavelmente a Gália, de 879 a 892, para finalmente vir a dissolver-se na costa de Kent. Sobretudo, tornava-se impossível regressar todos os anos ao Norte. Os Vikings tomaram o hábito de passar o Inverno entre duas campanhas, no próprio terreno que haviam escolhido como alvo. Assim fizeram, a partir d 835, ou cerca disso, na Irlanda; na Gália, pela 20 R. POUPARDIN, Monuments de l'histoire des abbayes de Saint-Philibert, 1905, com a Introduction de e G. TESSIER, Bibliothèque de l'Éc. des Chartes, 1932, p. 203. primeira vez, em 843, em Noirmoutier; em 851 na foz do Tamisa, na ilha de Thanet. Primeiramente tinham estabelecido os seus aquartelamentos na costa, mas em breve perderam o receio de os estabelecer mais para o interior. Muitas vezes entricheiravam- se numa ilha de um rio, ou então contentavam-se em fixar-se perto de um curso de água. Para estas estadias prolongadas, alguns levavam as mulheres e os filhos; os parisienses, em 888, puderam ouvir, dentro das suas muralhas, vozes femininas que, no campo inimigo, entoavam os cantos fúnebres pelos guerreiros mortos. Apesar do terror que rodeava esses ninhos de salteadores, dos quais constantemente partiam novas expedições, alguns habitantes da vizinhança aventuravam-se até junto deles para lhes venderem os seus víveres. Nesse momento, o covil dos salteadores fazia-se mercado. Assim, sempre piratas, mas dali em diante piratas meio -sedentários, os Normandos preparavam-se para se tornarem conquistadores de terras.. Na verdade, tudo contribuía para favorecer essa transformação dos simples bandidos de há pouco. Estes Vikings, que os campos de pilhagem do Ocidente atraíam, pertenciam a um povo de camponeses, de ferreiros, de escultores em madeira e de comerciantes, tal como de guerreiros. Arrastados para fora das suas terras pelo amor à riqueza ou às aventuras, por vezes obrigados ao exílio por questões entre famílias ou rivalidades entre chefes, não deixavam por isso de sentir atrás de si as tradições de uma sociedade que tinha os seus quadros fixos. Assim, fora como colonos que os Escandinavos se tinham estabelecido, desde o século VII, nos arquipélagos do Oeste, das ilhas Far-Oer às Hébridas; como colonos ainda, verdadeiros desbravadores de terra virgem, a partir de 870 haviam procedido à grande «conquista de terra», à Landnáma, na Islândia. Acostumados a misturarem comércio e pirataria, tinham criado em volta do Báltico uma coroa de mercados fortificados e, dos primeiros principados que alguns dos seus chefes de guerra fundaram durante o século IX, nos dois extremos da Europa - na Irlanda, em redor de Dublin, de Cork e de Limerick; na Rússia, de Kiev, ao longo das etapas da grande via fluvial - a característica comum era a de se apresentarem como Estados essencialmente urbanos que, a partir de uma cidade que funcionava como centro, dominavam a área mais baixa que os rodeava. É forçoso deixar aqui de lado, por muito atraente que seja, a história das colónias formadas nas ilhas ocidentais: Shetland e Órcadas, as quais, dependentes do reino da Noruega desde o século X, [Pg 039] só passariam a pertencer à Escócia mesmo no final da Idade Média (1468); Hébridas e Man que foram, até meados do século XIII, um principado escandinavo autónomo; reinos da costa irlandesa que, depois de extinta a sua expansão no início do século XI só desapareceram definitivamente cerca de um século mais tarde, perante a conquista inglesa. Nestas terras, localizadas na ponta extrema da Europa, a civilização escandinava chocava-se com as sociedades célticas. Só será abordado por nós com algum pormenor o estabelecimento dos Normandos nos dois grandes países «feudais»: o antigo Estado franco e a Grã-Bretanha anglo-saxónica. Ainda que entre uns e outros - assim como as ilhas vizinhas - as trocas humanas tenham sido frequentes até ao fim, que os bandos armados tenham sempre atravessado facilmente a Mancha ou o mar da Irlanda, que os chefes, no caso de fracasso numa das margens, tenham sempre manifestado o hábito de irem tentar a sorte no litoral do outro lado, será necessário, para maior clareza, examinar separadamente os dois terrenos de conquista. III. As possessões escandinavas: a Inglaterra As tentativas dos Escandinavos para se instalarem em solo britânico desenharam- se desde o primeiro Inverno que ali passaram: em 851, como vimos. Desde então, os bandos, rendendo-se uns aos outros, não mais largaram a sua presa. Dos Estados anglo - saxões, alguns, mortos os seus reis, desapareceram: tais como o Deira, na costa ocidental, entre o Humber e o Tees; o Anglia-Leste, entre o Tamisa e o Wash. Outros, como a Bernícia, no extremo norte e a Mércia, no centro, subsistiram durante algum tempo, mas com menor extensão e colocados sob uma espécie de protectorado. Apenas o Wessex, que ao tempo se estendia sobre todo o sul, conseguiu preservar a sua independência, não sem duras guerras, ilustradas a partir de 871, pelo heroísmo, sábio e paciente, do rei Alfredo. Produto acabado desta civilização anglo-saxónica, a qual, melhor do que qualquer outra nos reinos bárbaros, tinha sabido fundir numa síntese original os contributos de tradições culturais opostas, Alfredo, rei sábio, foi também um rei-soldado. Conseguiu, em 880, submeter o que ainda restava da Mércia, subtraída desse modo à influencia dinamarquesa. Em contrapartida, foi preciso, no mesmo momento, abandonar ao invasor, mediante um verdadeiro tratado, toda a parte oriental da ilha. O que não quer dizer que esse imenso território, limitado aproximadamente, a leste, pela via romana que ligava Londres a Chester, tenha formado então, nas mãos doa conquistadores, um só Estado. Reis ou «iarla» escandinavos, sem dúvida com pequenos chefes anglo-saxões aqui e além, como os sucessores dos príncipes de Bernícia, partilhavam entre [Pg 040] eles o país, umas vezes unidos por toda a espécie de vínculos de alianças ou de subordinação, outras guerreando-se. Algures haviam-se constituído pequenas repúblicas aristocráticas, de tipo análogo às da Islândia. Praças fortes tinham sido erguidas, as quais serviam de pontos de apoio, bem como de mercados, para os diversos «exércitos» tornados sedentários. E como era forçoso alimentar as tropas vindas do outro lado do mar, tinham sido distribuídas terras aos guerreiros. Todavia, nas costas, outros bandos de Vikings continuavam as pilhagens. Não admira que, no fim do seu reinado, com a memória cheia ainda de tantas cenas de horror, Alfredo, ao traduzir, na Consolação de Boécio, o quadro da Idade de Ouro, não pudesse conter-se que não acrescentasse ao modelo esta frase: «então não se ouvia falar de navios armados para a guerra 21?». O estado de anarquia em que assim vivia a parte «dinamarquesa» da ilha explica que, a partir de 899, os reis do Wessex, que eram os únicos em toda a Grã-Bretanha que dispunham de um poder territorial extenso e de recursos relativamente consideráveis, tenham podido tentar e conseguir a reconquista, apoiados numa rede de fortificações construídas pouco a pouco. Depois de 954, após dura luta, a sua autoridade suprema é reconhecida em todo o país anteriormente ocupado pelo inimigo. Não quer isto dizer que os traços da estada escandinava tenham sido ali apagados, nem pouco mais ou menos. Alguns earls, é certo, com os seus grupos de súbditos, mais ou menos voluntariamente tinham voltado para o mar. Mas a maioria dos invasores de há pouco permaneceram: os chefes conservavam, sob a hegemonia real, os seus direitos de comando; as pessoas comuns conservavam as suas terras. Entretanto, profundas transformações políticas se tinham operado na própria Escandinávia. Acima do caos dos pequenos grupos tribais, verdadeiros Estados se consolidavam ou se formavam: Estados muito instáveis ainda, dilacerados por inúmeras lutas dinásticas e incessantemente ocupados a combaterem-se uns aos outros, capazes, no entanto, pelo menos repentinamente, de temíveis concentrações de forças. Ao lado da Dinamarca, onde o poder dos soberanos se consolidou consideravelmente no final do século X, ao lado do reino dos suecos, que tinha absorvido o dos Götar, veio colocar-se então a mais recente das monarquias setentrionais, criada, cerca do ano 900, por uma família de chefes locais, estabelecida primeiramente nas terras, relativamente férteis e abertas, à volta do fiord de Oslo e do lago Mjösen. Foi o reino do «caminho do Norte», ou, como nós lhe chamamos, da Noruega: até o próprio nome, de simples orientação e 21 King Alfred's old English version of Boethius, ed. W. J. Sedgetield, XV. sem qualquer ressonância étnica, evoca um poder de comando tardiamente imposto ao particularismo de povos ainda recentemente bem distintos, Ora, para os príncipes, donos destas poderosas unidades políticas, a vida do Viking era coisa familiar; quando jovens, an

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