Comunidade: A Busca por Segurança no Mundo Atual - Zygmunt Bauman - PDF
Document Details
Uploaded by CherishedSilicon
Zygmunt Bauman
Tags
Related
- Sociología de la Educación PDF
- Esquema Tema 1 . Objeto y Método de la Sociología PDF
- BLOQUE 1: INTRODUCCIÓN A LA SOCIOLOGÍA PDF
- Protagonisti e interpreti della sociologia sanitaria PDF
- Estructura Comunitaria - EDUCACIÓN FUNDAMENTAL 2do tema PDF
- Unidad 4: La Institución desde una Mirada Psicoanalítica y Social PDF
Summary
Este livro de Zygmunt Bauman explora o conceito de comunidade e a busca por segurança no mundo atual. O autor analisa as diferentes formas de comunidade, suas vantagens e desafios, destacando a tensão entre segurança e liberdade. O texto argumenta que a busca por comunidade perfeita é, frequentemente, uma busca utópica e que a consequente comparação entre a comunidade idealizada e a realidade leva a conflitos.
Full Transcript
Obras de ZYGMUNT BAUMAN, todas publicadas por esta editora: Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos Comunidade: a busca por segurança no mundo atual Em busca da política Globalização: as conseqüências humanas O...
Obras de ZYGMUNT BAUMAN, todas publicadas por esta editora: Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos Comunidade: a busca por segurança no mundo atual Em busca da política Globalização: as conseqüências humanas O mal-estar da pós- modernidade Modernidade e ambivalência Modernidade e Holocausto Modernidade líquida Zygmunt Bauman COMUNIDADE A busca por segurança no mundo atual Tradução: Plínio Dentzien Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro Título original: Community (Seeking Safety in an Insecure World) Tradução autorizada da primeira edição inglesa publicada em 2001 por Polity Press, em associação com Blackwell Publishing Ltd., de Oxford, Inglaterra Copyright © 2001, Zigmunt Bauman Copyright © 2003 da edição brasileira: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123 e-mail: [email protected] site: www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Capa: Sérgio Campante CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Bauman, Zygmunt, 1925- B341c Comunida de: a bu sca por segurança no mu ndo atual / Zygmunt Bauman; tradução Plínio Dentzien. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003 Tradução de: Community: seeking safety in an insecure world ISBN 85-7110-699-1 1. Comunidade. 2. Individualismo. 3. Segurança pública. 4. Civilização moderna — Século XX. 5. Sociologia urbana. I. Título. CDD 307.76 03-0065 CDU 316.334.56 SUMÁRIO Uma introdução, ou bem-vindos à esquiva comunidade 7 1. A agonia de Tântalo 13 2. A reinserção dos desenraizados 25 3. Tempos de desengajamento, ou a grande transformação, segundo tempo 40 4. A secessão dos bem-sucedidos 49 5. Duas fontes do comunitarismo 56 6. Direito ao reconhecimento, direito à redistribuição 69 7. Da igualdade ao multiculturalismo 82 8. O nível mais baixo: o gueto 100 9. Muitas culturas, uma humanidade? 112 Posfácio 129 Notas 135 Uma introdução ou bem-vindos à esquiva comunidade As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam sensações. A palavra “comunidade” é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que quer que “comunidade” signifique, é bom “ter uma comunidade,” “estar numa comunidade”. Se alguém se afasta do caminho certo, freqüentemente explicamos sua conduta reprovável dizendo que “anda em má companhia”. Se alguém se sente miserável, sofre muito e se vê persistentemente privado de uma vida digna, logo acusamos a sociedade — o modo como está organizada e como funciona. As companhias ou a sociedade podem ser más; mas não a comunidade. Comunidade, sentimos, é sempre uma coisa boa. Os significados e sensações que as palavras carregam não são, é claro, independentes. “Comunidade” produz uma sensação boa por causa dos significados que a palavra “comunidade” carrega — todos eles prometendo prazeres e, no mais das vezes, as espécies de prazer que gostaríamos de experimentar mas que não alcança mais. Para começar, a comunidade é um lugar “cálido”, um lugar confortável e aconchegante. É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. Lá fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos que estar alertas quando saímos, prestar atenção com quem falamos e a quem nos fala, estar de prontidão a cada minuto. Aqui, na comunidade, podemos relaxar — estamos seguros, não há perigos ocultos em cantos escuros 7 8 (com certeza, dificilmente um “canto” aqui é “escuro”). Numa comunidade, todos nos entendemos bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos entre nós. Podemos discutir — mas são discussões amigáveis, pois todos estamos tentando tornar nosso estar juntos ainda melhor e mais agradável do que até aqui e, embora levados pela mesma vontade de melhorar nossa vida em comum, podemos discordar sobre como fazê-lo. Mas nunca desejamos má sorte uns aos outros, e podemos estar certos de que os outros à nossa volta nos querem bem. E ainda: numa comunidade podemos contar com a boa vontade dos outros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé outra vez. Ninguém vai rir de nós, nem ridicularizar nossa falta de jeito e alegrar-se com nossa desgraça. Se dermos um mau passo, ainda podemos nos confessar, dar explicações e pedir desculpas, arrepender-nos se necessário; as pessoas ouvirão com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique ressentido para sempre. E sempre haverá alguém para nos dar a mão em momentos de tristeza. Quando passarmos por momentos difíceis e por necessidades sérias, as pessoas não pedirão fiança antes de decidirem se nos ajudarão; não perguntarão como e quando retribuiremos, mas sim do que precisamos. E raramente dirão que não é seu dever ajudar- nos nem recusarão seu apoio só porque não há um contrato entre nós que as obrigue a fazê-lo, ou porque tenhamos deixado de 1er as entrelinhas. Nosso dever, pura e simplesmente, é ajudar uns aos outros e, assim, temos pura e simplesmente o direito de esperar obter a ajuda de que precisamos. E assim é fácil ver por que a palavra “comunidade” sugere coisa boa. Quem não gostaria de viver entre pessoas amigáveis e bem intencionadas nas quais pudesse confiar e de cujas palavras e atos pudesse se apoiar? Para nós em particular — que vivemos em tempos implacáveis, tempos de competição e de desprezo pelos mais fracos, quando as pessoas em volta escondem o jogo e poucos se interessam em ajudar-nos, quando em resposta a nossos pedidos de ajuda ouvimos advertências para que fiquemos 9 por nossa própria conta, quando só os bancos ansiosos por hipotecar nossas posses sorriem desejando dizer “sim”, e mesmo eles apenas nos comerciais e nunca em seus escritórios — a palavra “comunidade” soa como música aos nossos ouvidos. O que essa palavra evoca é tudo aquilo de que sentimos falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes. Em suma, “comunidade” é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, a nosso alcance — mas no qual gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir. Raymond Williams, atento analista de nossa condição comum, observou de modo cáustico que o que é notável sobre a comunidade é que “ela sempre foi”. Podemos acrescentar: que ela sempre esteve no futuro. “Comunidade” é nos dias de hoje outro nome do paraíso perdido — mas a que esperamos ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente os caminhos que podem levar-nos até lá. Paraíso perdido ou paraíso ainda esperado; de uma maneira ou de outra, não se trata de um paraíso que habitemos e nem de um paraíso que conheçamos a partir de nossa própria experiência. Talvez seja um paraíso precisamente por essa razão. A imaginação, diferente das duras realidades da vida, é produto da liberdade desenfreada. Podemos “soltar” a imaginação, e o fazemos com total impunidade — porque não teremos grandes chances de submeter o que imaginamos ao teste da realidade. Não é só a “dura realidade”, a realidade declaradamente “não comunitária” ou até mesmo hostil à comunidade, que difere daquela comunidade imaginária que produz uma “sensação de aconchego”. Essa diferença apenas estimula a nossa imaginação a andar mais rápido e torna a comunidade imaginada ainda mais atraente. A comunidade imaginada (postulada, sonhada) se alimenta dessa diferença e nela viceja. O que cria um problema para essa clara imagem é outra diferença: a diferença que existe entre a comunidade de nossos sonhos e a “comunidade realmente existente”: uma coletividade que pretende ser a comunidade encarnada, o sonho realizado, e (em nome de todo o bem que se supõe que essa comunidade oferece) exige lealdade incondicional e trata tudo o que ficar aquém de tal lealdade como um ato de imperdoável traição. A “comunidade realmente existente”, se nos achas- 10 semos a seu alcance, exigiria rigorosa obediência em troca dos serviços que presta ou promete prestar. Você quer segurança? Abra mão de sua liberdade, ou pelo menos de boa parte dela. Você quer poder confiar? Não confie em ninguém de fora da comunidade. Você quer entendimento mútuo? Não fale com estranhos, nem fale línguas estrangeiras. Você quer essa sensação aconchegante de lar? Ponha alarmes em sua porta e cameras de tevê no acesso. Você quer proteção? Não acolha estranhos e abstenha- se de agir de modo esquisito ou de ter pensamentos bizarros. Você quer aconchego? Não chegue perto da janela, e jamais a abra. O nó da questão é que se você seguir esse conselho e mantiver as janelas fechadas, o ambiente logo ficará abafado e, no limite, opressivo. Há um preço a pagar pelo privilégio de “viver em comunidade” — e ele é pequeno e até invisível só enquanto a comunidade for um sonho. O preço é pago em forma de liberdade, também chamada “autonomia”, “direito à auto-afirmação” e “à identidade”. Qualquer que seja a escolha, ganha-se alguma coisa e perde-se outra. Não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade. A segurança e a liberdade são dois valores igualmente preciosos e desejados que podem ser bem ou mal equilibrados, mas nunca inteiramente ajustados e sem atrito. De qualquer modo, nenhuma receita foi inventada até hoje para esse ajuste. O problema é que a receita a partir da qual as “comunidades realmente existentes” foram feitas torna a contradição entre segurança e liberdade mais visível e mais difícil de consertar. Dados os atributos desagradáveis com que a liberdade sem segurança é sobrecarregada, tanto quanto a segurança sem liberdade, parece que nunca deixaremos de sonhar com a comunidade, mas também jamais encontraremos em qualquer comunidade autoproclamada os prazeres que imaginamos em nossos sonhos. A tensão entre a segurança e a liberdade e, portanto, entre a comunidade e a individualidade, provavelmente nunca será resolvida e assim continuará por muito tempo; não achar a solução correta e ficar frustrado com a solução adotada não nos levará a 11 abandonar a busca — mas a continuar tentando. Sendo humanos, não podemos realizar a esperança, nem deixar de tê-la. Pouco resta fazer para fugir ao dilema — podemos negá-lo por nossa conta e risco. Uma boa coisa a fazer, contudo, é avaliar as chances e perigos das soluções já propostas e tentadas. Armados de tal conhecimento, estaremos aptos ao menos a evitar a repetição de erros do passado; ou mesmo tentar evitar ir muito longe por caminhos que podem ser percebidos por antecipação como sem saída. Uma avaliação desse tipo — provisória e incompleta — é o que tentei neste livro. (Notar o uso abusivo do verbo poder...) Não seremos humanos sem segurança ou sem liberdade; mas não podemos ter as duas ao mesmo tempo e ambas na quantidade que quisermos. Isso não é razão para que deixemos de tentar (não deixaríamos nem se fosse uma boa razão). Mas serve para lembrar que nunca devemos acreditar que qualquer das sucessivas soluções transitórias não mereceria mais ponderação nem se beneficiaria de alguma outra correção. O melhor pode ser inimigo do bom, mas certamente o “perfeito” é um inimigo mortal dos dois. Março de 2000 1 A agonia de Tântalo Segundo a mitologia grega, Tântalo, filho de Zeus e de Plutó, tinha excelentes relações com os deuses que freqüentemente o convidavam a beber e comer em companhia deles nas festas do Olimpo. Sua vida transcorria, pelos padrões normais, sem problemas, alegre e feliz — até que ele cometeu um crime que os deuses não quiseram (não poderiam?) perdoar. Quanto à natureza do crime, os vários narradores da história discordam. Alguns dizem que ele abusou da confiança divina e revelou aos outros homens mistérios que deviam permanecer ocultos dos mortais. Outros dizem que ele foi arrogante a ponto de se acreditar mais sábio do que os deuses, tendo decidido testar os divinos poderes de observação. Outros narradores ainda acusam Tântalo de roubo de néctar e ambrósia que nunca deveriam ser provados pelos mortais. Os atos imputados a Tântalo são, como vemos, diferentes, mas a razão por que foram considerados criminosos é a mesma nos três casos: Tântalo foi culpado de adquirir e compartilhar um conhecimento a que nem ele nem os mortais como ele deveriam ter acesso. Ou, melhor ainda: Tântalo não se contentou em partilhar a dádiva divina — por presunção e arrogância desejou fazer por si mesmo o que só poderia ser desfrutado como dádiva. A punição foi imediata; foi também tão cruel que só poderia ter sido inventada por deuses ofendidos e vingativos. Dada a natureza do crime de Tântalo, foi uma lição. Tântalo foi mergulhado até o pescoço num regato — mas quando abaixava a cabeça 13 14 tentando saciar a sede, a água desaparecia. Sobre sua cabeça estava pendurado um belo ramo de frutas — mas quando ele estendia a mão tentando saciar a fome, um repentino golpe de vento carregava o alimento para longe. (Daí que, quando as coisas desaparecem no momento em que nos parecia que as tínhamos, afinal, ao alcance, nos lamentamos por termos sido “tantalizados” por sua “tantalizante” proximidade.) Os mitos não são histórias divertidas. Seu objetivo é ensinar por meio da reiteração sem fim de sua mensagem: um tipo de mensagem que os ouvintes só podem esquecer ou negligenciar se quiserem. A mensagem do mito de Tântalo é de que você só pode continuar feliz, ou pelo menos continuar numa felicidade abençoada e despreocupada, enquanto mantiver sua inocência: enquanto desfrutar de sua alegria ignorando a natureza das coisas que o fazem feliz sem tentar mexer com elas, e muito menos “tomá-las em suas próprias mãos”. E que se você se atrever a tomar os problemas em suas próprias mãos você nunca poderá reviver a dádiva que só pôde aproveitar no estado de inocência. Aquele objetivo escapará para sempre ao seu alcance. Outros povos além dos gregos também devem ter chegado a acreditar na eterna verdade dessa mensagem a partir de sua própria experiência; os gregos não foram os únicos a incluí-la entre as histórias que contavam para ensinar e que ouviam para aprender. Uma mensagem muito semelhante deriva da história de Adão e Eva, cujo castigo por terem comido o fruto da Árvore do Conhecimento foi a expulsão do paraíso; e o paraíso era um paraíso porque lá eles podiam viver sem problemas: eles não tinham que fazer as escolhas das quais dependia sua felicidade (ou infelicidade). O Deus judeu podia em certas ocasiões ser tão cruel e impiedoso em sua ira quanto os moradores do Olimpo, e o castigo que destinou à ofensa de Adão e Eva não foi menos doloroso do que o imposto a Tântalo — era apenas, por assim dizer, mais refinado e exigia maior capacidade de interpretação: “Precisarás trabalhar para comer... Ganharás o pão com o suor de teu rosto.” Ao anunciar esse veredicto, Deus enfurecido postou “a leste do Jardim do Éden”, “o querubim com a espada flamejante para proteger o acesso à árvore da vida” — para advertir Adão e 15 Eva e sua descendência de que nenhuma quantidade de trabalho ou de suor seria suficiente para trazer de volta a serena alegria despreocupada da ignorância paradisíaca; aquela felicidade primitiva irremediavelmente perdida uma vez perdida a inocência. A memória dessa felicidade viria a assombrar os descendentes de Adão e Eva, mantendo-os à espera, contra toda a esperança, da descoberta do caminho de volta. Isso, porém, jamais acontecerá; sobre esse ponto não há desacordo entre Atenas e Jerusalém. A perda da inocência é um ponto sem volta. Só se pode ser verdadeiramente feliz enquanto não se sabe quão feliz se é. Tendo aprendido o significado da felicidade com sua perda, os filhos de Adão e Eva teriam que aprender pela via mais difícil a sabedoria que foi oferecida a Tântalo numa bandeja. O propósito sempre lhes escaparia, por mais próximo (tantalizantemente próximo) que lhes pudesse parecer. No livro que (intencionalmente ou não) convidava a “comunidade” (Gemeinschaft) a voltar do exílio a que tinha sido condenada durante a cruzada moderna contra les pouvoirs intermédiaires (acusados de paroquialismo, estreiteza de horizontes e fomento à superstição) Ferdinand Tönnies1 sugere que o que distinguia a comunidade antiga da (moderna) sociedade em ascensão (Gesellschaft) em cujo nome a cruzada fora feita, era um entendimento compartilhado por todos os seus membros. Não um consenso. Vejam bem: o consenso não é mais do que um acordo alcançado por pessoas com opiniões essencialmente diferentes, um produto de negociações e compromissos difíceis, de muita disputa e contrariedade, e murros ocasionais. O entendimento ao estilo comunitário, casual (zuhanden, como diria Martin Heidegger), não precisa ser procurado, e muito menos construído: esse entendimento já “está lá”, completo e pronto para ser usado — de tal modo que nos entendemos “sem palavras” e nunca precisamos perguntar, com apreensão, “o que você quer dizer?”. O tipo de entendimento em que a comunidade se baseia precede todos os acordos e desacordos. Tal entendimento não é uma linha de chegada, mas o ponto de partida de toda união. É um “sentimento recíproco e vinculante” — “a vontade real e própria daqueles que se unem”; e é graças a esse entendimento, e somente a esse enten- 16 dimento, que na comunidade as pessoas “permanecem essencialmente unidas a despeito de todos os fatores que as separam”. Muitos anos depois que Tönnies identificou o “entendimento comum” que “fluía naturalmente” como a característica que separa a comunidade de um mundo de amargos desentendimentos, violenta competição, trocas e conchavos, Góran Rosenberg, o sagaz estudioso sueco, cunhou o conceito do “círculo aconchegante” (num ensaio publicado em 2000 em La Nouvelle Lettre Internationale) para captar o mesmo tipo de imersão ingênua na união humana — outrora, quem sabe, uma condição humana comum, mas hoje somente possível, e cada vez mais, em sonhos. As lealdades humanas, oferecidas e normalmente esperadas dentro do “círculo aconchegante”, “não derivam de uma lógica social externa ou de qualquer análise econômica de custo-benefício”. Isso é precisamente o que torna esse círculo “aconchegante”: não há espaço para o cálculo frio que qualquer sociedade em volta poderia apresentar, de modo impessoal e sem humor, como “impondo-se à razão”. E essa é a razão por que as pessoas afetadas por essa frialdade sonham com esse círculo mágico e gostariam de adaptar aquele mundo frio a seu tamanho e medida. Dentro do “círculo aconchegante” elas não precisam provar nada e podem, o que quer que tenham feito, esperar simpatia e ajuda. Por ser tão evidente e “natural”, o entendimento compartilhado que cria a comunidade (ou o “círculo aconchegante”) passa despercebido (raras vezes notamos o ar que respiramos, a menos que seja o ar viciado e mal cheiroso de uma peça abafada); ele é, como dizia Tönnies, “tácito” (ou “intuitivo”, nos termos de Rosenberg). É claro que um entendimento elaborado e de alguma forma alcançado também pode ser tácito, ou tornar-se uma espécie de intuição construída e internalizada. Uma negociação prolongada pode resultar em um acordo que, se obedecido diariamente, pode, por sua vez, tornar-se um hábito que não precisa mais ser repensado, e muito menos monitorado ou controlado. Mas, diferentemente desses sedimentos de tentativas e tribulações passadas, o entendimento que é característico de uma comunidade é tácito “por sua própria natureza”: 17 Isso é assim porque o conteúdo do entendimento mútuo não pode ser expresso, determinado e compreendido... O acordo real não pode ser artificialmente produzido. Como “comunidade” significa entendimento compartilhado do tipo “natural” e “tácito”, ela não pode sobreviver ao momento em que o entendimento se torna autoconsciente, estridente e vociférante; quando, para usar mais uma vez a terminologia de Heidegger, o entendimento passa do estado de zuhanden para o de vorhanden e se torna objeto de contemplação e exame. A comunidade só pode estar dormente — ou morta. Quando começa a versar sobre seu valor singular, a derramar-se lírica sobre sua beleza original e a afixar nos muros próximos loquazes manifestos conclamando seus membros a apreciarem suas virtudes e os outros a admirá-los ou calar-se — podemos estar certos de que a comunidade não existe mais (ou ainda, se for o caso). A comunidade “falada” (mais exatamente: a comunidade que fala de si mesma) é uma contradição em termos. Não que a comunidade real, aquela que não foi “produzida artificialmente” ou meramente imaginada, tivesse muita chance de cair nessa contradição. Robert Redfield 2 concordaria com Tönnies que numa verdadeira comunidade não há motivação para a reflexão, a crítica ou a experimentação; mas apressar-se-ia a explicar que isso acontece porque a comunidade é fiel à sua natureza (ou a seu modelo ideal) apenas na medida em que ela é distinta de outros agrupamentos humanos (é visível “onde a comunidade começa e onde ela termina”), pequena (a ponto de estar à vista de todos seus membros) e auto-suficiente (de modo que, como insiste Redfield, “oferece todas as atividades e atende a todas as necessidades das pessoas que fazem parte dela. A pequena comunidade é um arranjo do berço ao túmulo”). A escolha dos atributos feita por Redfield não é aleatória. Distinção” significa: a divisão entre “nós” e “eles” é tanto exaustiva quanto disjuntiva, não há casos “intermediários” a excluir, é claro como a água quem é “um de nós” e quem não é, não há problema nem motivo para confusão — nenhuma ambigüidade cognitiva e, portanto, nenhuma ambivalência comportamental. 18 “Pequenez” significa: a comunicação entre os de dentro é densa e alcança tudo, e assim coloca os sinais que esporadicamente chegam de fora em desvantagem, em razão de sua relativa raridade, superficialidade e transitoriedade. E “auto-suficiência” significa: o isolamento em relação a “eles” é quase completo, as ocasiões para rompê-lo são poucas e espaçadas. As três características se unem na efetiva proteção dos membros da comunidade em relação às ameaças a seus modos habituais. Enquanto cada um do trio estiver intacto, é muito pouco provável que a motivação para a reflexão, a crítica e a experimentação possam surgir. Enquanto... De fato, a remota unidade da “pequena comunidade” de Redfield depende do bloqueio dos canais de comunicação com o resto do mundo habitado. A unidade da comunidade, como diria Redfield, ou a “naturalidade” do entendimento comunitário, como preferiria Tönnies, são feitas do mesmo estofo: de homogeneidade, de mesmidade. Essa mesmidade encontra dificuldades no momento em que suas condições começam a desabar: quando o equilíbrio entre a comunicação “de dentro” e “de fora”, antes inclinado para o interior, começa a mudar, embaçando a distinção entre “nós” e “eles”. A mesmidade se evapora quando a comunicação entre os de dentro e o mundo exterior se intensifica e passa a ter mais peso que as trocas mútuas internas. Exatamente essa fissura nos muros de proteção da comunidade se torna trivial com o aparecimento dos meios mecânicos de transporte; portadores de informação alternativa (ou pessoas cuja estranheza mesma é informação diferente e conflitante com o conhecimento internamente disponível) já podem em princípio viajar tão rápido, ou mais, que as mensagens orais originárias do círculo da mobilidade humana “natural”. A distância, outrora a mais formidável das defesas da comunidade, perdeu muito de sua significação. O golpe mortal na “naturalidade” do entendimento comunitário foi desferido, porém, pelo advento da informática: a emancipação do fluxo de informação proveniente do transporte dos corpos. A partir do momento em que a informação passa a viajar independente de seus portadores, e numa velocidade muito além da capacidade dos meios mais avançados de 19 transporte (como no tipo de sociedade que todos habitamos nos dias de hoje), a fronteira entre o “dentro” e o “fora” não pode mais ser estabelecida e muito menos mantida. De agora em diante, toda homogeneidade deve ser “pinçada” de uma massa confusa e variada por via de seleção, separação e exclusão; toda unidade precisa ser construída; o acordo “artificialmente produzido” é a única forma disponível de unidade. O entendimento comum só pode ser uma realização, alcançada (se for) ao fim de longa e tortuosa argumentação e persuasão, e em competição com um número indefinido de outras potencialidades — todas atraindo a atenção e cada uma delas prometendo uma variedade melhor (mais correta, mais eficaz ou mais agradável) de tarefas e soluções para os problemas da vida. E, se alcançado, o acordo comum nunca estará livre da memória dessas lutas passadas e das escolhas feitas no curso delas. Por mais firme que seja estabelecido, portanto, nenhum acordo parecerá tão “natural” e “evidente” como nas comunidades de Tönnies e Redfield, por mais que seus porta- vozes ou promotores façam por retratá-lo como tal. Nunca será imune à reflexão, contestação e discussão; quando muito atingirá o status de um “contrato preliminar”, um acordo que precisa ser periodicamente renovado, sem que qualquer renovação garanta a renovação seguinte. A comunidade de entendimento comum, mesmo se alcançada, permanecerá portanto frágil e vulnerável, precisando para sempre de vigilância, reforço e defesa. Pessoas que sonham com a comunidade na esperança de encontrar a segurança de longo prazo que tão dolorosa falta lhes faz em suas atividades cotidianas, e de libertar-se da enfadonha tarefa de escolhas sempre novas e arriscadas, serão desapontadas. A paz de espírito, se a alcançarem, será do tipo “até segunda ordem”. Mais do que com uma ilha de “entendimento natural”, ou um “círculo aconchegante” onde se pode depor as armas e parar de lutar, a comunidade realmente existente se parece com uma fortaleza sitiada, continuamente bombardeada por inimigos (muitas vezes invisíveis) de fora e freqüentemente assolada pela discórdia interna; trincheiras e baluartes são os lugares onde os que procuram o aconchego, a simplicidade e a tranqüilidade comunitárias terão que passar a maior parte de seu tempo. 20 Esta parece uma observação que chega às raias da trivialidade: uma vez “desfeita”, uma comunidade, ao contrário da fênix com sua capacidade mágica de renascer das cinzas, não pode ser recomposta. E se isso acontecer, não será da forma preservada na memória (mais exatamente, invocada por uma imaginação cotidianamente assolada pela insegurança perpétua) — única forma que a faz parecer tão desejável como uma solução melhor do que qualquer outra para todos os problemas terrenos. Isso parece óbvio, mas a lógica e os sonhos humanos dificilmente andam juntos. E há boas razões, como veremos adiante, para que seus caminhos não sejam convergentes de forma duradoura. Como observou recentemente Eric Hobsbawm, “a palavra ‘comunidade’ nunca foi utilizada de modo mais indiscriminado e vazio do que nas décadas em que as comunidades no sentido sociológico passaram a ser difíceis de encontrar na vida real”; 3 e comentou que “homens e mulheres procuram por grupos a que poderiam pertencer, com certeza e para sempre, num mundo em que tudo se move e se desloca, em que nada é certo”.4 Jock Young faz uma glosa sucinta e pungente da observação e comentário de Hobsbawm: “precisamente quando a comunidade entra em colapso, a identidade é inventada”.5 “Identidade”, a palavra do dia e o jogo mais comum da cidade, deve a atenção que atrai e as paixões que desperta ao fato de que é a substituta da comunidade: do “lar supostamente natural” ou do círculo que permanece aconchegante por mais frios que sejam os ventos lá fora. Nenhuma das duas está à disposição em nosso mundo rapidamente privatizado e individualizado, que se globaliza velozmente, e por isso cada uma delas pode ser livremente imaginada, sem medo do teste da prática, como abrigo de segurança e confiança e, por essa razão, desejada com ardor. O paradoxo, contudo, é que para oferecer um mínimo de segurança e assim desempenhar uma espécie de papel tranqüilizante e consolador, a identidade deve trair sua origem; deve negar ser “apenas um substituto” — ela precisa invocar o fantasma da mesmíssima comunidade a que deve substituir. A identidade brota entre os túmulos das comunidades, mas floresce graças à promessa da ressurreição dos mortos. 21 Uma vida dedicada à procura da identidade é cheia de som e de fúria. “Identidade” significa aparecer: ser diferente e, por essa diferença, singular — e assim a procura da identidade não pode deixar de dividir e separar. E no entanto a vulnerabilidade das identidades individuais e a precariedade da solitária construção da identidade levam os construtores da identidade a procurar cabides em que possam, em conjunto, pendurar seus medos e ansiedades individualmente experimentados e, depois disso, realizar os ritos de exorcismo em companhia de outros indivíduos também assustados e ansiosos. É discutível se essas “comunidades-cabide” oferecem o que se espera que ofereçam — um seguro coletivo contra incertezas individualmente enfrentadas; mas sem dúvida marchar ombro a ombro ao longo de uma ou duas ruas, montar barricadas na companhia de outros ou roçar os cotovelos em trincheiras lotadas, isso pode fornecer um momento de alívio da solidão. Com resultados bons ou maus, ou sem eles, alguma coisa pelo menos foi feita; podemos obter algum consolo de ter recusado servir de alvo imóvel e de ter levantado a mão contra os golpes. Não é de surpreender, pois, que — como nos adverte Jonathan Friedman — em nosso mundo que rapidamente se globaliza “uma coisa que não está acontecendo é o desaparecimento das fronteiras. Ao contrário, elas parecem ser erguidas em cada nova esquina de cada bairro decadente de nosso mundo.”6 A despeito do que dizem os guardas de fronteira, as fronteiras que eles protegem não foram traçadas para defender a singularidade das identidades já existentes. Como explicou o grande antropólogo norueguês Frederick Barth, o oposto é a regra: as identidades “comunitárias” ostensivamente compartilhadas são subprodutos ou conseqüências do infindável (e por essa razão tanto mais febril e feroz) processo de estabelecimento de fronteiras. Só depois que os marcos de fronteira são cravados e as armas estão apontadas contra os intrusos é que os mitos sobre a antigüidade das fronteiras são inventados e as recentes origens culturais e políticas da identidade são cuidadosamente encobertas por “narrativas da gênese”. Esses estratagemas tentam contornar o fato de que (para citar Stuart Hall)7 uma coisa que a idéia de identidade não indica é um “núcleo estável do eu, desenrolando- 22 se do começo ao fim através de todas as vicissitudes de uma história sem mudança”. Os contemporâneos em busca da comunidade estão condenados à sina de Tan talo; seu objetivo tende a escapar-lhes, e é seu esforço sério e dedicado que faz com que lhes escape. A esperança de alívio e tranqüilidade que torna a comunidade com que sonham tão atraente será impulsionada cada vez que acreditam, ou lhes é dito, que o lar comum que procuravam foi encontrado. Às agonias de Tântalo se juntam, tornando-as ainda mais sofridas, as de Sísifo. “A comunidade realmente existente” será diferente da de seus sonhos — mais semelhante a seu contrário: aumentará seus temores e insegurança em vez de diluí-los ou deixá-los de lado. Exigirá vigilância vinte e quatro horas por dia e a afiação diária das espadas, para a luta, dia sim, dia não, para manter os estranhos fora dos muros e para caçar os vira-casacas em seu próprio meio. E, num toque final de ironia, é só por essa belicosidade, gritaria e brandir de espadas que o sentimento de estar em uma comunidade, de ser uma comunidade pode ser mantido e impedido de desaparecer. O aconchego do lar deve ser buscado, cotidianamente, na linha de frente. É como se a espada colocada a Leste do Éden ainda estivesse lá, movendo-se de maneira sinistra. Você ganhará o pão de cada dia com o suor de seu rosto — mas não há suor que faça reabrir o portão fechado que levaria à inocência comunitária, à multiplicação fundadora do mesmo e à tranqüilidade. Não é que paremos de bater naquele portão, na esperança de abri-lo à força. Não enquanto estivermos como hoje estamos e enquanto o mundo que habitamos for como é hoje. Usando o desenho de Klee como inspiração, Walter Benjamin faz e seguinte descrição do “Anjo da História”: sua face se volta para o passado. Onde percebemos uma seqüência de eventos, ele vê uma única catástrofe que empilha destroços sobre destroços e os lança a seus pés. O anjo gostaria de ficar, acordar os mortos e reconstituir o que foi destruído. Mas do Paraíso sopra a tempestade; ela tomou suas asas com tal violência que o anjo já não as pode fechar. Essa tempestade o empurra irresistível- 23 mente para o futuro para o qual suas costas estão voltadas, enquanto a pilha 8 de escombros à sua frente sobe até o céu. O Anjo da História se movimenta com as costas voltadas para o futuro e com os olhos postos no passado. Movimenta-se porque desde que deixou o Paraíso não pode parar — ainda não viu nada suficientemente agradável que o faça querer parar e admirar com tranqüilidade. O que o mantém em movimento é o desgosto e a repulsa pelo que vê: os visíveis horrores do passado e não a atração de um futuro que ele não pode ver com clareza nem apreciar de forma plena. O progresso, Benjamin dá a entender, não é a perseguição de pássaros no céu, mas uma urgência frenética de voar para longe dos cadáveres espalhados pelos campos de batalha do passado. Se a leitura que Benjamin faz do significado do “progresso” é correta, como acredito que seja, então — no que diz respeito à felicidade humana — a história não é uma linha reta nem um processo cumulativo, como a célebre “versão progressista” gostaria que acreditássemos. Como a repulsa e não a atração é o principal motor da história, a mudança histórica acontece porque os humanos estão mortificados e irritados pelo que acham doloroso e desagradável em sua condição, porque não querem que essas condições persistam e porque procuram uma maneira de aliviar e reverter seu sofrimento. Livrar-nos do que, momentaneamente, mais nos aflige traz alívio — mas um alívio em geral transitório, uma vez que a “nova e melhorada” condição rapidamente revela seus aspectos desagradáveis, previamente invisíveis e imprevistos, e traz com ela novas razões de preocupação. Além disso, o alimento de uns é o veneno de outros, e as pessoas em fuga quase nunca encontram a unanimidade na seleção das realidades que precisam de atenção e reforma. Cada passo que nos afasta do presente será visto por alguns com entusiasmo e por outros com apreensão. “Progresso” é um membro importante da família dos “conceitos vivamente contestados”. O balanço do passado, a avaliação do presente e a previsão dos futuros são atravessados pelo conflito e eivados de ambivalência. 24 Há boas razões para conceber o curso da história como pendular, mesmo que em relação a certos aspectos pudesse ser retratado como linear: a liberdade e a segurança, ambas igualmente urgentes e indispensáveis, são difíceis de conciliar sem atrito — e atrito considerável na maior parte do tempo. Estas duas qualidades são, ao mesmo tempo, complementares e incompatíveis; a chance de que entrem em conflito sempre foi e sempre será tão grande quanto a necessidade de sua conciliação. Embora muitas formas de união humana tenham sido tentadas no curso da história, nenhuma logrou encontrar solução perfeita para uma tarefa do tipo da “quadratura do círculo”. A promoção da segurança sempre requer o sacrifício da liberdade, enquanto esta só pode ser ampliada à custa da segurança. Mas segurança sem liberdade eqüivale a escravidão (e, além disso, sem uma injeção de liberdade, acaba por ser afinal um tipo muito inseguro de segurança); e a liberdade sem segurança eqüivale a estar perdido e abandonado (e, no limite, sem uma injeção de segurança, acaba por ser uma liberdade muito pouco livre). Essa circunstância provoca nos filósofos uma dor de cabeça sem cura conhecida. Ela também torna a vida em comum um conflito sem fim, pois a segurança sacrificada em nome da liberdade tende a ser a segurança dos outros; e a liberdade sacrificada em nome da segurança tende a ser a liberdade dos outros. 2 A reinserção dos desenraizados Pico della Mirandola pôs no papel o texto de uma fala que nem Deus, que falava, nem Adão, seu interlocutor, registraram. É mais ou menos assim: “As outras criaturas têm uma natureza definida que foi prescrita por mim. Você pode determinar seus próprios limites de acordo com sua vontade... Como um artífice livre e soberano, você pode construir sua própria forma a partir de sua própria substância.” A mensagem desta fala não registrada constituiu uma novidade muito positiva para os homens de substância, mas nem tão positiva para todo o resto, que não tinha substância suficiente a partir da qual “construir sua própria forma” livremente e “de acordo com sua própria vontade”. Era o ano de 1486, na Itália que enviava seus navios para os recantos mais longínquos do mundo para que os donos dos navios, os cortesãos e os passageiros (mas não os marinheiros, nem os estivadores) pudessem enriquecer e considerar o mundo como sua ostra. A individualidade moderna do cânone eclesiástico: o Deus da Bíblia significava uma sentença de existência livre e solta como retribuição e punição. O Deus renascentista que falava através de Pico retratava essa sentença como recompensa e Ato de Graça. Se o texto bíblico não passava de uma meia verdade, sua correção renascentista não era melhor. Em seu estudo da nova era de desigualdades, Jean-Paul Fitoussi e Pierre Rosanvallon refletem sobre a “ambivalência do individualismo moderno”: Ele é, ao mesmo tempo, um vetor da emancipação dos indivíduos, que estimula sua autonomia e os torna portadores de direitos, e 25 26 um fator de insegurança crescente, fazendo com que todos sejam responsáveis pelo futuro e obrigados a dar à vida um sentido não mais 9 predeterminado a partir de fora. Fitoussi e Rosanvallon não foram os primeiros a notar a face de Jano da individualização que viria a se tornar a marca registrada da modernidade (pelo menos a européia), mas expressaram o conflito interior de que ela é portadora de modo mais cortante que a maioria dos escritores. Como os outros pontos de partida reunidos sob a rubrica do “processo civilizador”, a individualização foi, no que diz respeito aos valores humanos, uma troca. Os bens trocados no curso da individualização eram a segurança e a liberdade: a liberdade era oferecida em troca da segurança — embora não parecesse assim desde o começo e certamente não fosse assim percebida por Pico della Mirandola e outros, que observavam e falavam do ponto de vista de elevadas torres de observação que os murmúrios audíveis “lá de baixo” não conseguiam atingir. Dados seus novos recursos e, portanto, sua autoconfiança, a liberdade parecia aos grandes e poderosos a melhor garantia imaginável da segurança; nem é preciso dizer que a receita para liberdade e segurança simultâneas era romper as últimas amarras. A liberdade não parece oferecer riscos enquanto as coisas obedientemente seguem o caminho que desejamos. Afinal, a liberdade é a capacidade de fazer com que as coisas sejam realizadas do modo como queremos, sem que ninguém seja capaz de resistir ao resultado, e muito menos desfazê-lo. O concubinato entre liberdade e segurança é visto de modo diferente quando olhado do ponto de vista dos muitos que se encontram na situação de compartilhar o destino dos escravos hebreus no Egito, a quem o faraó dizia que deviam continuar a produzir tijolos enquanto lhes negava a palha de que precisavam para que os fizessem; homens e mulheres que achavam inúteis os direitos que supostamente tinham quando se tratava de obter o sustento. A individualização podia ser pródiga e generosamente indiscriminada ao conceder o dom da liberdade pessoal a qualquer mão que se estendesse — mas o pacote de liberdade cum segurança (ou, melhor, segurança através da liberdade) não esta- 27 va em geral incluído. Só estava disponível para um grupo seleto de fregueses. A chance de desfrutar da liberdade sem pagar o duro e proibitivo preço da insegurança (ou pelo menos sem que os credores exigissem o pagamento no ato) era um privilégio para poucos; mas esses poucos deram o tom da idéia de emancipação para os séculos ainda por vir. Esse tom só começou a mudar de modo perceptível depois que um longo período de “aburguesamento” genuíno ou suposto do proletariado se deteve e começou a dar para trás, no momento em que o gradual mas incessante processo de “proletarização da burguesia”, como sugere Richard Rorty, começava a acontecer. Isso não significa que os poucos privilegiados que podiam desfrutar simultaneamente da liberdade pessoal e da segurança existencial (luxo negado ao resto) não tivessem razões para descontentamento. A longa série de estudos de caso de Sigmund Freud pode ser lida como “livro de reclamações” dos ricos e poderosos que, tendo conquistado o mundo exterior, achavam mais odiosas e insuportáveis as duras, insistentes e repetidas resistências dentro de suas próprias casas (e particularmente em seus quartos de dormir). O mal-estar da civilização resume suas reclamações: para desfrutar dos dons gêmeos da liberdade social e da segurança pessoal, é preciso jogar o jogo da sociabilidade segundo regras que negam livre curso à luxúria e às paixões. Na “política-vida” dos pacientes de Freud (como Sigmund Freud diria, se os termos de Anthony Giddens estivessem disponíveis naquela época) o conflito épico entre a liberdade e a segurança aflora acima de tudo, e talvez exclusivamente, como repressão sexual. Apresentando os limites socialmente impostos ao desejo sexual como a última trincheira contra a liberdade, o Freud de O mal-estar afirma sua inevitabilidade. Identificados e nomeados, poderiam ser facilmente reformulados como itens adicionais do “inacabado projeto da modernidade”. As fortificações defensivas, ostensivamente necessárias, da vida civilizada logo se tornaram o próximo alvo estratégico das lutas pela emancipação; novos obstáculos a serem removidos do caminho do progresso inevitável da liberdade. 28 Pouco tempo antes de escrever O mal-estar da civilização, Freud mandou para impressão outra grande síntese: O futuro de uma ilusão. Em conjunto, os dois livros marcam uma mudança nos interesses de Freud. Como ele mesmo admite, depois de um longo desvio psicoterapêutico, armado com os insights acumulados no correr da prática psicanalítica, ele volta aos problemas culturais que o fascinavam de há muito. Diferente de O mal-estar., que é uma tentativa de articular o choque entre a liberdade e a segurança sedimentado nas neuroses dos pacientes da psicoterapia, O futuro de uma ilusão lança uma rede mais ampla. Mais exatamente, tenta desenvolver um argumento para a inevitabilidade dos limites sociais à liberdade humana, baseado na “análise objetiva” da condição de todos aqueles que nunca visitariam as clínicas de psicanálise. Freud não tinha experiência clínica dos tipos de pessoas que, em seu argumento, tornariam as limitações inevitáveis; mas pela natureza do argumento desenvolvido em O futuro de uma ilusão essa experiência não era necessária. O foco do interesse de Freud aqui era o que mais tarde Talcott Parsons chamaria de “pré-requisitos funcionais” do sistema — e, assim, Freud podia, como fez, deixar de lado as notas das sessões psicanalíticas e basear-se diretamente na velha e venerável tradição pós-hobbesiana da “opinião esclarecida” (mais precisamente, folclore intelectual) que era unânime em sua convicção de que, embora alguns espécimes seletos da humanidade pudessem dominar a arte do autocontrôlé, todos os demais, e isso quer dizer a vasta maioria, precisavam da coerção para continuar vivos e permitir que os outros vivessem. O futuro de uma ilusão10 segue a mesma suposição que alguns meses depois serviria como ponto de partida de O mal-estar: “toda civilização deve ser construída sobre a coerção e a renúncia ao instinto”. Freud toma cuidado, porém, “em distinguir entre privações que afetam a todos e privações que não afetam a todos mas apenas a grupos, classes e mesmo indivíduos singulares”. Ele coloca na primeira categoria os tipos de sofrimentos que mais tarde apresentará de maneira mais completa em O mal-estar—tribulações entrevistas durante sessões psicanalíticas com a seleta clientela vienense, mas de qualquer maneira consi- 29 deradas como não dependentes de classe e, portanto, compartilhadas por todos. As privações, amarga e, às vezes, violentamente ressentidas do segundo tipo (não universais, dependentes de classe) derivam do fato de que numa dada cultura “a satisfação de uma porção de seus participantes depende da supressão de outra porção, talvez maior”. Sem as privações do primeiro tipo, a civilização parecia a Freud logicamente incoerente e, portanto, inconcebível. Mas ele parecia também não ter esperança de que alguma civilização pudesse deixar de recorrer à coerção do segundo tipo; isso porque, na opinião que Freud compartilhava com os fundadores e gerentes da ordem moderna, as massas são preguiçosas e pouco inteligentes; não têm amor pela renúncia aos instintos, e não podem ser convencidas pelo argumento de sua inevitabilidade; e os indivíduos que as compõem se apóiam mutuamente e dão livre curso à sua indisciplina... Em suma, há duas características humanas generalizadas que são responsáveis pelo fato de que as regras da civilização só podem ser mantidas por certo grau de coerção — que os homens não têm uma inclinação espontânea para o trabalho e que os argumentos de nada valem contra suas paixões. São, como se diz, “dois pesos e duas medidas”; no caso das “massas”, naturalmente preguiçosas e surdas à voz da razão, a recusa a dar livre curso a suas inclinações naturais é uma bênção. No que lhes diz respeito, a sabedoria herdada dos tempos modernos ensaiada em O futuro de uma ilusão não contempla a renegociação da porção de liberdade permitida. A rebelião das massas não é como as neuroses individuais sofridas em solidão pelos clientes sexualmente reprimidos das clínicas psicanalíticas. Não é caso para psicoterapia, mas para a lei e a ordem; não é tarefa de psicanalistas, mas de polícia. O moderno arranjo — capitalista — do convívio humano tinha uma forma de Jano: uma face era emancipatória, a outra coercitiva, cada uma voltada para um setor diferente da sociedade. Para os companheiros de Pico della Mirandola, a civilização era o toque de clarim para que cada um “fizesse de si o que desejasse”, e impor limites a essa liberdade de auto- afirmação 30 seria talvez uma obrigação inevitável e lamentável da ordem civilizada, mas um preço que valia a pena pagar. Para as “massas preguiçosas e tomadas pelas paixões” a civilização significava, antes e acima de tudo, o controle das predileções mórbidas que se supunha que tivessem e que, se liberadas, acabariam com a ordeira coabitação. Para os dois setores da sociedade moderna, a auto-afirmação oferecida e a disciplina demandada vinham misturadas em proporções marcadamente diferentes. Para dizê-lo de maneira curta e grossa: a emancipação de alguns exigia a supressão de outros. E foi isso exatamente o que aconteceu: esse acontecimento entrou para a história com o nome um tanto eufemístico de “revolução industrial”. As “massas” tiradas da velha e rígida rotina (a rede da interação comunitária governada pelo hábito) para serem espremidas na nova e rígida rotina (o chão da fábrica governado pelo desempenho de tarefas), quando sua supressão serviria melhor à causa da emancipação dos supressores. As velhas rotinas não serviam para esse objetivo — eram autônomas demais, governadas por sua própria lógica tácita e não negociável, e por demais resistentes à manipulação e à mudança, dado que excessivos laços de interação humana se entreteciam em toda ação de tal modo que para puxar um deles seria preciso mudar ou romper muitos outros. O problema não era tanto levar os que não gostavam de trabalhar a habituar-se com o trabalho (ninguém precisava ensinar às futuras mãos da fábrica que a vida significava uma sentença de trabalho duro), mas como torná-los aptos a trabalhar num ambiente novo em folha, pouco familiar e repressivo. Para que se adaptassem aos novos trajes, os futuros trabalhadores tinham que ser antes transformados numa “massa:” despidos da antiga roupagem dos hábitos comunitariamente sustentados. A guerra contra a comunidade foi declarada em nome da libertação do indivíduo da inércia da massa. Mas o verdadeiro resultado — ainda que não dito — dessa guerra foi o oposto do objetivo declarado: a destruição dos poderes de fixar padrões e papéis da comunidade de tal forma que as unidades humanas privadas de sua individualidade pudessem ser condensadas na massa trabalhadora. A “preguiça” inata das “massas” não passou 31 de uma (débil) desculpa. Conforme argumentei em Work, Consumerism and New Poor [Trabalho, consumismo e novos pobres] (1998), a “ética do trabalho” do início da era industrial foi uma tentativa desesperada de reconstituir, no ambiente frio e impessoal da fábrica, através do regime de comando, vigilância e punição, a mesma habilidade no trabalho que na densa rede de interação comunitária era alcançada de modo “natural” pelos artesãos e outros trabalhadores. O século XIX, dos grandes deslocamentos, desencaixes e desenraizamentos (e também de tentativas desesperadas de reencaixar e reenraizar) chegava a seu fim quando Thorstein Veblen11 falou em defesa do “instinto do trabalho bem-feito” aparentemente extinto, que “está presente em todos os homens” e “se afirma nas situações mais adversas”, para tentar reparar o dano. “Instinto de trabalho bem-feito” foi o termo que Veblen escolheu para um “gosto natural pelo trabalho efetivo e um desapreço pelo esforço fútil”, em sua opinião presente em todos os humanos. Longe de ser naturalmente preguiçosas e avessas ao trabalho, como insistia Freud em uníssono com uma longa série de críticos e resmungões, as pessoas tinham, muito antes que começassem as reprovações e a pregação, um senso do mérito da utilidade e da eficiência e do demérito da futilidade, desperdício e incapacidade... O instinto do trabalho bem-feito se expressa não tanto na insistência sobre a utilidade substancial quanto na rejeição à impossibilidade estética do que é obviamente fútil. Se todos nos orgulhamos de um trabalho bem-feito, também temos, é o que sugere Veblen, uma repulsa inata pela labuta sem propósito, pelo esforço fútil, pela azáfama sem sentido. Isso era também a verdade das “massas”, acusadas desde o advento da moderna indústria (capitalista) do pecado mortal da indolência. Se Veblen está certo e a relutância em trabalhar viola os instintos humanos, então algo foi feito, de modo resoluto e forçado, para que a conduta “real” das “massas” desse credibilidade à acusação de indolência. Esse “algo” foi o lento mas inexorável desmantela- 32 mento/desmoronamento da comunidade, aquela intrincada teia de interações humanas que dotava o trabalho de sentido, fazendo do mero empenho um trabalho significativo, uma ação com objetivo, aquela teia que constituía a diferença, como diria Veblen, entre o “esforço” (ligado aos “conceitos de dignidade, mérito e honra”) e a “labuta” (não ligada a qualquer daqueles valores e portanto percebida como fútil). Segundo Max Weber, o ato constitutivo do capitalismo moderno foi a separação entre os negócios e o lar — o que significou ao mesmo tempo a separação entre os produtores e as fontes de sua sobrevivência (como acrescentou Karl Polanyi, invocando o insight de Karl Marx). Esse duplo ato libertou as ações voltadas para o lucro, e também aquelas voltadas para a sobrevivência, da teia dos laços morais e emocionais, da família e da vizinhança — simultaneamente esvaziando tais ações de todo o sentido de que eram, antes, portadoras. O que costumava ser um “esforço” nos termos de Veblen virou “labuta”. Já não era claro para os artífices e artesãos de ontem o sentido do “trabalho bem-feito”, e não havia mais “dignidade, mérito e honra” que decorressem dele. Seguir a rotina sem alma do chão da fábrica, sem ser observado pelo companheiro ou vizinho, mas apenas pelo desconfiado capataz, obedecer aos movimentos ditados pela máquina sem chance de admirar o produto do próprio esforço, e muito menos de apreciar sua qualidade, tornavam o esforço “fútil”; e um esforço fútil era o que o instinto do trabalho bem-feito levava os humanos a detestarem todo o tempo. E esse tão humano desgostar da futilidade e da falta de sentido é que era em realidade o alvo da acusação de preguiça formulada contra os homens, mulheres e crianças, afastados de seu ambiente comum e sujeitos a um ritmo que não determinavam nem ao menos compreendiam. A suposta “natureza” das mãos de fábrica era responsabilizada pelos efeitos da não-naturalidade do novo meio social. O que os gerentes da indústria capitalista e os pregadores morais que corriam em sua ajuda queriam através da “ética do trabalho” que projetavam e pregavam era forçar ou inspirar os trabalhadores a desempenharem as “tarefas fúteis” com a mesma dedicação e abandono com que costumavam perseguir o “trabalho bem-feito”. 33 Para o empresário, a separação entre negócio e lar foi uma verdadeira emancipação. Suas mãos foram desatadas, o céu era o único limite além do qual sua imaginação não se atrevia a passar. Na busca do que a razão lhe dizia ser o caminho de maior riqueza, aquele alguém exuberante e autoconfiante “que faz as coisas acontecerem” não mais teria que limitar- se às noções tradicionais do dever comunitário, agora postas de lado como fora de moda (quando não superstição ignorante). A separação entre o meio de vida e o lar, o outro lado da primeira separação, não pretendia, porém, nem era percebida como uma emancipação: como um desatar das mãos e uma libertação do indivíduo. Pretendia ser e era percebida como um ato de expropriação, um desenraizamento e evicção de um lar defensável. Os homens e mulheres deviam primeiro ser separados da teia de laços comunitários que tolhia seus movimentos, para que pudessem ser mais tarde redispostos como equipes de fábrica. Essa nova disposição era seu destino, e a liberdade da indeterminação não passaria de um breve e transitório estágio entre duas gaiolas de ferro igualmente estreitas. O capitalismo moderno, na expressão célebre de Marx e Engels, “derrete todos os sólidos”; as comunidades auto-sustentadas e auto- reprodutivas figuravam em lugar de destaque no rol de sólidos a serem liqüefeitos. Mas o trabalho de fusão não era um fim em si mesmo: os sólidos eram liqüefeitos para que outros sólidos, mais sólidos do que os derretidos, pudessem ser forjados. Se para os poucos escolhidos o advento da ordem moderna significava o começo de uma extraordinariamente grande expansão da auto-afirmação individual — para a grande maioria apenas anunciava o deslocamento de uma situação estreita e dura para outra equivalente. Destruídos os laços comunitários que a mantinham em seu lugar, essa maioria viria a ser submetida a uma rotina inteiramente diferente, ostensivamente artificial, sustentada pela coação nua e sem sentido em termos de “dignidade, mérito ou honra”. Seria no mínimo ingênuo esperar que os deserdados abraçassem a rotina artificial e imposta com a mesma placidez com que costumavam seguir os ritmos da vida comunitária. Um regime disciplinar rigoroso e supervisionado de perto preencheu o 34 vazio aberto pelo desaparecimento da “compreensão natural” e do consentimento que outrora regulavam o curso da vida humana. John Stuart Mill12 assim resumiu a disposição dominante da época (de que se ressentia profundamente): A sina dos pobres, em tudo o que os afeta coletivamente, era controlada para eles e não por eles... Compete às classes mais altas pensarem por eles, e assumir a responsabilidade por seu destino... [para que possam] resignar-se... a uma verdadeira despreocupação, repousando à sombra de seus protetores... Os ricos devem ficar in loco parentis dos pobres, guiando-os e sujeitando-os como crianças. Mais de um século depois, olhando para as primeiras décadas do admirável mundo novo da modernidade capitalista, o historiador John Foster13 capta a essência da grande transformação ao observar que A prioridade absoluta era atrelar a força de trabalho emergente à nova classe dos patrões — e fazê-lo durante o período em que as velhas disciplinas auto- impostas da sociedade camponesa-artesanal estavam em processo de desintegração, mas ainda eram perigosamente poderosas. Olhando com ironia e ceticismo a fúria com que os reformadores e revolucionários desmantelavam os arranjos sociais existentes, Alexis de Tocqueville sugeria que, ao declarar guerra ao “atraso” e “paroquialismo” da sociedade camponesa-artesanal, a classe empresarial emergente estava chutando um cavalo morto; pois a comunidade local estava em avançado estado de decomposição muito antes do início da construção da nova ordem. Isso bem pode ter acontecido, mas qualquer que fosse seu estado de putrefação, a comunidade local continuava a ser percebida como “perigosamente poderosa” durante os longos anos que durou a adaptação dos camponeses e artesãos à nova disciplina das fábricas. Essa sensação dava força ao fervor e ao engenho com que os donos e os gerentes da indústria lutavam para controlar a conduta de sua força de trabalho e para sufocar toda manifestação de espontaneidade e livre arbítrio. 35 Em verdade, como dizia Stuart Mill, as “classes altas” se colocavam in loco parentis dos pobres e indolentes que, achavam, não podiam lidar com a preciosa dádiva da liberdade, ameaçada se posta em mãos erradas. O dever dos pais é guiar e restringir, mas para realizá-lo de modo sério e responsável eles precisam antes de mais nada vigiar e supervisionar. Já se disse que, como os peixes, as crianças devem ser vistas e não ouvidas. E assim durante a maior parte de sua história a modernidade se desenvolveu sob os auspícios do poder “panóptico”, obtendo a disciplina pela vigilância contínua. O princípio essencial do panóptico é a crença dos internos de que estão sob observação contínua e de que nenhum afastamento da rotina, por minúsculo e trivial que seja, passará despercebido. Para manter essa crença, os supervisores tinham que passar a maior parte do tempo nos postos de observação, do mesmo modo que os pais não podem sair de casa por muito tempo sem temer travessuras dos filhos. O modelo panóptico de poder prendia os subordinados ao lugar, aquele lugar onde podiam ser vigiados e punidos por qualquer quebra de rotina. Mas também prendia os supervisores ao lugar, aquele de onde deviam vigiar e administrar a punição. A era da grande transformação foi, numa palavra, uma era de engajamento. Os governados dependiam dos governantes, mas estes não deixavam de depender daqueles. Para o bem ou para o mal, os dois lados estavam amarrados entre si e nenhum deles podia com facilidade sair do impasse — por difícil ou repulsivo que fosse. O divórcio não era uma solução realista para qualquer das partes. Quando, num momento de inspiração, Henry Ford tomou a histórica decisão de dobrar os salários de seus empregados, estava à procura de um duplo vínculo que os atasse às suas fábricas de maneira mais forte e segura do que a mera necessidade de sobreviver, que também poderia ser obtida de outros patrões. O poder e a riqueza de Ford não eram mais extensos nem mais sólidos do que suas imensas fábricas, suas pesadas máquinas e sua massiva força de trabalho; ele não podia se dar ao luxo de perder qualquer uma delas. Passou-se muito tempo até que os dois lados, em muitas tentativas e muito mais erros, aprendessem 36 essa verdade. Uma vez aprendida a verdade, a inconveniência e o alto e crescente custo do poder panóptico (e, em geral, da dominação pelo engajamento) ficaram óbvios. Um casamento em que os dois lados sabem que estão unidos por um longo porvir, e no qual nenhum dos parceiros está livre para rompê-lo é necessariamente um lugar de perpétuo conflito. A chance de que os parceiros tenham a mesma opinião em todos os problemas que possam surgir ao longo desse longo futuro é tão pequena quanto a probabilidade de que um deles ceda sempre à vontade do outro, sem tentar melhorar sua posição relativa. E ocorrerão inúmeros confrontos, batalhas campais e incursões guerrilheiras. Só em casos extremos, contudo, as ações de guerra levarão à derrota final de um ou dos dois parceiros: uma consciência de que essa derrota pode acontecer e o desejo de que seria melhor que não acontecesse serão provavelmente suficientes para romper a “cadeia cismogenética” antes daquele desfecho (“como ficaremos unidos independente do que aconteça, vamos tentar tornar a convivência suportável”). E assim, em meio à guerra de destruição ocorrem tréguas mais ou menos longas, e entre elas momentos de barganha e negociação. E também tentativas renovadas de compromisso sobre um conjunto comum de regras aceitáveis para ambas as partes. Duas tendências acompanharam o capitalismo moderno ao longo de toda sua história, embora sua força e importância tenham variado no tempo. Uma delas já foi assinalada: um esforço consistente de substituir o “entendimento natural” da comunidade de outrora, o ritmo, regulado pela natureza, da lavoura, e a rotina, regulada pela tradição, da vida do artesão, por uma outra rotina artificialmente projetada e coercitivamente imposta e monitorada. A segunda tendência foi uma tentativa muito menos consistente (e adotada tardiamente) de ressuscitar ou criar ab nihilo um “sentido de comunidade”, desta vez dentro do quadro da nova estrutura de poder. A primeira tendência atingiu seu ponto culminante por volta do começo do século XX com a linha de montagem e o “estudo do tempo e do movimento” e da “organização científica do trabalho” de Frederick Taylor, que pretendia separar o desempenho 37 produtivo dos motivos e sentimentos dos trabalhadores. Os produtores deveriam ser expostos ao ritmo impessoal da máquina, que estabeleceria o ritmo do movimento e determinaria qualquer gesto; não sobraria espaço, nem ele deveria ser reservado, para a escolha pessoal. O papel da iniciativa, da dedicação e da cooperação, mesmo para as “aptidões vivas” dos operadores (preferivelmente transferidas para a máquina) deveria ser reduzido ao mínimo. A dinâmica e a rotinização do processo de produção, a impessoalidade da relação entre trabalhador e máquina, a eliminação de todas as dimensões do papel produtivo que não as tarefas fixas da produção, e a resultante homogeneidade das ações dos trabalhadores formavam o exato oposto do ambiente comunitário em que se inscrevia o trabalho pré-industrial. O chão da fábrica deveria ser o equivalente, comandado pela máquina, da burocracia que, segundo o modelo ideal esboçado por Max Weber, tinha como objetivo a irrelevância total dos laços e compromissos sociais estabelecidos e mantidos fora do escritório e do horário de trabalho. Os resultados do trabalho não deveriam ser afetados por fatores tão pouco confiáveis e flutuantes como o “instinto de obra bem-feita” com sua fome de honra, mérito e dignidade e, acima de tudo, sua aversão à futilidade. A segunda tendência corria paralela à primeira, tendo começado cedo nas “cidades modelo” de alguns filantropos que associavam o sucesso industrial a um fator de “sentir-se bem” entre os trabalhadores. Em lugar de confiar exclusivamente nos poderes coercitivos da máquina, apostavam nos padrões morais dos trabalhadores, sua piedade religiosa, na generosidade de sua vida familiar e sua confiança no chefe-patrão. As cidades modelo construídas em torno das fábricas estavam equipadas com moradias decentes, mas também com capelas, escolas primárias, hospitais e confortos sociais básicos — todos projetados pelos donos das fábricas junto com o resto do complexo de produção. A aposta era na recriação da comunidade em torno do lugar de trabalho e, assim, na transformação do emprego na fábrica numa tarefa para “toda a vida”. Os filantropos, vistos por seus contemporâneos como “socialistas utópicos” e por isso mesmo aplaudidos por alguns como 38 pioneiros da reforma moral, vistos por outros com suspeitas e postos no ostracismo por subversão, esperavam cegar o gume despersonalizante e desumanizante da era da máquina que se avizinhava e preservar algo da antiga relação paternal, benigna e benevolente entre mestre e aprendiz e do espírito de comunidade no áspero clima de competição e busca do lucro. Filantropos eticamente motivados ficaram à margem do ímpeto principal do desenvolvimento capitalista. Logo ficou claro que nadavam contra a corrente: a sentença de morte da comunidade era irrevogável e mínimas as chances de que ela pudesse ressurgir dentre os mortos. Levou quase um século para que a segunda tendência voltasse à cena uma vez mais, agora como um esforço para recuperar a debilitada eficiência do trabalho nas fábricas na indústria capitalista vitoriosa e não mais contestada, em vez de para, como um século antes, deter a destruição da tradição comunitária por uma ordem capitalista em progresso. Na década de 1930, a “escola das relações humanas” foi fundada na sociologia industrial seguindo os experimentos de Elton Mayo nas Empresas Hawthorne. A descoberta de Mayo foi que nenhum dos aspectos físicos do ambiente de trabalho, nem mesmo os incentivos materiais que ocupavam lugar tão importante na estratégia de Frederick Taylor, influenciava o aumento da produtividade e eliminava os conflitos tanto quanto os fatores espirituais: uma atmosfera amigável e “doméstica” no local de trabalho, a atenção dos gerentes e capatazes às variáveis disposições dos trabalhadores e o cuidado deles em explicar aos trabalhadores o significado de suas contribuições para os efeitos gerais da produção. Pode-se dizer que a esquecida e negligenciada importância da comunidade para a ação significativa, e do “instinto do trabalho bem- feito” foram redescobertos como recursos no esforço perpétuo de melhorar a relação entre custo e efeito. O que garantiu o sucesso da noite para o dia das propostas de Mayo foi sua idéia de que os bônus e aumentos de salários, bem como a minuciosa (e custosa) supervisão minuto a minuto, não seriam tão importantes — desde que os patrões conseguissem evocar entre seus empregados o sentimento de que “estamos todos no mesmo barco”, promover a lealdade à empresa e con- 39 vencê-los do significado do desempenho individual para o esforço conjunto; numa palavra, desde que eles respeitassem o anseio dos trabalhadores por dignidade, mérito e honra e seu desprezo inato pela rotina fútil e sem sentido. A boa notícia era que a satisfação no emprego e uma atmosfera amigável podiam superar a estrita atenção às regras e a vigilância ubíqua na promoção da eficiência e na prevenção da ameaça do conflito industrial recorrente, ao mesmo tempo em que era mais econômica, em termos puramente atuariais, do que os métodos de treinamento que vinham substituir. A célebre “fábrica fordista” tentou a síntese das duas tendências, combinando assim o melhor dos dois mundos, sacrificando o mínimo tanto da “organização científica” quanto da união de tipo comunitário. Nos termos de Tönnies, seu objetivo era transformar Kürwille em Wesenwille, “naturalizar” os padrões racionais de conduta abstratamente projetados e ostensivamente artificiais. Durante cerca de meio século, e particularmente nas “três gloriosas décadas” do “acordo social” que acompanhou a reconstrução do pós-guerra, a “fábrica fordista” serviu de modelo para o ideal perseguido, com graus variados de sucesso, por todas as outras empresas capitalistas. As duas tendências, uma estrita e explicitamente anticomunitária e a outra flertando com a idéia da nova forma da comunidade, representavam duas formas alternativas de administração. Mas o suposto de que os processos sociais em geral, e o trabalho produtivo em particular, precisavam ser administrados em lugar de ser deixados por sua própria conta não estava em questão. Nem a crença de que o dever de “guiar e restringir” era um ingrediente obrigatório da posição dos patrões in loco parentis. Na maior parte de sua história, a modernidade foi uma era de “engenharia social” em que não se acreditou na emergência e na reprodução espontânea da ordem; com o desaparecimento das instituições auto-regenerativas da sociedade pré-moderna, a única ordem concebível era uma ordem projetada com os poderes da razão e mantida pelo monitoramento e manejo quotidianos. 3 Tempos de desengajamento ou a grande transformação, segundo tempo Desde o começo dos tempos modernos, a gerência não é uma questão de escolha, mas uma necessidade. Contudo, como observou Karl Marx, não é preciso que o regente da orquestra sinfônica seja dono dos violinos e trombetas. Podemos virar o argumento pelo avesso e dizer que os donos dos instrumentos da orquestra também não precisam assumir a complexa tarefa da regência. Em verdade, sabe-se de poucos regentes que tenham tentado comprar os instrumentos de suas orquestras; mas os donos das orquestras e das salas de concertos têm preferido, como regra geral, contratar seus regentes em lugar de regê-las diretamente. Assim que puderam fazê-lo, os empresários capitalistas passaram as tarefas gerenciais a empregados contratados. Pouco antes da Segunda Guerra Mundial, James Burnham expressou, de maneira articulada, o que já era do conhecimento geral, ao proclamar que a “revolução dos gerentes” já acontecera, e estava para terminar com a vitória dos mesmos. Os lucros, dizia Burnham, ainda fluíam como antes para os bolsos dos proprietários, mas a condução cotidiana dos negócios passara a ser uma prerrogativa dos gerentes, e ninguém se atreveria a interferir, nem desejaria fazê-lo. Alguns gerentes podiam ser donos de ações das empresas que dirigiam, alguns podiam, em termos legais, ser pura e simplesmente empregados, mas para a alocação do poder isso era irrelevante. O poder consiste na tomada de decisões e pertence aos que as tomam. E assim o poder pertencia aos gerentes. 40 41 Depois de mais de meio século, lê-se a Revolução dos gerentes de Burnham como o resumo da longa experiência das modernas lutas pelo poder e das estratégias nelas empregadas. A substância do poder moderno não estava em títulos legais de propriedade e as lutas modernas pelo poder não consistiam da corrida por mais posses. O poder moderno dizia respeito antes e acima de tudo à capacidade de gerenciar pessoas, de comandar, de estabelecer as regras de conduta e obter obediência a essas regras. A união pessoal original entre propriedade e gerência foi um caso de coincidência histórica, e desenvolvimentos posteriores mostraram o que aconteceu. Essa união mais obscurecia do que revelava a verdade do poder moderno. De maneira oblíqua, Burnham prestava homenagem à paixão pela construção da ordem e pelo serviço à ordem como força motriz da sociedade moderna; e ao engajamento direto com as pessoas, à atividade de padronizar, vigiar, monitorar e dirigir as ações delas como principal método de projeto, construção e manutenção da ordem. E ele o fez substituindo o modelo da modernidade capitalista, dirigida pelo motivo do lucro, pelo do capitalismo moderno, dirigido pela urgência de substituir a tradição fundada na comunidade por uma rotina artificial e construída. Acontece que as formas sociais ficam mais visíveis (e portanto mais fáceis de serem notadas e reconhecidas pelo que sempre foram) quando surgem a partir da carapaça dentro da qual foram gestadas; quando atingem a maturidade e passam a existir. O momento da maturação, contudo, é com freqüência o começo da decadência e da superação. A história do “grande engajamento”, da aventura do gerenciamento e da engenharia social não constituiu uma exceção. Passadas algumas décadas, vividas à sombra da destruição da guerra e da reconstrução do pós-guerra, ficou claro que chegara a vez de os gerentes se livrarem dos incômodos e embaraçosos deveres lançados previamente sobre seus ombros pelos detentores do capital. Os gerentes se dispunham seriamente a repetir o ato de desaparecimento dos donos do capital. Depois da era do “grande engajamento” eram chegados os tempos do “grande desengajamento”. Os tempos de grande velocidade e aceleração, do 42 encolhimento dos termos do compromisso, da “flexibilização”, da “redução”, da procura de “fontes alternativas”. Os termos da união “até segunda ordem”, enquanto (e só enquanto) “durar a satisfação”. A “desregulamentação” é a palavra da hora e o princípio estratégico louvado e praticamente exibido pelos detentores do poder. A “desregulamentação” é demandada porque os poderosos não querem ser “regulados” — ter sua liberdade de escolha limitada e sua liberdade de movimento restrita; mas também (talvez principalmente) porque já não estão interessados em regular os outros. O serviço e o policiamento da ordem viraram uma batata quente alegremente descartada pelos que são suficientemente fortes para livrar-se da incômoda sucata, entregando-a de pronto aos que estão mais abaixo na hierarquia e são fracos demais para recusar o presente venenoso. Nestes dias, a dominação não se apóia principalmente no engajamento e no compromisso; na capacidade de os dirigentes observarem de perto os movimentos dos dirigidos e coagirem-nos à obediência. Ela ganhou um novo fundamento, muito menos incômodo e menos custoso — pois requer pouco serviço: a incerteza dos governados sobre o próximo movimento dos governantes — se estes se dignarem a fazê-lo. Como Pierre Bourdieu não se cansou de observar, o estado de permanente précarité — insegurança quanto à posição social, incerteza sobre o futuro da sobrevivência e a opressiva sensação de “não segurar o presente”— gera uma incapacidade de fazer planos e segui-los. Quando a ameaça da mudança unilateral ou do fim dos arranjos correntes por parte daqueles que decidem o meio em que os afazeres da vida devem ser realizados paira perpetuamente sobre as cabeças daqueles que os realizam, as chances de resistência aos movimentos dos detentores do poder, e particularmente de resistência firme, organizada e solidária, são mínimas — virtualmente inexistentes. Os detentores do poder não têm o que temer e assim não sentem necessidade das custosas e complicadas “fábricas de obediência” ao estilo panóptico. Em meio à incerteza e à insegurança, a disciplina (ou antes a submissão à condição de que “não há alternativa”) anda e se reproduz por conta própria e não 43 precisa de capatazes para supervisionar seu abastecimento constantemente atualizado. O desmantelamento dos panópticos anuncia um grande salto para frente no caminho da maior liberdade do indivíduo. Ela é experimentada, porém, para dizer o mínimo, como uma bênção problemática, ou uma bênção enfeitada demais para ser recebida com alegria. O regime do panóptico, praticamente universal durante a era do “grande engajamento”, era cruel e degradante: fazia com que mesmo esforços produtivos perfeitamente racionais parecessem uma “faina fútil” e despiam o trabalho de sua capacidade de conferir “honra, mérito e dignidade”. Tinha, contudo, certas vantagens para as vítimas — trazia- lhes benefícios que só foram percebidos com seu desaparecimento. Sua permanência estável fazia do engajamento mútuo uma moldura confiável em que os destinatários do arranjo panóptico também podiam inscrever confiantemente suas esperanças e sonhos de um futuro melhor; a solidez do engajamento mútuo fazia da luta por condições melhores uma luta digna de ser travada. Como os dois lados estavam “presos ao lugar” de modo similar e não tinham liberdade de movimento, tinha sentido que ambos procurassem uma acomodação aceitável em lugar de arriscar a confrontação e a guerra (mesmo em Auschwitz, onde o sinistro potencial do panóptico revelou toda sua horrível maldade, os internos que — ao contrário dos prisioneiros judeus e ciganos — esperavam permanecer no campo e trabalhar ainda por longo tempo em vez de serem mandados para a morte a qualquer momento conseguiam melhoras em suas condições pela resistência solidária). A rotina imposta pelas “fábricas de disciplina” era sem dúvida detestada e provocava ressentimentos. Mas, como lembra Richard Sennett, intensa negociação sobre os horários ocupava tanto a United Auto Workers Union quanto a administração da General Motors... O tempo rotinizado se tornara uma arena em que os trabalhadores podiam fazer suas próprias demandas, uma arena de poder... A rotina pode ser degradante, mas também pode proteger; a rotina 44 pode descompor o trabalho, mas também pode compor uma vida.14 Sob as novas condições, com os poderes do momento não mais interessados na supervisão e monitoramento da rotina e preferindo apoiar- se na endêmica falta de autoconfiança de seus subordinados, as limitações que interferiam sobre a liberdade dos subordinados não ficaram menos estritas; a “dominação a partir de cima”, como observa Sennett, se tornou “informe” sem perder nada de sua força.15 Como que juntando o insulto ao opróbrio, as forças capazes de infligir dor mantiveram firme o controle, talvez mais firme do que antes, mas também ficaram invisíveis e quase impossíveis de localizar, para que houvesse reação e eventualmente confrontação. A luta desesperada para mitigar a dor tem que ser travada no escuro e tende a ser desfocada, variando de um alvo acidental para outro, cada tentativa errando longe, e com pouca vantagem mesmo que acerte. As forças verdadeiramente responsáveis pela dor podem se sentir seguras de que, por mais furiosas que sejam as respostas provocadas pelos sofrimentos que causaram, elas serão desviadas para outros objetos e dificilmente impedirão sua liberdade de ação. Há meio século, os estudiosos das ciências sociais foram apresentados ao funcionamento da psique humana através dos experimentos em série dos psicólogos behavioristas; ratos famintos tinham que percorrer os corredores tortuosos de um labirinto em busca de uma porção de comida colocada sempre no mesmo compartimento, de tal modo que o tempo que levavam para aprender o caminho certo (sempre o mesmo caminho certo entre os muitos errados) pudesse ser devidamente registrado. Apenas umas poucas pessoas objetaram então à sugestão dos behavioristas de que o que valia para os ratos também valia para os humanos, e as objeções foram poucas e espaçadas não porque a semelhança implícita entre ratos e humanos fosse evidente ou universalmente aceita, mas porque a situação no laboratório behaviorista era notavelmente similar ao destino humano concebido à época: muralhas sólidas, fortes, impenetráveis e inamovíveis de um labirinto com apenas um caminho certo e muitos outros 45 levando à perdição; regras imutáveis determinando uma única localização do prêmio que esperava ao fim do caminho; o aprendizado (memorização e habituação) da capacidade de distinguir os caminhos certos dos errados como essência da arte de viver. A situação artificial dos ratos no labirinto parecia uma réplica fiel da sina diária dos humanos no mundo. Se hoje os paralelos behavioristas perderam grande parte de seu poder de persuasão e estão quase esquecidos isso não se deveu a que as insinuações de parentesco espiritual com os ratos tenham parecido ofensivas ao lado humano da comparação, mas sim a que a visão de um sólido labirinto talhado na pedra não está mais de acordo com a visão que os humanos têm do mundo em que vivem. Uma metáfora radicalmente diferente, a imagem de Edmund Jabès de um deserto em que os caminhos (muitos e cruzados, e todos sem sinalização) não passam de filas de pegadas de passantes, que poderão ser apagadas pelos ventos, parece ajustar-se muito melhor a essa experiência. No mundo em que vivemos no limiar do século XXI, as muralhas estão longe de ser sólidas e com certeza não estão fixadas de uma vez por todas; eminentemente móveis, parecem aos passantes divisórias de papelão ou telas destinadas a serem reposicionadas mais e mais vezes segundo mudanças sucessivas de necessidades ou caprichos. Alternativamente, pode-se dizer que há hoje meadas de algodão onde ficavam as gaiolas de ferro do tempo de Max Weber; os golpes passam por elas e a abertura produzida se fechará no momento seguinte. Pode-se também pensar num mundo que deixou de ser um árbitro rigorosamente imparcial e se tornou um dos jogadores que, como todos os jogadores adeptos aos truques, esconde a mão e espera para trapacear se tiver a chance. De longe a mais dura das gaiolas de ferro em que a vida média costumava ser inscrita era o quadro social em que se ganhava o sustento: o escritório ou a planta industrial, os trabalhos ali realizados, as habilidades necessárias para realizá-los e a rotina diária. Solidamente encapsulado nessa moldura, o trabalho podia razoavelmente ser visto como uma vocação ou a missão de uma vida: como o eixo em torno do qual o resto da vida se 46 revolvia e ao longo do qual se registravam as realizações. Agora, esse eixo está irreparavelmente quebrado. Em lugar de ter ficado “flexível”, como os porta-vozes do admirável mundo novo gostariam que fosse percebido, ele se tornou frágil e quebradiço. Nada pode (ou deveria) ser fixado a esse eixo com segurança — confiar em sua durabilidade seria ingênuo e poderia ser fatal. Até os escritórios mais veneráveis e as fábricas mais orgulhosas de seu longo e glorioso passado tendem a desaparecer da noite para o dia e sem aviso; empregos tidos como permanentes e indispensáveis, do tipo “impossível passar sem eles”, se evaporam antes que o trabalho esteja terminado, habilidades outrora febrilmente procuradas, sob forte demanda, envelhecem e deixam de ser vendáveis muito antes da data prevista de expiração; e rotinas de trabalho são viradas de cabeça para baixo antes de serem aprendidas. A “porção de comida” no suposto fim do caminho se desloca ou apodrece mais rápido e antes que mesmo o mais inteligente dos ratos tenha aprendido como chegar até ela... Porém, a moldura social de trabalho e sobrevivência não é a única que está se esboroando. Tudo o mais parece estar no olho do furacão. Citando Sennett uma vez mais, 16 o lugar onde se passará toda a vida, ou onde se espera passá-la, “existe a partir da batuta do agente imobiliário, floresce e começa a decair no prazo de uma geração”. Em tal lugar (e mais e mais pessoas começam a conhecer esses lugares e sua amarga atmosfera do modo mais difícil) “ninguém testemunha a vida de ninguém”. O lugar pode estar fisicamente cheio, e no entanto assustar e repelir os moradores por seu vazio moral. Não somente ele surge do nada, num local inóspito na memória humana, e antes do pagamento da hipoteca já começou a decair, deixando de ser hospitaleiro para se tornar repulsivo e obrigando os infelizes moradores a buscarem outra moradia. O que acontece é que nada nele permanece o mesmo durante muito tempo, e nada dura o suficiente para ser absorvido, tornar-se familiar e transformar-se no que as pessoas ávidas de comunidade e lar procuravam e esperavam. Deixaram de existir os simpáticos mercadinhos de esquina; se conseguiram sobreviver à competição dos supermercados, seus donos, gerentes e os rostos atrás dos balcões mudam com excessiva freqüência 47 para que qualquer um deles possa substituir a permanência que já não se encontra nas ruas. Também desapareceram o banco local e os escritórios da construtora, substituídos pelas vozes anônimas e impessoais (cada vez mais produzidas por sintetiza-dores eletrônicos) do outro lado da linha ou por “amigáveis”, embora infinitamente remotos, ícones da web sem nome e sem rosto. Também não existe mais o carteiro, que batia à porta seis dias por semana e se dirigia aos moradores pelo nome. Chegaram as lojas de departamentos e cadeias de butiques, e que, espera-se, sobrevivam às fusões ou trocas de donos, mas que trocam de pessoal a uma tal velocidade que reduz a zero a chance de se encontrar duas vezes seguidas o mesmo vendedor. Mas as coisas tampouco parecem mais sólidas dentro da casa da família do que na rua. Como observou Yvonne Roberts com acidez, “embarcar no casamento no século XXI parece uma decisão tão sábia como partir para o mar numa jangada de mata-borrão” (Observer, 13 de fevereiro de 2000). As chances de que a família sobreviva a qualquer de seus membros diminui a cada ano que passa: a expectativa de vida do corpo mortal individual parece uma eternidade por comparação. Uma criança média tem diversos pares de avós e diversos “lares” entre os quais escolher — “por temporada”, como as casas de praia. Nenhum deles se parece com o verdadeiro “e único” lar. Em suma: foi-se a maioria dos pontos firmes e solidamente marcados de orientação que sugeriam uma situação social que era mais duradoura, mais segura e mais confiável do que o tempo de uma vida individual. Foi- se a certeza de que “nos veremos outra vez”, de que nos encontraremos repetidamente e por um longo porvir — e com ela a de que podemos supor que a sociedade tem uma longa memória e de que o que fazemos aos outros hoje virá a nos confortar ou perturbar no futuro; de que o que fazemos aos outros tem significado mais do que episódico, dado que as conseqüências de nossos atos permanecerão conosco por muito tempo depois do fim aparente do ato — sobrevivendo nas mentes e feitos de testemunhas que não desaparecerão. Esses e outros supostos semelhantes formavam, por assim dizer, o “fundamento epistemológico” da experiência de comuni- 48 dade, seríamos tentados a dizer “de uma comunidade bem tecida”, se a expressão não fosse pleonástica — nenhum agregado de seres humanos é sentido como “comunidade” a menos que seja “bem tecido” de biografias compartilhadas ao longo de uma história duradoura e uma expectativa ainda mais longa de interação freqüente e intensa. É essa experiência que falta hoje em dia, e é sua ausência que é referida como “decadência”, “desaparecimento” ou “eclipse” da comunidade — como já notava Maurice R. Stein em 1960: “as comunidades se tornam cada vez mais dispensáveis... As lealdades pessoais diminuem seu âmbito com o enfraquecimento sucessivo dos laços nacionais, regionais, comunitários, de vizinhança, de família e, finalmente, dos laços que nos ligam a uma imagem coerente de nós mesmos.”17 O tipo de incerteza, de obscuros medos e premonições em relação ao futuro que assombram os homens e mulheres no ambiente fluido e em perpétua transformação em que as regras do jogo mudam no meio da partida sem qualquer aviso ou padrão legível, não une os sofredores: antes os divide e os separa. As dores que causam aos indivíduos não se somam, não se acumulam nem condensam numa espécie de “causa comum” que possa ser adotada de maneira mais eficaz unindo as forças e agindo em uníssono. A decadência da comunidade nesse sentido se perpetua; uma vez instalada, há cada vez menos estímulos para deter a desintegração dos laços humanos e para procurar meios de unir de novo o que foi rompido. A sina de indivíduos que lutam em solidão pode ser dolorosa e pouco atraente, mas firmes compromissos a atuar em conjunto parecem prometer mais perdas do que ganhos. Pode-se descobrir que as jangadas são feitas de mata-bor-rão só depois que a chance de salvação já tiver sido perdida. 4 A secessão dos bem-sucedidos A expressão que encabeça este capítulo foi tirada de The Work of Nations de Robert Reich: refere-se ao novo distanciamento, indiferença, desengajamento e, em verdade, à extraterritorialidade mental e moral daqueles que não se importam de ficar sós, desde que os outros, que pensam diferente, não insistam em que se ocupem e muito menos partilhem sua vida por conta própria. Richard Rorty18 sugere que, tendo capitalizado individualmente as batalhas solidárias e coletivas de seus pais, os filhos da geração que passou pela Grande Depressão se estabeleceram nos subúrbios prósperos e “decidiram recolher as pontes levadiças”. Na verdade, os filhos dos militantes obtiveram suas promoções individuais graças ao seguro comunitário contra azares individuais que os pais construíram para eles. Mas não gostam de ser lembrados de como foi que ficaram auto-suficientes; não vêem razão por que os outros não sejam como eles, desde que se comportem como eles. Reconstroem seu próprio desagrado com a “dependência” de que não mais precisam como uma condenação moral universal da dependência de que os menos afortunados precisam como do ar que respiram e que não podem dispensar. E assim, como diz Rorty, Sob os presidentes Carter e Clinton, o Partido Democrata sobreviveu afastando-se dos sindicatos e de qualquer menção à redistribuição, movendo-se para um vácuo estéril chamado de “centro”... Foi como se a distribuição da renda e da riqueza tivesse virado um tópico assustador demais para ser mencionado por qualquer político norte-americano... E assim a escolha entre os dois partidos 49 50 principais acabou como uma escolha entre mentiras cínicas e um silêncio temeroso. Aconteceu alguma coisa que jamais teria ocorrido a Menênio Agripa quando instigava os plebeus a permanecerem em Roma e a abandonarem os planos de separar-se deixando os patrícios por sua própria conta. Agripa ficaria atônito ao saber que, no fim, não foram os plebeus, mas os equivalentes contemporâneos dos patrícios da Roma antiga que (intencionalmente ou não, mas de qualquer maneira sem nunca olhar para trás) decidiram pela “secessão”, por abandonar seus compromissos e lavar as mãos de suas responsabilidades. Os patrícios de hoje não precisam mais dos serviços da comunidade; na verdade, não conseguem perceber o que ganhariam permanecendo na e com a comunidade que já não tenham obtido por conta própria ou ainda esperam assegurar por seu próprio esforço, mas podem pensar em muitos recursos que poderiam perder caso se submetessem às demandas da solidariedade comunitária. Dick Pountain e David Robins 19 escolhem o modo “cool” [distanciado] como sintoma da mente e caráter da “secessão dos bem- sucedidos”. Quando o “cool” ganhou popularidade repentina e se espalhou como fogo na floresta entre os filhos dos prósperos pós- Depressão envergava a máscara de uma rebelião e da renovação moral: era o símbolo de um distanciamento militante de uma ordem envelhecida satisfeita com a situação a que o passado a tinha conduzido e à míngua de idéias novas. Hoje, porém, o “cool” se transformou na visão do mundo dos importantes, inteiramente conservadores em suas ações e nas preferências que essas ações exemplificam, quando não em seu auto- elogio explícito (e enganador). Essa ordem cada vez mais conservadora se funda nos impressionantes poderes do mercado de consumo e do que resta das instituições políticas outrora autônomas. O “cool”, sugerem Pountain e Robins, “parece estar usurpando o lugar da ética do trabalho para instalar-se como forma mental dominante do capitalismo de consumo avançado”. “Cool” significa “fuga ao sentimento”, fuga “da confusão da verdadeira intimidade, para o mundo do sexo fácil, do divórcio casual, de relações não possessivas”. 51 Dada a completa perda da fé em alternativas políticas radicais, o cool diz hoje respeito principalmente ao consumo. Esse é o “cimento” que preenche a contradição escancarada — cool é a maneira de viver com as expectativas rebaixadas, indo às compras... O gosto pessoal é elevado a um ethos completo; você é aquilo de que gosta e, portanto, aquilo que você compra. Embora ostente os enfeites da autonomia pessoal e atue sob o slogan da “falta de espaço”, a fuga “da confusão da verdadeira intimidade” está mais próxima do rompante que de uma jornada individualmente concebida e assumida de auto-exploração. A secessão quase nunca é solitária — os fugitivos se inclinam a juntar-se com outros fugitivos como eles, e os padrões da vida de fugitivo tendem a ser tão rígidos e exigentes como aqueles que pareciam opressivos na vida deixada para trás; a facilidade do divórcio casual multiplica imperativos tão inflexíveis e intratáveis (e potencialmente tão desagradáveis) como o casamento sem cláusula de rompimento. O único atrativo do exílio voluntário é a ausência de compromissos, especialmente de compromissos de longo prazo, do tipo dos que impedem a liberdade de movimento numa comunidade com sua “confusa intimidade”. Substituídos os compromissos pelos encontros passageiros e pelas relações “até nova ordem” ou “por uma noite” (ou um dia), podemos excluir do cálculo os efeitos que nossas ações podem ter sobre a vida dos outros. O futuro pode ser tão nebuloso e impenetrável como antes, mas pelo menos esse traço que seria desconfortável não influi sobre uma vida vivida como uma sucessão de episódios e uma série de recomeços. Sören Kierkegaard20 provavelmente acharia uma grande afinidade entre o tipo de vida que atrai os bem-sucedidos à secessão e o tipo de patologia que entreviu no c