É Assim Que Acaba (Colleen Hoover) - PDF
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2018
Colleen Hoover
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Este é um livro eletrônico de Colleen Hoover, de 2018, publicado pela Galera Record, com tradução de Priscila Catão.
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Obras da autora publicadas pela Galera Record Série Slammed Métrica Pausa Essa garota Série Hopeless Um caso perdido Sem esperança Em busca de Cinderela Sér...
Obras da autora publicadas pela Galera Record Série Slammed Métrica Pausa Essa garota Série Hopeless Um caso perdido Sem esperança Em busca de Cinderela Série Nunca jamais Nunca jamais Nunca jamais: parte dois O lado feio do amor Talvez um dia Novembro, 9 Confesse É assim que acaba Tradução: Priscila Catão 1ª edição Rio de Janeiro | 2018 CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICAT O NACIONAL DOS EDIT ORES DE LIVROS, RJ H759a Hoover, Colleen, 1979- É assim que acaba [recurso eletrônico] / Colleen Hoover ; tradução Priscila Catão. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Galera Record, 2018. recurso digital T radução de: It ends with us Formato: epub Requisitos do sistema: adobe digital editions Modo de acesso: world wide web ISBN 978-85-01-11349-8 (recurso eletrônico) 1. Ficção infantojuvenil americana. 2. Livros eletrônicos. I. Catão, Priscila. II. T ítulo. 17-46635 CDD: 028.5 CDU: 087.5 T ítulo original: It ends with us Copyright © 2016 Colleen Hoover Copyright da edição em português © 2018 por Editora Record LT DA. Publicado mediante acordo com a editora original, Atria Books, um selo da Simon & Schuster, Inc. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram assegurados. Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Editoração eletrônica da versão impressa: Abreu’s System Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela EDIT ORA RECORD LT DA. Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2703-1987, que se reserva a propriedade literária desta tradução. Produzido no Brasil ISBN 978-85-01-11349-8 Seja um leitor preferencial Record. Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções. Atendimento e venda direta ao leitor: [email protected] ou (21) 2585-2002. Para meu pai, por fazer o que pôde para não mostrar o pior de si. E para minha mãe, por garantir que nunca víssemos o pior dele. Sumário Parte Um Capítulo Um Capítulo Dois Capítulo Três Capítulo Quatro Capítulo Cinco Capítulo Seis Capítulo Sete Capítulo Oito Capítulo Nove Capítulo Dez Capítulo Onze Capítulo Doze Capítulo Treze Capítulo Catorze Capítulo Quinze Capítulo Dezesseis Capítulo Dezessete Parte Dois Capítulo Dezoito Capítulo Dezenove Capítulo Vinte Capítulo Vinte e Um Capítulo Vinte e Dois Capítulo Vinte e Três Capítulo Vinte e Quatro Capítulo Vinte e Cinco Capítulo Vinte e Seis Capítulo Vinte e Sete Capítulo Vinte e Oito Capítulo Vinte e Nove Capítulo Trinta Capítulo Trinta e Um Capítulo Trinta e Dois Capítulo Trinta e Três Capítulo Trinta e Quatro Capítulo Trinta e Cinco Epílogo Nota da Autora Agradecimentos Parte Um Capítulo Um Enquanto estou aqui sentada, com um pé em cada lado do parapeito, observando as ruas de Boston a doze andares abaixo, pensar em suicídio é inevitável. Não no meu. Gosto o suficiente de minha vida para querer vivê-la. Estou pensando em outras pessoas e em como decidem simplesmente acabar com a própria vida. Será que elas se arrependem em algum momento? No instante depois de se jogar, e no segundo antes do impacto deve haver algum remorso durante aquela breve queda livre. Será que veem o chão se aproximando depressa e pensam: Ah, que droga, que ideia péssima! Por algum motivo, acho que não. Penso muito na morte. Ainda mais hoje, considerando que acabei de — doze horas antes — fazer um dos discursos fúnebres mais épicos que o povo de Plethora, no Maine, já testemunhou. Tudo bem, talvez não tenha sido o mais épico, mas poderia muito bem ser o mais desastroso. Acho que depende se a pergunta for feita para mim ou para minha mãe. Minha mãe, que provavelmente vai passar um ano inteiro sem falar comigo depois de hoje. Não me entenda mal: meu discurso fúnebre não foi tão marcante a ponto de entrar para a história, como o de Brooke Shields no funeral de Michael Jackson. Ou o da irmã de Steve Jobs. Ou o do irmão de Pat Tillman. Mas foi épico à própria maneira. No início, fiquei nervosa. Afinal, era o funeral do extraordinário Andrew Bloom. Prefeito idolatrado de minha cidade natal: Plethora, no Maine. Dono da agência imobiliária de maior sucesso da cidade. Marido da idolatrada Jenny Bloom, a mais reverenciada professora auxiliar de toda Plethora. E pai de Lily Bloom, aquela garota estranha, de excêntrico cabelo ruivo, que certa vez se apaixonou por um mendigo e envergonhou toda a família. Eu sou Lily Bloom, e Andrew era meu pai. Assim que terminei o discurso fúnebre, peguei um voo para Boston e sequestrei o primeiro telhado que encontrei. Mais uma vez, não porque sou suicida. Não tenho nenhum plano de saltar deste telhado. Só precisava de ar fresco e silêncio, nada mais. Algo impossível de conseguir em meu apartamento no terceiro andar, sem acesso ao telhado, e morando com uma garota que adora se ouvir cantando. Porém, não pensei em como estaria frio aqui em cima. Não está insuportável, mas também não está nada confortável. Pelo menos dá para ver as estrelas. Pais falecidos, irritantes colegas de apartamento e discursos fúnebres questionáveis não parecem nada mal quando o céu noturno está límpido o suficiente para, literalmente, espelhar o esplendor do universo. Amo quando o céu me faz sentir insignificante. Estou gostando desta noite. Bem... vou reformular a frase para que ela reflita meus sentimentos de maneira mais apropriada, no passado. Eu estava gostando desta noite. Mas, para minha infelicidade, a porta foi aberta com tanta força que quase esperei ver a escada cuspir um humano no telhado. A porta se fecha novamente, e passos se movem com pressa pelo piso. Não me dou o trabalho de erguer o olhar. Seja quem for, é muito provável que nem me perceba em cima do parapeito à esquerda da porta. A pessoa saiu com tanta pressa que não será culpa minha se presumir que está sozinha. Suspiro baixinho, fecho os olhos e encosto a cabeça na parede de estuque atrás de mim, xingando o universo por ter me tirado o momento introspectivo de paz. O mínimo que o universo pode fazer é garantir que seja uma mulher, não um homem. Se vou ter companhia, prefiro uma mulher. Sou durona para meu tamanho, e provavelmente consigo me virar sozinha na maior parte das situações, mas estou relaxada demais para ficar sozinha com um desconhecido no telhado, tarde da noite. Temo pela minha segurança e sinto que preciso ir embora, mas não queria ir. Como disse... estou relaxada. Finalmente permito que meus olhos percorram o trajeto até a silhueta inclinada por cima do parapeito. Infelizmente, tenho certeza de que é um homem. Mesmo naquela posição, noto que é alto. Ombros largos criam grande contraste em relação à maneira frágil como ele apoia a própria cabeça nas mãos. Mal percebo o pesado subir e descer de suas costas enquanto ele inspira fundo, para exalar com força em seguida. Parece à beira de um colapso. Considero dizer alguma coisa, ou pigarrear, para alertá-lo de que tem companhia, mas, antes que eu o faça, ele gira e chuta uma das cadeiras do terraço. Eu me retraio quando o móvel arranha o telhado, mas, como ele não imagina ter plateia, não para com um só chute. Ele atinge a cadeira repetidamente, sem parar. E, em vez de se render sob a força bruta daquele pé, a cadeira apenas se afasta cada vez mais. Aquela cadeira deve ser feita de polímero resistente à maresia. Certa vez, vi meu pai atropelar uma mesa de jardim feita desse polímero: a coisa praticamente riu. O para-choque amassou, mas a mesa nem arranhou. O cara parece notar que não é páreo para um material de tamanha qualidade porque finalmente desiste de chutar. Fica ali, perto do móvel, os punhos cerrados nas laterais do corpo. Para ser sincera, sinto um pouco de inveja. Ele desconta muito bem a raiva na mobília. É óbvio que teve um dia péssimo, assim como eu, mas enquanto guardo minha frustração até ela se manifestar de forma passivo-agressiva, ele encontra uma verdadeira válvula de escape. Minha válvula de escape costumava ser minha horta. Sempre que eu me estressava, era só ir até o quintal e arrancar toda erva daninha que encontrasse. Porém, desde que me mudei para Boston, há dois anos, não tenho mais horta. Nem terraço. Nem sequer ervas daninhas. Talvez eu devesse investir em uma cadeira de polímero resistente à maresia. Fico observando o rapaz mais um pouco, e me pergunto se ele não vai se mexer. Está simplesmente parado, encarando a cadeira. Não está mais de punhos cerrados. As mãos estão apoiadas nos quadris, e percebo que sua camisa não tem um caimento bom no bíceps. Tem um caimento ótimo no restante do corpo, mas seus braços são enormes. Ele começa a remexer nos bolsos até encontrar o que está procurando, e — na provável tentativa de administrar ainda mais a raiva — acende um baseado. Tenho 23 anos, já terminei a faculdade e usei a mesma droga recreativa uma ou duas vezes. Não vou julgar o rapaz por achar que precisa fumar sozinho. Mas é esta a questão: ele não está sozinho. Só não sabe disso ainda. Ele dá uma longa tragada no baseado e começa a se voltar para o parapeito. Percebe minha presença ao expirar. Para de andar no instante que nossos olhares se encontram. Sua expressão não é de susto nem de humor. Ele está a uns três metros de distância, mas a luz das estrelas é suficiente para que eu enxergue seus olhos observando meu corpo sem revelar um único pensamento. Esse cara sabe esconder o jogo; estreitando os olhos e comprimindo os lábios, ele parece a versão masculina da Mona Lisa. — Como você se chama? — pergunta ele. Sinto a voz no estômago. O que não é nada bom. As vozes deviam parar nos ouvidos, mas, às vezes — não é nada comum, na verdade —, uma voz penetra em meus ouvidos e reverbera por meu corpo. Ele tem uma dessas vozes. Grave, confiante e um pouco parecida com manteiga. Como não respondo, ele leva o baseado à boca e dá mais uma tragada. — Lily — revelo, por fim. Odeio minha voz. Pareceu baixa demais para chegar a seus ouvidos, ainda mais para reverberar dentro de seu corpo. O cara ergue um pouco o queixo e aponta a cabeça para mim. — Pode descer daí, por favor, Lily? Só quando ele pede isso percebo sua postura. Está em pé, corpo ereto, até mesmo rígido. Quase como se estivesse nervoso, achando que vou cair. Não vou. O parapeito tem no mínimo 30 centímetros de largura, e a maior parte de mim está no telhado. Seria muito fácil me segurar antes de cair, sem falar que o vento está a meu favor. Olho para minhas pernas e, depois, para ele. — Não, obrigada. Estou bem confortável aqui. Ele se vira um pouco, como se não conseguisse me olhar diretamente. — Por favor, desça. — Agora é mais uma ordem, apesar de ele ter dito por favor. — Tem sete cadeiras vazias aqui. — Por pouco não seis — corrijo, lembrando que ele quase assassinou uma delas. Ele não acha graça na resposta. Como não obedeço à ordem, ele dá dois passos em minha direção. — Você está a meros 7 centímetros da morte. E ela já me fez companhia por tempo demais hoje. — Ele gesticula novamente para que eu desça. — Está me deixando nervoso. Sem falar que isso corta meu barato. Reviro os olhos e passo as pernas por cima do parapeito. — Deus me livre desperdiçar um baseado. — Dou um pulo para descer e limpo as mãos na calça jeans. — Melhorou? — pergunto, enquanto me aproximo. O cara expira com força, como se tivesse prendido a respiração ao me ver em cima do parapeito. Passo por ele em direção ao lado do telhado com a melhor vista e, no meio-tempo, não deixo de perceber como ele é incrivelmente bonito. Não. Bonito é um insulto. O cara é lindo. Tem as mãos cuidadas, cheira a dinheiro e parece ser bem mais velho que eu. Seus olhos se enrugam ao me seguir, e seus lábios parecem em bico, mesmo quando relaxados. Quando chego ao lado do prédio com vista para a rua, eu me inclino e fico olhando os carros lá embaixo, tentando não demonstrar minha admiração. Só pelo corte de cabelo já dá para perceber que esse é o tipo de homem que impressiona facilmente, e eu me recuso a alimentar seu ego. Não que tenha feito alguma coisa para me convencer de que é metido. Porém, está vestindo uma camisa casual da Burberry, e acho que nunca estive no radar de alguém com dinheiro para, casualmente, comprar uma dessas. Escuto passos se aproximando atrás de mim, e ele se inclina na grade a meu lado. De soslaio, eu o observo dar uma tragada no baseado. Após terminar, ele o oferece, mas recuso com um gesto. A última coisa de que preciso é me drogar perto desse cara. Sua voz já é praticamente uma droga. Meio que quero ouvi-la de novo, então pergunto: — Então, o que aquela cadeira fez para te deixar tão zangado? Ele olha para mim. Quero dizer, realmente me olha. Seus olhos encontram os meus, e ele me encara com firmeza, como se todos os meus segredos estivessem bem no rosto. Jamais vi olhos tão escuros. Talvez eu até tenha visto, porém parecem mais escuros quando associados a uma presença tão intimidante. Ele não me responde, mas minha curiosidade não é facilmente saciada. Se ele me obrigou a descer de um parapeito muito confortável e tranquilo, espero que ele me entretenha com respostas para minhas perguntas indiscretas. — Foi uma mulher? — pergunto. — Ela partiu seu coração? Ele ri um pouco. — Quem me dera se meus problemas fossem tão triviais quanto assuntos do coração. — Ele se encosta na parede e se vira para mim. — Você mora em que andar? — Lambe os dedos e aperta a extremidade do baseado antes de guardá-lo no bolso. — Nunca te encontrei. — É porque não moro aqui. — Aponto para meu apartamento. — Está vendo aquele prédio da seguradora? Ele semicerra as pálpebras enquanto olha na direção indicada. — Ahã. — Moro no prédio ao lado. É baixo demais para ver daqui. São só três andares. Ele se volta para mim, apoiando o cotovelo no parapeito. — Se mora ali, por que está aqui? É o apartamento de seu namorado ou algo assim? Por algum motivo, seu comentário faz com que me sinta fácil. Foi óbvio demais... uma cantada amadora. Pela aparência, sei que é mais habilidoso. Então fico com a impressão de que ele deixa as cantadas mais difíceis somente para as mulheres ‘merecedoras’. — Seu telhado é legal — respondo. Ele ergue a sobrancelha, esperando que eu explique melhor. — Eu queria tomar ar fresco. Um lugar para pensar. Abri o Google Earth e encontrei o prédio com um terraço decente mais próximo. Ele me olha sorrindo. — Pelo menos você é econômica — comenta. — Essa é uma boa qualidade. Pelo menos? Assinto, porque sou mesmo econômica. E essa é mesmo uma boa qualidade. — Por que estava precisando de ar fresco? — pergunta ele. Porque enterrei meu pai hoje, fiz um discurso fúnebre epicamente desastroso e agora sinto como se não conseguisse respirar. Eu me viro para a frente de novo, expiro lentamente. — A gente pode ficar um pouco em silêncio? Ele parece aliviado com o pedido. Inclina-se por cima do parapeito e deixa o braço se balançar enquanto olha a rua. Ele fica assim por um instante, e eu o encaro durante todo o tempo. Provavelmente sabe que o estou observando, mas parece não se importar. — Um cara caiu daqui no mês passado — revela ele. Eu até teria me irritado por ele ter desrespeitado meu pedido de silêncio, mas fico um pouco intrigada. — Foi acidente? Ele dá de ombros. — Ninguém sabe. Aconteceu no fim da tarde. A esposa contou que preparava o jantar quando o marido subiu para tirar fotos do pôr do sol. Ele era fotógrafo. Acham que estava se inclinando por cima do parapeito para tirar uma foto do horizonte, e acabou escorregando. Olho por cima do parapeito, me perguntando como alguém se coloca em uma situação com risco real de acidente, mas então me lembro de que estava sentada no parapeito do outro lado do teto há apenas alguns minutos. — Quando minha irmã me contou o que aconteceu, fiquei pensando se ele tinha conseguido a foto ou não. Torci para que a câmera não tivesse caído também, porque teria sido o maior desperdício, sabe? Morrer por causa do amor pela fotografia, mas sem conseguir a foto que custou sua vida. O pensamento me faz rir, mas não sei se devia achar graça. — Você sempre diz exatamente o que pensa? Ele dá de ombros. — Para a maioria das pessoas, não. Isso aumenta meu sorriso. Fico feliz em saber que, mesmo sem me conhecer, por algum motivo ele não me considera a maioria das pessoas. Ele apoia as costas no parapeito e cruza os braços. — Você nasceu aqui? Balanço a cabeça. — Não. Eu me mudei do Maine depois da formatura. Ele enruga o nariz, o que é meio sensual. Ver esse homem — usando uma camisa da Burberry e com um corte de cabelo de duzentos dólares — fazendo careta. — Então está no purgatório de Boston, é? Deve ser péssimo. — Como assim? — pergunto. Ele retorce o canto da boca. — Os turistas a tratam como nativa, enquanto os nativos a tratam como uma turista. Rio. — Uau! Que descrição mais precisa. — Estou aqui há dois meses. Nem cheguei ao purgatório ainda, então está se saindo melhor que eu. — Por que veio a Boston? — Minha residência. E minha irmã mora aqui. — Ele bate o pé. — Bem aqui embaixo, na verdade. Casou com um especialista em tecnologia daqui de Boston, e eles compraram o último andar. Olho para baixo. — O último andar inteiro? Ele confirma com a cabeça. — O filho da mãe é um sortudo que trabalha de casa. Nem precisa tirar o pijama e ganha mais de sete dígitos por ano. É mesmo um filho da mãe sortudo. — Que tipo de residência? Você é médico? Ele assente. — Neurocirurgião. Falta menos de um ano para terminar a residência, depois disso é oficial. Estiloso, eloquente e inteligente. E fuma maconha. Se fosse uma questão do vestibular, eu perguntaria qual alternativa não combina com as outras. — E médicos deviam fumar maconha? Ele abre um sorriso irônico. — Provavelmente não. Mas, se a gente não se desse esse luxo de vez em quando, juro que o número de médicos pulando desses parapeitos seria bem maior. Ele está virado para a frente de novo, apoiando o queixo nos braços. Está de olhos fechados, como se aproveitasse o vento no rosto. Assim, não parece tão intimidante. — Quer saber de algo que só quem mora em Boston sabe? — Claro — responde ele, voltando a atenção para mim. Aponto para o leste. — Está vendo aquele prédio? Com o teto verde? Ele assente. — Há um prédio atrás dele, na rua Melcher. Tem uma casa em cima do prédio. Tipo, uma casa mesmo, construída bem no teto. Não dá para ver da rua, e o prédio é tão alto que poucas pessoas sabem disso. Ele fica impressionado. — Sério? Confirmo com a cabeça. — Vi quando estava procurando no Google Earth, então pesquisei o local. Pelo visto concederam uma licença para a construção em 1982. Deve ser muito legal, não acha? Morar em uma casa no topo de um prédio. — O telhado seria todo seu — argumenta ele. Eu não tinha pensado nisso. Se eu fosse dona do telhado, poderia ter hortas. Eu teria uma válvula de escape. — Quem mora lá? — pergunta ele. — Ninguém sabe. É um dos grandes mistérios de Boston. Ele ri e depois me olha com curiosidade. — Qual seria outro grande mistério de Boston? — Seu nome. Assim que digo isso, dou um tapa na própria testa. Soou como uma cantada muito brega, e tudo o que posso fazer é rir de mim mesma. Ele sorri. — É Ryle — revela ele. — Ryle Kincaid. Suspiro, me encolhendo. — Que nome incrível. — Por que isso a deixou triste? — Porque eu faria de tudo para ter um nome legal. — Não gosta de Lily? Inclino a cabeça e ergo a sobrancelha. — Meu sobrenome é... Bloom, florescer em inglês. Ele fica em silêncio. Sinto que tenta não demonstrar piedade. — Eu sei. É péssimo. É o nome de uma menina de 2 anos, não de uma mulher de 23. — Uma menina de 2 anos sempre vai ter o mesmo nome, independentemente da idade. Nós não nos livramos do nome quando envelhecemos, Lily Bloom. — Que pena — rebato. — Mas o pior é que adoro jardinagem. Amo flores. Plantas. Cultivar coisas. É minha paixão. Sempre foi meu sonho abrir uma floricultura, mas tenho medo de que as pessoas não julguem uma vontade autêntica. Pensem que só estou tentando me aproveitar de meu nome, que ser uma florista não é o trabalho de meus sonhos. — Pode ser — comenta ele. — Mas por que isso importa? — Acho que não importa. — Noto que estou sussurrando. — Lily Bloom. — Eu o vejo abrir um sorriso. — É um ótimo nome para uma floricultura. Mas tenho mestrado em administração. Seria dar um passo atrás, não acha? Trabalho para a maior empresa de marketing em Boston. — Ser dona do próprio negócio não é dar um passo atrás — argumenta ele. Ergo a sobrancelha. — A não ser que dê errado. Ele assente, concordando. — A não ser que dê errado — concorda. — E qual seu nome do meio, Lily Bloom? Resmungo, e ele se anima com isso. — Quer dizer que é ainda pior? Apoio a cabeça nas mãos e faço que sim. — Rose? Balanço a cabeça. — Violet? — Quem me dera. — Eu me contraio e murmuro. — Blossom. Desabrochar em inglês. Há um momento de silêncio. — Caramba! — exclama ele, baixinho. — Pois é. Blossom era o sobrenome de solteira de minha mãe, e meus pais acharam que os sobrenomes sinônimos eram um sinal do destino. Então claro que, quando nasci, quiseram me dar um nome de flor. — Seus pais devem ser uns babacas. Um deles é. Era. — Meu pai morreu esta semana. Ele olha para mim. — Ah, tá. Não vou cair nessa. — Estou falando sério. Por isso vim até aqui hoje. Acho que eu estava precisando chorar um pouco. Ele fica me encarando por um instante, desconfiado, para ter certeza de que não o estou enganando. Mas não se desculpa pela gafe. Em vez disso, os olhos ficam um pouco mais curiosos, como se ele estivesse realmente intrigado. — Vocês eram próximos? Que pergunta difícil. Apoio o queixo nos braços e volto a olhar a rua. — Não sei — respondo, dando de ombros. — Como filha, eu o amava. Mas como ser humano, eu o odiava. Sinto que ele continua me observando, depois diz: — Gosto disso. De sua sinceridade. Ele gosta de minha sinceridade. Devo estar corando. Ficamos em silêncio por mais um tempo, até que ele pergunta: — Você às vezes deseja que as pessoas fossem mais transparentes? — Como assim? Ele passa o polegar em um pedaço de estuque descascado até soltá-lo. Dá um peteleco, jogando-o por cima do parapeito. — Sinto que todo mundo finge ser quem é, que, no fundo, somos todos igualmente ferrados. Alguns apenas escondem isso melhor que os outros. Ou ele está ficando meio chapado, ou é muito introspectivo. Seja como for, acho bom. Minhas conversas preferidas são as sem nenhuma resposta real. — Não acho um pouco de reserva ruim — avalia Lily. — Nem sempre as verdades nuas e cruas são bonitas. Ele me encara por um instante. — Verdades nuas e cruas — repete ele. — Gostei disso. Ele se vira e vai até o meio do telhado. Ajeita o encosto de uma espreguiçadeira atrás de mim e depois se acomoda ali. É reclinável, então ele põe as mãos atrás da cabeça e observa o céu. Vou para a do lado e me ajeito até ficar na mesma posição. — Me conte uma verdade nua e crua, Lily. — Sobre o quê? Ele dá de ombros. — Não sei. Algo de que você não se orgulha. Algo que me faça sentir menos ferrado. Ele encara o céu, esperando minha resposta. Meus olhos seguem a linha de seu maxilar, a curva das bochechas, o contorno dos lábios. Suas sobrancelhas estão unidas, contemplativas. Não sei o motivo, mas ele parece precisar de uma conversa. Penso na pergunta e tento encontrar uma resposta sincera. Quando consigo, desvio o olhar e volto a encarar o céu. — Meu pai era violento. Não comigo... com minha mãe. Ficava tão alterado quando brigavam que, às vezes, até batia nela. Quando isso acontecia, ele passava uma ou duas semanas tentando recompensá-la pelo que acontecera; comprava flores ou nos levava para jantar fora. Às vezes, ele comprava alguma coisa para mim porque sabia como eu odiava essas brigas. Quando eu era criança, ansiava por elas, porque sabia que, se ele batesse em minha mãe, as duas semanas seguintes seriam ótimas. — Paro. Acho que nunca admiti isso nem para mim mesma. — Claro que, se fosse possível, eu nunca permitiria que a machucasse. Mas a violência era inevitável no casamento dos dois e se tornou nosso padrão. Quando fiquei mais velha, percebi que não fazer nada também me tornava culpada. Passei boa parte da vida o odiando por ser uma pessoa tão ruim, mas não sei se sou melhor. Talvez nós dois sejamos pessoas ruins. Ryle olha para mim, pensativo. — Lily — diz ele, enfaticamente. — Não existe isso de pessoas ruins. Todos nós somos humanos e, às vezes, fazemos coisas ruins. Abro a boca para responder, mas suas palavras me deixam em silêncio. Todos nós somos humanos e, às vezes, fazemos coisas ruins. Acho que isso é verdade, de certa maneira. Ninguém é exclusivamente ruim ou exclusivamente bom. Algumas pessoas só precisam se esforçar mais para suprimir o lado ruim. — Sua vez — digo a ele. Com base em sua reação, acho que não quer participar da própria brincadeira. Ele suspira fundo e passa a mão no cabelo. Abre a boca para falar, mas depois a fecha de novo. Fica pensando por um instante, finalmente diz: — Vi um garotinho morrer esta noite. — A voz sai abatida. — Só tinha 5 anos. Ele e o irmão mais novo encontraram uma arma no quarto dos pais. Enquanto o mais novo a segurava, o revólver disparou por acidente. Meu estômago se revira. Acho que isso já é verdade demais para mim. — Quando ele chegou à mesa de cirurgia, não dava para fazer mais nada. Todo mundo ao redor, as enfermeiras, os outros médicos... todos sentiram muita pena da família. “Coitados dos pais”, disseram. Mas, quando fui até a sala de espera dar a notícia aos dois, não senti um pingo de pena. Eu queria que sofressem. Queria que sentissem o peso de sua ignorância ao deixar uma arma carregada ao alcance de crianças inocentes. Queria que entendessem que, além de perder um filho, tinham arruinado a vida do que puxou o gatilho. Meu Deus. Eu não estava preparada para algo tão pesado. Nem consigo imaginar como uma família supera uma coisa assim. — Coitado do irmão do garoto — comento. — Não consigo imaginar como isso vai afetá-lo... testemunhar algo desse nível. Ryle dá um peteleco em alguma coisa na calça jeans. — É algo que vai destruir sua vida, é isso que vai acontecer. Eu me viro para ele, ficando de lado e apoiando a cabeça na mão. — É difícil? Ver essas coisas todo dia? Ele balança um pouco a cabeça. — Devia ser muito mais difícil, porém, quanto mais tempo passo perto da morte, mais se torna parte da vida. Não sei como me sinto em relação a isso. — Ele faz contato visual de novo. — Me conte outra — pede. — Acho que a minha foi mais perturbadora que a sua. Discordo, mas confesso a coisa perturbadora que fiz há apenas doze horas. — Dois dias atrás, minha mãe me pediu para fazer o discurso fúnebre no enterro de meu pai. Eu disse que não ficaria à vontade, que não conseguiria encarar a multidão, que cairia em prantos, mas era mentira. Eu simplesmente não queria; acho que discursos fúnebres devem ser feitos por pessoas que respeitam o falecido. E eu não respeitava muito meu pai. — Você fez o discurso? Confirmo com a cabeça. — Fiz. Hoje de manhã. — Eu me sento e puxo as pernas para debaixo do corpo enquanto continuo, virada para ele: — Quer escutar? Ele sorri. — Com certeza. Ponho as mãos no colo e respiro fundo. — Eu não fazia ideia do que dizer. Cerca de uma hora antes do funeral, eu avisei minha mãe de que não queria discursar. Ela pediu algo simples, disse que deixaria meu pai feliz. Garantiu que eu só precisaria ir até o púlpito dizer cinco coisas boas sobre meu pai. Então... foi exatamente o que fiz. Ryle se apoia no cotovelo, parecendo ainda mais interessado. Ele nota, em meu olhar, que a situação vai piorar. — Ah, não, Lily. O que você fez? — Vou reencenar. Levanto e sigo até o outro lado da espreguiçadeira. Eu me empertigo e ajo como se estivesse olhando para a mesma plateia com que me deparei pela manhã. Pigarreio. — Oi. Meu nome é Lily Bloom, filha do falecido Andrew Bloom. Agradeço a presença de todos aqui hoje, em luto por essa perda. Eu queria aproveitar este momento para homenagear a vida de meu pai e compartilhar com vocês cinco coisas boas sobre ele. A primeira... Olho para Ryle e dou de ombros. — Foi isso. Ele se senta. — Como assim? Eu me sento na espreguiçadeira e depois me deito de novo. — Fiquei lá parada por dois minutos inteiros sem dizer mais nada. Eu não tinha nada de bom para dizer sobre aquele homem, então fiquei encarando todo mundo até minha mãe perceber minha intenção e pedir para meu tio intervir. Ryle inclina a cabeça. — Está brincando? Você fez o oposto de uma homenagem no funeral de seu pai? Assinto. — Não estou orgulhosa do que fiz. Acho que não. Quero dizer, se dependesse de mim, ele teria sido uma pessoa bem melhor, e eu falaria uma hora sobre ele. Ryle se deita de novo. — Uau! — exclama ele, balançando a cabeça. — Você meio que é minha heroína. Zombou de um falecido. — Que coisa de mau gosto. — Bem, a verdade nua e crua dói. Eu rio. — Sua vez. — Não vou conseguir superar isso — diz ele. — Tenho certeza de que consegue chegar perto. — Não sei, não. Reviro os olhos. — Consegue, sim. Não faça eu me sentir a pior pessoa aqui. Me conte seu pensamento mais recente, um que a maioria das pessoas não diria em voz alta. Ele põe as mãos atrás da cabeça e me encara nos olhos. — Quero te comer. Fico boquiaberta. Depois me recomponho. Acho que estou sem palavras. Ele me olha com inocência. — Você pediu meu pensamento mais recente, então contei. Você é linda. Eu sou homem. Se você gostasse de sexo casual, eu te levaria para meu quarto lá embaixo e te comeria. Nem consigo olhar para ele. Seu comentário me faz sentir várias coisas ao mesmo tempo. — Bem, eu não gosto de sexo casual. — Imaginei — diz. — Sua vez. Ele está tão tranquilo, nem parece que acabou de me deixar sem palavras. — Preciso de um instante para me recompor depois dessa — explico, rindo. Tento pensar em algo que vá deixá-lo um pouco chocado, mas não consigo esquecer o que ele acabou de dizer. Em voz alta. Talvez seja porque é neurocirurgião; jamais imaginei alguém tão instruído falando algo vulgar de forma aleatória. Eu me recomponho... um pouco... e depois digo: — Tá. Já que estamos nesse assunto... O primeiro cara com quem transei era um mendigo. Ele se anima e se vira para mim. — Ah, preciso saber mais sobre essa história. Estico o braço e apoio a cabeça ali. — Cresci no Maine. A gente morava em um bairro bem razoável, mas a rua de trás não estava em condições tão boas. Nosso quintal era colado a uma casa condenada, adjacente a dois terrenos abandonados. Fiz amizade com um cara chamado Atlas, que dormia no lugar. Ninguém sabia que ele morava ali, só eu. Eu lhe levava comida, roupas, coisas. Até meu pai descobrir. — E o que ele fez? Contraio o maxilar. Não sei porque mencionei isso, já que me obrigo a não pensar nesse assunto todos os dias. — Bateu no cara. — Não quero mais ser nua e crua em relação ao assunto. — Sua vez. Ele me observa em silêncio por um instante, como se soubesse que a história não acaba assim, mas depois desvia o olhar. — Sinto repulsa só de pensar em casar — confessa ele. — Estou com quase 30 anos e não tenho a menor vontade de encontrar uma esposa. E principalmente não quero filhos. A única coisa que quero na vida é sucesso. Muito. Mas, se eu admitir isso em voz alta para alguém, vai parecer arrogância. — Sucesso profissional? Ou status social? — As duas coisas. Qualquer pessoa pode ter filhos. Qualquer pessoa pode casar. Mas nem todo mundo pode ser um neurocirurgião. Tenho muito orgulho disso. E não quero ser só um ótimo neurocirurgião. Quero ser o melhor em minha área. — Você tem razão. Fica parecendo arrogância mesmo. Ele sorri. — Minha mãe acha que estou desperdiçando minha vida no trabalho. — Você é neurocirurgião, e sua mãe está desapontada? — Rio. — Meu Deus, que loucura! Será que os pais jamais ficam satisfeitos com os filhos? Nunca somos bons o bastante? Ele balança a cabeça. — Meus filhos não seriam. Poucas pessoas são tão determinadas como eu, e isso só desencadearia seu fracasso. Por isso jamais vou ter filhos. — Na verdade, acho algo digno, Ryle. Muitas pessoas se recusam a admitir serem egoístas demais para ter filhos. Ele balança a cabeça. — Ah, sou egoísta demais para ter filhos. E com certeza sou egoísta demais para me relacionar com alguém. — Então como evita isso? Simplesmente não sai com ninguém? Ele me olha e sorri. — Quando tenho tempo, algumas garotas satisfazem minhas necessidades. Não estou precisando de nada nesse departamento... se é o que está perguntando. Mas nunca me senti atraído pelo amor. Sempre foi mais um fardo que qualquer outra coisa. Eu queria pensar assim. Minha vida seria tão mais fácil... — Que inveja! Acredito que exista um homem perfeito para mim. E vivo me decepcionando, porque ninguém corresponde a meus padrões. Parece que estou em uma busca infinita pelo Santo Graal. — Devia testar meu método — aconselha ele. — Qual? — Sexo casual. Ele ergue a sobrancelha, como se fosse um convite. Ainda bem que está escuro, porque meu rosto parece em brasas. — Eu nunca conseguiria transar com alguém sabendo que não daria em nada — argumento, em voz alta, mas minhas palavras carecem de convicção. Ele inspira fundo e devagar, depois se deita. — Você não é esse tipo de garota, né? — pergunta ele, um pouco desapontado. Também me sinto assim. Nem sei se o rejeitaria se ele tentasse alguma coisa, mas acho que acabei de frustrar essa possibilidade. — Se você não transaria com alguém que acabou de conhecer... — Seus olhos encontram os meus de novo. — Até onde você iria? Não sei responder. Eu me deito porque a maneira como me olha me faz reavaliar essa história de sexo casual. Acho que não sou necessariamente contra. Apenas jamais recebi a proposta de alguém que me faria considerar a opção. Até agora. Acho. E será que ele está mesmo me propondo algo? Sempre fui péssima nesse lance de flerte. Ele estende o braço e segura a beirada de minha espreguiçadeira. Com um movimento rápido e pouquíssimo esforço, Ryle a puxa para perto até encostar na sua. Meu corpo inteiro enrijece. Ele está tão perto que sinto o calor de sua respiração cortando o ar frio. Se eu olhasse para ele, seu rosto estaria a meros centímetros do meu. Eu me recuso a encará-lo, porque ele provavelmente me beijaria, e não sei absolutamente nada sobre esse homem, além de algumas verdades nuas e cruas. Porém, isso não me pesa nem um pouco na consciência quando ele põe a mão em minha barriga. — Até onde você iria, Lily? Sua voz está indecente. Gostosa. Vai direto para a ponta de meus pés. — Não sei — sussurro. Seus dedos começam a se aproximar da costura de minha camisa. Passam a subir lentamente até desnudar parte de minha barriga. — Ah, meu Deus! — murmuro, sentindo o calor de sua mão subindo pelo estômago. Apesar de saber que não devo, eu me viro para ele, e a expressão em seus olhos me cativa de vez. Ele parece esperançoso, ávido e totalmente confiante. Afunda os dentes no lábio inferior enquanto sua mão começa a explorar minha camisa de forma provocante. Sei que ele sente meu coração batendo acelerado no peito. Droga, deve até escutá-lo. — Fui longe demais? — pergunta ele. Não sei de onde está vindo esse meu lado, mas balanço a cabeça e digo: — De jeito algum. Com um sorriso, seus dedos roçam a parte de baixo de meu sutiã, fluindo levemente por minha pele, que está toda arrepiada. Assim que fecho as pálpebras, um som penetrante rasga o ar. Sua mão enrijece quando nós dois percebemos que é um celular. O dele. Ele encosta a testa em meu ombro. — Droga! Franzo o cenho quando sua mão abandona minha pele. Ele remexe no bolso procurando o celular, se levanta e se afasta alguns metros para atender a ligação. — Dr. Kincaid — diz ele. Escuta atentamente, agarrando a nuca. — E Roberts? Não estou de plantão. — Mais silêncio. — Ok, me dê dez minutos. Estou indo. Ele encerra a ligação e guarda o celular no bolso. Ao se virar para mim, parece um pouco desapontado. Aponta para a porta que leva à escada. — Eu preciso... Balanço a cabeça. — Tudo bem. Ele me analisa por um instante e, depois, ergue o dedo. — Não se mexa — ordena Ryle, pegando o celular mais uma vez. Ele se aproxima e o posiciona, como se estivesse prestes a tirar uma foto minha. Quase protesto, mas nem sei por quê. Estou totalmente vestida. Mas por algum motivo não me sinto assim. Ryle tira uma foto minha: deitada na espreguiçadeira, os braços relaxados acima da cabeça. Não faço ideia do que pretende fazer com aquilo, mas gosto do fato de que a tirou. Gosto de saber que sentiu vontade de lembrar como sou, por mais que imagine jamais voltar a me ver. Observa a foto na tela por alguns segundos e sorri. Eu me sinto meio tentada a tirar uma foto sua também, mas não sei se quero uma lembrança de alguém que nunca mais verei. Pensar nisso é um pouco deprimente. — Foi um prazer conhecê-la, Lily Bloom. Espero que você desafie as probabilidades e realmente conquiste seu sonho. Sorrio, triste e confusa em relação ao rapaz. Não sei se eu já havia conhecido alguém assim, com um estilo de vida e uma faixa de imposto de renda totalmente diferentes dos meus. Provavelmente nunca mais o farei. Porém, perceber que não somos tão diferentes assim é uma boa surpresa. Equívoco confirmado. Ele olha para os próprios pés por um instante, parado de um jeito bastante incerto. Como se estivesse dividido entre a vontade de dizer mais alguma coisa e a necessidade de partir. Ele me olha uma última vez... nesse momento, seu rosto não está impassível. Percebo o desapontamento na linha de sua boca antes de ele se virar e seguir na direção oposta. Abre a porta, e escuto seus passos esvaecerem enquanto ele desce a escada correndo. Estou sozinha no telhado de novo, mas, para minha surpresa, fico um pouco triste com isso. Capítulo Dois Lucy — minha colega de apartamento que adora se ouvir cantando — corre pela sala, pegando chaves, sapatos, óculos escuros. Estou sentada no sofá, abrindo caixas de sapato repletas de coisas antigas que eu trouxe de casa. Peguei tudo essa semana, quando voltei para o funeral de meu pai. — Vai trabalhar hoje? — pergunta Lucy. — Não. Estou de licença até segunda... luto. Ela para bruscamente. — Até segunda? — zomba ela. — Sua vaca sortuda. — Sim, Lucy. Foi a maior sorte meu pai morrer — ironizo, claro, mas me contraio ao perceber que na verdade não pareci tão sarcástica assim. — Você entendeu o que eu quis dizer — murmura ela, pegando a bolsa enquanto se equilibra em um pé e coloca o sapato no outro. — Não vou dormir em casa hoje. Vou ficar com Alex. Ela bate a porta ao sair. Aparentemente, temos muito em comum; mas, além do mesmo manequim, da mesma idade e de nomes com quatro letras, começados por L e terminados por Y, somos só duas meninas dividindo um apartamento. Por mim tudo bem. Além da cantoria incessante, ela é bem tolerável. É limpa e passa muito tempo fora. Duas das qualidades mais importantes para uma pessoa que mora com você. Estou destampando uma das caixas quando meu celular toca. Estendo o braço até o canto e o pego. Quando vejo que é minha mãe, afundo o rosto no sofá e finjo chorar na almofada. Levo o celular até o ouvido. — Alô? São três segundos de silêncio, depois: — Oi, Lily. Suspiro e me sento de novo. — Oi, mãe. Estou realmente surpresa por ela falar comigo. Só se passou um dia desde o funeral. Eu esperava ter notícias só daqui a 364 dias. — Como você está? — pergunto. Ela suspira dramaticamente. — Estou bem — responde. — Sua tia e seu tio voltaram para Nebraska hoje de manhã. Vai ser minha primeira noite sozinha desde que... — Você vai ficar bem, mãe — garanto, tentando passar confiança. Ela fica em silêncio por tempo demais, depois diz: — Lily. Só queria que você soubesse... não precisa sentir vergonha por ontem. Fico quieta. Eu não estava com vergonha. Nem um pouco. — Todo mundo congela de vez em quando. Eu não devia tê-la pressionado daquele jeito, ainda mais em um dia tão difícil. Devia ter pedido para seu tio fazer o discurso. Fecho os olhos. Lá vai ela de novo. Encobrindo o que não quer ver. Assumindo uma culpa que nem é sua. Ela se convenceu, claro, de que fiquei paralisada ontem, e por isso me recusei a falar. É óbvio. Penso seriamente em confessar que não foi um erro. Não congelei. Simplesmente não tinha nada de bom a dizer sobre o homem medíocre que ela escolheu para ser meu pai. Mas em parte me sinto culpada pelo que fiz — especialmente porque minha mãe não devia ter testemunhado aquilo —, então acabo aceitando sua deixa e entro no jogo. — Obrigada, mãe. Me desculpe por ter paralisado. — Tudo bem, Lily. Preciso ir, preciso ir à seguradora. Amanhã teremos a reunião sobre as apólices de seu pai. Me ligue, ok? — Ligo, sim — respondo. — Te amo, mãe. Encerro a ligação e jogo o celular do outro lado do sofá. Abro a caixa de sapatos no colo e retiro o conteúdo. Bem no topo, há um coraçãozinho oco de madeira. Passo os dedos por ele e me lembro da noite em que o ganhei. Assim que começo a assimilar a lembrança, afasto o objeto. A nostalgia é uma coisa curiosa. Separo algumas cartas antigas e recortes de jornal. Embaixo de tudo, encontro o que eu sabia estar nessas caixas. E, ao mesmo tempo, esperava que não estivesse. Meus Diários de Ellen. Passo as mãos por cima das capas. São três nessa caixa, mas, provavelmente, oito ou nove no total. Não li nenhum desde a última vez que escrevi algo. Quando era mais nova, eu me recusava a admitir a existência de meu diário: era muito clichê. Em vez disso, me convenci de que eu fazia algo legal porque, tecnicamente, não era um diário. Toda vez, eu escrevia para Ellen DeGeneres; comecei a assistir ao programa no dia em que estreou, em 2003, quando ainda era uma criança. Eu o sintonizava todo dia, depois da escola, e tinha certeza de que Ellen me amaria se me conhecesse. Escrevi cartas para ela regularmente até os 16 anos, mas na forma de diário. Claro que eu sabia que a última coisa que Ellen DeGeneres provavelmente ia querer eram os textos de uma garotinha qualquer. Felizmente, jamais enviei nenhum, mas gostava de escrever no diário como se este fosse destinado a ela, então continuei fazendo isso até parar de vez. Abro outra caixa de sapato e encontro mais cadernos. Eu os reviro até achar o de quando eu tinha 15 anos. E o abro, procurando o dia em que conheci Atlas. Antes disso não aconteceu muita coisa digna de nota em minha vida, mas de alguma maneira consegui encher seis diários antes de nosso relacionamento. Jurei que nunca mais leria essas coisas, mas com a morte de meu pai passei a pensar muito na infância. Talvez, lendo esses diários, encontre forças para perdoá-lo. Apesar de ter medo de acabar acumulando ainda mais ressentimento. Eu me deito no sofá e começo. Querida Ellen, Antes de contar o que aconteceu hoje, tenho uma ideia maravilhosa para um novo quadro do programa. Ele se chama Ellen em casa. Acho que muitas pessoas gostariam de te ver fora do trabalho. Sempre fico imaginando como você é em casa, quando está sozinha com Portia, sem nenhuma câmera por perto. Talvez os produtores possam dar uma câmera a ela, e de vez em quando ela flagraria você de surpresa e te filmaria fazendo coisas normais, tipo vendo TV, cozinhando, cuidando do jardim. Ela poderia filmar você por alguns segundos sem que percebesse e depois gritar “Ellen em casa!” e te assustar. Acho justo, porque você adora pegadinhas. Tá, agora que contei isso (queria contar há um tempo e sempre esquecia), vou falar sobre meu dia de ontem. Foi interessante. Provavelmente o dia mais interessante que já tive para contar, tirando o dia em que Abigail Ivory deu um tapa no Sr. Carson por ter olhado para seu decote. Lembra que um tempo atrás eu falei para você sobre a Sra. Burleson, que morava atrás da gente e morreu na noite daquela grande nevasca? Meu pai disse que ela devia tantos impostos que a filha não conseguiu ficar com a casa. Tenho certeza de que não se incomodou, porque a casa estava começando a cair aos pedaços. Provavelmente teria sido mais um fardo que outra coisa. A casa está vazia desde a morte da Sra. Burleson, e isso já tem uns dois anos. Sei que está vazia porque a janela de meu quarto tem vista para o quintal, e não me lembro de ver ninguém entrar ou sair dali. Até ontem à noite. Eu estava na cama, embaralhando cartas. Sei que parece estranho, mas é algo que costumo fazer. Nem sei jogar baralho. Mas, quando meus pais brigam, embaralhar cartas é algo que simplesmente me acalma às vezes, prende minha atenção. Enfim, estava escuro lá fora, então logo notei a luz. Não era muito forte, mas vinha da casa antiga. Parecia mais luz de velas que outra coisa, então fui até a varanda dos fundos pegar os binóculos de papai. Tentei ver o que estava acontecendo, mas não consegui identificar nada. Estava escuro demais. Então, depois de um tempo, a luz se apagou. Hoje de manhã, enquanto me arrumava para o colégio, vi alguma coisa se movendo atrás da casa. Eu me agachei na janela do quarto e notei uma pessoa saindo escondida pela porta dos fundos. Era um rapaz e tinha uma mochila. Olhou ao redor, como se quisesse ter certeza de que ninguém estava espiando, e depois passou entre nossa casa e a do vizinho, então seguiu e parou no ponto de ônibus. Nunca vi esse homem. Foi a primeira vez que andou em meu ônibus. Ele se sentou nos fundos, e eu, no meio, então não falei com ele. Mas, quando desceu do ônibus no ponto do colégio, vi ele entrar ali, então deve ser onde estuda. Não faço ideia de por que ele estava dormindo naquela casa. É provável que lá não tenha eletricidade nem água. Achei que talvez ele tivesse perdido uma aposta com alguém, mas hoje ele desceu do ônibus no mesmo ponto que eu. Seguiu pela rua como se fosse para outro lugar, mas fui correndo para meu quarto e fiquei olhando da janela. E, alguns minutos depois, eu o vi entrar escondido pelos fundos na casa vazia. Não sei se eu devia dizer alguma coisa para minha mãe. Odeio ser enxerida, porque isso não é de minha conta. Mas, se aquele menino não tem para onde ir, acho que minha mãe saberia como ajudar porque ela trabalha no colégio. Não sei. Talvez eu espere alguns dias antes de dizer alguma coisa, para ver se ele volta para casa. Talvez só precise de um tempinho longe dos pais. Algo que eu mesma gostaria, às vezes. Ok. Depois eu conto o que acontecer amanhã. Lily Querida Ellen, Quando vejo seu programa, avanço todo trecho em que você dança. Eu costumava ver o começo quando você dançava no meio da plateia, mas agora acho um pouco chato e prefiro só escutar você falar. Espero que não fique brava. Tá, descobri quem é o rapaz, e, sim, ele continua morando lá. Já se passaram dois dias, e eu ainda não contei pra ninguém. O nome dele é Atlas Corrigan, e está no último ano, mas é tudo o que sei. Perguntei a Katie quem era ele quando ela se sentou a meu lado no ônibus. Ela revirou os olhos e me contou o nome. Mas depois disse: “Eu não sei mais nada sobre ele, mas ele fede”. Ela enrugou o nariz como se estivesse enojada. Eu queria gritar com ela e dizer que não é culpa dele, que o menino não tem água em casa. Mas, em vez disso, só olhei para ele. Talvez eu tenha olhado demais, porque ele percebeu que eu o estava encarando. Quando cheguei em casa, fui cuidar da horta no quintal. Meus rabanetes estavam prontos para serem colhidos, então fiquei lá fora fazendo isso. Só sobrou isso na horta. Está começando a esfriar, então não tem muita coisa que eu possa plantar. Eu provavelmente poderia ter esperado mais alguns dias antes de tirá-los, mas também fui lá para fora porque estava sendo enxerida. Enquanto os puxava, percebi que alguns estavam faltando. Parecia que tinham acabado de desenterrá- los. Sei que não fui eu que os tirei, e meus pais nunca mexem na horta. Então pensei em Atlas, e muito provavelmente tinha sido ele. Eu não tinha me dado conta de que, se ele não tem acesso à água, também não devia ter comida. Entrei em casa e fiz dois sanduíches. Peguei dois refrigerantes na geladeira e um pacote de batatas fritas. Coloquei tudo numa bolsa térmica, fui até a casa abandonada e deixei a bolsa na varanda dos fundos, perto da porta. Eu não sabia se ele tinha me visto, então bati bem forte e depois voltei correndo para minha casa, seguindo direto para meu quarto. Quando cheguei na janela para ver se ele ia sair, a bolsa já tinha sumido. Então descobri que ele andava me observando. Agora estou um pouco nervosa por ele saber que eu sei de sua presença. Não sei o que dizer se ele tentar falar comigo amanhã. Lily Querida Ellen, Hoje vi sua entrevista com o candidato à presidência Barack Obama. Isso não te deixa nervosa? Entrevistar pessoas que podem governar o país algum dia? Não entendo muito de política, mas acho que eu não conseguiria ser engraçada sob tanta pressão. Cara. Muita coisa aconteceu com nós duas. Você acabou de entrevistar alguém que pode vir a se tornar nosso próximo presidente, e eu estou levando comida para um mendigo. De manhã, quando cheguei ao ponto de ônibus, Atlas já estava lá. No início éramos só nós dois, e, não vou mentir, foi constrangedor. Vi que o ônibus virava a esquina, e torci para que ele viesse mais rápido. Assim que o ônibus parou, Atlas se aproximou de mim e, sem erguer o olhar, disse: “Obrigado”. As portas do ônibus se abriram e ele me deixou entrar primeiro. Eu não disse “de nada” porque fiquei meio que chocada com minha reação. A voz me arrepiou, Ellen. A voz de algum garoto já causou isso em você? Ah, espere. Desculpe. A voz de alguma garota já causou isso em você? Ele não se sentou perto de mim nem nada do tipo no caminho até o colégio, mas na volta ele foi o último a subir no ônibus. Não tinha nenhum lugar vazio, mas, pela maneira como ele olhou para todo mundo no ônibus, eu percebi que não estava procurando um lugar para se sentar. Estava me procurando. Quando seus olhos encontraram os meus, olhei depressa para meu colo. Odeio não ser muito confiante com garotos. Talvez seja algo que eu supere quando finalmente completar 16 anos. Ele se sentou a meu lado e colocou a mochila entre as pernas. Então entendi o que Katie estava falando. Ele fedia um pouco, mas não o julguei por causa disso. Ele não disse nada a princípio, mas ficou remexendo em um buraco na calça jeans. Não era um buraco que deixava a calça mais estilosa. Dava para perceber que era um buraco de verdade, porque a calça era velha. Até parecia um pouco pequena para ele, porque seus tornozelos estavam aparecendo. Mas ele era magro o suficiente para que ficasse bem nas outras partes. — Você contou para alguém? — perguntou. Olhei para ele quando falou, e ele estava me encarando, parecendo preocupado. Foi a primeira vez que consegui olhar direito para ele. Seu cabelo era castanho-escuro, mas achei que, se ele o lavasse, talvez não ficasse tão escuro quanto estava naquele momento. Seus olhos eram claros, diferentemente do restante de seu corpo. Olhos azuis de verdade, parecido com os de um husky siberiano. Eu não devia comparar seus olhos aos de um cachorro, mas foi a primeira coisa que me passou pela cabeça quando os vi. Balancei a cabeça e olhei pela janela. Achei que ele ia se levantar e encontrar outro lugar para se sentar, afinal eu disse que não tinha contado a ninguém, mas ele não fez isso. O ônibus parou algumas vezes, e o fato de que ele ainda estava eli me deu um pouco de coragem, então falei, em um sussurro: — Por que não mora em casa com seus pais? Ele me encarou por alguns segundos, como se estivesse tentando decidir se podia confiar em mim ou não. Depois respondeu: — Porque eles não querem. Foi então que ele se levantou. Achei que eu tivesse deixado ele irritado, mas então percebi que tinha se levantado porque chegamos ao ponto. Peguei minhas coisas e desci do ônibus logo atrás. Ele nem tentou disfarçar para onde estava indo, como costuma fazer. Normalmente, ele segue pela rua e dá a volta no quarteirão para que eu não o veja passando pelo quintal. Mas hoje ele foi andando até meu quintal comigo. Quando chegamos aonde eu normalmente me viraria para entrar em casa e ele continuaria andando, nós dois paramos. Ele chutou a terra com o pé e olhou para minha casa atrás de mim. — Que horas seus pais chegam? — Umas 17h — respondi. Eram 15h45. Ele assentiu e parecia que ia dizer mais alguma coisa, mas não fez isso. Simplesmente balançou a cabeça mais uma vez e começou a seguir na direção daquela casa sem comida, eletricidade e água. Agora, Ellen, eu sei que o que fiz em seguida foi uma burrice, então nem precisa me dizer isso. Chamei ele e, depois que parou e se virou, falei: — Se você se apressar, pode tomar um banho antes que eles cheguem. Meu coração estava muito acelerado, porque eu sabia que estaria muito encrencada se meus pais chegassem em casa e encontrassem um mendigo no chuveiro. Provavelmente me matariam. Mas não consegui vê-lo ir embora para casa sem oferecer nada. Ele olhou novamente para o chão, e senti seu constrangimento como uma pontada na barriga. Ele nem balançou a cabeça. Simplesmente me acompanhou até em casa e não disse nada. Enquanto ele tomava uma ducha, eu estava em pânico. Fiquei olhando pela janela em busca do carro de meu pai ou de minha mãe, apesar de saber que demoraria uma hora para eles chegarem. Fiquei nervosa achando que um dos vizinhos poderia ter visto ele entrar aqui em casa, mas não me conheciam o suficiente para achar que era anormal receber uma visita. Eu tinha dado roupas limpas para Atlas, e sabia que não só ele precisava estar fora de nossa casa quando meus pais chegassem, mas precisava estar bem longe. Tenho certeza de que meu pai reconheceria as próprias roupas em um adolescente qualquer de nosso bairro. Enquanto olhava pela janela e conferia o relógio, comecei a encher uma mochila velha com várias coisas. Comida que não precisava de refrigeração, algumas camisetas de meu pai, uma calça jeans que provavelmente era dois tamanhos maior que o dele e um par de meias. Estava fechando a mochila quando ele apareceu do corredor. Eu tinha razão. Mesmo molhado, dava para perceber que seu cabelo era mais claro do que parecia antes. Isso deixou seus olhos ainda mais azuis. Ele deve ter feito a barba enquanto estava lá dentro, porque parecia mais novo que quando entrou no banheiro. Engoli em seco e olhei para a mochila, chocada ao ver como ele estava diferente. Fiquei com medo de que meus pensamentos estivessem estampados no rosto. Olhei pela janela mais uma vez e lhe entreguei a mochila. — Talvez seja melhor você sair pela porta dos fundos para ninguém te ver. Ele pegou a mochila e me encarou por um minuto. — Qual seu nome? — perguntou, colocando a mochila no ombro. — Lily. Ele sorriu. Foi a primeira vez que sorriu para mim, e tive um pensamento péssimo e superficial. Eu me perguntei como alguém com um sorriso tão lindo poderia ter pais tão ruins. Fiquei com raiva de mim por ter pensado aquilo, porque é claro que os pais deveriam amar os filhos fossem eles bonitos ou feios, magros ou gordos, inteligentes ou burros. Mas às vezes não dá para controlar a própria mente. É preciso treiná-la para nunca mais pensar a mesma coisa. Ele estendeu a mão e disse: — Meu nome é Atlas. — Eu sei — respondi, sem apertar sua mão. Não sei por que não fiz isso. Não foi porque eu estava com medo de encostar nele. Quer dizer, eu estava com medo de encostar nele. Mas não porque eu me achava melhor que ele. Ele me deixava muito nervosa, só isso. Ele abaixou a mão, balançou a cabeça e depois disse: — Acho melhor eu ir, então. Dei um passo para o lado para que ele pudesse passar. Atlas apontou para a cozinha, perguntando silenciosamente se a porta dos fundos ficava naquela direção. Assenti e o acompanhei pelo corredor. Quando ele chegou à porta dos fundos, eu o vi parar por um segundo ao ver meu quarto. De repente, fiquei com vergonha por ele estar vendo meu quarto. Ninguém nunca vê meu quarto, então nunca achei que precisava deixá-lo com uma aparência mais madura. A coberta e a cortina, ambas cor-de- rosa, são as mesmas desde que eu tinha 12 anos. Pela primeira vez na vida, tive vontade de arrancar meu pôster de Adam Brody. Atlas não pareceu se importar com a decoração do quarto. Ele olhou fixo para minha janela — a que dá para o quintal — e depois me olhou de novo. Antes de sair de minha casa, disse: — Obrigado por não ser detrativa, Lily. E depois foi embora. Claro que eu já ouvi essa palavra, mas foi estranho ouvir um adolescente dizer isso. O mais estranho é como tudo em Atlas me parece muito contraditório. Como um rapaz que é nitidamente modesto, educado e usa palavras como detrativa não tem onde morar? Como um adolescente vira um mendigo? Preciso descobrir, Ellen. Vou descobrir o que aconteceu com ele. Espere só pra ver. Lily Estou prestes a ler outra carta quando meu celular toca. Engatinho no sofá para pegá-lo, e não fico nem um pouco surpresa ao ver o número de minha mãe. Sozinha depois da morte de meu pai, provavelmente ela vai me ligar o dobro de vezes que ligava antes. — Alô? — O que acha de eu me mudar para Boston? — pergunta ela, bruscamente. Agarro a almofada ao lado e enfio o rosto ali, abafando meu grito. — Hum. Nossa! — exclamo. — Sério? Ela fica em silêncio, depois acrescenta: — Acabei de pensar nisso. Amanhã a gente conversa. Estou quase atrasada para a reunião. — Tá. Tchau. E, como num passe de mágica, sinto vontade de sair de Massachusetts. Ela não pode se mudar para cá. Não conhece ninguém aqui. Iria pedir atenção todos os dias. Amo minha mãe, não me entendam mal, mas eu me mudei para Boston em busca de independência, e eu me sentiria menos livre com ela na cidade. Meu pai foi diagnosticado com câncer há três anos, quando eu ainda cursava a faculdade. Se Ryle Kincaid estivesse ali, eu lhe contaria a verdade nua e crua de que me senti um pouco aliviada quando Andrew Bloom ficou doente demais para machucar alguém fisicamente. Isso mudou de vez a dinâmica do relacionamento de meus pais, e não senti mais a obrigação de ficar em Plethora para garantir o bem-estar de mamãe. Agora que papai faleceu e que não preciso mais me preocupar com minha mãe, eu ansiava por abrir as asas e voar, por assim dizer. E agora ela vai se mudar para Boston? Sinto como se tivessem cortado minhas asas. Cadê minha cadeira de polímero resistente à maresia quando preciso de uma?! Estou realmente estressada e não faço ideia do que vou fazer caso ela se mude. Não tenho jardim nem quintal, nem terraço, nem ervas daninhas. Preciso achar outra válvula de escape. Decido arrumar as coisas em casa. Guardo no armário do quarto todas as velhas caixas cheias de diários e bilhetes. Depois, organizo meu armário inteiro. Minhas joias, meus sapatos, minhas roupas... Ela não pode se mudar para Boston. Capítulo Três Seis meses depois — Ah. É tudo o que ela diz. Minha mãe se vira e observa o prédio, passando o dedo no peitoril da janela a seu lado. Ela limpa a camada de pó entre os dedos. — É... — Precisa de muito trabalho, eu sei — interrompo. Aponto para as vitrines logo atrás. — Mas olhe só a fachada. Tem potencial. Ela observa as vitrines de cima a baixo, balançando a cabeça. Às vezes faz um barulho no fundo da garganta, quando ela concorda com um “hum”, mas os lábios permanecem fechados. O que significa que, na verdade, ela não concorda. E faz esse barulho. Duas vezes. Abaixo os braços, desistindo. — Acha que foi idiotice minha? Ela balança de leve a cabeça. — Depende do que acontecer, Lily — responde ela. O local costumava ser um restaurante e ainda está cheio de mesas e cadeiras velhas. Minha mãe vai até uma mesa próxima, puxa uma das cadeiras e senta. — Se as coisas derem certo e sua floricultura for um sucesso, as pessoas vão dizer que foi uma decisão de negócios corajosa, ousada e inteligente. Mas, se der errado e você perder toda a herança... — As pessoas vão dizer que foi uma decisão de negócios idiota. Ela dá de ombros. — É assim que as coisas são. Você se formou em administração, então sabe disso. — Ela olha lentamente ao redor, como se estivesse imaginando como vai ficar daqui a um mês. — Mas faça mesmo algo corajoso e ousado, Lily. Sorrio. Isso eu aceito. — Não acredito que comprei sem consultar você — comento, sentando à mesa. — Você é adulta. É seu direito — argumenta ela, mas noto um quê de desapontamento. Acho que está se sentindo ainda mais sozinha agora que preciso cada vez menos dela. Já se passaram seis meses desde a morte de meu pai, e apesar de ele não ter sido uma boa companhia, minha mãe deve achar estranho ficar sozinha. Ela arranjou um emprego em uma escola de ensino fundamental local, então acabou se mudando. Ela escolheu uma cidade pequena nos arredores de Boston. Comprou uma linda casa de dois quartos, com um quintal enorme, em uma rua sem saída. Sonho em construir uma horta ali, mas precisaria de cuidados diários. Meu limite é uma visita semanal. Às vezes duas. — O que vai fazer com todo esse lixo? — pergunta ela. Tem razão. Há muito lixo. Vou demorar uma eternidade para esvaziar o lugar. — Não faço ideia. Acho que tenho trabalho de sobra antes de ao menos pensar em decoração. — Quando é seu último dia na empresa de marketing? Sorrio. — Foi ontem. Ela suspira e, em seguida, balança a cabeça. — Ah, Lily. Espero mesmo que dê certo. Nós duas começamos a nos levantar, e a porta se abre. Tem algumas prateleiras na frente da porta, então inclino a cabeça para ver uma mulher entrar. Seus olhos dão uma rápida examinada no local até me encontrarem. — Oi — cumprimenta ela, acenando. Ela é bonita. Está bem vestida, mas de calça capri branca. No meio de todo esse pó, é um desastre anunciado. — Posso ajudá-la? Ela enfia a bolsa debaixo do braço e se aproxima de mim, estendendo a mão. — Meu nome é Allysa — apresenta-se. Aperto sua mão. — Lily. Ela aponta o polegar por cima do ombro. — Eu vi a placa de “estamos contratando” ali na frente. Olho por cima de seu ombro e ergo a sobrancelha. — É? Não coloquei nenhuma placa. Ela confirma com a cabeça e dá de ombros. — Mas parece velha — comenta ela. — Deve estar há um tempo. Eu estava caminhando por aqui e vi a placa. Fiquei curiosa, só isso. Gosto dela quase que de imediato. A voz é agradável, e o sorriso parece genuíno. A mão de minha mãe toca meu ombro. Ela se inclina e me beija a bochecha. — Preciso ir — diz ela. — O open house é hoje à noite. Eu me despeço e a observo partir, depois volto a atenção para Allysa. — Ainda não estou contratando — aviso. Gesticulo, mostrando o local. — Vou abrir uma floricultura, mas vai demorar uns dois meses, no mínimo. Eu não deveria julgá-la sem conhecer, mas ela não tem jeito de quem vai ficar satisfeita com um salário mínimo. Sua bolsa deve custar mais que minha loja. Seus olhos brilham. — Sério? Eu amo flores! — Ela gira, fazendo um círculo. — Este lugar tem muito potencial. De que cor você vai pintar? Cruzo os braços e agarro meu cotovelo. Balançando nos calcanhares, respondo: — Não sei ainda. Faz só uma hora que peguei as chaves, então ainda não fiz a planta do projeto. — Lily, não é? Assinto. — Não vou fingir que sou formada em design, mas é o que eu mais gosto no mundo. Se precisar de ajuda, eu faria de graça. Inclino a cabeça. — Você trabalharia de graça? Ela confirma com a cabeça. — Eu não estou mesmo precisando de um emprego, só vi a placa e pensei Ah, vou ver no que dá. Fico entediada às vezes. Adoraria ajudar no que você precisar. Limpar, decorar, escolher as cores das tintas. Sou a louca do Pinterest. — Alguma coisa atrás de mim chama sua atenção, e ela aponta. — Posso transformar aquela porta quebrada em algo incrível. Tudo isso, na verdade. Dá para aproveitar quase tudo, sabia? Olho ao redor, sabendo muito bem que não vou conseguir me virar sozinha. Provavelmente nem consigo erguer metade dessas coisas sem ajuda. E vou terminar contratando alguém mesmo. — Não vou te deixar trabalhar de graça. Mas posso pagar 10 dólares a hora se estiver falando sério. Ela começa a bater palmas e, se não estivesse de salto, acho que teria dado um pulinho. — Quando posso começar? Olho para a calça capri branca. — Pode ser amanhã? É melhor vir com uma roupa descartável. Ela gesticula, fazendo pouco caso, e põe a bolsa Hermès sobre a mesa empoeirada a seu lado. — Que nada — diz ela. — Meu marido está assistindo ao jogo do Bruins em um bar na rua. Se não se incomodar, posso ficar aqui e começar agora mesmo. Duas horas depois, tenho certeza de que conheci minha nova melhor amiga. E ela é mesmo a louca do Pinterest. Escrevemos “Guardar” e “Jogar Fora” em post-its e os colamos por toda loja. Ela também acredita em upcycling, então pensamos em ideias para pelo menos 75% das coisas abandonadas ali. Quanto ao resto, ela diz que o marido pode jogar fora quando tiver um tempinho. Depois de decidir o que vamos fazer com tudo, pego um caderno e uma caneta e nos sentamos a uma das mesas para anotar ideias de design. — Tá — começa ela, se recostando na cadeira. Quero rir porque sua calça capri está toda empoeirada, mas ela parece não se importar. — Você tem algum objetivo para este lugar? — pergunta, olhando ao redor. — Eu tenho um objetivo — digo. — Ter sucesso. Ela ri. — Não tenho dúvida de que você vai conseguir. Mas precisa de uma visão. Penso no que minha mãe disse: “Faça mesmo algo corajoso e ousado, Lily”. Sorrio e me empertigo na cadeira. — Corajoso e ousado — elaboro. — Quero que este lugar seja diferente. Quero correr riscos. Ela semicerra os olhos enquanto morde a ponta da caneta. — Mas você só vai vender flores — argumenta. — Como pode ser corajosa e ousada com flores? Olho ao redor e tento visualizar o que estou pensando. Nem eu sei direito o que é, mas estou inquieta, como se estivesse prestes a ter uma grande ideia. — De quais palavras você lembra quando pensa em flores? — pergunto. Ela dá de ombros. — Não sei. Acho que são meigas, talvez? São vivas, então eu penso em vida. E talvez em cor-de-rosa. E na primavera. — Meigas, vida, cor-de-rosa, primavera — repito. E depois acrescento: — Alyssa, você é genial! — Eu me levanto e começo a andar de um lado para o outro. — Vamos pegar tudo que as pessoas amam nas flores e fazer o oposto! Ela faz uma careta, indicando que não está me entendendo. — Tá — digo. — E se, em vez de mostrarmos o lado meigo das flores, a gente mostrasse o lado vilão? Em vez de tons cor-de-rosa, usássemos cores mais escuras, como roxo-escuro ou até mesmo preto? E, em vez de somente primavera e vida, também celebrássemos o inverno e a morte? Alyssa arregala os olhos. — Mas... e se alguém quiser flores cor-de-rosa? — Bem, aí claro que vamos fornecer o que a pessoa quiser. Mas também vamos oferecer algo que ela não sabe que quer. Ela coça a bochecha. — Então está pensando em flores pretas? Alyssa parece preocupada, e não a culpo. Está vendo apenas o lado mais sombrio da ideia. Eu me sento à mesa novamente, e tento fazer com que ela entenda. — Certa vez, alguém me disse que não existem pessoas ruins. Todos nós somos humanos e, às vezes, fazemos coisas ruins. Isso nunca me saiu da cabeça porque é mesmo verdade. Todos nós temos um pouco de bondade e de maldade. Em vez de pintar as paredes com uma cor meiga e péssima, vamos pintar de roxo- escuro com detalhes pretos. E, em vez de expor somente flores nos usuais tons pastel, dentro de tediosos vasos de cristal, para as pessoas pensarem na vida, vamos adotar um jeito mais provocador. Corajoso e ousado. Vamos expor flores mais escuras, envoltas em couro ou correntes prateadas. E, em vez de vasos de cristais, vamos colocar as flores em ônix preto ou... não sei... vasos de veludo roxo com tachas prateadas. São muitas possibilidades. — Eu me levanto de novo. — Tem uma floricultura em toda esquina para quem ama flores. Mas que floricultura foi feita para todas as pessoas que odeiam flores? Allysa balança a cabeça. — Nenhuma — sussurra ela. — Exatamente. Nenhuma. Nós ficamos nos encarando por um instante, e depois não consigo mais me segurar. Estou explodindo de entusiasmo e começo a rir feito uma criança empolgada. Allysa ri também, depois levanta da cadeira e me abraça. — Lily, é tão perturbador, é brilhante! — Eu sei! — Me sinto renovada. — Preciso de uma mesa de trabalho para me sentar e elaborar um projeto! Mas meu futuro escritório está cheio de engradados velhos para vegetais! Ela vai até os fundos da loja. — Bem, vamos tirá-los daqui e te comprar uma mesa! Entramos no escritório e começamos a separar os engradados, um a um, colocando-os no cômodo dos fundos. Subo na cadeira para deixar as pilhas mais altas, assim vamos ter mais espaço para nos movimentar. — Isto é perfeito para as vitrines que estou imaginando. Ela me entrega mais dois engradados e se afasta, e, quando estou na ponta dos pés, colocando-os bem no topo, a pilha começa a desmoronar. Tento encontrar algo em que me segurar para me equilibrar, mas os engradados me derrubam da cadeira. Assim que caio no chão, sinto meu pé virar para o lado errado. Logo depois, sinto a dor subindo rapidamente pela perna e descendo até os dedos do pé. Allysa entra depressa e precisa tirar dois engradados de cima de mim. — Lily! — chama ela. — Meu Deus, você está bem? Eu me ergo, sentando, mas nem tento me apoiar no tornozelo. Balanço a cabeça. — Meu tornozelo. Ela tira imediatamente meu sapato e puxa o celular do bolso. Começa a discar um número e depois olha para mim. — Sei que é uma pergunta idiota, mas por acaso você tem uma geladeira e gelo? Balanço a cabeça. — Foi o que imaginei — diz ela. Ela põe o celular no viva voz e o deixa no chão enquanto começa a enrolar minha calça. Eu me contraio, não tanto pela dor. É que não acredito ter feito uma idiotice tão grande. Se eu quebrei o tornozelo, estou ferrada. Acabei de gastar toda a herança em uma loja que só vou poder renovar daqui a meses. — Ooooi, Issa — cantarola uma voz no celular de Allysa. — Onde você está? O jogo acabou. Allysa pega o celular e o aproxima da boca. — Estou no trabalho. Olhe, preciso... O cara a interrompe e pergunta: — No trabalho? Querida, você nem tem emprego. Ela balança a cabeça e responde: — Marshall, escute. É uma emergência. Acho que minha chefe quebrou o tornozelo. Preciso que traga um pouco de gelo para... Ele a interrompe, rindo: — Sua chefe? Querida, você nem tem emprego — repete ele. Allysa revira os olhos. — Marshall, você está bêbado? — É dia do kigurumi — responde ele, embolando as palavras. — Você sabia disso quando nos deixou aqui, Issa. Cerveja grátis até... Ela resmunga. — Passe o celular para meu irmão. — Tá, tá — murmura Marshall. Escuto um barulho abafado vindo do aparelho, e depois: — Oi? Allysa fala rapidamente nosso endereço. — Venha para cá agora, por favor. E traga um saco de gelo. — Sim, senhora — diz ele. O irmão também parece um pouco bêbado. Escuto risadas, e, depois, um deles diz: “Ela está de mau humor”. E a ligação é encerrada. Allysa guarda o telefone no bolso. — Vou esperar lá fora, eles estão aqui na rua. Você vai ficar bem? Faço que sim e estendo o braço para a cadeira. — Talvez eu devesse tentar andar. Allysa empurra meus ombros até eu encostar de novo na parede. — Não se mexa. Espere eles chegarem, tá? Não faço ideia do que dois bêbados vão fazer por mim, mas concordo com a cabeça. Minha nova funcionária parece mais minha chefe... e está meio que me assustando. Fico esperando nos fundos por cerca de dez minutos quando finalmente escuto a porta da loja se abrir. — Que diabo é isso aqui? — pergunta uma voz masculina. — Por que está sozinha neste lugar esquisito? Escuto Allysa responder: — Ela está lá trás. Depois entra, seguido de um homem usando um kigurumi. Ele é alto, mais para magro, e tem uma beleza infantil, com olhos arregalados e sinceros, e cabelo escuro, bagunçado, do tipo que já passou da hora de cortar há muito tempo. Está segurando um saco de gelo. Já falei que está de kigurumi? Aqueles macacões de pelúcia? Estou falando de um homem de verdade, adulto, usando um macacão pijama do Bob Esponja. — Este é seu marido? — pergunto, erguendo a sobrancelha. Allysa revira os olhos. — Infelizmente — responde ela, olhando para ele. Outro homem (também de macacão) entra, mas estou prestando atenção em Allysa, que me explica por que ambos usam pijamas em uma tarde de quarta-feira. — Há um bar aqui na rua que dá cerveja grátis para todo mundo vestido em um kigurumi durante os jogos do Bruins. — Ela se aproxima de mim e gesticula para que os dois a acompanhem. — Lily caiu da cadeira e machucou o tornozelo — avisa ao outro homem. Ele passa por Marshall, e a primeira coisa que percebo são seus braços. Caramba. Conheço esses braços. São os braços de um neurocirurgião. Allysa é sua irmã? A irmã dona do último andar, com o marido que trabalha de pijama e ganha mais de sete dígitos por ano? Assim que meus olhos encontram os de Ryle, seu rosto é tomado por um sorriso. Não o vejo desde... Meu Deus, há quanto tempo foi aquilo? Seis meses? Não posso dizer que não pensei no cara nos últimos seis meses, porque pensei várias vezes. Mas jamais achei que o veria novamente. — Ryle, esta é Lily. Lily, este é meu irmão, Ryle — apresenta ela, gesticulando. — E este é meu marido, Marshall. Ryle se aproxima de mim e se ajoelha. — Lily — diz ele, olhando para mim e sorrindo. — É um prazer conhecê-la. Está na cara que se lembra de mim, dá para perceber pelo sorriso metido. Mas, assim como eu, está fingindo não me conhecer. Não sei se estou a fim de explicar como já nos conhecemos. Ryle toca meu tornozelo e o analisa. — Consegue mexer? Tento, mas uma dor aguda sobe rapidamente pela perna. Inspiro, entre dentes, e balanço a cabeça. — Ainda não. Está doendo. Ryle gesticula para Marshall. — Encontre alguma coisa para colocar o gelo. Allysa sai com Marshall. Depois que os dois vão embora, Ryle olha para mim e sorri. — Não vou cobrar nada por isso, mas só porque estou um pouco bêbado — avisa ele, dando uma piscadela. Inclino a cabeça. — Quando te conheci, você estava chapado. Agora está bêbado. Não sei se será um neurocirurgião muito competente. Ele ri. — É o que parece — comenta. — Mas garanto que raramente fico chapado, e hoje é meu primeiro dia de folga em mais de um mês, então precisava mesmo de uma cerveja. Ou cinco. Marshall volta com gelo enrolado em um pano velho. Ele o entrega para Ryle, que o encosta em meu tornozelo. — Vou precisar daquele kit de primeiros socorros de seu porta-malas — diz Ryle para Allysa. Ela assente e agarra a mão de Marshall, levando-o de novo para fora do cômodo. Ryle coloca a palma na sola de meu pé. — Pressione minha mão — pede ele. Faço força para baixo com o tornozelo. Dói, mas consigo mover sua mão. — Está quebrado? Ele mexe meu pé de um lado para outro e depois diz: — Acho que não. Temos de esperar alguns minutos para saber se conseguirá se apoiar nele. Assinto e o observo se acomodar a minha frente. Ele se senta com as pernas cruzadas e puxa meu pé para o colo. Dá uma olhada no cômodo e depois volta a atenção para mim. — Então, que lugar é esse aqui? Abro um sorriso exagerado. — Lily Bloom. Vai ser uma floricultura daqui a uns dois meses. Juro que seu rosto inteiro se iluminou com orgulho. — Não acredito! — exclama. — Você fez mesmo isso? Vai realmente abrir o próprio negócio? Confirmo com a cabeça. — Vou. Achei que seria melhor tentar enquanto ainda sou jovem o bastante para me recuperar do fracasso. Uma de suas mãos está segurando o gelo em meu tornozelo, mas a outra envolve meu pé descalço. Ele está roçando o dedão para a frente e para trás, como se tocar em mim não fosse nada de mais. Mas percebo bem mais sua mão em meu pé que a dor no tornozelo. — Estou ridículo, não é? — pergunta ele, olhando para o kigurumi vermelho. Dou de ombros. — Pelo menos o seu não é de nenhum personagem. Parece uma opção mais madura que Bob Esponja. Ele ri, e seu sorriso desaparece quando apoia a cabeça na porta ao lado. Ele me encara, feliz. — Você é ainda mais bonita de dia. É nesses momentos que odeio ter cabelo ruivo e pele clara. A vergonha aparece não só nas bochechas, mas em meu rosto inteiro, meus braços e meu pescoço ficam corados. Encosto a cabeça na parede e fico o encarando da mesma maneira como ele me encara. — Quer ouvir uma verdade nua e crua? Ele assente. — Desde aquela noite, sinto vontade de voltar a seu telhado. Mas fiquei com muito medo de te encontrar lá. Você meio que me deixa nervosa. Seus dedos param de acariciar meu pé. — Minha vez? Confirmo com a cabeça. Ele semicerra os olhos enquanto sua mão toca a sola de meu pé. Ele desce lentamente dos dedos do pé até meu calcanhar. — Ainda sinto muita vontade de te comer. Alguém bufa, e não sou eu. Ryle e eu olhamos para a porta, e Allysa está parada, de olhos arregalados. Ela está boquiaberta, apontando para Ryle. — Você acabou mesmo de... — Ela olha para mim. — Peço mil desculpas por ele, Lily. — Depois ela olha para Ryle com uma expressão hostil. — Você realmente acabou de dizer que quer comer minha chefe? Ai, meu Deus! Ryle morde o lábio inferior por um instante. Marshall surge atrás de Allysa e pergunta: — O que está acontecendo? Allysa olha para Marshall e aponta para Ryle de novo. — Ele acabou de dizer que quer comer Lily! Marshall olha de Ryle para mim. Não sei se quero rir ou me esconder embaixo da mesa. — Disse isso mesmo? — questiona ele, olhando para Ryle, que dá de ombros. — Parece que sim — diz ele. Allysa apoia a cabeça nas mãos. — Meu Deus! — diz ela, olhando para mim. — Ele está bêbado. Os dois estão bêbados. Por favor, não me julgue só porque meu irmão é um babaca. Sorrio e gesticulo para indicar que não tem problema. — Tudo bem, Allysa. Muitas pessoas querem me comer. — Olho de novo para Ryle, que continua acariciando meu pé, distraído. — Pelo menos seu irmão fala o que pensa. Poucas pessoas têm coragem de revelar o que estão pensando. Ryle dá uma piscadela para mim e depois tira meu tornozelo do colo com cuidado. — Vamos ver se consegue pisar — encoraja ele. Ele e Marshall me ajudam a levantar. Ryle aponta para uma mesa encostada na parede, a alguns metros de distância. — Vamos tentar ir até a mesa para que eu possa enfaixar esse tornozelo. Seu braço envolve minha cintura, e ele está segurando meu braço com força para me impedir de cair. Marshall está mais ou menos parado a meu lado, só para me dar apoio. Eu pouso um pouco o tornozelo e sinto dor, mas não é forte. Consigo pular até a mesa com o auxílio precioso de Ryle. Ele me ajuda a subir e me sentar no tampo, até eu me encostar na parede com a perna estendida à frente. — Bem, a boa notícia é que não está quebrado. — E qual é a notícia ruim? — pergunto. — Vai precisar imobilizá-lo por alguns dias — responde ele, abrindo o kit de primeiros socorros. — Talvez uma semana ou mais, dependendo da recuperação. Fecho os olhos e encosto a cabeça na parede atrás de mim. — Mas eu tenho tanta coisa para fazer... — me queixo, choramingando. Ele começa a enfaixar com cuidado meu tornozelo. Allysa está parada logo atrás, observando o irmão. — Estou com sede — diz Marshall. — Alguém quer beber alguma coisa? Tem uma farmácia do outro lado da rua. — Estou bem — responde Ryle. — Eu aceito uma água — digo. — Um Sprite — pede Allysa. Marshall agarra a mão da mulher. — Você vem comigo. Allysa afasta a mão e cruza os braços. — Não vou a lugar algum — afirma. — Não dá para confiar em meu irmão. — Allysa, está tudo bem — asseguro. — Era só brincadeira. Ela me encara em silêncio por um instante, depois diz: — Ok. Mas você não pode me demitir se ele fizer mais alguma besteira. — Prometo que não vou te mandar embora. Depois disso, ela segura novamente a mão de Marshall e sai. Ryle ainda está enfaixando meu pé. — Minha irmã trabalha para você? — pergunta. — Ahã. Eu a contratei algumas horas atrás. Ele vai até o kit de primeiros socorros e pega fita. — Você sabe que ela nunca trabalhou na vida, né? — Ela já me avisou — respondo. Ele está com o maxilar cerrado e não parece tão relaxado quanto antes. Deve pensar que eu a contratei só para me aproximar. — Eu não fazia ideia de que era sua irmã até você entrar aqui. Juro. Ele me olha e depois observa meu pé. — Eu não estava sugerindo nada. Ele começa a passar a fita pela atadura elástica. — Sei que não. Mas prefiro deixar claro que eu não tentei te encurralar de alguma maneira. Nós queremos coisas diferentes da vida, lembra? Ele assente e, com cuidado, põe meu pé de volta na mesa. — Certo — diz ele. — Sou especialista em sexo casual, e você está buscando seu Santo Graal. Eu rio. — Você tem boa memória. — Tenho mesmo — concorda ele, exibindo um sorriso lânguido. — Mas você também é difícil de esquecer. Nossa. Ele precisa parar de dizer essas coisas. Apoio as palmas da mão na mesa e ponho a perna para baixo. — Uma verdade nua e crua a caminho. — Sou todo ouvidos — rebate ele, encostando na mesa a meu lado. Não escondo nada. — Sinto uma forte atração por você — confesso. — Gosto de quase tudo em você. E como queremos coisas diferentes, se nos encontrarmos de novo, eu gostaria que não fizesse mais esses comentários que me deixam tonta. Não é justo. Ele balança uma vez a cabeça e depois diz: — Minha vez. — Ele põe a mão na mesa ao lado da minha e se inclina um pouco. — Também sinto uma forte atração por você. Não tem muita coisa em você que eu não goste. Mas espero que a gente nunca mais se encontre, porque não gosto do tanto que penso em você. Não é grande coisa, mas é mais do que eu gostaria. Então, se você continua não querendo passar uma noite comigo, vamos fazer o possível para evitar um ao outro. Porque não seria bom para nenhum de nós. Não sei como ele veio parar tão perto de mim, mas está a apenas uns 30 centímetros. Com ele tão perto, fica difícil prestar atenção nas palavras que saem de sua boca. Seu olhar baixa brevemente até a minha boca, mas, assim que escutamos a porta da frente se abrir, ele vai para o outro lado do cômodo. Quando Allysa e Marshall se aproximam, Ryle está empilhando de novo todos os engradados caídos. Allysa olha para meu tornozelo. — Qual é o veredito? — pergunta ela. Faço um biquinho. — Seu irmão médico disse que devo ficar imobilizada por alguns dias. Ela me entrega a água. — Que bom que você tem a mim. Posso trabalhar e adiantar o possível enquanto você descansa. Tomo um gole d’água e depois seco a boca. — Allysa, você foi eleita a funcionária do mês. Ela sorri e se vira para Marshall. — Ouviu isso? Sou a melhor funcionária do estabelecimento! Ele põe o braço ao redor da irmã e beija o topo de sua cabeça. — Estou orgulhoso de você, Issa. Acho fofo ele a chamar de Issa, um apelido para Allysa. Penso em meu próprio nome e me pergunto se algum dia vou encontrar um cara que me chame de algum apelido ridiculamente fofo. Illy. Não. Não é a mesma coisa. — Precisa de ajuda para chegar em casa? — pergunta ela. Salto da mesa e testo o pé. — Talvez só até meu carro. É meu pé esquerdo, então provavelmente vou conseguir dirigir. Ela se aproxima e põe o braço a meu redor. — Se quiser deixar as chaves comigo, eu tranco tudo, volto amanhã e começo a limpar. Os três me acompanham até o carro, mas Ryle deixa Allysa fazer a maior parte das coisas. Por algum motivo, ele parece ter medo de encostar em mim. Quando já estou acomodada no banco do motorista, Allysa põe minha bolsa e outras coisas no chão e se senta no banco do carona. Ela pega meu celular de novo e salva seu número nos contatos. Ryle se enfia pela janela. — Coloque o máximo de gelo possível nos próximos dias. Ficar na banheira também ajuda. Assinto. — Obrigada pela ajuda. — Ryle? — chama Allysa, inclinando-se. — Será que você pode acompanhá-la no carro e voltar para casa de táxi por garantia? Ele olha para mim e balança a cabeça. — Acho que não é uma boa ideia — argumenta ele. — Ela vai ficar bem. Tomei algumas cervejas, é melhor não dirigir. — Pode pelo menos ajudar ela em casa — sugere Allysa. Ryle balança a cabeça e dá um tapinha no teto do carro enquanto se vira e sai andando. Ainda estou o observando quando Allysa me devolve o celular e diz: — Sério, me desculpe por ele. Primeiro dá em cima de você, depois se comporta como um babaca egoísta. — Ela sai do carro, fecha a porta e depois se apoia na janela. — Por isso ele vai passar o resto da vida solteiro. — Ela aponta para meu celular. — Me avise quando chegar em casa. E ligue se precisar de alguma coisa. Não conto favores como horas de trabalho. — Obrigada, Allysa. Ela sorri. — Não, eu é que agradeço. Não fico tão animada com minha vida desde o show de Paolo Nutini que vi ano passado. Ela se despede e se aproxima de Marshall e de Ryle. Eles começam a andar pela rua, e eu os observo pelo retrovisor. Ao virarem a esquina, percebo Ryle olhar em minha direção. Fecho os olhos e solto o ar. Meus dois encontros com Ryle foram em dias que provavelmente prefiro esquecer. No dia do funeral de meu pai e no dia que torci o tornozelo. Porém, por algum motivo, sua presença fez esses desastres parecerem menores. Odeio o fato de que ele é irmão de Allysa. Tenho a sensação de que essa não é a última vez que o verei. Capítulo Quatro Demoro meia hora para ir do carro até o apartamento. Liguei duas vezes para Lucy; queria sua ajuda, mas ela não atendeu. Quando entro no apartamento, fico um pouco irritada ao vê-la deitada no sofá com o celular no ouvido. Bato a porta, e ela ergue o olhar. — O que aconteceu com você? — pergunta ela. Uso a parede como apoio para pular até o corredor. — Torci o tornozelo. Quando alcanço a porta de meu quarto, ela grita: — Desculpe por não ter atendido o telefone! Estou falando com Alex! Eu ia te ligar depois! — Tudo bem! — grito de volta, e bato a porta do quarto. Vou para o banheiro e encontro alguns analgésicos velhos guardados no armário. Engulo dois, me jogo na cama e fico encarando o teto. Não acredito que vou passar uma semana inteira presa no apartamento. Pego o celular e mando uma mensagem para minha mãe. Torci o tornozelo. Estou bem, mas preciso de umas coisas. Pode comprar para mim? Largo o celular na cama e, pela primeira vez desde que minha mãe se mudou, fico feliz por ela morar razoavelmente perto. Na verdade, não tem sido tão ruim. Acho que gosto mais dela agora que meu pai faleceu. Guardei muito ressentimento por ela nunca tê-lo deixado. Apesar de boa parte desse ressentimento ter passado, o que sinto por meu pai continua. Não deve fazer bem guardar tanta mágoa do próprio pai. Mas, caramba, ele foi horrível. Comigo, com minha mãe, com Atlas. Atlas. Estava tão ocupada com a mudança de minha mãe, e com minha busca secreta pela loja enquanto ainda trabalhava, que nem tive tempo de terminar de ler os diários encontrados meses atrás. Dou um pulo ridículo até o armário e tropeço apenas uma vez. Felizmente, eu me seguro na cômoda. Depois que pego o diário, volto para a cama e me acomodo. Não tenho nada melhor a fazer na próxima semana já que não posso trabalhar. Por que não lamentar meu passado se vou ser obrigada a lamentar meu presente? Querida Ellen, Sua apresentação do Oscar foi a melhor coisa que aconteceu na TV no ano passado. Acho que nunca comentei isso com você. A cena com o aspirador de pó me fez mijar nas calças de tanto rir. Ah, hoje eu recrutei um novo seguidor para você: Atlas. Antes que comece a me julgar por eu ter deixado ele entrar de novo em minha casa, me deixe explicar o que aconteceu. Depois que deixei ele tomar banho aqui ontem, não o vi mais à noite. Mas hoje de manhã ele se sentou a meu lado no ônibus. Parecia um pouco mais feliz que antes, porque até sorriu para mim quando se sentou. Não vou mentir, foi um pouco estranho ver ele usando as roupas de meu pai. Mas a calça ficou bem melhor que imaginei. — Adivinha só? — disse ele, inclinando-se para a frente e abrindo a mochila. — O quê? Ele pegou uma sacola e a entregou para mim. — Encontrei isso na garagem. Tentei limpar para você porque estavam empoeiradas, mas sem água não dá para fazer muita coisa. Seguro a sacola e o encaro, desconfiada. Nunca vi ele falar tanto. Finalmente dou uma olhada na sacola e a abro. Parecia um monte de ferramentas de jardinagem. — Vi você cavando com aquela pá no outro dia. Não sabia se você tinha ferramentas de jardinagem de verdade, e ninguém estava usando essas aqui, então... — Obrigada — agradeci. Fiquei meio chocada. Eu costumava usar uma espátula, mas o plástico do cabo quebrou e comecei a ficar com bolhas nas mãos. Pedi para minha mãe me dar ferramentas de jardinagem de aniversário no ano passado, e, quando ela me deu uma pá grande e uma enxada, não tive coragem de dizer que não era daquilo que eu precisava. Atlas pigarreou, depois bem mais baixo, disse: — Eu sei que não é um presente de verdade. Não comprei nem nada do tipo. Mas... eu queria te dar alguma coisa. Sabe... por ter... Ele não terminou a frase, então balancei a cabeça e amarrei de volta a sacola. — Acha que pode ficar com elas até depois das aulas? Não tenho espaço em minha mochila. Ele pegou a sacola, colocou a mochila no colo e a guardou ali dentro. Depois abraçou a mochila. — Quantos anos você tem? — perguntou ele. — Quinze. Seu olhar deu a impressão de que ele ficou um pouco triste com minha idade, não sei o porquê. — Está no primeiro ano? Fiz que sim, porque sinceramente não consegui pensar em nada para dizer. Eu não costumava interagir muito com garotos. Ainda mais do terceiro ano. Quando me sinto nervosa, simplesmente fico quieta. — Não sei quanto tempo vou ficar lá — disse ele, sussurrando de novo. — Mas, se precisar de ajuda com o jardim ou alguma outra coisa depois da escola, eu não tenho muita coisa pra fazer. Porque não tenho eletricidade, né? Eu ri e depois me perguntei se deveria ter rido do comentário autodepreciativo. Passamos o resto do trajeto de ônibus conversando sobre você, Ellen. Quando ele fez esse comentário sobre tédio, perguntei se já tinha visto seu programa. Ele disse que gostaria de ver, porque acha você engraçada, mas para ter TV precisa de eletricidade. Mais uma vez eu ri, sem saber se deveria ou não. Eu disse que ele poderia assistir ao programa comigo depois do colégio. Sempre gravo no DVR e vejo enquanto faço as tarefas domésticas. Pensei em passar o ferrolho na porta da frente, e se meus pais chegassem cedo, Atlas só precisaria sair correndo pela porta dos fundos. Não o vi novamente até a volta para casa. Ele não se sentou a meu lado porque Katie subiu no ônibus antes dele e ocupou o lugar. Eu queria pedir para ela mudar de banco, mas aí ela acharia que estou a fim de Atlas. Katie ia encher o saco, então deixei ela ficar ali. Atlas estava na parte da frente do ônibus, então desceu antes de mim. Ele meio que ficou parado no ponto, me esperando, meio constrangido. Quando