Historicizando a Transexualidade - Lara Araújo Roseira Cannone - PDF
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Universidade Federal da Bahia
Lara Araújo Roseira Cannone
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This article, titled "Historicizando a Transexualidade", examines the ongoing struggle to depathologize transsexual and transvestite identities. It features a feminist perspective and discusses the contributions of various social movements and professional categories involved in this fight. The author, a psychologist, explores the evolution of understanding and the related discussions within the context of human rights.
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Psicologia: Ciência e Profissão 2019 v. 39 (n.spe 3), e228487, 21-34. https://doi.org/10.1590/1982-3703003228487 Artigo Historicizando a Transexualidade em Direção a uma Psicologia Comprometida...
Psicologia: Ciência e Profissão 2019 v. 39 (n.spe 3), e228487, 21-34. https://doi.org/10.1590/1982-3703003228487 Artigo Historicizando a Transexualidade em Direção a uma Psicologia Comprometida Lara Araújo Roseira Cannone1 1 Universidade Federal da Bahia, BA, Brasil. Resumo: A despatologização das identidades transexuais e travestis tem sido uma luta árdua e conta com a colaboração de diversos setores, como movimentos sociais e categorias profissionais. Atualmente conquistas consideráveis a esse respeito já podem ser identificadas, entre elas, a retirada da seção dos transtornos mentais na Classificação Internacional de Doenças (CID-11), passando para condições relativas à saúde sexual. Também a Psicologia tem assumido postura participativa a favor da diversidade de gênero, assim como das orientações sexuais. Neste contexto, o presente trabalho se estrutura em modelo de ensaio científico de cunho feminista que discorre sobre as reflexões acima e demais informações atualizadas sobre essa demanda aparente, através do ponto de vista de uma psicóloga que está enquanto coordenadora de um grupo de trabalho a respeito da população LGBT no CRP 3ª região-BA e dos atuais debates do Sistema Conselhos na defesa dos Direitos Humanos. A exemplo, ações do Conselho Federal de Psicologia, e seus respectivos regionais engajados nas causas LGBT, vêm se intensificando para repensar paradigmas e enfrentar as disparidades sustentadas pela patologização da população transexual e travesti. Haja vista que se trata de um campo ainda incipiente na profissão, torna- se útil visibilizar atuações contemporâneas no sentido de colaborar com o desenvolvimento da temática na Psicologia como ciência e profissão. Palavras-chave: Psicologia, Transexualidade, Saúde Mental. Historicizing Transsexuality toward a Committed Psychology Abstract: The depathologization of transsexual and transvestite identities involves a fight against the disease and has had the contributions of several sectors, such as social movements and professional categories. Currently, some considerable achievements in this regard can be identified., among them, a withdrawal from the metadata of Mental Disorders in the International Classification of Diseases (ICD-11), of the conditions related to sexual health. Psychology has also been in favor of gender diversity as well as sexual orientations. In this context, the present work is structured as a feminist scientific demonstration that discusses the above reflections and the latest information on this demand, from the point of view of a Psychologist that coordinates a work group for the respect of the LGBT population in the 3rd CRP in the BA region and the current debates of the Council System in the defense of Human Rights. For example, the actions of the Federal Council of Psychology and its respective regional councils engaged in LGBT causes have intensified to reprehend paradigms and face the inequalities sustained by the pathologization of the transsexual and transvestite population. Since it is a field still incipient in the profession, it becomes useful to visualize contemporary performances to collaborate with the development of this subject in Psychology as science and profession. Keywords: Psychology, Transsexuality, Mental Health. Disponível em www.scielo.br/pcp Psicologia: Ciência e Profissão 2019 v. 39 (n.spe 3), e228487,21-34. Historizando la Transexualidad Hacia una Psicología Comprometida Resumen: La despatologización de las identidades transexuales y travestis ha sido una lucha ardua y cuenta con la colaboración de varios sectores, como los movimientos sociales y las categorías profesionales. Ya se pueden identificar logros considerables a este respecto, entre ellos, la eliminación de la sección de trastornos mentales en la Clasificación Internacional de Enfermedades (CIE-11), pasando a condiciones relacionadas con la salud sexual. La psicología también ha tomado una postura participativa a favor de la diversidad de género, así como las orientaciones sexuales. En este contexto, el presente trabajo está estructurado en un modelo de ensayo científico feminista que discute las reflexiones anteriores y otra información actualizada sobre esta aparente demanda, desde el punto de vista de una psicóloga que está coordinando un grupo de trabajo sobre población LGBT en el CRP 3º región- BA y los debates actuales del Sistema de Consejos en defensa de los Derechos Humanos. Por ejemplo, las acciones del Consejo Federal de Psicología, y sus respectivos grupos regionales involucrados en causas LGBT, se han intensificado para repensar los paradigmas y abordar las disparidades sostenidas por la patologización de la población transgénero y travesti. Teniendo en cuenta que este campo aún es incipiente en la profesión, es útil hacer visibles las acciones contemporáneas para colaborar con el desarrollo del tema en Psicología como ciencia y profesión. Palabras clave: Psicología, Transexualidad, Salud Mental. Introdução desconhecimento de sua existência por grande parte A despatologização das identidades transexu- de psicólogas e psicólogos. ais e travestis tem sido uma luta árdua e conta com Os saberes psi (Psiquiatria, Psicanálise e Psicolo- a colaboração de diversos setores, como movimentos gia) são pioneiros em adentrar a discussão de sexuali- sociais e categorias profissionais. Atualmente con- dade e gênero, mas não os primeiros a desconstruí-la. quistas consideráveis a esse respeito já podem ser O desafio se estende aos dias atuais, o que pode ser notado através do diálogo frágil com os estudos de identificadas, entre elas, a retirada da seção dos trans- gênero, feministas e queer. tornos mentais na CID-11, passando para condições Esta é uma temática historicamente de disputa relativas à saúde sexual. dos campos da moral, religião, âmbito jurídico, dis- A Psicologia tem se posicionado institucional- cursos científicos, mídia etc. Se instaurando o clás- mente desde 2011 a favor da despatologização, prin- sico tripé discursivo do Direito, da Medicina e da cipalmente via Sistema Conselhos (Federal e Regio- Religião, basicamente por meio da ideia de punição, nais). Recentemente incorporou-se mais um marco, tratamento e pecado. Com isso, percebe-se que ficam e principal regulamento acerca das identidades de omissos dos registros históricos oficiais o protago- gênero, a Resolução nº 01/2018 que estabelece nor- nismo de narrativa, lugar de fala e representatividade mas de atuação para psicólogas/os em relação às pes- das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, tran- soas trans (Resolução Nº 1, 2018). sexuais e transgêneros (LGBT). Todavia, sabe-se que o cenário político e a con- Assim como nas demais esferas macrossociais, juntura atual do país indicam um árduo caminho a esse efeito recai na Psicologia hegemônica de maneira ser percorrido para a superação de estigmas e impe- que se estabeleceu a ideia de corpos desviantes com dimentos de cidadania que vão além de normativas; é associação à loucura, delinquência, com direciona- preciso lembrar que o Brasil lidera o ranking interna- mento ao tratamento ou encarceramento. Um exem- cional em episódios recorrentes de transfobia. A pró- plo ilustrativo dessa ocasião é o período higienista pria Resolução já se apresenta como alvo de tentati- brasileiro, o qual internava compulsoriamente pes- vas internas à categoria e externas de boicote, além do soas dissidentes da norma: prostitutas, dependen- 22 Cannone, L. (2019). Historicizando a Transexualidade. tes químicos, LGBT. O que parece ser uma memória Percebe-se que questões de necessidades básicas antiga, na verdade acompanha a recente história da pertencem a esse debate. Se pessoas trans não pos- Psicologia Brasileira que completa 57 anos. suem acesso digno ao mercado de trabalho, à saúde, Deste modo, fica nítida a construção de mode- à segurança, ao afeto, ou mesmo usar um banheiro los legítimos de existência; o que exige o estabe- sem constrangimento, não se pode ignorar a incidên- lecimento do contraste entre normal e patoló- cia desses fatores na saúde mental para um exercício gico. Assim sendo, vê-se as identidades de gênero profissional ético. e orientações sexuais serem alvo desse processo Dito isto, gênero e sexualidade têm certamente incessante, ganhando terminologias variadas: his- pontos em comum. São ambos políticos e envolvem teria, perversões sexuais, homossexualismo, lesbia- relações de poder, inferiorização de uns em detri- nismo, transexualismo... por que será que não se mento do privilégio de outros. São campos de luta, ouve falar em heterossexualismo? consensos, disputas e resistência. São esferas comple- O ser humano é um ser de linguagem, logo, a xas, plurais, que demandam estudos comprometidos forma que a comunicação se dá é efeito da nossa cul- com a transformação social. tura e também age na constituição subjetiva. Importa Um caminho é através do questionamento da pensar na disseminação do termo trans, enquanto o objetividade e neutralidade da ciência convencional, cis é desconhecido. Ou, que o termo cis surge 70 anos pondo em xeque o limite de território entre os valo- depois do termo trans, assim como o termo heteros- res manifestos na moralidade social e no aparato sexual surge depois do homossexual. cognitivo. Adotar o posicionamento de que a ciência Então nesse trânsito entre perversão, transtorno, não está isenta de valores permite analisar como isto disforia e psicose, pouco se considera a diversidade da reflete no percurso histórico do conceito da transexu- existência humana e o caráter político e complexo dos alidade, por meio de uma leitura crítica e disposta a corpos. O que pode recair na tutela, tentativa de con- apresentar também os progressos. trole e patologização desses corpos. Por essa via, cabe à Psicologia se revisitar já que mesmo não criando Método normatização pela biologia, corre o risco de normati- No sentido de expor o trajeto histórico da zar pela ideia de essência. definição de transexualidade e do entendimento Na atuação, é preciso considerar o sujeito em sua acerca de identidades de gênero, o presente texto integralidade e os aspectos relacionais com o outro. segue o formato de ensaio teórico cunhado na episte- Enquanto se prioriza apenas a orientação sexual ou mologia feminista. identidade de gênero, aspectos caros são negligen- A linha do tempo se inicia no século XIX, a partir ciados como a história de vida, raça/etnia, classe do destaque da época colocado nas orientações sexu- social, faixa etária. Ademais, o critério de análise da ais, sobretudo na expressão da homossexualidade saúde ou sofrimento mental vem exclusivamente do como objeto de investigação científica. Em seguida gênero/sexualidade ou com a repercussão do con- são apresentadas pesquisas popularizadas na década texto, das regras sociais, dos sistemas de opressão de 1950 por médicos nos EUA com casos de intersexu- sobre essas nuances? alidade e transexualidade em hospitais com alas psi- Sabe-se que as violências não se resumem ao quiátricas, como o Hospital John Hopkins. setor da saúde mental, mas certamente interagem Prossegue-se até a incorporação política de movi- direta ou indiretamente. Pessoas trans são expulsas mentos sociais e outras narrativas de ciência princi- da vida em sociedade, empurradas para guetos atra- palmente a partir da década de 1970 até os dias atuais, vés de um processo de segregação desde o núcleo foram delimitados entre eles o movimento feminista, familiar, escolar, laboral e afetivo. Representam um o LGBT, queer e transfeminismos. O cerne do estudo grupo de vulnerabilidade em termos de escolaridade está em relacionar esse percurso com a atuação da baixa, ideação suicida, trabalhos desvalorizados, Psicologia, refletindo sobre a questão da saúde mental ascensão social, dificuldade em encontrar parcei- dos sujeitos trans nesse processo. ros(as) sexuais e relacionamentos, impedimentos Situando brevemente o que pretende a epis- aos serviços de saúde, habitação de qualidade e alto temologia feminista, baseada nas contribuições de risco de sofrer agressões. Harding (2004), não é possível falar de ciência sem 23 Psicologia: Ciência e Profissão 2019 v. 39 (n.spe 3), e228487,21-34. admitir que todo conhecimento produzido fala de século XX e as referências para o assunto, por muito um lugar parcial. Ou seja, a defesa da ciência acrí- tempo, se restringiram aos saberes médicos e psi. tica, universal e neutra obedece a um segmento pri- Aliados à lógica da patologia, não dialogavam vilegiado da população, o que também silencia vozes com perspectivas plurais e críticas, como as que sur- marginalizadas. Neste sentido, cabe evidenciar que o giriam algumas décadas depois, a exemplo dos estu- lugar de fala da autora do texto também representa dos queer – traduzidos por Bento (2014) como estudos uma perspectiva parcial e situada assim como qual- transviados. Atualmente, o conhecimento produzido quer discurso. acerca de gênero e sexualidades prossegue sendo uma Outro ponto relevante de comentar é que os área de intensa disputa. interesses feministas na ciência não se restringem Ao longo da história, praticamente tudo que se apenas às causas das mulheres, mas tudo que envolve conhece formalmente sobre a população trans é pro- o campo do saber. Por isso, requer debates integrados duto do conhecimento médico, jurídico e moral. Em entre o cunho científico, político e intelectual. um primeiro momento, ainda no século XIX, não se Propõe um deslocamento do olhar de mundo, fazia distinção entre identidade de gênero e sexua- afinal, o que se construiu sobre a vida dos grupos his- lidades, as diferentes expressões eram resumidas à toricamente subalternos também fala sobre os grupos homossexualidade que, por sua vez, funcionava como privilegiados. À luz de Harding, é possível compreen- um termo guarda-chuva para todas as pessoas LGBT. der a diferença de narrativa de mundo ocupada pelo Associados (as) à loucura e delinquência, fre- discurso através da posição na malha das relações de quentemente eram direcionados (as) ao tratamento poder. Sendo assim, não se trata de um juízo de valor ou encarceramento, sendo incisivamente vetado o hierárquico, mas de uma aproximação comprometida protagonismo do próprio corpo. Um exemplo ilustra- com o que se produz desvencilhada da ideia de axio- tivo dessa ocasião é o período higienista brasileiro, o mas científicos. qual a internação compulsória era o destino de pes- Rumo a esta direção epistemológica, a escolha soas tidas enquanto dissidentes da norma: prostitu- das/os intelectuais que serão trabalhadas/os no corpo tas, dependentes químicos, pessoas em situação de textual, assim como os órgãos profissionais e movi- rua, mulheres subversivas e os LGBT. mentos políticos abordados circulam entre o campo Diversos foram os encaminhamentos para de conhecimento e produções em gênero e sexuali- homossexuais na história: sodomia como pecado; dades. Algumas por conta do pioneirismo, outras por crime institucionalizado; morte legitimada em representarem as pautas seja em um nível nacional, fogueiras, torturas, pena de morte; exclusão do conví- seja em nível internacional. vio social; doença, tratamento médico, eletrochoque Além disso, a análise contida neste ensaio teó- (Nascimento, 2010). rico segue uma linha articulada principalmente com A cultura homoerótica, como coloca o psicólogo a perspectiva pós-estruturalista que reúne autoras/ Márcio Nascimento (2010), constitui a humanidade es épicas a partir dos conceitos centrais de cisnor- desde épocas não datadas e permeou a cultura oci- matividade, heteronormatividade, corpos dissiden- dental enfaticamente em períodos específicos, como tes, estudos queer, performatividades, transfeminis- na Grécia Antiga e expressões artísticas do século XIX mos, entre outros. até agora. Na Grécia, o costume da pederastia era con- Tendo em vista que ainda se tratam de narrativas sentido coletivamente; nela, um homem já inserido pouco abordadas na ciência e pela Psicologia hege- na esfera pública iniciava um rapaz jovem na cidada- mônicas, parte-se do uso teórico de categorias fun- nia como um rito de passagem, o que hoje poderia ser damentais para as questões ético-políticas que têm lido de forma totalmente diferente. convocado incisivamente a categoria, como discurso, Este breve fragmento do artigo de Nascimento relações de poder e instituições sociais. insere questões importantes para se pensar a sexuali- dade e gênero. Primeiro, evidencia a parte cultural dos Resultados e discussão: disputas acordos em sociedade; um outro aspecto é a mutabi- epistemológicas em questão lidade ao decorrer do tempo dos costumes, dos tabus, A ciência começa a desenvolver produções espe- das formas de se relacionar. Ou seja, a maneira que cíficas sobre pessoas trans a partir de meados do se concebe o gênero e a sexualidade varia na história, 24 Cannone, L. (2019). Historicizando a Transexualidade. na cultura, na sociedade, nas relações, nos interesses das pelas ciências sociais que reclamavam um olhar políticos e morais. Uma evidência disso está na pró- desassociado do estigma da anormalidade. pria variação da linguagem em voga. A transexualidade começa a ser conceituada por Só em 1869, nas terras alemãs, homossexual Harry Benjamin, médico britânico, em 1953 na pers- começa a ser uma palavra utilizada; em 1887 começa pectiva da psicopatologia. Contemporâneo a essas a ser empregada em estudos psicopatológicos das investigações estão os estudos do médico estaduni- sexualidades. Já o termo heterossexual será criado em dense John Money, inspirados em Benjamin. A ciência solo estadunidense 33 anos depois, em 1892. se debruça nas definições em 1969 e o atestado de dis- Difundidas essas categorias, no século XX se ins- foria vem em 1977 através da Harry Benjamin Interna- taura a ideia da sexualidade normal, esperada e condi- tional Gender Dysphoria Association. Benjamin, assim zente com a conduta correta; na contramão, se coloca como os congressos e associações filiados, contribuí- a homossexualidade como condição desvirtuada, ram para os tratamentos e inserção nos manuais psi- pecaminosa e repulsiva. Esse modelo se baseia em quiátricos (Mattos, & Cidade, 2016). três fontes discursivas: machismo, heterocentrismo e As autoras ainda atentam que é “importante heteronormatividade (Nascimento, 2010). mencionar que esse diagnóstico foi, inicialmente, É preciso rememorar que, até 1973, a homossexu- produzido a partir de um estudo clínico efetivado alidade fazia parte do Manual Diagnóstico e Estatís- por Harry Benjamin com dez sujeitos transexuais, tico de Transtornos Mentais (DSM) enquanto homos- um número bastante reduzido” (Mattos, & Cidade, sexualismo. Termo que prosseguiu sendo utilizado, p. 138, 2016). inclusive equivocadamente por muitos até os dias Ainda no campo psi, frequentemente cita-se o atuais, só teve sua retirada total na década de 1990 psiquiatra e psicanalista estadunidense, Robert Stol- pela Organização Mundial da Saúde (OMS). ler, autor do notável livro publicado em 1968, Sex and Os psicólogos Diogo Sousa e Céu Cavalcanti Gender: The Development of Masculinity and Femini- (2016) consideram outro marco o reconhecimento nity. Esta obra começa a se desenvolver indícios do do Conselho Federal de Medicina (CFM), em 1985, da que se entende por identidade de gênero; seguindo homossexualidade como expressão humana que não esta linha, o gênero seria separado do sexo por ser indica doença. constituído pela cultura e psiquismo (Stoller, 1968). Continuando no curso dos termos forjados, a defi- Stoller (1968) contribuiu com discussão pioneira nição de homofobia surgiu apenas em 1971, mesmo dessas esferas a partir da sua prática clínica, introdu- sendo uma prática secular. A homofobia, que também zindo o termo identidade de gênero como o atributo serviu como termo guarda-chuva para as LGBTfobias, pessoal da identificação, do sentimento de ser homem é complexa e envolve aspectos a mais que a violência ou mulher superando o biológico. pelo ódio à orientação sexual, se alinha a raça, classe, Mesmo evitando um olhar anacrônico, algumas geração, gênero, regionalismo, estética corporal etc. críticas podem ser feitas às ideias de Robert Stoller por Os momentos históricos citados acima mostram conta do teor de nivelamento de comportamentos um avanço em relação às orientações sexuais, ao masculinos ou femininos, a visão de defeito nas varia- mesmo tempo que acompanha, paradoxalmente, em ções das performances e a responsabilização da famí- período próximo a categoria de transtorno de iden- lia na formação da identidade de gênero. Portanto, tidade de gênero (TIG), posteriormente disforia de nota-se o controle pela normalidade binária da expe- gênero, nos códigos de doenças e manuais de trans- riência de gênero e a diferenciação dos papéis sexu- tornos mentais. ais com base heteronomativa. Os casos clínicos eram A nomenclatura transexual começa a ser empre- trabalhados como identidades de gênero desviantes. gada nos anos 1920, enquanto cisgênero surge com Esse e outros estudos similares da época utiliza- o atraso de setenta anos desde essa data, em 1990 vam homens como referência para explicar os fenô- (Rodovalho, 2017). Um fato contraditório é que as menos, justificando serem a maioria das desordens terminologias precursoras do escopo da sexualidade pelos efeitos das grandes exigências proferidas pela e gênero vêm da área da saúde, por profissionais psi masculinidade. Conceitos psicanalíticos eram popu- com teor patológico (Sousa, & Cavalcanti, 2016), e lares nas explicações, com foco na dinâmica edípica só posteriormente são ressignificadas e aprimora- dizia-se que o homem gay teria passado por uma falha 25 Psicologia: Ciência e Profissão 2019 v. 39 (n.spe 3), e228487,21-34. na substituição da identificação com a mãe para o pai, parciais e contaminadas de valores, porém sem essa e então segue o mesmo objeto de amor materno, os confissão explicitada. homens (Stoller, 1968). Nesse sentido, a ciência sempre assumiu uma Para a transexualidade, os rumos teóricos eram tendência de compor transexuais e travestis como parecidos. Definia-se como resultado da ligação objetos de pesquisa, definindo suas existências por intensa com a mãe ao ponto dos indivíduos se verem eles e elas. Geralmente no lugar de pessoas cisgêne- também enquanto mulheres; até então, homens tran- ras, que nunca precisaram se afirmar enquanto cis, sexuais não agregavam os estudos gerais. Em termos têm sua existência assegurada e legitimidade para amplos, a linha de pensamento seguida era a partir da teorizar acerca das demais; na contramão, os corpos identificação psicológica com o outro. que carregam o rótulo de trans costumam ser postos à Ann Oakley, renomada socióloga feminista, dúvida a todo o tempo. é mais uma referência pioneira nos estudos sobre É nessa via que nomear a cisgeneridade é uma sexo e gênero. Em artigo de 1972, ela recorre aos estratégia política de identificar esse lugar que define estudos antropológicos que mostram como as defi- tudo, menos a si mesmo, o lugar que origina o enten- nições de gênero variam nas culturas, apesar da dimento de mundo ao se colocar como referência. constante sexo ser usada como referência. E, ape- Não existe um material de exames ou testes que sar de a cultura estar convencida da legitimidade validem o diagnóstico de TIG, sendo o único referen- dessas normas, jamais vão convergir totalmente cial a convenção de papéis masculinos ou femininos. quando comparada a norma de uma outra cultura: Esse é um caminho diagnóstico extremamente frágil, “não há duas culturas sequer que concordariam falho, ancorado no binarismo social de comporta- completamente no que distingue um gênero do mentos e que descarta a subjetividade. As psicólogas outro” (Oakley, 2016, p. 65). Sampaio e Coelho (2013) fazem críticas contundentes Até a década de 1990, utilizava-se o termo tran- inclusive ao protocolo de atendimento nos serviços sexualismo e, com a diferenciação da transexuali- de saúde que, muitas vezes, ao invés de preparar a dade da esfera das orientações sexuais, alterações pessoa para o processo transexualizador, os acompa- diagnósticas surgiram. O Código Internacional de nhamentos psicológico e psiquiátrico assumem fun- Doenças incluiu, em sua décima versão (CID-10), a ção seletiva e rastreadora de disfunções. transexualidade na categoria de Transtorno de Iden- No que concerne à saúde de pessoas trans no tidade Sexual; enquanto o DSM-IV incluiu em TIG. Brasil, a Medicina foi a primeira categoria profissio- No entanto, é preciso salientar que as causas e ori- nal a se posicionar. A título de curiosidade, esse pro- gens que justificariam a patologia na transgeneridade cesso só se iniciou por conta da cassação do médico nunca foram constatadas. Roberto Farina que, na década de 1970, polemizou É manifesto que esses acontecimentos propiciam os ideais da época ao realizar a primeira cirurgia de um campo de tensão constante entre profissionais, redesignação sexual em uma mulher transexual, Wal- pacientes e militantes. As psicólogas Sampaio e Coe- direne. Após acusações de infração ética e um período lho (2013) exemplificam, através das atualizações fre- deveras conturbado, o Conselho Federal de Medicina quentes de ambos os manuais acima (atualmente nas (CFM) passou a reconhecer a relevância cirúrgica sem suas versões, respectivamente, 11ª e 5ª), o indicador atribuir a crime ou mera estética. da convenção do que é doença não se tratar de um A Resolução do CFM, publicada em 1997 e iden- axioma, pois se localiza e se reinventa no período his- tificada por nº 1.482/97, versava acerca das cirurgias tórico ao qual se refere. de redesignação sexual e modificações corporais. À medida que os estudos sobre a transexuali- Nesse momento, se atestou a descriminalização das dade foram crescendo, no século XX, os saberes psis transformações corporais e definiu pessoas trans os acompanharam em prol de “construir protocolos enquanto “portador de desvio psicológico perma- e produzir diagnósticos diferenciais da transexua- nente de identidade sexual, com rejeição do fenotipo lidade em relação às homossexualidades” (Bento, e tendência à auto mutilação e ou auto-extermínio” 2014, p. 49). A autora denomina esse veículo como (CFM, 1997, p. 1). dispositivo da transexualidade, que coloca o fenô- O que se observa fortemente é a perspectiva de meno em linguagem científica imersa em definições adequação genital ao psiquismo, marcando o des- 26 Cannone, L. (2019). Historicizando a Transexualidade. conforto e a necessidade de mudança no corpo como Os saberes subversivos emergem características centrais da experiência trans. A Reso- Em termos de mudanças sociopolíticas e inte- lução sofreu duas alterações, em 2002 e a atualmente lectuais, certamente deve-se mencionar a emer- em voga nº 1955 (2010), sendo mais criteriosa nos gência dos movimentos sociais nas décadas de aspectos éticos e técnicos, avançando para caracte- 1960-1970. É esse o mesmo período de eferves- res secundários, ampliando os procedimentos para cência da era da conceituação feminista acerca de hospitais públicos e privados, e destacando a liber- gênero e das diferenças sexuais. Se solidificam os dade de escolha do indivíduo sem discriminação. núcleos de estudos, mídias, organizações de cunho Todavia, pode-se perceber a relação estrita de ajustar feminista e, com isso, se enfatizam os furos nos o sexo ao gênero, ainda sem grande superação dos setores de saberes científicos. preceitos cisheteronormativos. O processo de apagamento histórico das existên- É comum a inclinação para o detalhamento do cias trans, alinhadas ao sexismo, omitiu proposital e perfil da verdadeira transexualidade. Entretanto, con- violentamente até a tomada de força dos movimentos ceber a existência de original e cópia quando se fala sociais, como o feminismo que tornou pública a dis- de gênero é um retorno ao essencialismo, à ideia de cussão acerca da desnaturalização do corpo e papeis normal e patológico, do legítimo e do ilegítimo. Essa sociais (Rodovalho, 2017). conduta é conivente com o silenciamento de pessoas Uma vez que se entende o processo como natu- trans, contraria a saúde mental e a escuta de suas nar- ral e binário do sexo-gênero, as identidades trans rativas pela via direta ao invés do olhar do outro. representam um conflito estrutural para as normas de Pelo apanhado demonstrado até aqui, identi- gênero. O desequilíbrio no que se entende enquanto fica-se nas palavras de Berenice Bento um trânsito imutável, lei absoluta do funcionamento humano, entre “identidades pervertidas, transtornadas, dis- reflete no desrespeito, tentativa de controle e patolo- fóricas e psicóticas” (Bento, 2014, p. 53). O caminho gização desses corpos. da pluralidade da existência humana se fragiliza na A naturalização de diferenças sexuais e deter- perspectiva anterior, inclusive na forma de expe- minação da existência pela via biológica é posta em rienciar a transgeneridade. Como meio de existir e questão pelos saberes subversivos como nunca feito resistir, os estudos transviados emergem, assim, com pela ciência hegemônica, considerando o corpo como novos paradigmas: uma esfera política e complexa. A concorrência da cultura com a natureza, Nos estudos transviados os discursos médicos gênero e corpo, se desmistifica ao referir que é passam a ser analisados como engrenagens dis- impossível segregar as duas vertentes ao tempo que cursivas que limitam a existência da diversidade uma se molda em relação à outra, é um processo dos desejos, dos gêneros, das sexualidades ao simultâneo e inseparável. âmbito das estruturas fixas corpóreas. E assim Apesar de não enfatizar o caso da transexuali- se estabelece uma disputa epistemológica onde dade em seus escritos, a francesa e feminista lésbica, o corpo passa a ser um significante com múlti- Wittig (2006) aborda considerações caras acerca de plos significados, uma estrutura estruturante em gênero e sexualidades. Delimita como alvo o pen- permanente processo de transformação (Bento, samento hétero que, por sua vez, retira a autenti- 2014, p. 49). cidade de qualquer tipo de diferença da noção do ser humano padrão, por isso atinge altos níveis de A partir de narrativas imersas na representati- impacto nas vivências. É um poder abstrato que age vidade, as pautas de pessoas trans se ampliam para materialmente por meio da opressão. além dos diagnósticos, abarcando lutas como: despa- A dissolução desse sistema do pensamento tologização e rompimento com os manuais diagnós- hétero, segundo Wittig, está na união dos signos ticos; retificação dos documentos pessoais; retirada de diferença entre homens e mulheres (seguindo a da intersexualidade do enquadramento binário com- lógica semelhante da luta de classes); fazendo emer- pulsório; combate à transfobia via direitos cidadãos gir os discursos desviantes. Diferença, para a autora, – trabalho, saúde, segurança e educação (Sampaio, & é um conceito chave manipulado em prol da regula- Coelho, 2013). ção da desigualdade. 27 Psicologia: Ciência e Profissão 2019 v. 39 (n.spe 3), e228487,21-34. Falando em proporções internacionais, certa- como diferença sexual. O que ela reflete é que pen- mente a filósofa Judith Butler pode ser considerada sar em diferença sexual continua estabelecendo o viés uma das principais referências acerca desta discus- binário marcado pela biologia e, além disso, reitera são. A obra lançada em 1990, Problemas de gênero, o homem (cisgênero) no lugar de referencial para, ajuda a inaugurar novas abordagens na produção do então, identificar na mulher o diferente. saber que funde gênero e sexualidade. Essa análise é uma lembrança cuidadosa acerca O uso da palavra problema não tem intenção de da reafirmação de posições desiguais que privilegiam ser negativista, apenas incitar o debate que esque- o homem como ponto de partida para o desenvolvi- matize meios para lidar com a questão das diferentes mento de teorias, o que gera duas discussões: o pen- conceituações de gênero, no sentido de que algumas samento patriarcal pode ser nocivo inclusive para permeiam bases heterossexuais e hierárquicas. Butler os saberes subversivos por conta da sua abrangente refere que “[...] rir de categorias sérias é indispensável impregnação sistemática; a ideia da mulher como o para o feminismo. Sem dúvida, o feminismo continua ser diferente do homem é um impedimento de esmiu- a exigir formas próprias de seriedade” (2003, p. 9). çar as diferenças dos papéis sexuais para a além da Sob uma perspectiva pós-estruturalista, ali- ideia universal que consta a análise dos dois sexos nhada com os estudos queer, o livro objetiva, dito (Lauretis, 1994). no fim do prefácio, superar estruturas fixas acerca Para a autora, a solução seria articular gênero não de gênero e a acomodação científica, entendendo a como sinônimo de diferença sexual ou imbricação, necessidade da colaboração de diversas áreas para a mas como esferas que se relacionam como produto, construção do conceito. derivação, efeito. O título do texto aqui referenciado, Ela vai trabalhar com o conceito foulcaultiano A tecnologia do gênero, faz alusão ao termo de Fou- de poder por três instâncias: sexo, gênero e desejo. O cault, tecnologia sexual, pois, Lauretis (1994) enxerga caminho é traçado pela genealogia, a qual não pro- o gênero também como oriundo de variadas tecnolo- mete respostas sobre raízes, e sim compreender os gias sociais cotidianas e institucionalizadas. Enfatiza efeitos do falocentrismo e heterossexualidade com- também que não se trata de algo inerente, que já vem pulsória nos corpos através das relações. Esses siste- marcado no corpo pelas diferenças sexuais, mas que mas são vistos como instituições, discursos e práticas. se produzem. A famosa (des)construção de sexo e gênero é Gênero, portanto, diz respeito a relações, não discutida aqui. Rememorando o conceito popu- pode ser pensado individualmente. O indivíduo é lar de gênero como as interpretações culturais do inserido na relação por meio de sua classificação, sexo biológico, Butler faz questionamentos que classe, com um indivíduo de outra classe. A percepção levam a novas direções teóricas. A tese é de que das diferenças é retratada em desigualdades, hierar- é o discurso hegemônico que molda o sexo como quias, e em processos compulsórios de dominados e incontestavelmente anatômico e binário. E é exa- dominadores que são combatidos pela contracultura. tamente essa convicção que mantém estável o sexo Em contexto brasileiro, há inúmeras pesqui- pré-discursivo binário. sas em prol da diversidade sexual. Entretanto, assim O sexo sempre foi posto na esfera natural, atri- como a maior parte da América Latina, a tradição buindo ao gênero toda a formação das consequências LGBTfóbica é extremamente carregada e danosa. culturais. Butler vai discordar dessa abordagem ao Tendo grande influência do cristianismo e do patriar- perceber o sexo também como imerso em uma per- cado, o enaltecimento dos valores da família tradicio- cepção cultural, situado historicamente e produzido nal, entre outros, perpetua até hoje como atores da pelo discurso científico como essencialmente bioló- institucionalização da intolerância e disseminação da gico. Aqui se encaixa sua célebre, e polêmica, frase: população LGBT como ameaça aos bons costumes. “talvez o sexo sempre tenha sido gênero, de tal forma As práticas homofóbicas no Brasil são subno- que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolu- tificadas e, muitas vezes, mascaradas por fazerem tamente nula” (Butler, 2003, p. 27). parte da cultura, o mesmo certamente acontece Seguindo uma linha também do pós-estrutu- com a transfobia. Apesar do maior direcionamento ralismo, a acadêmica italiana, Lauretis (1994) reflete para o combate das violências explícitas que ferem sobre o emprego dos conceitos de gênero meramente o corpo físico, é preciso marcar que as práticas 28 Cannone, L. (2019). Historicizando a Transexualidade. entendidas como “sutis” são responsáveis por pro- As autoras referenciadas, e psicólogas, acreditam vocar grande nível de sofrimento psíquico em todas que a interlocução com o transfeminismo é funda- as faixas etárias. mental para transformar paradigmas, se comprome- Nascimento (2010) atenta para a banalização ter com a ética, a política e romper com a cisgeneri- de práticas e discursos que acabam por consentir dade compulsória inerente ao positivismo. Também com a lógica de subalternização por terceiros ou é uma crítica da tendência essencialista de alguns que podem ser internalizadas pelo próprio indiví- feminismos, que contribui para um direcionamento duo. Ou seja, a reprodução de violência está pre- segregado do que se entende por mulher (Mattos, & sente também em ocasiões definidas como pouco Cidade, 2016). ou nada agressivas, como brincadeiras, piadas, Outro movimento, iniciado na Espanha desde expressões faciais, esquiva, que não tratam direta- 2009, é a Rede Internacional pela Despatologização mente da discriminação. Trans, do inglês Stop Trans Pathologization – STP, que Pensando no caráter relacional entre sujeito e se articulou no intuito de reclamar direitos funda- sociedade, o gênero é fundamental na cultura oci- mentais segundo a autodeterminação grupal. Abran- dental como elemento organizador, o que rumina gendo a população trans e intersex, em 2015 a STP já de certa forma na autodeterminação como depen- constava de 397 coletivos pelo mundo em mais de 45 dente da inteligibilidade do coletivo. Nesse sentido, cidades (Stop Trans Pathologization [STP], 2012). a “reivindicação última das pessoas trans é pelo A página oficial da Rede consta de sete pau- reconhecimento social de sua condição humana” tas principais: erradicação classificatória enquanto (Bento, 2014, p. 51). doença; retificação dos documentos sem aval Rodovalho (2017) elucida essa nuance abordando médico/psicológico; poder decidir livremente acerca que a autoidentificação nem sempre é o bastante de procedimentos corporais sem acompanhamento a respeito da identidade de gênero, visto que como compulsório; veto às cirurgias prematuras em pes- sujeitos relacionais a vivência em harmonia consigo e soas intersex; acesso digno ao mercado de trabalho, com o outro, assim como a equiparação requer a cola- segurança e saúde; políticas de acolhimento às pes- boração de todas e todos, trans e cis. soas trans imigrantes; reconhecimento institucional, Isto posto, os saberes subversivos são atribuídos combate e notificação dos efeitos da transfobia. a um projeto emancipatório que rompe completa- Concomitante às ocasiões de subalterniza- mente com as hierarquias do conhecimento, onde ção, é importante mencionar que a resistência sem- os saberes são vistos como situados, não universais e pre esteve montada. Pode-se referir como alusão a parciais. Dessa forma, a ciência universal, objetiva e momentos históricos de resistência e conquistas, o neutra é contestada e abre margem para um agregado memorável ato de Stonewall em 1969; a articulação de perspectivas. do movimento LGBT pelo direito de expressão no O transfeminismo faz parte da manifestação de ambiente público; a Parada do Orgulho LGBT que reu- vozes marginais. Emerge no Brasil nos anos 1980, niu 3 milhões de pessoas em 2018 em São Paulo, sem baseado no feminismo negro, na interseccionalidade contar as demais edições. e no pós-estruturalismo. As pautas reivindicam lutas No âmbito da saúde, 2018 proporcionou a mais no cenário da militância e dos paradigmas da ciência, recente mudança diagnóstica da transexualidade na simultaneamente, como o lugar de fala, as narrativas, CID-11, que entrará em vigor em 2022. Para a trans- o protagonismo de saberes sobre si, rompimento com feminista,Bagagli (2018), a transferência para a cate- goria de condições relacionadas à saúde sexual é a objetificação (Matto,s & Cidade, 2016). uma conquista importante, mesmo que com contro- As transfeministas apontam a função regulatória vérsias, para assegurar a assistência a pessoas trans da cisnormatividade e suas consequências nocivas. sem o viés patológico. Criticam a forma que o conhecimento sobre pessoas trans é produzido a partir da objetificação e fetichi- zação, como discutido anteriormente. “Ativistas e pes- A pauta trans na Psicologia hoje quisadoras transfeministas têm apontado esse ponto Muito se fala atualmente de pessoas trans, cego na produção do conhecimento das ciências mas a mesma ênfase e peso de nomenclatura humanas e de saúde” (Mattos, & Cidade, 2016, p. 134). não se emprega às pessoas cis (Rodovalho, 2017). 29 Psicologia: Ciência e Profissão 2019 v. 39 (n.spe 3), e228487,21-34. Enquanto as pessoas trans sofrem de apagamento retificação de nome no registro civil sem necessidade na sociedade, as mesmas sempre existiram para a de laudo psicológico. Psicologia, Psiquiatria e Medicina nos consultó- Em toda essa conjuntura, é impreterível se dis- rios e manicômios onde a loucura era a única via, cutir o campo da saúde mental, que não raro adota mas pouco se falava da parcela social e cultural nos postura de identificar pessoas trans como incapazes mecanismos de adoecimento. de decidir sobre si mesmas, em que a retirada da auto- Adentrando no espaço discursivo psicológico nomia não apresenta justificativas plausíveis senão o iniciado no século XX,,Wittig (2006) faz duras críti- entendimento arbitrário de doença. cas à ideia da psique humana descolada da histori- Desconsiderando que, ao se tratar de posições cidade, descontextualizada das intersecções e traba- masculinas ou femininas requer, obrigatoriamente, lhada como modo de funcionamento universal. Ideia um olhar interdisciplinar que ultrapassa o saber essa, como o inconsciente, é proferida por intermé- exclusivamente biologicista, ou de aptidão médica, dio das teorias e da terapia; ela exibe a importância sobre a anatomia e binarismo sexual (Sampaio, & do poder da linguagem como método em que a/o Coelho, 2013). profissional é a pessoa autorizada a interpretar os O estabelecimento da anormalidade é anterior signos, ou moldá-los. à aproximação do indivíduo transexual, que deve As críticas ao acompanhamento psicológico con- provar sua sanidade nesse caminho invertido pela tinuam, a autora se baseia na psicanálise, mas pode-se lógica da área da saúde. O convencimento também expandir a ideia para demais abordagens. Acredita passa pela equipe que, por intermédio de um laudo que o oferecimento da escuta psicanalítica decente com CID, permite acesso ao serviço transexualiza- só será possível ao passo que incorpore uma perspec- dor. Esse é mais um fator de dilema, enquanto a tiva política, já que consta de uma leitura de sujeitos retirada dos manuais é uma exigência, pode ser uti- apoiada na norma heterossexual. Realça que os con- lizada pelo Estado para se isentar da oferta de servi- ceitos psicanalíticos se utilizam de mitos e metáforas ços especializados. de cunho altamente heterossexual para difundir sua No âmbito da saúde pública, o Ministério da Saúde teoria e isso repercute nos encaminhamentos tera- implementou a Portaria relativa ao Processo Transexu- pêuticos (Wittig, 2006). alizador em 2008, desde então a Psicologia fica enten- Mattos e Cidade (2016) referem que determina- dida pelo SUS e pelo CFM como parte importante no das tendências não ficaram completamente no pas- atendimento e cuidado de pessoas trans, integrando a sado. Não raro a prática e ciência psicológica pros- equipe do Processo Transexualizador. segue atestando interesses normativos, colaborando Concomitante a esse movimento, a partir de 2011 para sua perpetuação nos aparelhos do Estado, a e 2012 o CFP começa a se mobilizar em prol de regula- exemplo da perspectiva empregada em muitos laudos mentar e orientar a referida prática. As primeiras con- destinados a pessoas trans. siderações e orientações constam de 2013, na Nota A discussão sobre a transexualidade tem técnica sobre processo transexualizador e demais for- encarado pontos a comemorar ao mesmo tempo que mas de assistência às pessoas trans (Conselho Federal sofre retaliações. Se antes os (as) trans não tinham a de Psicologia [CFP], 2013). menor visibilidade, eram fadados a viver no silêncio; A nota técnica se divide em cinco considerações hoje a transexualidade é um assunto em alta e, por ser e oito orientações para a categoria. As considerações de conhecimento público, sofre ataques diretos de enfatizam a despatologização, assim como o res- diversos setores. peito e garantia de acompanhamento de qualidade, Após muitas reivindicações e atuações mili- outro ponto a se destacar é que o atendimento não tantes nos órgãos deliberativos, os últimos anos se restringe a casos de mudanças corporais, e sim às trouxeram conquistas inestimáveis, por exemplo: demandas psicossociais do sujeito. ambulatórios cirúrgicos e garantia do uso do nome As orientações dialogam com as premissas social no Sistema Único de Saúde (SUS); luta arti- apresentadas acima, e importam muito no sentido culada internacionalmente; retirada da categoria de da posição que profissionais de Psicologia devem transtornos mentais do CID; cotas em programas de adotar no seu trabalho com pessoas transexuais e mestrado e doutorado de universidades públicas; travestis. Se reitera o rompimento patologizante, o 30 Cannone, L. (2019). Historicizando a Transexualidade. incentivo da autonomia, projeto terapêutico singular Através de nove artigos, o Conselho Federal de e flexível, responsabilidade com sua prática durante Psicologia explicita o papel da/o psicóloga/o em não todo o processo. corroborar para a transfobia, sendo agente ativo de Destaca-se para essa discussão a 5ª orientação: transformação social. É importante frisar que não se “A(o) psicóloga(o) deverá valer-se de pesquisas e trata apenas de não ser conivente na própria prática e estudos culturais na área de gênero e sexualidade na de terceiros, mas de combater e se posicionar contra tentativa de buscar um respaldo teórico para entendi- todo e qualquer evento transfóbico. Isso se destina a mento desse contexto social para superação da hete- instituições, demais profissionais, pronunciamentos, ronormatividade” (CFP, 2013, p.3). recursos virtuais, técnicas, atitudes. A Psicologia brasileira se coloca deliberada- Com a Resolução nº 1, (2018) a categoria profis- mente a favor das diversidades, tendo dois marcos sional é orientada a acolher a autodeterminação das no que concerne à orientação sexual e identidade de pessoas transexuais e travestis, e explicitamente se gênero: a Resolução nº 01/1999 e a Resolução nº 01 proíbe em qualquer hipótese terapias de reversão de (2018). Desde 2011 (Sousa, & Cavalcanti, 2016), ações identidade de gênero. O combate à transfobia é deslo- a favor da despatologização das identidades trans cado da luta individual para o dever do coletivo. fazem parte da agenda do CFP através da Comissão Em menos de um ano de vigência, a Resolução já de Direitos Humanos. recebeu dois processos, sendo o primeiro datado de Vale a pena comentar brevemente a Resolução nº três meses após a publicação. As tentativas de boicote 01/1999 a título de diferenciar seu propósito, embora se mostram incessantes sob alegação de ilegalidade e também seja caro à profissão. Lançada em março de autoritarismo, mesmo com as vitórias judiciais. Não 1999, a mesma se refere à atuação de psicólogas/os no podemos esquecer que situação similar ocorre com que concerne à sexualidade, sobretudo à orientação a Resolução nº 01/1999 sob a justificativa de ferir a sexual. Essa Resolução também serviu como modelo autonomia profissional. internacional, inclusive para a Associação Americana O “abrigo da transfobia” não deve se destinar de Psicologia (APA). apenas a quem condiz com a passabilidade. A iden- Nesse momento, se considera as questões liga- tidade não é decidida por decreto. A autora explicita: das à sexualidade como presentes nos mais variados contextos de atuação da Psicologia, mesmo que não Ninguém tem culpa, ninguém escolhe. É neces- seja de forma direta. Ademais, a homossexualidade é sário entender mais de aquisição da linguagem, dissociada da ideia de doença, distúrbio e perversão. de psicanálise, se quisermos compreender o Desse modo, se estabelece o papel da Psicologia em que significa esse “sentir-se mulher” que mulhe- combater discriminações, preconceitos e estigmas. res trans alegam, esse “sentir-se homem” que A mais recente, publicada em janeiro de 2018, homens trans alegam. Isso é o que sabem dizer, dispõe sobre o atendimento às pessoas travestis e as palavras que temos à disposição, que nos ensi- transexuais. Baseada na Constituição de 1988, na naram. É necessário saber ler para além da super- Declaração Universal dos Direitos Humanos, Política fície dessas palavras (Rodovalho, 2017, p. 371). Nacional de Saúde Integral LGBT e demais referên- cias a favor da diversidade e contra a patologização de É preciso romper com a perspectiva de pânico identidades de gênero e orientação sexual. moral e julgamento de valor sobre a sexualidade e A Resolução inova ao trazer terminologias atu- gênero. Acolher as demandas da população trans para alizadas e que dialogam com o campo interdiscipli- além da associação compulsória à IST, HIV/AIDS, ou nar dos estudos de gênero, assim como documen- a laudos para modificações corporais. Praticar não tos oficiais de referência nacional e internacional. só ouvir, mas escutar (são processos simbolicamente Conceitos como cisnormatividade, heteronormati- distintos) o que elas têm a dizer. vidade, padrões ocidentais, autonomia e autodeter- minação são colocados criticamente para a valori- zação das expressões de gênero, seja qual for. Esse Considerações finais direcionamento, por exemplo, não se encontra na Através do texto pode-se notar que as ciências Resolução nº 01/1999. psis acompanham a esfera da identidade de gênero, 31 Psicologia: Ciência e Profissão 2019 v. 39 (n.spe 3), e228487,21-34. assim como da sexualidade humana, desde o princí- É por essa via que concepções da Psicologia pio das aproximações teóricas do tema. Também se sobre a socialização podem apresentar riscos e servir viu que as definições não permaneceram as mesmas de aporte para argumentos transfóbicos, no sentido ao longo do tempo, o que exclui o caráter imutável do de que algumas correntes enfatizam a diferença de discurso científico. Além disso, é possível indicar que socialização já na fase da infância como fundamental as alterações diagnósticas e teóricas são tanto fruto para desconfiar das identidades trans. Essa noção da dos avanços da ciência quanto das cobranças maciças socialização de gênero pode estar revestida de uma em nível social. lógica científica que bebe da cisnormatividade, até Ademais, é preciso conceber que os saberes psi- por conta do fato de que pessoas trans geralmente cológicos se estendem à vida cotidiana das pessoas, estão no lugar de pacientes e não de profissionais. visto que se trata de um campo que incide direta- Também é preciso discutir que o sofrimento psí- mente nos comportamentos, pensamentos e costu- quico é uma esfera pouco explorada no que se refere às mes. É um mecanismo de referência para as relações identidades trans. Não raro é associado, com extremo humanas, para pleitear ações e normativas políticas, simplismo, como oriundo da transgeneridade em si formas de cuidado institucionais, educação das crian- e suas consecutivas modificações corporais (Bagagli, ças e adolescentes. 2018). Isso também significa que a questão é resumida O efeito da Psicologia deve ser encarado com muita à imagem corporal, padronizada, e é negligenciado o seriedade, visto que os registros históricos da formação sofrimento psíquico que se manifesta por outros fato- da profissão relembram momentos taxativos em ter- res. Por isso defende que: mos de direcionamento de controle e normatização de condutas legitimados via práticas psicológicas. É preciso que o sofrimento psíquico de uma pessoa Não é à toa que diversas tentativas de ataques seja reconhecido socialmente. É preciso que a voz ao posicionamento a favor da diversidade sexual e de uma pessoa que sofre seja ouvida e que seu sofri- de gênero são reiteradas, a exemplo da ação recente mento ganhe inteligibilidade. Quando o sofrimento movida em prol da derrubada da Resolução no 01/99. é compreendido (ou melhor: acolhido) intersubje- Apesar da célebre decisão do Supremo Tribunal Federal tivamente, socialmente e institucionalmente a pró- em manter a Resolução intacta, cabe problematizar a pria existência da pessoa que sofre ganha sentido. falta de consenso de psicólogas/os a respeito de tera- Dai essa pessoa vai poder existir para além das cer- pias para reversão sexual, visto que a mentoria da der- cas limitantes do seu sofrimento (Bagagli, 2018, p. ). rubada foi requisitada por grupos da própria categoria. A questão não se refere a defender o imperativo A questão do sofrimento é muito delicada nesses primordial da biologia ou da cultura sobre o sujeito casos, pois pode desonestamente ser utilizado como e sua socialização, de forma que a influência de uma justificativa para critérios diagnósticos descontextuali- anularia a importância da outra. Todavia, considerar a zados. É algo que pode acarretar, por exemplo, na ideia existência dessa disputa é importante para analisar as da transgeneridade legítima, ou na generalização do repercussões no tratamento, na promoção de saúde sofrimento psíquico que silencia as histórias singulares. mental, principalmente porque os atributos biologi- Outro ponto é fundamental é desenvolver a com- zantes têm dominado o status de veracidade na lei- preensão de que a experiência trans não necessaria- tura dos corpos. mente vem acompanhada de sofrimento ou deman- Butler faz uma crítica justamente ao apego a uma das diferentes de outros grupos. Neste fluxo, salientar perspectiva única, abordando que ao eliminar a com- o investimento na saúde mental percorre uma outra pulsão da biologia, corre-se o risco de a cultura entrar possibilidade que não o foco exaustivo em manifesta- nesse lugar. Sendo entendido o corpo sexuado como ções patológicas do público atendido. mero receptor das leis externas e sujeito sem prota- As psicólogas Mattos e Cidade fazem uma adver- gonismo, acaba por trazer outros tipos de problemas. tência sob essa ótica: “É urgente que, ao nos situarmos Por isso propõe que o gênero consiste em categoria no campo da produção em psicologia, dialoguemos analítica, inscrito nos indivíduos e se evidencia nas com esses diferentes lugares de fala, refazendo-nos relações que, por sua vez, são regidas pela linguagem desde nossas referências e matrizes epistêmicas até (Butler, 2003). nossas práticas profissionais” (2016, p. 149). 32 Cannone, L. (2019). Historicizando a Transexualidade. Não basta instituir normativas se os hábitos deri- refinamento na prática no contato com os desafios vados do estigma continuam a se reproduzir, se não que vão emergindo das demandas que fogem do apa- houver o interesse individual das/os profissionais e rato já suportado pelo modelo hegemônico. Talvez o das categorias em se revisitar. cerne inicial esteja entre a escolha de permanecer em Ainda se trata de um campo incipiente, o qual lugares de conforto ou carregar a abertura para inves- indispensavelmente requer novas aprendizagens e tir no vínculo e construção com o outro. Referências Bagagli, B. P. (2018). A retirada da transexualidade da classificação de doenças e o sofrimento psíquico. Recupe- rado de https://transfeminismo.com/a-retirada-da-transexualidade-da-classificacao-de-doencas-e-o-sofri- mento-psiquico/ Bento, B. (2014). O que pode uma teoria? Estudos transviados e a despatologização das identidades trans. Flores- tan, 1(2), 46-66. Butler, J. (2003). 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Historicizing Transsexuality toward a Committed Psychology. Psicologia: Ciência e Profissão. 39(n.spe 3), 21-34. https://doi.org/10.1590/1982-3703003228487 Cómo citar: Cannone, L. (2019). Historizando la Transexualidad Hacia una Psicología Comprometida. Psicologia: Ciência e Profissão. 39(n.spe 3), 21-34. https://doi.org/10.1590/1982-3703003228487 34