Entre Biopolítica e Necropolítica: Uma Questão de Poder PDF

Summary

This article explores the relationship between biopolitics, conceptualized by Michel Foucault, and necropolitics, developed by Achille Mbembe. The author analyses how necropolitics differs from biopolitics, offering a critical perspective on power dynamics and political theory within the context of specific historical and cultural experiences. It also discusses the concept of the power of death in relation to historical situations.

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Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder Between Biopolitics and Necropolitics:...

Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder Between Biopolitics and Necropolitics: a question of power Adriano Negris Pós-doutorando pelo PPGFIL-UFOP Doutor em Filosofia -PPGFIL/UERJ RESUMO: O presente artigo tem o objetivo de estabelecer uma relação entre a noção de biopolítica, elaborada por Michel Foucault, e o conceito de necropolítica, pensado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. Veremos que a necropolítica de Mbembe não é uma variação ou continuidade da biopolítica foucaultiana. Nesse sentido, notaremos que o conceito de necropolítica possui uma historicidade própria, ele é cunhado a partir da experiência política e cultural de um povo específico e, por isso, tais peculiaridades não podem ser desconsideradas sob pena de apagamento ou encobrimento do Outro. PALAVRAS-CHAVE: PODER; POLÍTICA; BIOPOLÍTICA; NECROPOLÍTICA. ABSTRACT: This article aims to establish a relationship between the notion of biopolitics, elaborated by Michel Foucault, and the concept of necropolitics, thought by the cameroonian philosopher Achille Mbembe. We will see that Mbembe's necropolitics is not a variation or continuity of foucaultian biopolitics. In this sense, we will notice that the concept of necropolitics has its own historicity, it is coined from the political and cultural experience of a specific people and, therefore, such peculiarities that cannot be disregarded under penalty of erasure or concealment of the Other. KEYWORDS: POWER; POLITICS; BIOPOLITICS; NECROPOLITICS. INTRODUÇÃO O objetivo do presente texto é apresentar o contexto e as relações históricas que envolvem o conceito de Necropolítica, principalmente aquele empregado no pensamento do filósofo camaronês Achille Mbembe. Logo de início é importante dizer que o conceito de Mbembe se aproxima de outros termos quando Adriano Negris 79 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder se trata de políticas sobre a vida e a morte, tais como: tanatopolítica, racismo de Estado e mesmo uma necropolítica, esta última extraída da obra da autora mexicana Sayak Valencia1, que pensa o termo a partir das peculiaridades geográficas e culturais de matriz mexicana. Desse modo, para situar não só historicamente, mas também geopoliticamente o conceito de necropolítica exposto por Mbembe, iniciaremos nosso texto marcando os principais indicadores da biopolítica de Foucault, bem como o ingresso da morte sobre essa política que assume a incumbência de gerir vida dos indivíduos na sociedade. A inserção de Foucault se faz necessária na medida em que Mbembe se apoia nas críticas de Foucault quanto à noção de soberania e sua relação com a guerra e o biopoder2. A seguir, trataremos sobre as especificidades do conceito de necropolítica de Mbembe, ressaltando quais as relações de poder que dão ensejo formação do conceito, procurando notabilizar os perigos do uso seu indistinto, já que muitas vezes ele vem sendo empregado sem considerar o processo histórico, a cultura e a etnia que caracterizam autodeterminação dos outros povos. Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder Para orientação inicial de nosso trabalho, tomaremos como fio condutor a obra do pensador francês Michel Foucault, particularmente seus estudos que envolvem o que ele chamou de biopolítica. Durante o período dos anos 1970, graças à sua analítica do poder, Foucault começa a dissecar a mecânica das relações de poder e, desviando das perspectivas da teoria política tradicional e das concepções jurídicas do poder, ele resolve empreender uma “história das tecnologias de poder”. 1 O conceito de Necropolitica é abordado por Valencia em um capítulo específico de sua obra Capitalismo Gore (2010). 2 Como expressamente pontua Mbembe: “Minha abordagem é baseada na crítica de Michel Foucault à noção de soberania e sua relação com a guerra e o biopoder em “Il fault défendre la societé” (MBEMBE, 2018, p. 6). Adriano Negris 80 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder É por meio desses estudos que Foucault identificará a existência de um poder que se concretiza no direito de matar (poder soberano). Esse direito, como explica Foucault, derivava do patria potestas do direito romano. Todavia, diferente da forma como esse poder era exercido na Roma Antiga, o soberano já não o aplicava em sua forma incondicional. Na fórmula clássica, esse poder só poderia ser exercido pelo soberano de maneira indireta, ou seja, nas hipóteses em que a própria existência do soberano era colocada em risco. Nos casos de guerra ou contestação ao soberano, ele poderia, legitimamente, expor a vida dos súditos para atuar em sua própria defesa. Assim, o poder soberano era condicionado a uma espécie de direito de réplica (FOUCAULT, 1988, p. 147). Por volta do século XVII, Foucault aponta a formação de outro tipo de poder, que assume a vida como sua centralidade. Estamos falando aqui da biopolítica, uma forma de poder que atua sobre a vida através dos corpos dos indivíduos, por meio de técnicas disciplinares visando torná-los produtivos e, ao mesmo tempo, politicamente mais débeis. De outro lado, essa mesma biopolítica está voltada para o controle da população (um corpo- espécie), centrada no controle da vida do homem enquanto espécie. O biopoder agindo sobre a população intervém a partir dos dispositivos de segurança, programados para normalizar e afastar os riscos ou perigos que eventualmente possam afetar de forma prejudicial a “saúde” da população. A função geral da biopolítica no dizer de Foucault é “fazer viver e deixar morrer”. Nessa sociedade biopolítica há uma progressiva desqualificação da morte com a extinção de sua ritualização pública. A morte é arrasta para o âmbito privado e torna-se vergonhosa. A biopolítica cuida essencialmente da mortalidade da população, tentando afastar ao máximo os efeitos deletérios que surgem naturalmente ao longo do desdobramento da vida. Dentro desse contexto, a questão que intriga Foucault é a seguinte: como o antigo direito de matar (poder soberano) pode estar presente ou ser exercido no interior de uma sociedade biopolítica? Com a finalidade de responder a essa questão, Foucault entende que o direito de morte “assombra” a Adriano Negris 81 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder biopolítica pelo mecanismo que ele denominou de racismo. O racismo, em poucas palavras, é uma espécie de tecnologia de poder que visa fragmentar, fazer cisões no interior do contínuo biológico que é a sociedade. Esse corte produz uma dicotomia entre uma “raça boa” e uma “raça ruim”. Esta última é vista como um perigo em geral para a vida da sociedade e, como tal, deve ser eliminada. Como diz Foucault “a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia. Mais sadia e mais pura” (FOUCAULT, 2010, p. 215). Nesse ponto, vale a pena regressarmos mais um pouco para entender melhor essa concepção foucaultiana de racismo que acabamos de comentar. Foucault acentua uma diferença entre aquilo que ele chama de discurso da luta de raças e o discurso racista, sendo este último já inserido nas engrenagens tecnológicas da biopolítica. O racismo, para Foucault, foi apenas uma variação, ocorrida no século XIX, dentro da Europa, acerca do grande discurso sobre a luta de raças. Até o século XIX o discurso da luta de raças funcionou como uma espécie de contra história para determinadas classes na Europa. Desse modo, o discurso da guerra de raças foi usado nos séculos XVI-XVII pela emergente burguesia inglesa e pela aristocracia francesa no século XVIII3. Até então o discurso da luta de raças era um tipo de clivagem política, histórica e social entre dois grupos ou classes socialmente distintas. Todavia, segundo Foucault, em meados do século XIX, com o processo colonizador capitaneado por Inglaterra e França, se dá uma mutação e o discurso da luta de raças torna-se um discurso racista4. Essa modificação ocorre essencialmente em 3 Depois do século XIX passa-se a empregar o discurso do darwinismo social e evolucionismo– forma de discurso racista. 4 O filósofo Santiago Castro-Gómez realiza uma importante observação que cabe a nós aqui reproduzir: Foucault não está dizendo que o racismo nasce com o colonialismo, nem que o colonialismo é a condição de possibilidade do racismo; o que ele diz é que a experiência colonial européia (com Inglaterra e França) ajuda a desenvolver o discurso do racismo (CASTRO-GÓMEZ, 2007, p. 158). Adriano Negris 82 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder função do surgimento de uma nova tecnologia de poder – a biopolítica. É no século XIX que o poder tomará a vida da população como eixo central de suas atividades. O poder passa a proteger e fomentar a vida do homem enquanto ser vivo, havendo, portanto, uma “estatização do biológico”. Dentro de uma biopolítica, o racismo aparece como uma estratégia de guerra que objetiva fragmentar o contínuo biológico que é o corpo social. Essa cisão permite categorizar uma raça como boa e outra ruim, sendo certo que a morte da raça ruim ou inferior é condição para deixar a vida mais sadia e pura. Como diz Foucault: De uma parte, de fato, o racismo vai permitir estabelecer, entre minha vida e a morte do outro, uma relação que não é uma relação militar e guerreira de enfrentamento, mas relação do tipo biológico: “quanto mais espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu – não enquanto indivíduo mas enquanto espécie – viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar” (FOUCAULT, 201, p. 215). A grande novidade trazida pelas modificações estratégicas ocorridas no século XIX é ingresso do racismo nos mecanismos do Estado. Com a emergência da biopolítica o racismo visto como formação discursiva e dispositivo político passa a se vincular aos mais diversos contextos de guerra social e a circular em diferentes cadeias de poder. Conforme comenta Guilherme Castelo Branco: É precisamente a partir do momento em que poder e conhecimento biológico se entrelaçam que surge, segundo Foucault, uma nova modalidade, contemporânea de racismo. Ora, é obvio que o racismo existe Adriano Negris 83 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder há muito; todavia, foi a emergência do biopoder que tornou possível a entrada do racismo nos mecanismos do Estado (CASTELO BRANCO, 2013, p. 86). O racismo, segundo Foucault, é o meio de introduzir no total da vida que o biopoder pretender dar conta uma espécie de cisão, uma divisão entre o que deve viver e o que deve morrer. Para Foucault, a distinção das raças e a sua hierarquização são os modos de fragmentar o campo biológico que o poder se incumbiu de administrar. Trata-se de produzir uma fronteira biológica no interior de um domínio biológico. Como consequência disso, Foucault diz que o poder vai tratar a população como uma multiplicidade, realizando, por conseguinte, sua fragmentação em espécies ou subgrupos e, portanto, em raças. Dito isso, percebemos que o racismo é um mecanismo de viés biológico na medida em que a ideia de inimigo já não é mais aquele inscrito somente no registro político. O inimigo em termos biológicos pode ser identificado com toda a sorte de perigos, externos ou internos, em relação a população ou para população (FOUCAULT, 2010, p. 215). A eliminação do inimigo representa a saúde da própria raça, uma vez que por meio da destruição do perigo que o inimigo representa a vida se torna mais pura. Enfim, o racismo teria a função de justificar a eliminação do outro em função da defesa da população. Dessa maneira conseguimos compreender que o racismo é um mecanismo-chave que permite o exercício do direto de morte numa sociedade de normalização. O direito de matar passa a ser aceitável numa sociedade de normalização quando ele está destinado a afastar ou eliminar um perigo biológico, fortalecendo, por via reflexa, a própria espécie ou raça. Não é por outro motivo que: (...) o racismo é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização. Quando vocês têm uma sociedade de normalização, quando vocês Adriano Negris 84 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder têm um poder que é, ao menos em toda a sua superfície e em primeira instância, em primeira linha, um biopoder, pois bem, o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo (FOUCAULT, 2010, p. 215). Na sociedade de normalização (onde os cálculos do poder incidem sobre os aspectos da vida humana enquanto espécie), a morte só pode ser aceita à luz do racismo. Para a morte ingressar nessa economia de poder, ela tem de estar inscrita sob a insígnia do racismo. O Estado não mais detém o direito de gládio à maneira do antigo direito do soberano. O direito de matar reingressa nos cálculos do poder por meio do racismo, que se comporta como uma espécie de ofensiva contra os perigos que ameaçam uma raça. Nesse sentido, o racismo se torna a condição de possibilidade para o direito de matar 5. Devemos lembrar que esse direito de matar deve ser entendido em seu sentido mais amplo, devendo englobar não só a morte de fato, mas também todas as condutas que levam à exposição à morte, o incremento do risco de morte, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc. Em suma, toda a espécie de clivagem que expõe a vida do outro ao perigo de morte. 5 Sobre o racismo em nosso presente histórico Castelo Branco realiza o seguinte apontamento: “As práticas de Estado em curso no nosso tempo, alicerçadas na moderna administração da vida social, poderiam perfeitamente ser explicadas pelo “princípio do genocídio”, segundo o qual, inicialmente, deve-se escolher quem matar para depois deliberar sobre quem deixar viver. O alerta é feito por Michel Foucault: “o princípio: poder matar para poder viver, que sustentava a tática dos combates, tornou-se princípio de estratégia entre Estados, que não buscam mais se legitimar tão somente pela clássica tese jurídica da soberania, mas sobretudo pelo poder biológico de salvaguardar a existência de suas populações pelo poder de eliminação do que é lhes considerado estranho e/ou externo. Esta forma de gestão/explicação do poder de Estado, na verdade, esclarece bem mais seu potencial mortífero e destruidor do que sua força de intervenção em prol de premissas igualitárias e da realização de bens sociais coletivos” (CASTELO BRANCO, 2004, 137-138). Adriano Negris 85 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder Isso nos leva a compreender o motivo pelo qual, no final do século XIX, houve uma maior inserção de teses biológicas no discurso político. Como salienta Foucault, nesse período histórico começa a se notar no discurso político a presença de uma certa teoria evolucionista, no sentido de hierarquia entre as espécies, luta pela vida e seleção natural que elimina os menos adaptados. Esse discurso político com tom biológico vem a justificar as relações de colonização, necessidade de guerras, criminalidade, loucura, doença mental, bem como a divisão da sociedade em classes. Esse operador do racismo vai se mostrar fundamental no processo de colonização, autorizando não só submissão do colonizado, mas também quando se tratar do genocídio de outros povos, o extermínio seletivo de outras populações. Trata-se da transformação do outro em inimigo, mas um inimigo com roupagem biológica. Esse caráter biológico do inimigo é que possibilitará sua eliminação, tendo em vista que ele pode representar uma ameaça a determinada raça. No que concerne as relações de guerra, a leitura do inimigo já não é mais feita em termos exclusivamente políticos. Destruir o inimigo na guerra significa eliminar a raça adversa, aquela que representa um perigo biológico à espécie. Além disso, a guerra torna-se uma forma de regenerar a própria raça, ou seja, “quanto mais numerosos forem os que morrerem entre nós, mais pura será a raça a que pertencemos” (FOUCAULT, 2010, p. 217). O racismo precisava ingressar no sistema punitivo do Estado para que fosse permitido o direito de morte, encarceramento e o isolamento do criminoso. O criminoso é uma ameaça a própria raça, uma vez que ele expõe a população ao perigo. Esse mesmo mecanismo do racismo pode ser identificado na condenação à morte ou na prática de isolamento dos criminosos. Ele também é verificado no tratamento dos loucos ou quanto aos portadores de anomalias diversas. Em todos esses casos, a tese do evolucionismo (racismo) será condição para matar. Segundo Foucault: Adriano Negris 86 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder Em linhas gerais, o racismo, acho eu, assegura a função de morte na economia do biopoder, segundo o princípio de que a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela é membro da raça ou de uma população, na medida em que se é elemento numa pluralidade unitária e viva. Vocês estão vendo que aí estamos, no fundo, muito longe de um racismo que seria, simples e tradicionalmente, desprezo ou ódio das raças umas pelas outras. Também estamos muito longe de um racismo que seria uma espécie de operação ideológica pela qual os Estados, ou uma classe, tentaria desviar para um adversário mítico hostilidades que estariam voltadas para [eles] ou agitariam o corpo social (FOUCAULT, 2010, p. 217). O grande traço peculiar do racismo de Estado reside no fato de que ele está vinculado aos mecanismos tecnológicos de poder. O que caracteriza o racismo moderno não é seu caráter ideológico. O racismo na sociedade do biopoder se revela como uma tecnológica a serviço da biopolítica. Nesse sentido, o racismo se caracteriza como condição de possibilidade de eliminar a vida em uma sociedade de normalização. O racismo, diz Foucault, “é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da raça para exercer seu poder soberano” (FOUCAULT, 2010, p. 217). Foucault considera que o ápice do racismo de Estado chega com o nazismo. Na concepção de Foucault, o nazismo foi um regime político notoriamente caracterizado pelo seu elevado grau disciplinar e regulamentador6. Não obstante, a sociedade 6 Guilherme Castelo Branco estabelece um interessante paralelo entre o racismo de Estado nazista e os genocídios sistemáticos de se deram no último século, vejamos: “O nazismo, considerado segundo a análise de Michel Foucault, realizou uma combinação dos fantasmas do sangue com usos explícitos e exagerados de poder disciplinar que acabou por tornar seu racismo tão terrível como ingênuo. Se o nazismo realizou o maior e mais terrível massacre de que os homens se lembram na atualidade, os crimes racistas praticados em massa no Adriano Negris 87 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder nazista desencadeou de forma mais completa o velho poder soberano de matar. Se diz isso porque, no nazismo, o direito de vida e de morte não é conferido apenas ao Estado, mas ele é disseminado entre um número considerável de pessoas. Foucault recorda que no Estado nazista todos têm o direito de vida e morte sobre o seu vizinho, ainda que fosse pelo comportamento da denúncia (FOUCAULT, 2010, p. 218). O que se passa no regime nazista é o desencantamento do poder soberano, uma vez que ele não precisa mais ser ritualizado para ser concretizado. Outro ponto que deve ser destacado: no nazismo a guerra tornou-se o objetivo político central. A guerra tem um duplo propósito, ou seja, com a guerra não se pretende simplesmente aniquilar a outra raça (o inimigo), mas também expor a população à morte, a destruição total. Esse risco de morrer pelo regime não é uma coisa acidental, mas sim um dos deveres fundamentais da obediência nazista e que está no centro de sua política. A submissão de toda a população ao risco de aniquilamento é o meio de ascensão e constituição de uma raça superior, com a consequente necessidade de destruição das outras raças. No regime nazista o biopoder e o poder soberano andam de “mãos dadas”, por isso observa Foucault: Tem-se na sociedade nazista uma coisa extraordinária: é uma sociedade que generalizou absolutamente o biopoder, mas que generalizou, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar. (...) o Estado nazista tornou absolutamente coextensivos o campo de uma vida que ele organiza, protege, garante, cultiva biologicamente, e, ao mesmo tempo, o direito do soberano de matar quem quer que seja – não só os outros, mas seus próprios. (...) Temos um Estado absolutamente racista, um Estado absolutamente assassino e um Estado último século são disseminados e amplamente espalhados por todos os países do mundo, na maioria dos casos feitos segundo uma administração calculada das mortes com o controle dos meios de divulgação de seus resultados (CASTELO BRANCO, 2004, p. 138). Adriano Negris 88 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder absolutamente suicida (FOUCAULT, 2010, p. 219). Para Foucault, podemos afirmar, foi o nazismo que levou o paradoxo da relação entre biopoder-poder soberano ao extremo. Em relação à atualidade, Foucault não respondeu afirmativamente se esse paradoxo entre o direito soberano de matar e os mecanismo do biopoder encontra-se inscrito no funcionamento dos Estados capitalistas modernos. Agora, compreendido brevemente os termos do racismo foucaultiano, deve-se indagar: O mecanismo do racismo traçado por Foucault representa exatamente uma necropolítica, tal como pensada por Achille Mbembe? Podemos simplesmente aproximar os conceitos e dizer que esses pensadores estão em sintonia quando se fala sobre um direito de morte? Obviamente, algumas aproximações podem ser feitas, acreditamos que sejam até inevitáveis, porém, enxergar uma harmonia entre o racismo de Foucault e a necropolítica de Mbembe é optar pelo apagamento ou rasura da história de colonização e terror sofrida por uma cultura de matriz não-europeia. Parece claro que as pesquisas de Foucault são oriundas de um lugar geograficamente determinado e, como tal, ocupa uma posição específica no cenário das múltiplas relações políticas que se estabelecem entre povos, culturas, línguas e nações. Como Foucault mesmo disse, cada sociedade tem seu regime de verdade, isto é, tipos de discursos que uma sociedade acolhe e faz funcionar como verdadeiros ou falsos. Determinadas práticas e regimes de verdade são estabelecidos em um lugar e durante um tempo histórico específico. Isso não significa que essas práticas e regimes se reproduzirão com a mesma configuração e sentido em todos os lugares. Assim sendo, é necessário um deslocamento teórico- discursivo para pensar outras dinâmicas de poder. Foucault sempre deixou claro em suas pesquisas arqueológicas/genealógicas que estudava práticas locais e bem situadas em um determinado tempo histórico. Podemos dizer Adriano Negris 89 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder que Foucault pensou geopoliticamente a Europa, tal como pede um pensador europeu. O que não podemos é universalizar suas compreensões acerca do poder e aplicá-las indistintamente a qualquer espaço, povo, língua ou cultura. É com base nessas observações que defendemos a ideia de que a necropolítica de Mbembe não é uma mera variação, continuidade ou derivação do racismo pensado por Foucault. A necropolítica trata de um mecanismo de poder peculiar que emerge do processo histórico de colonização dos povos da África e das Américas, servindo de base para constituição do modelo de Modernidade europeia, que se perpetua até os dias de hoje por meio da globalização, do neoliberalismo e do colonialismo7. O ensaio de Mbembe, chamado Necropolítica (2018), pode ser descrito como um texto “anticolonial”, o qual introduz a morte como um mecanismo central que opera dentro da política global. Mbembe mobiliza um número de ideias para demonstrar como a necropolítica reconfigura as relações sociais, apagando as fronteiras entre a resistência e o suicídio, o sacrifício e a redenção, o martírio e a liberdade. Além disso, Mbembe identifica determinados espaços em que a necropolítica atua, sendo uma importante ferramenta analítica, uma vez que a biopolítica não seria o instrumento mais adequado como paradigma de análise8. 7 Entendemos o colonialismo como uma relação de dominação política, social e cultural, exercida de forma direta pela Europa sobre determinados povos. Uma das principais estratégias utilizadas por esse poder colonial foi a categorização da população mundial por meio de um discurso de raça, uma prática político- discursiva que se verifica na experiência mais básica de colonialismo. Como sistema formal de dominação política o colonialismo encontra-se extinto. Entretanto, a essência do poder colonial se provou mais duradoura e estável que sua própria matriz, o colonialismo. 8 Mbembe inicia seu texto colocando em questão a biopolítica de Foucault como ferramenta eficaz de análise das relações de poder que se desenvolvem em determinados espaços. O pensador camaronês se interroga: “Essa noção de biopoder é suficiente para contabilizar as formas contemporâneas em que o político, por meio da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, faz do assassinato do inimigo seu objetivo primeiro e absoluto? A guerra afinal, é tanto um meio de alcançar a soberania como uma forma de exercer o direito de matar. Adriano Negris 90 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder A nossa intenção aqui não é realizar um esgotamento do conceito de Mbembe ao ponto de tecer uma “analítica do necropoder”. Nosso objetivo é entender a dinâmica da categoria, digamos, “invertida” da biopolítica foucaultiana. Então, perguntamos: o que seria propriamente uma necropolítica? Como vimos anteriormente, para Foucault, o poder de administração sobre a vida aparece no século XIX como forma de controle e gestão da população. Chamado de biopolítica, essa tecnologia de poder procura estabelecer o equilíbrio ou a homeostase interna da população, buscando a segurança do conjunto em relação aos eventuais perigos que se desdobram ao longo da vida em sociedade. Nesse sentido a biopolítica é uma tecnologia de previdência ou regulamentadora que opera no interior da massa populacional. Esse poder age para intervir na vida, para fazer viver, na maneira de viver e no “como” fazer viver. A função desse poder seria a de aumentar, estender, prolongar a vida. É importante notar que o poder sobre o qual se fala não recai sobre a morte. O biopoder incide sobre a mortalidade e não sobre a morte. A morte “vai ser o momento em que o indivíduo escapa a qualquer poder, pois o poder já não conhece a morte, o poder a deixa de lado” (FOUCAULT, 2010, p. 208). Mbembe articula suas argumentações com base em três conceitos: a noção de biopoder foucaultiana, os conceitos de soberania e estado de exceção 9. Essas categorias são destinadas Se consideramos a política uma forma de guerra, devemos perguntar: que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano (em especial o corpo ferido ou massacrado)? Como eles estão inscritos na ordem do poder? (MBEMBE, 2018, p. 06-07). 9 Sobre o conceito de estado de exceção, Mbembe explicita claramente sua fonte: o jurista alemão Carl Schmitt. Concordando com Schmitt, o filósofo italiano Giorgio Agamben, no livro Estado de Exceção (2004), diz que o soberano é aquele que suspende o direito, a regra, a lei vigente. O soberano é aquele que pode fazer uso da exceção, que não segue a regra e que suspende o que é de direito, inclusive o próprio direito. O soberano decide sobre o estado de exceção. O estado de exceção cria uma espécie de “não-lugar”, onde o sistema jurídico vigente e instituído regularmente é suspenso, porém, passa-se a “governar” a partir de normas ou atos normativos de tem “força de lei”. Esses atos normativos com “força de lei” encontram-se em uma situação hibrida, pois estão incluídos Adriano Negris 91 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder a pensar não a ideia de soberania como autonomia e autodeterminação dos povos, mas como uma espécie de tecnologia de poder que transforma determinados espaços políticos em campos de morte, produzindo a “instrumentalização da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações” (MBEMBE, 2018, p. 10-11). no ordenamento jurídico, mas na forma de exclusão. Assim o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico. Segundo Agamben: o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da suspensão (AGAMBEN, 2012, p. 24). E o filósofo italiano continua: “a situação, que vem a ser criada na exceção, possui, portanto, este particular, o de não poder ser definida nem como uma situação de fato, nem como uma situação de direito, mas institui entre estas um paradoxal limiar de indiferença. Não é um fato, porque é criado apenas pela suspensão da norma; mas pela mesma razão, não é nem ao menos um caso jurídico, ainda que abra a possibilidade de vigência da lei” (AGAMBEN, 2012, p. 25). Essa instância de não-direito ou de suspensão do direito é analisado por Giorgio Agamben com o objetivo de demonstrar, a partir do estado de exceção discutido por Carl Schmitt, a estratégia acionada pelo direito para salvaguardar (ou garantir) a ordem jurídica. Essa estratégia seria a “força de lei”, que, enquanto termo técnico do direito, permite operar uma separação (segundo Agamben) entre a aplicação da norma e o que é formalizado em “sua essência”, motivo pelo qual “decretos, disposições e medidas, que não são formalmente leis, adquirem, entretanto, sua ‘força de lei’”. É por isto que Agamben, se interrogando sobre o sintagma “força de lei”, pode afirmar que o estado de exceção é uma força de lei desprovida de lei. O estado de exceção define um “estado de lei” em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem “força”) e, por outro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua “força”. Neste caso extremo, a “força de lei” flutua como um elemento indeterminado, que pode ser reivindicado tanto pela autoridade estatal quanto por uma organização revolucionária. O estado de exceção é um espaço anômico em que o que está em jogo é uma força de lei sem lei... algo como um elemento místico, ou melhor, uma ficção por meio da qual o direito busca se atribuir sua própria anomia (AGAMBEN, 2004, p. 60-61). Mbembe vê nesse conceito de Agamben uma metáfora para os campos de morte, que representam a violência destrutiva e soberana, como último sinal do poder absoluto do negativo. E assim Mbembe ressalta: “na estrutura político-jurídica do campo, acrescenta, o estado de exceção deixa de ser uma suspensão temporal do estado de direito. De acordo com Agamben, ele adquire um arranjo especial permanente, que se mantém continuamente fora do estado normal da lei” (MBEMBE, 2018, p. 08). Adriano Negris 92 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder Para Mbembe a soberania se trata de uma relação de poder que se constrói segundo a articulação do estado de exceção e ideia de inimigo para, assim, consolidar o direito de matar. Trata-se, enfim, de uma tecnologia política voltada para o massacre populacional, a destruição de corpos e a reificação do humano (devir-objeto do ser humano). A necropolítica está intimamente relacionada com a noção da inimizade. De acordo com Mbembe, o Outro é sempre percebido como um perigo, não apenas à segurança, mas à própria vida. Aí reside a lógica da inimizade: a vida do Outro não é ameaçadora para alguns aspectos da segurança física ou outra forma de segurança, é uma ameaça à vida em sua totalidade. A eliminação física do Outro torna-se a abordagem necessária para tal ameaça percebida. A necropolítica como uma tecnologia voltada para o trabalho de morte (centrada no direito de morte do soberano), como é bem colocada por Mbembe, não designa uma tecnologia anterior ou posterior a biopolítica. Ela é uma tecnologia política que atravessa todo o próprio processo histórico da Modernidade, permanecendo, muitas das vezes ocultada, mas sempre em constante tensionamento com as formas biopolíticas. Por esse motivo, Mbembe diz que “qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica” (MBEMBE, 2018, p. 27). A partir da experiência colonial na África (mas que também pode se estender para outros lugares onde se deu o processo de colonização, tal como na América do Sul10) 10 Sobre a experiencia colonial no Brasil, Caio Prado Jr. afirma que a escravidão, tal como ocorreu na América, notadamente no Brasil, possuiu aspectos especialmente negativos. A escravidão no Brasil, incorporou de pronto culturas completamente heterogêneas, sendo uma raça considerada bárbara e outra superior e dominadora. Nesse processo, diz o historiador, os índios, por meio da obra missionária dos jesuítas, em que pese todos os problemas, foram afastados das formas mais deprimentes da escravidão. Sobre os negros, Caio Prado destaca: Mas para o negro africano nada disto ocorreu. As ordens religiosas, solícitas em defender o índio, foram as primeiras a aceitar, a promover mesmo a escravidão africana, a fim de que os colonos, necessitados de escravos, lhe Adriano Negris 93 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder Mbembe observa que naquele momento histórico existia uma espécie de poder diferenciado, que interveio para manter o controle e administrar as populações colonizadas. A experiência colonial permitiu a Mbembe a vislumbrar no sistema de plantation (adotado no Brasil durante o período colonial, sendo a utilizado nos engenhos de açúcar do Nordeste brasileiro nos séculos XVI e XVII) verdadeiros espaços de morte. No sistema de plantation Mbembe enxerga a figura do estado de exceção, com todos os seus consectários lógicos: suspensão do ordenamento jurídico, subtração da condição política do homem e o governo exercido por meio de “força de lei”. Ao ser levada ao extremo, a lógica do estado de exceção pode levar à subtração do estatuto jurídico e reduzir a condição humana à simples corpos biológicos. Vale lembrar que no sistema de plantation, ou mesmo no sistema escravocrata, o escravo perde a condição humana para se tornar uma coisa (o que outrora foi denominado de “devir-objeto”). Na colônia o direito de matar do soberano era irrestrito11. De outro lado, a vida do escravo pertencia ao senhor. deixassem livres os movimentos do setor indígena. O negro não teve no Brasil a proteção de ninguém. Verdadeiro “pária” social, nenhum gesto se esboçou a seu favor. E se é certo que os costumes e a própria legislação foram com relação a ele mais benignos na sua brutalidade escravista que em outras colônias americanas, tal não impediu contudo que o negro fosse aqui tratado como o último dos descasos no que diz respeito à formação moral e intelectual, e preparação para a sociedade em que à força o incluíram. (...) As raças escravizadas e assim incluídas na sociedade colonial, mal preparadas e adaptadas, vão formar nela um corpo estranho e incômodo. O processo de sua absorção se prolongará até os nossos dias, e está longe de terminado (PRADO JR., 2011, p. 292-293). Quanto ao estatuto jurídico do escravo no Brasil, o historiador explica que “a colônia acompanhou neste terreno o direito romano, para quem o escravo é uma “coisa” do seu senhor, que dela dispõe como melhor lhe aprouver (PRADO JR., 2011, p. 294). 11 Como Mbembe ressalta: o direito soberano de matar não está sujeito a qualquer regra nas colônias. Lá, o soberano pode matar a qualquer momento ou de qualquer maneira. A guerra colonial não está sujeita a normas legais e institucionais. Não é uma atividade codificada legalmente. Em vez disso, o terror colonial se entrelaça constantemente com um imaginário colonialista, caracterizado por terras selvagens, morte e ficções que criam o efeito de verdade (MBEMBE, 2018, p. 36). Adriano Negris 94 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder A vida do escravo, de certo modo, era uma morte em vida. A vida do escravo equipara-se a um objeto, a uma coisa. Essa dominação do escravo é levada a cabo com a perda de seu lar, o afastamento da família, a perda do direito sobre seu corpo e a destituição de todo o status político. Mbembe explica que Como instrumento de trabalho, o escravo tem um preço. Como propriedade, tem um valor. Seu trabalho responde a uma necessidade e é utilizado. O escravo, por conseguinte, é mantido vivo, mas em “estado de injúria”, em um mundo espectral de horrores, crueldade e profanidade intensos. (...) Violência, aqui, torna-se um componente da etiqueta, como dar chicotadas ou tirar a vida do escravo: um capricho ou um ato de pura destruição visando incutir o terror. A vida do escravo, em muitos aspectos, é uma forma de morte- em-vida (MBEMBE, 2018, p. 28-29). Contudo, se vemos a relação entre morte e vida se tornar central como tecnologia política dos regimes de colonização europeia instaurados em diversos lugares do mundo, Mbembe destaca que no regime de apartheid12 aparece uma forma peculiar de terror, que na sua essência orquestra o biopoder, o estado de exceção e o estado de sítio. Para Mbembe, no âmago desse sistema implantado pelos europeus opera o racismo como tecnologia de poder, traduzido na proibição de casamentos mistos, esterilização forçada e extermínios dos povos vencidos. Diante desse panorama não é difícil concluir que para Mbembe a necropolítica, diferentemente do racismo foucaultiano, aparece durante o processo de colonização europeu ocorrido na Modernidade. Esse processo não só contou 12 Mbembe explica que no regime do apartheid na África a soberania era traduzida em ocupação, relegando o colonizado a uma terceira zona, entre o estatuto de sujeito e objeto. Assim, por meio da demarcação espacial o fluxo de mão de obra migrante poderia ser regulamentado e a urbanização africana mantida sob controle (MBEMBE, 2018, p. 39). Adriano Negris 95 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder com a escravidão do povo africano, mas também com o extermínio massivo da população indígena nas Américas. Por isso, para Mbembe: pouco importa que as tecnologias que culminaram no nazismo tenham sua origem na plantation ou na colônia, ou, pelo contrário – a tese foucaultiana –, que nazismo e stalinismo não tenham feito mais do que ampliar uma série de mecanismos que já existiam nas formações sociais e políticas da Europa ocidental, (subjugação do corpo, eugenia, teorias médico-legais sobe hereditariedade, degeneração e raça). Um traço persiste evidente: no pensamento filosófico moderno assim como na prática e no imaginário político europeu, a colônia representa o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem de lei (ab legibus solutus) e no qual a “paz” tende a assumir o rosto de uma “guerra sem fim” (MBEMBE, 2018, p. 32-33). Em suma, no contexto da tecnologia necropolítica e colonização13, o direito do soberano, substancializado na forma de morte, consiste basicamente em decidir quem importa ou quem não importa viver. Assim, na dimensão desse poder que tem a morte no seu âmago, há vidas que merecem ser vividas e existem vidas que não são dignas de viver. A soberania é justamente esse poder de decisão sobre a morte. Ela é uma decisão sobre a dignidade ou não de vida. 13 No cenário político contemporâneo Mbembe menciona a ocupação da Palestina como um caso de ocupação colonial moderna, que necessariamente congrega vários poderes: disciplinar, biopolítico e necropolítico. Essa afirmação de Mbembe vem ao encontro da tese que aqui defendemos: para uma análise das relações de poder é imprescindível o auxílio de uma leitura geopolítica. Isso porque é preciso considerar não só a historicidade das práticas de poder, mas também espacialidade a partir da qual elas se desenvolvem. Somado a isso, defendemos que em determinada espacialidade diversas práticas de poder podem atuar simultaneamente sobre diferentes objetos, com finalidades distintas e operando em diversos níveis e cadeias múltiplas de ação. Adriano Negris 96 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder No cenário político contemporâneo, Mbembe comenta que o direito soberano de matar já não é mais monopólio do Estado. Mbembe destaca que mudança econômica na África no último quarto do século XX levou muitos Estados africanos a perderem o monopólio da violência dentro dos seus territórios. O poderio bélico, antes pertencente ao Estado, tornou-se um verdadeiro mercado, que oferece armas e mão de obra militar para o comércio. Como resultado disso, houve a formação de exércitos privados, grupos de segurança privada, milícias, grupos paramilitares, todos reivindicando o direito de exercer a violência ou o direito de morte. Cabe ressaltar aqui que de modo similar enfrentamos esses problemas no Estado do Rio de Janeiro, com as facções criminosas responsáveis pelo tráfico de drogas em determinadas localidades, bem como o crescente domínio territorial de milícias14. São exemplos de grupos constituídos à margem do Estado e que proclamam o direito de governar sobre seus domínios territoriais, exercendo o direito de violência e morte. Essas organizações, diz Mbembe, operam como “máquinas de guerra”, ou seja, grupos segmentados, constituídos por homens armados, que se dividem e se mesclam em suas atuações, formando corpos difusos e polimorfos. Essas máquinas possuem uma organização política e estrutura de uma empresa comercial. Elas são organismos predatórios que “taxam territórios e as populações que os ocupam e se baseiam numa variedade de redes transnacionais e diásporas que os proveem com apoio material e financeiro” (MBEMBE, 2018, p. 58). 14 A autora Ariadna Estevez, no texto Biopolítica y necropolítica ¿constitutivos u opuestos? nos diz que “as milícias urbanas, os exércitos privados e as polícias de segurança privada também tem acesso as técnicas e práticas de morte. A proliferação de entidades necroempoderadas, junto com o acesso generalizado à tecnologias sofisticadas de destruição e as consequências das políticas socioeconômicas neoliberais, fazem que os campos de concentração, os guetos e as plantações se convertam em aparatos disciplinares dispensáveis porque são facilmente substituídos pelo massacre, uma tecnologia do necropoder que pode executar-se em qualquer lugar e a qualquer momento (tradução nossa – ESTEVEZ, 2018, p. 19-20). Adriano Negris 97 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a pesquisa de Mbembe podemos notar que o conceito de biopolítica foucaultiano é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. Em algumas espacialidades o poder de morte que subjuga a vida está para além do racismo de Estado pensado por Foucault. Se, de um lado, Foucault enxergou na experiência do nazismo e do socialismo um paradoxo biopolítico; por outro lado, desde o processo de colonização europeia na Modernidade, a necropolítica operou por outros meios, tais como estados de exceção, disseminação da morte, infringência de dor aos corpos subjugados, proliferação do terror e do sacrifício aos população dos povos conquistados. A necropolítica é, ainda, uma técnica de poder que está presente na era da governamentalidade neoliberal. Obviamente, ela se manifesta nas zonas periféricas do neoliberalismo, fora do circuito das grandes potências econômicas do planeta. Nessas zonas periféricas, a necropolítica, em tensionamento com outras técnicas de poder, se traduz no crescente aumento das práticas discriminatórias, no vertiginoso aumento dos discursos de ódio, nos grandes extermínios étnicos ocorridos em várias partes do mundo, nos expurgos em massa de determinadas populações do globo, no aumento do número de assentamentos de refugiados15. Nesses verdadeiros espaços de morte, “as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte” (MBEMBE, 2018, p. 71). Desse modo, ao colher os proveitos das pesquisas de Mbembe, sustentamos que a governamentalidade neoliberal abriga duas espécies de técnicas de poder (biopolítica e 15 No texto De la biopolítica a la necropolítica: la vida expuesta a la muerte, o autor Ignacio Mendiola, sublinha que “a necropolítica que Mbembe anuncia remete a uma lógica de excepcionalidade securitária assumida por uma soberania (neo)liberal-(neo)colonial que instrumentaliza a existência humana possibilitando a destruição de corpos e sujeitos considerados supérfluos, sendo esse caráter de supérfluo algo que, em grande medida, vem acompanhado de um discurso que não deixa se construir uma noção ficcionalizada ou fantasmática do inimigo (tradução nossa) (MENDIOLA, 2017, p. 233). Adriano Negris 98 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder necropolítica), que em determinados espaços se mostram em constante tensionamento. Assim, podemos dizer que a biopolítica é proeminente nas regiões do globo onde a governamentalidade neoliberal eleva e otimiza as condições vida. Por óbvio, estamos falando das regiões do planeta que se apresentam com as economias mais fortes e são que capazes de fornecer um “bom estilo de vida” para os indivíduos. Por outro lado, em regiões do planeta como a África e a América, é possível vislumbrar a existência de localidades, territórios ou espaços em que a regulação da vida é feita pela morte. Ao menos no Brasil verifica-se o abandono sistemático de políticas públicas ligadas à saúde, higiene, saneamento básico e a formação de capital humano. Em determinadas localidades do nosso país, tal como as favelas do Estado Rio de Janeiro, a regulamentação da vida se faz por meio de máquinas de guerra (nos moldes citados por Mbembe), que atuam segundo o imaginário do inimigo e preconizam um verdadeiro mundo de morte. As subjetividades produzidas nesses espaços ficam sujeitas à morte sob um duplo aspecto: o real, divido aos conflitos armados, pobreza extrema e a submissão a todo tipo de doença e, ainda, a morte simbólica, pois são subjetividades consideradas invisíveis no sentido político e social. Desse modo, pelo que foi exposto, podemos concluir que a biopolítica, não obstante comportar o direito de morte na forma do racismo (segundo a tese foucaultiana), ela não deve ser assimilada com a necropolítica pensada por Mbembe. Apesar do conceito de necropolítica colher alguma inspiração na dinâmica das relações de poder vista por Foucault, os conceitos aqui em jogo não podem ser integrados, muito menos um ser assimilado ao outro. Isso é importante na medida em que o conceito de necropolítica detém uma historicidade própria, cunhado a partir da experiência política e cultural de um povo específico. Não levar essas especificidades para fins de análise significa desconsiderar a alteridade e a diferença, promovendo uma violência, que é exatamente o apagamento, a rasura do Outro. Adriano Negris 99 Ítaca n.º 36 – Especial Filosofia Africana ISSN 1679-6799 Entre Biopolítica e Necropolítica: uma questão de poder REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. ______. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. ______. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução Davi Pessoa Carneiro, 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. CASTELO BRANCO, G. Governamentalidade, política, resistências ao poder In: Michel Foucault: política: pensamento e ação. Haroldo Resende (org.), Autêntica Editora, 2016, pp. 111-121. ______. O racismo no presente histórico: análise de Michel de Foucault. Kalagatos, v. 1, n. 1, p. 129-144, 6 dez. 2004. ______. 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