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Sickle Cell Disease pediatric medicine health disease management

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This document provides an overview of Sickle Cell Disease, focusing on its clinical presentation, pathophysiology, and management in the emergency department. It covers topics such as acute pain crisis, acute chest syndrome, and transfusion.

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DOENÇA FALCIFORME Ana Paula Pereira da Silva João Carlos Batista Santana Patricia Miranda do Lago OBJETIVOS Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de ▪ reconhecer as apresentações clínicas e as principais manifestações agudas da doença falciforme (DF); ▪ identificar os diagnósticos...

DOENÇA FALCIFORME Ana Paula Pereira da Silva João Carlos Batista Santana Patricia Miranda do Lago OBJETIVOS Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de ▪ reconhecer as apresentações clínicas e as principais manifestações agudas da doença falciforme (DF); ▪ identificar os diagnósticos diferenciais da crise álgica no paciente com DF; ▪ identificar e manejar a síndrome torácica aguda (STA); ▪ discutir a investigação e o tratamento do paciente com DF e febre; ▪ discutir o tratamento inicial para paciente com DF e acidente vascular cerebral (AVC); ▪ reconhecer as indicações de transfusão sanguínea e exsanguinotransfusão (EST) no paciente com DF. ESQUEMA CONCEITUAL INTRODUÇÃO A DF é uma condição genética autossômica recessiva causada por uma mutação simples do códon 6 do gene da cadeia da β-globina, resultando na substituição da glutamina pela valina. Trata-se da doença autossômica recessiva mais comum no mundo, afetando cerca de 30 milhões de pessoas. Estima-se que entre 300 mil e 500 mil crianças nasçam todo ano com a forma grave.1–3 No Brasil, a prevalência varia de 60 mil a 100 mil casos por ano, proporcionalmente diferente entre os Estados brasileiros. Na Bahia, a doença pode atingir 1:650 nascidos vivos, enquanto, no Rio Grande do Sul, a incidência é de 1:11 mil nascidos vivos.4 Em países desenvolvidos, as crianças com DF apresentaram melhora na expectativa de vida nas últimas décadas, o que tem relação com triagem neonatal com diagnóstico precoce, cobertura vacinal para Streptococcus pneumoniae, profilaxia com penicilina. Com a diminuição da mortalidade, o foco principal tem sido a melhora da qualidade de vida e a redução da morbidade.1–3 A característica clínica da DF inclui episódios de dor aguda, principal razão para visitas ao departamento de emergência e internações de pacientes com DF. Além de manejar esses episódios de dor aguda, o pediatra deve estar alerta a outras manifestações, complicações e comorbidades da doença, algumas das quais com risco significativo de vida. Neste capítulo, serão abordados a apresentação clínica e o manejo das principais situações agudas de urgência no paciente com DF. FISIOPATOLOGIA A DF envolve um grupo de condições caracterizadas pela presença da hemoglobina S (HbS), que é o resultado da substituição do ácido glutâmico pela valina na posição de aminoácido B6. Pode ser DF homozigota (HbSS), DF com hemoblobina C (HbSC), DF com talassemia (HbS/talassemia) e outras condições heterozigotas. O traço falcêmico (HbAS) é uma condição benigna, um estado de carreador, não considerado DF.1–3,5 A HbS é polimerizada quando desoxigenada. Os polímeros produzem alterações, como rigidez e eritrócito em forma de foice, que sofre hemolisação com facilidade. A célula em foice resulta em aumento da viscosidade sanguínea e diminuição do fluxo sanguíneo, com formação de trombos (doença vasoclusiva) e destruição precoce (anemia hemolítica). Embora se acreditasse inicialmente que a mudança das características de fluxo e agregação de eritrócitos, por si só, causasse vasoclusão, a etiologia é multifatorial.5 A ativação endotelial inicial com aumento da aderência dos eritrócitos e leucócitos é seguida pela formação de agregados heterocelulares, que resultam em oclusão e hipoxia local. Esse processo desencadeia um ciclo vicioso de aumento da formação de HbS causada por hipoxia, presença de mediadores inflamatórios, radicais livres e lesão de reperfusão. Os eritrócitos são mais propensos à forma de foice e tornam-se rígidos quanto mais desidratados ficam (Figura 1).5 HbS: hemoglobina S; STA: síndrome torácica aguda; NO: óxido nítrico; EROs: espécies reativas de oxigênio; AVC: acidente vascular cerebral. FIGURA1: Fisiopatologia da DF. // Fonte: Adaptada de Ochocinski e colaboradores (2020).3 O primeiro processo fisiopatológico é a vasoclusão. A dor aguda por vasoclusão é causada pelo aprisionamento de eritrócitos e leucócitos na microcirculação, gerando obstrução vascular e isquemia tecidual. Apesar de o processo exigir a polimerização da HbS, o evento que desencadeia a obstrução vascular pelo eritrócito falciforme é frequentemente inflamatório. A vasoclusão é resultado da interação entre eritrócito e endotélio vascular, gerando oclusão microvascular episódica, seguida de restauração do volume sanguíneo, que promove lesão tecidual mediada pela reperfusão. O ciclo de isquemia e reperfusão causa estresse oxidativo e inflamatório, aumentando a síntese de citocinas inflamatórias, podendo causar leucocitose.5 O segundo processo fisiopatológico é a anemia hemolítica, que também ocorre pela polimerização da HbS. A hemólise causa ▪ anemia; ▪ fadiga; ▪ colelitíase; ▪ ulceração em membros; ▪ priapismo; ▪ hipertensão pulmonar.5 PRINCIPAIS CAUSAS DE ATENDIMENTO EM EMERGÊNCIA PEDIÁTRICA CRISE ÁLGICA A crise álgica é o principal motivo de consulta em emergência pediátrica. Os mecanismos de dor provavelmente incluem componentes como:6 ▪ lesão por hipoxia/reperfusão; ▪ inflamação; ▪ aumento da adesão dos glóbulos vermelhos; ▪ sensibilização do sistema nervoso (central e periférico). Classicamente, a dor aguda da vasoclusão ocorre em extremidades e no dorso, embora possa ocorrer em qualquer lugar. Pode ser migratória e geralmente é contínua e progressiva. Menos frequentemente, pode ocorrer dor torácica, devendo-se realizar o diagnóstico diferencial com STA.1 Episódios dolorosos agudos causados por vasoclusão são geralmente diagnosticados e manejados inicialmente pelos pacientes. O emergencista enfrenta três desafios importantes durante o atendimento do paciente com crise álgica: ▪ reconhecer outras causas de dor que podem representar condições graves, como a STA; ▪ estar alerta para outras condições que não são dolorosas e são mascaradas pela preocupação do paciente com sua dor aguda; ▪ iniciar prontamente a analgesia e outras terapias para controle do episódio doloroso agudo. Geralmente, os escores de dor autorreferidos pelos pacientes com crise álgica não se correlacionam de forma confiável com alterações nos sinais vitais, como taquicardia, hipertensão ou taquipneia. Além disso, os pacientes podem mostrar comportamento que os emergencistas consideram inconsistente com a dor, incluindo andar, conversar ou ter aparência calma, embora ainda relatem altos níveis de dor. A dosagem de hemoglobina (Hb), hematócrito e reticulócitos também não serve como marcador de dor.1 O manejo inclui a priorização dos pacientes com crise álgica em triagem, avaliação precoce por meio das escalas de dor padronizadas e utilizadas no serviço de emergência e adequada analgesia, repetindo a dose com frequência até que a dor seja controlada. O atendimento deve ser priorizado e realizado ainda na primeira hora de chegada à emergência, e a administração de medicação intramuscular deve ser evitada.6 Os opioides têm sido a base da analgesia para episódios dolorosos agudos porque a maioria dos pacientes já é orientada quanto ao uso de analgésicos não opioides no domicílio antes de procurar atendimento hospitalar.6 É importante fazer o manejo agudo da dor com resgate de opioide em bolo até melhora do escore da dor, mantendo uma analgesia fixa que pode incluir desde o uso de morfina em infusão contínua nos casos mais graves até a associação de opioide (morfina em bolo ou morfina por via oral) com analgésico comum (dipirona, cetoprofeno, ibuprofeno ou paracetamol).8,9 O resgate pode ser feito com morfina em dose de 0,05 a 0,1mg/kg e, após, a cada 15 a 30 minutos, usando-se de 25 a 50% da dose inicial até diminuição de 2 pontos no escore da dor.1,7 As doses geralmente utilizadas dos analgésicos e as principais considerações sobre eles são apresentadas no Quadro 1.8,9 QUADRO 1 SUBSTÂNCIAS ANALGÉSICAS UTILIZADAS PARA CONTROLE DA CRISE ÁLGICA SUBSTÂNCIA DOSAGEM INDICAÇÃO SUBSTÂNCIAS ANALGÉSICAS UTILIZADAS PARA CONTROLE DA CRISE ÁLGICA Paracetamol ▪ 10–15mg/kg/dose a cada 4–6 horas. Dor leve ▪ Uso oral. Dipirona ▪ 15mg/kg/dose em até 6–6 horas. su ▪ A do cr m Dor leve ▪ Via oral, retal ou intravenosa. Ibuprofeno ▪ 10mg/kg/dose em até 6–6 horas. ▪ Dose analgésica usual de Dor leve ▪ A dose varia de acordo com a intensidade da dor, sendo utilizado 0,1mg/kg/dose para dor moderada. ▪ Para dor mais intensa, a dose recomendada é de 0,2mg/kg/dose em crianças de 3 meses a 1 ano e 0,3mg/kg/dose acima de 1 ano, a cada 4–6 horas, podendo ser associada a outros analgésicos comuns. ▪ Múl cr le Dor leve/moderada 0,5mg/kg/dose, administrada 3–4 vezes ao dia. ▪ A dose máxima diária não deve exceder 2mg/kg. ▪ Uso oral e intravenoso. Morfina oral ▪ Risc ap e ▪ O fá tr ▪ O ef 30 ge ▪ Não < ▪ Uso oral. Cetoprofeno ▪ Risc ▪ Em pr pr co ▪ Não de Dor moderada/ intensa ▪A m ap nã co ▪ Cau m SUBSTÂNCIAS ANALGÉSICAS UTILIZADAS PARA CONTROLE DA CRISE ÁLGICA Morfina ▪ O início do efeito analgésico ocorre intravenosa em 10–15 minutos. ▪ A dose padrão inicial é de 0,05– 0,2mg/kg por via intravenosa, podendo ser seguida de uma infusão contínua de 0,01– 0,02mg/kg/hora. Metadona ▪ 0,1–0,2mg/kg a cada 4–6 horas, com Dor intensa ▪ Estim re ef br ▪ A va po es in ▪ Efei ob po al m Dor intensa dose máxima de 10mg. ▪ Uso oral. ▪ A su do po ▪ O ef m ▪ Trat m re Cetamina ▪ 0,1–0,3mg/kg/hora com o máximo de 1mg/kg/hora. ▪ Uso intravenoso. Uso associado a morfina em infusão contínua para dor intensa ▪ Ane an ▪ Infu co co se op ▪ O fe co ch ra em ad al // Fonte: Elaborado pelos autores. Para os pacientes internados com resposta refratária ou necessidade de doses elevadas de morfina em infusão contínua, uma opção é a associação de cetamina em dose baixa (0,1 a 0,3mg/kg/hora com o máximo de 1mg/kg/hora).6 O uso pode diminuir a tolerância e potencialmente reverter a hiperalgesia e a alodinia induzidas por opioides.6,8 As últimas revisões sistemáticas demonstraram que a associação de cetamina a opioides para o tratamento da dor aguda em pacientes com DF promove redução da utilização de opioide e melhora dos escores da dor. Como efeito adverso, há relato de nistagmo, alucinações visuais, tontura e disforia, mais frequentes com doses elevadas e que se reverteram após a suspensão da medicação.6 Mais uma alternativa para retirada de morfina em infusão contínua nos pacientes refratários é a associação de metadona por via oral. É um opioide para tratamento da dor intensa, bastante utilizado no tratamento dos sintomas de abstinência em razão de sua ação mais duradoura. Clinicamente, parece causar menos náuseas e vômitos do que a maioria dos outros analgésicos opioides orais, mas o efeito cumulativo pode levar a sedação mais prolongada do que a desejada, o que pode ser revertido com a diminuição da dose ou aumento de intervalo.8 Estudos recentes têm demonstrado que a taxa de abuso e dependência de narcóticos é baixa no paciente com DF. Os emergencistas devem ser estimulados a acreditar no paciente e tratar a dor forte com opioides. Contudo, os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) relataram que, em um período de 10 anos (1997 a 2007), houve aumento de 627% e de 296% na prescrição e na mortalidade relacionada ao uso de opioides, respectivamente.1 Os CDC propuseram um programa de monitoração de pacientes, prescritores e instituições. A orientação atual é de que, no caso de um paciente com DF que tenha consultado menos que três vezes na emergência no último ano, o emergencista foque o tratamento da dor aguda com opioides. Para pacientes que visitaram a emergência três ou mais vezes em um período de 12 meses, a estratégia é criar um plano de cuidado individualizado com uso mais criterioso de opioide.1 Durante as crises álgicas, a reposição hídrica intravenosa deve ser considerada apenas em pacientes suspeitos de hipovolemia, e o uso de hidratação intravenosa em pacientes euvolêmicos não é indicado.2,6 Apesar das recomendações dos últimos guidelines, em estudo retrospectivo de 400 prontuários de crianças com crise álgica em uso de opioide em 20 emergências, em que foram excluídos os pacientes com STA, 65% receberam solução normossalina, o que foi associado a uma demora na melhora da dor e maior número de admissões (1,8 vez maior chance de internação quando comparadas com os pacientes que não receberam hidratação intravenosa).10 Acredita-se que o aumento da tonicidade do fluido extracelular pode impactar negativamente o fluxo de hemácias falciformes em condições de hipoxia em microcapilares e aumentar a adesão ao endotélio. A sobrecarga de fluidos na DF também coloca os pacientes em risco de desenvolver STA.10,11 O uso de corticoide não está indicado por estar associado a rebote da crise álgica com sua suspensão, assim como outras complicações.6 Pacientes que sofreram episódios dolorosos agudos podem ter alta da emergência se a dor for adequadamente controlada, e espera-se, com base em experiências prévias, que permaneçam adequadamente controlados com o uso contínuo de seu esquema analgésico ambulatorial.6 O último guideline de manejo de dor em paciente com DF sugere a manutenção de analgesia fixa com anti-inflamatório não esteroide (AINE), como ibuprofeno ou cetoprofeno, por 3 a 5 dias. Entretanto, pacientes com risco de toxicidade renal devem ser identificados, assim como comorbidades como úlcera péptica e anticoagulação, em que o risco pode sobrepor o benefício de uso dessa medicação.6 Além do controle da dor, é importante descartar outras complicações da DF que podem se manifestar inicialmente como crise álgica, como infecção, STA, sequestro esplênico, entre outros eventos que serão abordados a seguir (Figura 2). *Ajustar antibiótico conforme resultado de culturas. Alta com antibiótico oral após 24 a 48 horas afebril. DF: doença falciforme; PCR: proteína C-reativa; EQU: exame qualitativo de urina; LCR: líquido cefalorraquidiano; Hb: hemoglobina; VO: via oral; IV: intravenosa; SF: soro fisiológico; O2: oxigênio; SatO2: saturação de oxigênio. FIGURA2: Manejo inicial do paciente com DF com crise álgica e/ou febre. // Fonte: Adaptada de arquivo de imagem dos autores. A hidroxiureia (ou hidroxicarbamida) foi a primeira substância aprovada pela United States Food and Drug Administration (FDA) para tratamento da HbSS em crianças e adultos com evidências robustas.12 A terapia com hidroxiureia fundamenta-se principalmente na sua capacidade de aumentar os níveis de hemoglobina fetal (HbF), que, por sua vez, inibe a polimerização da HbS desoxigenada. Uma coorte retrospectiva comparando os 2 anos de início da hidroxiureia com os 2 anos anteriores em crianças e adolescentes verificou uma diminuição de hospitalizações (46%), crises de dor (36%) e visitas à emergência (43%), com um aumento do nível de Hb de 0,7g/dL.13 Embora a hidroxiureia tenha um efeito potencialmente benéfico, seu emprego é uma terapia a longo prazo e precisa de tempo para desencadear um aumento da HbF. Portanto, não é uma opção prática para o manejo em departamento de emergência. SÍNDROME TORÁCICA AGUDA STA é definida como o aparecimento de um novo infiltrado pulmonar na radiografia de tórax acompanhado de febre (80%) e sintomas respiratórios, incluindo tosse (62 a 74%), taquipneia e dor torácica. É o resultado de hipoxia e inflamação, levando ao aumento da adesão de eritrócitos falciformes na microvasculatura pulmonar.1,11,14 A Figura 3A e B apresenta um exame de imagem de paciente com DF e STA. FIGURA3: A e B) Exame radiológico de uma criança com DF e STA. // Fonte: Arquivo de imagens dos autores A STA pode ocorrer em qualquer faixa etária, mas é mais comum em crianças, com maior prevalência entre 2 e 5 anos. Mais de 50% das crianças com a forma homozigótica SS apresentarão pelo menos um episódio na primeira década de vida. Em cerca de 40 a 50% dos casos, a STA ocorre durante uma internação, com mais de 80% dos pacientes tendo sido internados por crise álgica. Pode evoluir para insuficiência respiratória, com 13% dos pacientes necessitando de ventilação pulmonar mecânica.2,11 A STA também está associada a:2,11 ▪ internações mais prolongadas; ▪ diminuição da sobrevida a longo prazo; ▪ aumento da incidência de desenvolvimento de lesão pulmonar crônica. Embora uma parcela significativa (45%) dos casos de STA seja de causa desconhecida, 30% deles estão associados à infecção, cerca de 10% são atribuídos à embolia gordurosa pulmonar (que também pode ser causada por infecção) e 15% a infarto agudo (não causado por infecção ou embolia gordurosa). A trombose pulmonar ocorre em 17% dos pacientes, mas ainda não está claro se é uma causa de STA.1,11,14 Em crianças, o principal fator desencadeante de STA é a infecção, e, muitas vezes, é difícil distinguir os pacientes com STA daqueles com pneumonia ou ambas. A pneumonia é comumente causada por Streptococcus pneumoniae em crianças com idade inferior a 2 anos e por Chlamydia pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae, Mycoplasma hominis e Staphylococcus aureus em crianças maiores e adultos.3,11 Outros agentes que devem ser considerados são os vírus respiratórios (vírus sincicial respiratório, influenzavírus, rinovírus, vírus parainfluenza), que podem desencadear complicações significativas em pacientes com DF, incluindo as seguntes:3 ▪ STA; ▪ superinfecção bacteriana; ▪ crise aplástica; ▪ sequestro esplênico; ▪ crise vasoclusiva dolorosa. Patógenos respiratórios virais causam o desenvolvimento da STA, induzindo inflamação pulmonar, lesão da microvasculatura do pulmão, hiper-reatividade das vias aéreas, incompatibilidade de ventilação e perfusão e, em alguns casos, infecção bacteriana secundária (comumente com S. aureus ou S. pneumoniae).3 Embolia pulmonar é uma causa comum de STA, mais frequente em adultos. Durante as crises vasoclusivas, o infarto pulmonar leva a11 ▪ necrose; ▪ embolia pulmonar; ▪ hipoxemia; ▪ elevação aguda da pressão arterial pulmonar. O infarto pulmonar direto, ou vasoclusão, ocorre em 16% dos episódios de STA. O diagnóstico é presumível quando o resultado da investigação para embolia gordurosa e infecção é negativo.11 A hipoventilação causada por dois cenários clínicos comuns coloca o paciente em risco de STA: imobilização (dor) ou efeitos colaterais de opioides (sonolência). Edema pulmonar causado por hidratação intravenosa excessiva pode levar à STA, mas os dados não são conclusivos.11 Na apresentação clínica inicial da STA, o paciente pode apresentar febre (80%) e sintomas respiratórios, incluindo tosse, taquipneia, dor torácica e retração intercostal com o uso de musculatura acessória.1,11, A hipoxia grave é um bom preditor de gravidade e evolução do paciente. Os sintomas na apresentação são dependentes da idade, com sibilância, tosse e febre sendo mais comuns em pacientes menores de 10 anos, e dor e dispneia mais frequentes em adultos. A radiografia de tórax faz parte da avaliação inicial de todo paciente com DF com febre e/ou sintomas respiratórios. Apesar de a maioria dos pacientes apresentar alteração radiológica na avaliação inicial, 50% das STA ocorrem em pacientes hospitalizados por outros motivos, principalmente por crise álgica, evidenciando a importância de monitoração e avaliação clínica seriada durante a internação.11,14 Em todo paciente febril, deve-se coletar hemocultura e realizar screening para M. pneumoniae e vírus dependendo da época do ano (vírus respiratório sincicial e influenzavírus). O início da antibioticoterapia deve ser precoce, como será discutido a seguir. O tratamento clínico da STA tem sido focado no tratamento de infecção bacteriana presumida com antibiótico de amplo espectro, uso cauteloso de fluidos intravenosos e analgesia para aliviar o desconforto e prevenir as atelectasias.7 ANTIBIOTICOTERAPIA A antibioticoterapia deve cobrir os agentes bacterianos mais frequentes: S. pneumoniae, H. influenzae, Chlamydia pneumoniae e M. pneumoniae. Tem-se utilizado a associação de cefalosporina e macrolídeos para o tratamento empírico inicial, com ajuste posterior conforme resultado de culturas. Não existe indicação de antibiótico profilático para prevenir STA em pacientes com crise álgica.3 HIDRATAÇÃO INTRAVENOSA Como a desidratação do eritrócito tem papel importante na fisiopatologia da STA, a hidratação tem sido utilizada como um componente do tratamento. Contudo, não há estudos que demonstrem a segurança na hidratação agressiva, e existem relatos de que a administração excessiva de líquidos pode levar a atelectasia e edema pulmonar, desencadeando STA.2,6 É recomendado que os bolos de líquido intravenosos sejam reservados para pacientes com hipovolemia ou hipertonicidade. O paciente euvolêmico deve receber hidratação na taxa de manutenção se não tolerar hidratação oral.2,6 ANALGESIA Aproximadamente 40 a 50% dos casos de STA ocorrem durante uma internação, com mais de 80% dos pacientes tendo sido internados por crise álgica. Estudos demonstram que existe associação entre a dose cumulativa de morfina nas primeiras 5 horas do surgimento da STA em crianças hospitalizadas por crise álgica, provavelmente em razão da hipoventilação causada pela sedação.15 A narcose por opioide pode precipitar ou piorar a STA, enquanto a dor pode levar a hipoventilação alveolar. É importante o tratamento adequado da dor com monitoração por meio de escores clínicos, evitando o uso excessivo de opioide e o subtratamento da dor.15 FISIOTERAPIA RESPIRATÓRIA A fisioterapia respiratória assume papel na prevenção e no tratamento da STA e deve ser incentivada durante a internação por crise vasoclusiva. A atelectasia resultante de hipoventilação ou hiper-reatividade brônquica pode ter papel fundamental na fisiopatologia.11,14 OXIGENOTERAPIA A oxigenoterapia deve ser administrada apenas para pacientes com hipoxia. Está bem estabelecido que a hipoxia pode promover a falcização, e o oxigênio (O2) deve ser utilizado nessa situação.11 BETA-2-AGONISTA Existe evidência de associação entre asma e STA em crianças com DF. Uma coorte prospectiva de 291 crianças com DF que foram acompanhadas por 14 anos demonstrou um aumento de STA nas crianças asmáticas. O benefício clínico do uso de β-2-agonista nessa situação está bem estabelecido, e o tratamento deve seguir os guidelines de manejo de asma, que recomendam o uso de broncodilatador inalatório e corticoide para exacerbações moderadas a graves. Não há evidência que suporte o uso de broncodilatador a todo paciente com STA.6,11,14,16 CORTICOIDE Com o aumento da evidência de que a inflamação é fator importante na apresentação da STA, o tratamento com agentes imunomoduladores, como o corticoide sistêmico, tem sido preconizado. Vários estudos demonstraram redução do tempo de internação, necessidade de transfusão pela piora da anemia e necessidade de tratamento para a dor com uso de corticoide. Entretanto, o sucesso associado ao uso da substância foi acompanhado do relato de complicações, como6,11 ▪ recorrência da dor com necessidade de readmissão hospitalar; ▪ episódios de crise vasoclusivas graves; ▪ AVC; ▪ infarto renal; ▪ coma; ▪ morte. A etiologia do efeito rebote após o tratamento com corticoide não é clara. É possível que um curso breve de corticoide possa suprimir temporariamente, mas não completamente o processo inflamatório, que pode continuar até a resolução da vasoclusão e da lesão de reperfusão. Esse mecanismo de rebote pode ocorrer pela suspensão precoce do corticoide, e não como um efeito adverso da medicação.6,11 A recomendação é usar corticoide somente na exacerbação da asma, quando se devem seguir as orientações dos guidelines de manejo da asma. Nessas situações, o paciente deve ser monitorado após o término do tratamento para a ocorrência de efeito rebote de crise álgica. Além disso, os pacientes com asma persistente devem ser tratados com corticoide inalatório para minimizar a morbidade relacionada à asma.11,14 TRANSFUSÃO A transfusão sanguínea tem sido utilizada nos Estados Unidos para o tratamento da STA, porém não foi observada alteração na mortalidade, em comparação com a Europa, onde não é utilizada rotineiramente. Deve-se considerar que um aumento substancial do nível da Hb pode aumentar a viscosidade sanguínea, elevando o risco de complicações.1 A decisão de transfundir paciente com DF deve ponderar os riscos e os benefícios do procedimento, e deve haver consenso entre o emergencista e o hematologista.1 Uma transfusão simples diminui a concentração da HbS e aumenta o nível de Hb e a capacidade de transporte de O2, com redução dos mediadores inflamatórios séricos.1,2,11,14,17 Quando o paciente apresenta aumento da frequência respiratória e do esforço respiratório, necessidade de oxigenoterapia para manter a saturação de O2 acima de 92% e diminuição da concentração da Hb em 1 a 2g/dL, é indicada a transfusão sanguínea, que deve ser limitada para aumentar o nível da Hb até 10g/dL.1,2,11,14,17 A EST é recomendada para os pacientes com insuficiência respiratória e hipoxemia apesar do uso de O2, com o objetivo de aumentar os níveis de hemoglobina A (Hb A) acima de 70%. Se a EST não estiver disponível, recomenda-se uma transfusão simples. Em estudos observacionais, a transfusão (simples ou EST) foi associada a melhora da oxigenação no sangue arterial e diminuição dos mediadores inflamatórios séricos.17 VENTILAÇÃO NÃO INVASIVA Não há evidências suficientes para recomendar ventilação não invasiva (VNI) para pacientes com STA. A VNI teria alguns benefícios fisiológicos para o paciente, como o aumento da pressão média da via aérea, resultando no recrutamento de unidades pulmonares colapsadas, com aumento da capacidade residual funcional e da complacência pulmonar. Consequentemente, diminuiria o esforço respiratório. Em um estudo em adultos, a VNI aumentou de forma significativa a oxigenação, diminuindo o esforço respiratório e a frequência cardíaca, mas sem impacto na proporção de pacientes que permaneceram hipoxêmicos no terceiro dia, na necessidade de transfusão sanguínea, no uso de opioide e no tempo de permanência hospitalar. Além disso, o uso de VNI foi relacionado a aumento do desconforto quando comparado à terapia convencional. Não é possível tirar conclusão desses estudos, e estudos adicionais são necessários.18 Piora da hipoxia, dispneia severa e aumento da hipercapnia, levando a aumento da acidose respiratória, são indicações de VNI. ATIVIDADES 1. Observe as afirmativas sobre a DF. I. A DF é uma doença genética autossômica recessiva causada por uma mutação simples do códon 6 do gene da cadeia da ß-globina, resultando na substituição da valina pela glutamina. II. A característica clínica da DF inclui episódios de dor aguda, principal razão para visitas ao departamento de emergência e internações de pacientes com DF. III. O traço falcêmico (HbAS) é uma condição benigna, um estado de carreador, não considerado DF. Qual(is) está(ão) correta(s)? A) Apenas a I. B) Apenas a I e a III. C) Apenas a II. D) Apenas a II e a III. A alternativa correta e a "D". A DF é uma doença genética autossômica recessiva causada por uma mutação simples do códon 6 do gene da cadeia da β-globina, resultando na substituição da glutamina pela valina. 2. Com relação à principal forma de manifestação da vasoclusão causada por aprisionamento de eritrócitos e leucócitos na microcirculação em crianças com DF, assinale a alternativa correta. A) Dor. B) Artrite. C) Hipertensão arterial. D) Sepse. A alternativa correta e a "A". O primeiro processo fisiopatológico da DF é a vasoclusão, que se manifesta clinicamente por episódios de dor. A dor aguda por vasoclusão é causada pelo aprisionamento de eritrócitos e leucócitos na microcirculação, causando obstrução vascular e isquemia tecidual. A vasoclusão é resultado da interação entre eritrócito e endotélio vascular, gerando oclusão microvascular episódica, seguida de restauração do volume sanguíneo, que promove lesão tecidual mediada pela reperfusão. 3. Menino de 7 anos com DF e dor forte em região lombar, sem melhora com analgésico comum e AINE, recebeu bolo de morfina e foi iniciada infusão contínua. Sobre o manejo da analgesia, assinale a alternativa correta. A) É possível associar cetamina em infusão contínua, em dose baixa, para diminuir a tolerância e reverter a hiperalgesia induzida por opioides. B) A morfina em infusão contínua predispõe à narcose, aumentando o risco de hipoventilação e STA, devendo ser evitada. C) Em razão do aumento de relato de abuso e dependência de narcóticos, deve-se evitar o uso de opioide em paciente com DF. D) A dor não deve ser tratada com opioide até que se possa descartar outras complicações para não mascarar o quadro clínico. A alternativa correta e a "A". Os opioides têm sido a base da analgesia para episódios dolorosos agudos. É importante fazer o manejo agudo da dor com resgate de opioide em bolo até melhora do escore da dor, mantendo analgesia fixa após. Para os pacientes internados com resposta refratária ou necessidade de doses elevadas de morfina em infusão contínua, uma opção é a associação de cetamina em uma dose baixa (0,1 a 0,3mg/kg/hora com o máximo de 1mg/kg/hora). O uso pode diminuir a tolerância e potencialmente reverter a hiperalgesia e a alodinia induzidas por opioides. 4. Com relação aos achados indicativos de internação hospitalar para um paciente pediátrico com DF, assinale V (verdadeiro) ou F (falso). Idade inferior a 2 anos. Leucócitos totais de 18.000 células/µL. Hb de 4,9g/dL. Má perfusão periférica. Assinale a alternativa que apresenta a sequência correta. A) V — F — V — F B) V — F — V — V C) F — V — F — F D) F — V — F — V A alternativa correta e a "B". Entre os achados indicativos de internação hospitalar para um paciente pediátrico com DF, está a contagem de leucócitos totais acima de 30.000 ou abaixo de 5.000 células/µL. 5. Quanto ao principal fator desencadeante de STA em crianças, assinale a alternativa correta. A) Infecção. B) Trauma. C) Suspensão da hidroxiureia. D) Anemia. A alternativa correta e a "A". Em crianças, o principal fator desencadeante de STA é a infecção e, muitas vezes, é difícil distinguir os pacientes com STA daqueles com pneumonia ou ambos. A pneumonia é comumente causada por S. pneumoniae em crianças com idade inferior a 2 anos e por C. pneumoniae, M. pneumoniae, M. hominis e S. aureus em crianças maiores e adultos. 6. Com relação ao diagnóstico da STA, assinale V (verdadeiro) ou F (falso). Na apresentação clínica inicial da STA, o paciente pode apresentar febre (80%) e sintomas respiratórios, incluindo tosse, taquipneia, dor torácica e retração intercostal com o uso de musculatura acessória. Os sintomas na apresentação são dependentes da idade, sendo mais comuns dor e dispneia em pacientes menores de 10 anos, e sibilância, tosse e febre mais frequentes em adultos. A radiografia de tórax faz parte da avaliação inicial de todo paciente com DF com febre e/ou sintomas respiratórios. Em todo paciente febril, deve-se coletar hemocultura e realizar screening para Staphylococcus aureus e vírus dependendo da época do ano (vírus respiratório sincicial e influenzavírus). Assinale a alternativa que apresenta a sequência correta. A) V — F — V — F B) F — V — V — F C) V — F — F — V D) F — V — F — V A alternativa correta e a "A". Os sintomas da STA na apresentação são dependentes da idade, com sibilância, tosse e febre sendo mais comuns em pacientes com idade inferior a 10 anos, e dor e dispneia mais frequente em adultos. Em todo paciente febril, deve-se coletar hemocultura e realizar screening para M. pneumoniae e vírus dependendo da época do ano (vírus respiratório sincicial e influenzavírus). 7. Como a desidratação do eritrócito assume papel importante na fisiopatologia da STA, a hidratação tem sido utilizada como um componente do tratamento. Com relação à hidratação intravenosa do paciente com DF, assinale a alternativa correta. A) Está indicada a hidratação agressiva com 1,5 vez o volume de manutenção. B) O bolo de líquido intravenoso deve ser reservado para pacientes com hipovolemia ou hipertonicidade. C) Paciente euvolêmico deve receber hidratação na taxa de manutenção apesar de tolerar hidratação oral. D) A hidratação intravenosa melhora o fluxo de hemácias falciformes em microcapilares e diminui a adesão ao endotélio. A alternativa correta e a "B". Não há estudos que demonstrem a segurança da hidratação agressiva, e existem relatos de que a administração excessiva de líquidos pode levar a atelectasia e edema pulmonar, desencadeando uma STA. Assim, é recomendado que os bolos de líquido intravenosos sejam reservados a pacientes com hipovolemia ou hipertonicidade. O paciente euvolêmico deve receber hidratação na taxa de manutenção se não tolerar hidratação oral. Acredita-se que o aumento da tonicidade do fluido extracelular pode impactar negativamente o fluxo de hemácias falciformes em condições de hipoxia em microcapilares e aumentar a adesão ao endotélio. FEBRE/INFECÇÃO A vasoclusão e o aumento da viscosidade sanguínea resultam em asplenia funcional e deficiência imunológica na infância, levando a aumento da suscetibilidade, ao longo da vida, a infecções bacterianas graves, principalmente por bactérias encapsuladas, como S. pneumoniae, H. influenzae, Salmonella e meningococo.3 A infecção continua a ser a principal causa de mortalidade geral de pacientes com DF em países de baixa e média renda, graças a aumento da exposição a patógenos, aumento de comorbidades, como desnutrição, menores taxas de vacinação e acesso reduzido a cuidados definitivos, incluindo antibióticos e transfusões.3 A triagem neonatal, o uso de profilaxia com penicilina, a disponibilidade de vacinas contra S. pneumoniae e os programas de cuidados abrangentes instituídos durante as últimas décadas reduziram a mortalidade na infância e melhoraram o prognóstico. A taxa de infecção por S. pneumoniae invasiva entre crianças com DF com idade inferior a 5 anos diminuiu marcadamente desde a introdução da vacina pneumocócica. Antes da universalização da vacinação contra S. pneumoniae e H. influenzae tipo b, crianças pequenas tinham aumento de risco de 400 vezes para sepse por S. pneumoniae e de duas a quatro vezes para sepse por H. influenzae em comparação com crianças pareadas sem DF. Além da vacinação, a profilaxia com penicilina contribuiu para a diminuição das infecções invasivas por S. pneumoniae.1,3 Com a triagem precoce no período neonatal, é indicado o uso de penicilina profilática já nos primeiros meses de vida até os 5 anos, quando se presume ter a vacinação completa.1,3 MENINGITE A meningite é causada por S. pneumoniae (70 a 75% dos casos), H. influenzae e Neisseria meningitidis. Espécies de Salmonella, Escherichia coli e outras bactérias entéricas Gram-negativas também causam meningite em crianças com DF e devem ser consideradas no diagnóstico diferencial. A mortalidade é de 10 a 20%. A meningite na DF geralmente se apresenta e progride de forma semelhante à meningite em crianças com idade inferior a 5 anos sem DF; no entanto, pode predispor a AVC.3 PNEUMONIA Como já abordado, a infecção pulmonar é um dos principais fatores desencadeantes da STA. É comumente causada por S. pneumoniae em crianças menores e por C. pneumoniae, M. pneumoniae, M. hominis e St. pneumoniae em crianças maiores e adultos.3 Além das bactérias, os vírus respiratórios devem ser considerados. Os indivíduos com DF apresentam alto risco de complicações decorrentes de infecções por influenza, em razão das quais são hospitalizados a uma taxa 56 vezes maior do que a das crianças sem DF.3 OSTEOMIELITE E ARTRITE SÉPTICA Um aumento do risco de osteomielite na DF é atribuído à disfunção esplênica, dano induzido por células falciformes nos ossos e na medula óssea e, talvez, isquemia intestinal. A vasoclusão pode levar a infarto intestinal, permitindo a invasão pela Salmonella e outros organismos entéricos. A maioria das infecções por Salmonella envolve ossos longos e articulações, pode ser simétrica e ocorre mais frequentemente na primeira infância. Na população geral, S. aureus é o patógeno mais comum na osteomielite. Em crianças com DF e idade de 2 a 10 anos, a bacteremia por Salmonella é associada a uma incidência de 77% de osteomielite. S. pneumoniae é também um patógeno comum em osteomielite e artrite séptica.1,3 Diagnosticar osteomielite e artrite séptica em indivíduos com DF pode ser desafiador, uma vez que os achados podem ser semelhantes aos dos episódios vasoclusivos.1,3 Em uma análise multivariada,19 crianças com osteomielite comprovada tinham edema nos membros e mais dias de dor e febre precedendo o diagnóstico em comparação com controles com episódios vasoclusivos não complicados. Ressonância magnética e cintilografia óssea podem, algumas vezes, ajudar a identificar focos de infecção. Biópsia óssea ou aspiração de local suspeito de infecção são o padrão-ouro para o diagnóstico, apesar de altas taxas falsonegativas. OUTROS VÍRUS Parvovírus B19, hepatite B, hepatite C, vírus Epstein-Barr, influenzavírus, vírus da dengue e HIV causam morbidade significativa para pacientes com DF.3 O parvovírus B19 pode causar crise aplástica transitória e predispor a3 ▪ STA; ▪ sequestro esplênico e hepático; ▪ necrose da medula óssea; ▪ crise álgica; ▪ AVC. Na DF, a infecção pelo vírus Epstein-Barr pode causar3 ▪ ruptura esplênica; ▪ trombocitopenia; ▪ agranulocitose; ▪ anemia hemolítica; ▪ linfo-histiocitose hemofagocítica. COVID-19 Durante o período de confinamento da pandemia de covid-19, houve diminuição do número de consultas em emergência e do número de admissões hospitalares nos pacientes com DF. A internação por crise álgica diminuiu em 57%, por febre em 41% e STA em 26%. A redução do número de infecções respiratórias, principalmente de etiologia viral, e a melhora da aderência medicamentosa com os pais em casa parecem ter contribuído para esses números.20,21 Os pacientes com DF são imunocomprometidos com múltiplas comorbidades e um estado de hipercoagulabilidade.22 Pacientes com DF com covid-19 apresentam ampla gama de manifestações de gravidade, que poderiam estar associadas a maior risco de morbidade e mortalidade. Entretanto, em um artigo de revisão sobre pacientes com DF sintomáticos e covid-19, a apresentação clínica foi leve em crianças e leve a moderada em adultos. Os sintomas mais comuns nas crianças foram crise álgica, febre e STA.22 A taxa de mortalidade de pacientes pediátricos com covid-19, de acordo com o registro internacional de DF, foi de 0,3%. Apesar de baixa, a taxa de mortalidade de crianças com DF com covid-19 foi maior do que em pacientes pediátricos infectados com SARS-CoV-2 na população em geral (0,09%). Além disso, em um relato de 46 crianças e adolescentes positivos para covid-19, 28,3% foram internados em unidade de terapia intensiva pediátrica (UTIP), e a taxa de mortalidade foi de 2,2%, sendo as comorbidades mais prevalentes obesidade e asma.22 DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO A avaliação diagnóstica do paciente com DF febril deve ser orientada pela história clínica e pelo exame físico. Devem-se buscar sinais e sintomas focais, como infecção respiratória, de sistema nervoso central e musculoesquelética, assim como excluir complicações da DF, como ▪ STA; ▪ crise álgica; ▪ sequestro hepático e esplênico; ▪ AVC. A avaliação laboratorial inclui a coleta de hemograma para identificação de pacientes de risco. Na ausência de sinais ou sintomas de infecção localizados, hemoculturas, urinálise e cultura de urina devem ser consideradas, especialmente em crianças com idade inferior a 2 anos. Patógenos virais também podem causar doença sistêmica grave, e painéis de diagnóstico molecular para patógenos virais também podem ser apropriados.2,3 As hemoculturas, bem como todos os outros materiais de cultura clinicamente indicados, devem ser obtidas rapidamente, e a administração de antibióticos deve ser precoce.2,3 Algumas vezes, a hospitalização para observação é necessária, mas muitos pacientes com febre e sem fator de risco podem ser manejados ambulatorialmente. São considerados fatores de risco:3 ▪ leucócitos totais acima de 30.000/mm3 ou abaixo de 5.000/mm3; ▪ febre acima de 40ºC; ▪ “aparência doente”; ▪ complicações, como STA. Na ausência desses fatores, em paciente clinicamente bem e em condições de retornar ao hospital se a hemocultura for positiva, o manejo ambulatorial é feito após a administração de antibiótico empírico antipneumococo e com cobertura para bactérias Gram-negativas entéricas (por exemplo, ceftriaxona).3 Um estudo retrospectivo de 16 anos identificou bacteremia em 2,6% das crianças com DF que consultaram o serviço de emergência por febre. Entre os pacientes que receberam alta ou ficaram menos de 72 horas em observação, apenas 2,3% retornaram com nova complicação da DF.23 A internação hospitalar deve ser fortemente considerada para pacientes febris sem fonte identificada e na presença de fatores de risco ou de complicações associadas à DF, como meningite ou infecção osteoarticular.1 Nas infecções osteoarticulares, antibióticos devem ser iniciados imediatamente, e incisão e drenagem devem ser realizadas quando há abscesso em formação ou no paciente que não responder à terapia inicial. O desbridamento de ossos e tecidos moles também pode ser necessário, especialmente em casos de infecções por S. aureus resistente à meticilina (MRSA). A escolha ideal do antibiótico deve ser guiada pelos resultados da cultura; no entanto, o antibiótico empírico inicial deve cobrir S. pneumoniae e Gramnegativos. Em comunidades com altas taxas de MRSA, deve-se considerar o uso de vancomicina. O tratamento é geralmente necessário por 4 a 6 semanas. ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL Embora os AVCs sejam raros na população pediátrica em geral, são relativamente frequentes em crianças com DF. Podem ocorrer em crianças a partir dos 2 anos de idade, com 11% dos pacientes com DF tendo um AVC até os 20 anos de idade. Os infartos cerebrais silenciosos associados à doença de pequenos vasos são mais comuns do que os AVC, ocorrendo em 39% das crianças até 18 anos e 50% dos adultos até 50 anos.24 Tanto o AVC quanto os infartos silenciosos estão associados a comprometimento cognitivo significativo, o que pode ter impacto na qualidade de vida.24 Os pacientes sintomáticos têm vasculopatia primariamente com distribuição em artérias de tamanho médio a grande (carótida interna distal e cerebral média), que é desencadeada por anemia, leucocitose, hipoxia e alteração de fluxo sanguíneo cerebral. As manifestações clínicas são semelhantes às de outras situações que levam ao AVC. Os infartos cerebrais silenciosos podem ter apresentação mais sutil, como atraso de desenvolvimento ou mau desempenho escolar.1 Os pacientes com diagnóstico suspeito ou confirmado por ressonância magnética de AVC agudo têm indicação de transfusão sanguínea. A transfusão deve ser realizada nas primeiras 2 horas de início dos sintomas. O tipo de transfusão (simples ou EST) depende de fatores individuais e recursos locais. Quando a EST não for disponível e a dosagem de Hb for igual ou inferior a 8,5g/dL, a transfusão simples pode ser realizada para evitar a demora do tratamento (Figura 4).24 DF: doença falciforme; O2: oxigênio; Hb: hemoglobina; EST: exsanguinotransfusão; HbS: hemoglobina S. FIGURA4: Manejo do AVC na criança com DF. // Fonte: Adaptada de DeBaun e colaboradores (2020).24 O uso de ativador do plasminogênio tecidual (TPA) parece ter benefício em pacientes idosos, fibrilação atrial, diabetes, hipertensão e hiperlipidemia. O manejo de pacientes jovens, sem esses fatores de risco, deve enfatizar a transfusão sanguínea, não sendo recomendado o uso de TPA em crianças.24 O foco principal tem sido a prevenção pelo screening com doppler transcraniano em crianças de 2 a 16 anos. O estudo STOP (Stroke Prevention Trial in Sickle Cell Anemia) mostrou que, em pacientes com o aumento das velocidades do doppler transcraniano, a transfusão sanguínea profilática para manter a HbS em menos de 30% poderia reduzir o risco de AVC para menos de 1%. Além disso, o transplante mieloablativo de medula óssea parece oferecer um benefício significativo na limitação da vasculopatia cerebral e, por sua vez, do risco de AVC.1,2 SEQUESTRO/INFARTO ESPLÊNICO O baço é um dos órgãos afetados precocemente no paciente com anemia falciforme. A esplenomegalia ocorre durante a primeira década de vida, e, em seguida, depois de múltiplos infartos esplênicos, a maioria dos pacientes pode desenvolver cicatrizes esplênicas, levando a um baço pequeno fibroso e calcificado (autoesplenectomia). Entretanto, em alguns casos, a esplenomegalia pode persistir até a idade adulta, o que torna esses pacientes sujeitos a desenvolver complicações que necessitem de esplenectomia. Uma complicação extrema é o sequestro esplênico.1,2 O sequestro esplênico é uma complicação potencialmente catastrófica da DF e é caracterizado por uma diminuição aguda do nível de Hb, o que pode resultar em colapso circulatório. É mais comum na população pediátrica (mais comum com HbSS) porque ela ainda não sofreu autoinfarto do baço, mas também pode ser visto na idade adulta (HbSC e outras).1 O sequestro esplênico deve ser considerado quando há aumento esplênico e colapso circulatório. A maioria dos pacientes apresenta início súbito de dor intensa no quadrante superior esquerdo do abdome. O quadro pode estar associado a náusea, vômito, febre e calafrios. Esses sintomas são inespecíficos e podem ser confundidos com outras causas de dor abdominal aguda. Há aumento do tamanho do baço. Os pacientes com sequestro esplênico devem receber reanimação com fluidos intravenosos e transfusão de sangue. O objetivo é elevar a Hb até 7g/dL. Nesses pacientes, está indicada esplenectomia porque o sequestro esplênico recorre em quase 50%.1,2 PRIAPISMO Priapismo é uma ereção peniana total ou parcial prolongada, com duração de pelo menos 4 horas não relacionada ao estímulo sexual.1,25 O priapismo é uma emergência urológica. O manejo visa a prevenir ▪ disfunção peniana; ▪ encurtamento do ureter; ▪ disfunção erétil; ▪ sequelas psicológicas. A anemia por DF é a principal causa de priapismo em crianças e, em 25% dos casos, ocorre ainda no período pré-puberal.25 A etiologia envolve a vasoclusão com lesão isquêmica por obstrução microvascular. Ereções noturnas, atividade sexual, desidratação, febre e exposição ao frio são os precipitantes mais comuns de priapismo em crianças com DF. Ocorrem anemia e aumento de marcadores de hemólise sérica (reticulócitos, bilirrubina indireta, lactato desidrogenase [LDH] e aspartato aminotransferase). Hidratação e analgesia com opioides são geralmente necessárias no priapismo isquêmico com duração superior a 4 horas, que pode inibir a tumescência. As opções típicas de tratamento incluem a injeção de fenilefrina nos corpos cavernosos, terbutalina subcutânea ou pseudoefedrina oral. Se essas terapias na emergência não forem bem-sucedidas, consulta urológica emergente para aspiração ou avaliação para colocação de shunt são aconselhadas.2,25 TRANSFUSÃO A transfusão de concentrado de hemácias é utilizada no manejo agudo e crônico de muitas complicações relacionadas à DF, mas não é isenta de efeitos adversos, incluindo a aloimunização e a sobrecarga de ferro.17 As transfusões de hemácias podem ser por transfusão simples ou EST. A transfusão simples possui a vantagem de requerer um acesso venoso periférico e utilizar menos unidades de hemácias, além de não necessitar de pessoal ou dispositivo especializado. As desvantagens incluem riscos de sobrecarga de volume e hiperviscosidade. A transfusão simples invariavelmente leva à sobrecarga de ferro ao longo do tempo, necessitando de tratamento com quelação de ferro ou alteração na modalidade de transfusão.26 Na DF, em pacientes pediátricos, o volume de hemácias transfundido é de 10 a 15mL/kg, enquanto, em adultos, é de 1 a 2 unidades. A EST envolve a remoção das hemácias do paciente e a substituição por células do doador. A EST pode ser realizada por métodos automatizados (eritrocitoférese) ou manuais. A EST manual é realizada usando-se uma série de transfusões repetidas, é demorada e fornece controle menos consistente do equilíbrio de fluidos durante o procedimento.26 A eritrocitoférese requer máquinas de aférese e operadores com experiência técnica e está disponível apenas em centros especializados. Uma vez que a EST normalmente substitui uma ou duas vezes o volume total de glóbulos vermelhos do paciente, um maior volume de sangue de substituição é necessário. Apesar do aumento da exposição a doadores com a EST em comparação à transfusão simples, vários estudos não mostraram aumento nas taxas de aloimunização.26 Estudos limitados indicam que a EST é custo-efetiva e pode diminuir as taxas de hospitalização. O volume de reposição de hemácias e o hematócrito podem ser rigidamente controlados com EST, que permite reduções significativas nos níveis de HbS, enquanto minimiza ou evita a carga de ferro.17,26 A indicação de transfusão deve ser baseada na anemia sintomática e no comprometimento hemodinâmico, e não no valor da Hb.17,26,27 A transfusão também é utilizada para diminuir o nível de HbS rapidamente em pacientes que apresentam AVC, STA e insuficiência multiorgânica. O benefício da transfusão não foi bem estudado para hipertensão pulmonar, priapismo e úlceras de perna. A medida não é indicada para episódios vasoclusivos não complicados17,26,27 (Quadro 2). QUADRO 2 TRANSFUSÃO AGUDA NA DOENÇA FALCIFORME INDICAÇÃO DF sintomática com diminuição de 1g/dL na Hb basal do paciente (recomendação fraca baseada baixa qualidade) DF sintomática severa (SatO2

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