Nem Crioulo Doido Nem Negra Maluca: Past Paper (PDF)

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UFRJ

2020

Emiliano de Camargo David, Maria Cristina Gonçalves Vicentin

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Brazilian psychiatric reform racism mental health social issues

Summary

This academic paper discusses the relationship between racism and institutionalization within the Brazilian psychiatric system. It examines the influence of Brazilian scientific racism and the ideology of whitening on the treatment and incarceration of Black people. The article analyzes historical periods and explores decolonial perspectives on the psychiatric reform.

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264 ENSAIO | ESSAY Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira Neither crioulo doido* nor negra maluca*: for an aqu...

264 ENSAIO | ESSAY Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira Neither crioulo doido* nor negra maluca*: for an aquilombamento** of the Brazilian Psychiatric Reform Emiliano de Camargo David1, Maria Cristina Gonçalves Vicentin1 * Pejorative expressions DOI: 10.1590/0103-11042020E322 that mean mentally ill black man and woman, respectively. ** The word aquilombamento derives from the term quilombo, a settlement of fugitive black RESUMO Considerando que o manicômio enquanto instituição reproduz uma lógica de dominação racista slaves in Brazil. A number que serviu (e ainda serve) para o encarceramento da população negra brasileira ao longo dos anos, este of those settlements artigo discute a relação entre racismo e manicomialização. Para tanto, por meio de revisão de literatura, continued to exist after the emancipation of slaves apresentam-se duas dimensões em que essa relação mais agudamente se expressa – o racismo científico in 1888 and remain today brasileiro e a ideologia do branqueamento –, assim como o atrelamento entre raça negra e loucura no Brasil as places that preserve em três diferentes tempos de experiências asilares: século XIX, no Hospital Nacional de Alienados, com unique features of African-Brazilian culture. as experiências de Dr. Henrique Roxo; nas primeiras décadas do século XX, com Dr. Pacheco e Silva e a Thus, aquilombamento is a Liga Paulista de Higiene Mental no Hospital do Juquery; e no início do século XXI, nos anos 2000, com new concept that means o Censo Psicossocial dos Moradores em Hospitais Psiquiátricos do Estado de São Paulo. Em diálogo com making something similar to a quilombo, so as to uma leitura decolonial da proposta da Reforma Psiquiátrica Brasileira, aponta-se a urgente e necessária stress the empowerment implementação de práticas antirracistas na Rede de Atenção Psicossocial enquanto tarefa antimanicomial of African-Brazilians and contemporânea, o que se chama de aquilombamento. their culture. PALAVRAS-CHAVE Racismo. Hospitais psiquiátricos. Saúde mental. ABSTRACT Considering mental institutions as reproductive of a logic of racist domination and that such logic was (and still is) used to justify the incarceration of the Brazilian black population, this article discusses the relation between racism and institutionalization. To that end, through a review of literature, we present two dimensions in which this relation is acutely expressed: Brazilian scientific racism, the ideology of whitening and the idea that the black race and madness are connected in three periods of mental asylum experiences: in the 19th century, in the National Hospital for the Mentally Ill, with Dr. Henrique Roxo’s experiments; in the first decades of the 20th century, with Dr. Pacheco e Silva and the São Paulo State Mental Health League in the Juquery Hospital; and in the 2000s, with the São Paulo State Psychosocial Census of Mental Hospital Residents. In dialog with a decolonial reading of the Brazilian psychiatric reform, we point to an urgent and necessary implementation of anti-racist practices in the Psychosocial Care Network as a contemporary anti-institutional task, which we call aquilombamento**. KEYWORDS Racism. Psychiatric Hospitals. Mental Health. 1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Núcleo de Pesquisa em Lógicas Institucionais e Coletivas – São Paulo (SP), Brasil. emilianocamargodavid@ yahoo.com.br Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. ESPECIAL 3, P. 264-277, OUTUBRO 2020 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira 265 Introdução que não separa as lutas antirracistas da luta antimanicomial. De fato, se entendemos que a A Reforma Psiquiátrica Brasileira, em dois dos lógica manicomial, ou a manicomialização, não seus principais manifestos, a ‘Carta de Bauru’1 se esgota no manicômio como estabelecimento e a ‘Carta de Bauru – 30 anos’2, sustenta que o asilar, mas está presente na sociedade, as relações racismo é uma configuração manicomial. Em entre luta antimanicomial e decolonialidade 1987, usuários(as), trabalhadores(as), militan- ficam mais evidentes. Como apontam Amarante3 tes, pesquisadores(as), estudantes, familiares, e Yasui4, a Reforma Psiquiátrica no Brasil é um entre outros(as), já apontavam o combate à processo social complexo que coloca em jogo discriminação contra negros(as) como uma dimensões jurídico-políticas, epistemológicas, pauta antimanicomial: socioculturais, além das técnico-assistenciais. Entendemos tal direção da Reforma como O manicômio é expressão de uma estrutura, uma perspectiva decolonial. Se, na lógica mani- presente nos diversos mecanismos de opres- comial, o manicômio se reproduz e permanece são desse tipo de sociedade. A opressão nas para além do asilo, na perspectiva decolonial, fábricas, nas instituições de adolescentes, nos a colonialidade está além do colonialismo. cárceres, a discriminação contra negros, homos- Entendemos colonialidade, tal como formu- sexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos lada por Quijano5, como a “imposição de uma de cidadania dos doentes mentais significa classificação racial/étnica da população do incorporar-se à luta de todos os trabalhadores mundo”5(84), como por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida1. pedra angular de um padrão de poder que opera nas dimensões materiais e subjetivas da exis- Em 2017, representantes das mesmas esferas tência social cotidiana e da escala social, que se se manifestaram defendendo a igualdade origina e se mundializa a partir da América5(84). racial, posicionando-se contra o genocídio e a criminalização de jovens negros(as) e re- Nesse sentido, como lógica de poder, ela conhecendo a urgência de articulação com o ultrapassa a experiência inaugural do ‘colonia- movimento social negro: lismo’, enquanto processo sociopolítico-eco- nômico de colonização e escravidão (infligido, Não podemos deixar de frisar o avanço do conser- do século XV ao XIX, nas Américas). vadorismo e da criminalização dos movimentos No entanto, mesmo na dimensão técnico- sociais, defendemos a diversidade sexual e de -assistencial, a análise dos efeitos das discri- gênero, as pautas feministas, a igualdade racial. minações raciais e do racismo assim como Somos radicalmente contra o genocídio e a a assunção de condutas antirracistas pela criminalização da juventude negra, a redução Rede de Atenção Psicossocial6 (Raps) – que da maioridade penal, a intolerância religiosa e articula os pontos de atenção à saúde para todas as formas de manicômio, que seguem opri- pessoas com sofrimento ou transtorno mental mindo e aprisionando sujeitos e subjetividades. e com necessidades decorrentes do uso de Apontamos a necessidade urgente de articulação álcool e outras drogas – seguem invisibiliza- da Luta Antimanicomial com os movimentos fe- das ou inexistentes, fazendo com que políti- ministas, negro, LGBTTQI, movimento da popula- cas fundamentais para o cuidado em saúde/ ção de rua, por trabalho, moradia, indígena entre saúde mental da população negra não sejam outros, a fim de construirmos lutas conjuntas2(2). incorporadas no dia a dia dos equipamentos do Sistema Único de Saúde (SUS), como é o Ambos os documentos pautam a dimensão caso da Política Nacional de Saúde Integral racial, apontando uma direção ético-política da População Negra (PNSIPN). SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. ESPECIAL 3, P. 264-277, OUTUBRO 2020 266 David EC, Vicentin MCG É importante frisar que a Política Nacional desse ponto histórico, embora se saiba que, em de Saúde Mental no Brasil, instituída em 20017, outros períodos do Brasil colonial e imperial e a PNSIPN, instituída em 20108, aproximam- (sendo este compreendido de 1822 até o final -se, e ambas buscam equidade, além da univer- do século XIX), o(a) negro(a) foi aviltado(a) de salidade, avalizando que o cuidado em saúde sua condição de sujeito, como aponta Souza12: se dá no dever de atender igualmente o direito de cada um, porém, reconhecendo suas espe- A sociedade escravista, ao transformar o afri- cificidades e valorizando diferenças. cano em escravo, definiu o negro como raça Este artigo baseia-se em dissertação de mes- (noção ideológica), demarcou o seu lugar, a trado em Psicologia Social9 que buscou discu- maneira de tratar e ser tratado, os padrões de tir as relações entre racismo e saúde mental na interação com o branco, e instituiu o paralelismo perspectiva dos profissionais de um Centro de entre cor negra e posição social inferior12(19). Atenção Psicossocial Infantojuvenil (Capsi), tendo como um dos eixos de revisão de literatura A abolição da escravidão e a queda da monar- os processos de asilamento da população negra quia, no final do século XIX, exigiram mudanças no País. Inicialmente, apresentamos a relação nas relações raciais no Brasil. Com o fim do histórica entre loucura e raça no Brasil, com escravismo, ao menos no papel, os negros(as) foco nos mecanismos de controle e segregação deixavam de ser peças, objetos. Todavia, surgia, que incidiram sobre a população negra em três paralelamente ao movimento abolicionista, períodos: 1) o século XIX, com o surgimento das novas correntes que negavam “a igualdade e a teorias racialistas e eugenistas, que balizavam as transformava em matéria de utopia”13(42). De políticas de branqueamento no Brasil; 2) as pri- 1870 em diante, produções teóricas começaram meiras décadas do século XX, particularmente na a ser elaboradas por diversos intelectuais, com cidade de São Paulo, onde crianças negras eram o intuito de demonstrar uma suposta naturali- institucionalizadas em nome do ‘mito da raça zação das disparidades sociais13,14 como falsa paulistana’; e 3) o início do século XXI, nos anos justificativa da manutenção de negros(as) em 2000, com a realização do Censo Psicossocial condição análoga à escravidão. A ideologia do dos Moradores em Hospitais Psiquiátricos do branqueamento encontrou fertilidade na me- Estado de São Paulo10 que, ao lado da leitura dicina eugenista do século XIX. crítica de autores como Barros, Batista, Dellosi No Brasil, qualquer teoria que não balizasse e Escuder sobre o Censo11, trouxeram visibili- diferenças naturais entre raças tinha pouco valor. dade à perspectiva racial. Na esteira da direção ético-política da Reforma Psiquiátrica Brasileira Aqui ocorreu uma releitura original. Ao mesmo e em uma perspectiva decolonial, propomos o tempo em que se absorveu a ideia de que as ‘aquilombamento’ da reforma como assunção raças significavam realidades essenciais e onto- ativa de um agir antirracista. lógicas, negou-se a noção de que a mestiçagem levava sempre à degeneração14(42). Racismo científico e As teorias apostavam que a miscigenação política de branqueamento embranqueceria a nação brasileira e que tal embranquecimento traria uma evolução no Brasil: propostas racial: “Miscigena-se para ‘embranquecer’ manicomiais eugênicas jamais para ‘empretecer’. Com esses princí- pios, com essas crenças, convive a sociedade A discriminação e a opressão de negros(as) brasileira até hoje”15(3). no Brasil não se iniciaram com as postulações Aspecto importante nas relações raciais do racismo científico. Contudo, partiremos entre brancos e negros é o conceito de ‘ideologia SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. ESPECIAL 3, P. 264-277, OUTUBRO 2020 Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira 267 do branqueamento’. Incipiente na escravidão surgiram nessa década, como Batista Lacerda e colonial, esse conceito teve seu fortalecimento Roquette Pinto, que defendiam a superioridade cultural na edificação do abolicionismo brasi- de “caracteres mentais, somáticos, psicológicos leiro, tornando-se um dos eixos fundamentais e culturais da raça branca”18(66). De acordo com do fim do regime de produção colonial, como Bento19, Nina Rodrigues (1862 – 1906) já defen- ideário de um país miscigenado16. dia a tese de que o(a) negro(a) foi escravizado(a) O período de abolição da escravidão sofreu por causa de sua inferioridade. brutal interferência das políticas de incentivo Segundo Schwarcz14, em meados de 1930, a à imigração europeia que pretendiam retirar medicina no Brasil estava em plena construção, os(as) negros(as) dos espaços de trabalho e de e sua hegemonia era fortemente disputada por produção, substituindo-os(as) por imigrantes duas grandes escolas: a Faculdade de Medicina europeus. Na segunda metade do século XIX do Rio de Janeiro e a Faculdade de Medicina até os últimos anos do império, a busca de da Bahia. embranquecer o Brasil se fez política. Uma breve observação, aqui, faz-se necessária. O tema racial é ainda relevante, pois integra o Como uma tentativa de eliminação da raça arsenal teórico de ambas as escolas. Na Bahia, negra, o branqueamento não se efetuou no é a raça, ou melhor, o cruzamento racial que Brasil, pois, atualmente, este é o país com o explica a criminalidade, a loucura, a degene- maior contingente de negros fora da África, ração. Já para os médicos cariocas, o simples perdendo somente para a Nigéria. Segundo a convívio das diferentes raças que imigraram Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios para o país, com suas diferentes constituições (PNAD) – 2013, os(as) negros(as) representam físicas, é que seria o maior responsável pelas 53,1% da população brasileira; em números doenças, a causa de seu surgimento e o obstá- absolutos, somam 107 milhões de habitantes17. culo à ‘perfectibilidade’ biológica14(191). Na construção da noção de raça, as ciências biológicas tiveram importante papel, princi- Costa18 aponta que os médicos Renato palmente entre os anos 1870 e 1930, balizando Kehl e Xavier de Oliveira protagonizavam as justificativas raciais de que o(a) negro(a) é as teorias racistas dentro da LBHM. O autor inferior14. “Tendo por base uma ciência positi- observa também que os demais psiquiatras vista e determinista, pretendia-se explicar com condescendiam com suas asseverações ra- objetividade – a partir da frenologia [...] – uma cistas, afinal, ambos nunca foram questiona- suposta diferença entre os grupos humanos”14, dos pelos demais integrantes da Liga; pelo assim, por meio de análises fenotípicas, a biolo- contrário, suas proposições eram aceitas. gia passou a patologizar determinados grupos São exemplos o III Congresso de Psiquiatria humanos, por meio das teorias raciais da época. e o III Congresso Brasileiro de Neurologia, Pesquisando a história da Liga Brasileira Psiquiatria e Medicina Legal, em que Xavier de Higiene Mental (LBHM), nas décadas de de Oliveira18 proferiu: 1920 e 1930, no Brasil, Costa18 discute as bases eugenistas da psiquiatria então emergente: nº6: que só seja permitida a entrada no paiz de immigrantes da raça branca; nº7: que seja Os eugenistas serviram-se do organismo para expressamente prohibido para effeito de resi- reforçar as ideias eugênicas e reativar o racismo dência além de seis meses, a entrada, no paiz, puro, recalcado na cultura brasileira, com fina- de quaesquer elementos das raças negra e lidades político-ideológicas18(113). amarella18(111). O mesmo autor aponta que, dando sequência Renato Kehl18, por sua vez, declarava a res- às ideias de Nina Rodrigues, outros intelectuais peito da mestiçagem: SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. ESPECIAL 3, P. 264-277, OUTUBRO 2020 268 David EC, Vicentin MCG Os dois elementos cruzados têm, cada um, Para Serra e Scarcelli20, a ciência médica seus caracteres psicofísicos estritamente pró- eugênica tinha, como principal intenção, a prios, estáveis, harmoniosos. Em vez de realizar patologização de negros(as), indígenas e des- uma média entre esses caracteres diferentes, cendentes de asiáticos(as), além de afirmar a mestiçagem perturba seu desenvolvimen- uma suposta periculosidade das classes pobres to natural. Aqueles que afirmam, tanto entre e ratificar o ideário da branquitude. brancos e negros, como entre brancos e índios, No final dos anos 1930, a política de branque- mongóis e outros. Os mestiços não podem ser amento, aos poucos, perdeu força, assim como comparados a uma raça pura; só a partir de uma o alienismo entra em declínio. Contudo, sua visão falsa é que se pode admitir sua igualdade tarefa manicomial eugênica já havia produzido e superioridade18(111). efeitos, assim como função simbólica, material e política, conforme aponta o próximo item. Costa18 considera que as interpretações das estatísticas psiquiátricas tinham fortes componentes racistas. As estatísticas eram População negra e o fundamento médico, todavia, esses dados manicomialização não levaram em consideração determinantes sociais e históricos. O racismo admitido pela Este item fará referência à manicomialização LBHM, nos anos 1930, pautava-se nos altos da população negra em três períodos distintos. índices de doença mental e sua prevalência O primeiro deles é o racismo científico das nos grupos ‘étnicos não brancos’ (linguagem últimas décadas do século passado, mais espe- da época). Também se ancorava no tipo de cificamente, a obra de Dr. Henrique Roxo, que doença mental toxinfecciosa (como sífilis e aproximou raça e loucura, tratando a comuni- alcoolismo), uma vez que o grupo populacio- dade negra da época como intelectualmente nal branco apresentava predominantemente inferior e/ou degenerada21. doenças nomeadas constitucionais. Segundo o autor, esses dados eram utilizados Sempre ciosos de resguardar a vastidão e a e interpretados como estigma racial, visto que imprecisão dos limites definidores da doença mental, os psiquiatras partiram do princípio de os psiquiatras tinham nas estatísticas um pre- que a loucura não escolhia raça, o que não os texto para confirmar o preconceito racial. Os impediu de construir, sub-repticiamente, rela- indivíduos não brancos, sendo portadores he- ções bastante próximas entre doença mental reditários de predisposição sifilítica, represen- e as raças consideradas inferiores21(5). tavam um perigo para a constituição eugênica do Brasil18(112). Engel21, ao analisar a obra do Dr. Henrique Roxo (1904), verificou que o médico se ancorava Ancorados nessas estatísticas, doenças re- na comunidade científica do Rio de Janeiro lacionadas com uma suposta predisposição para postular suas associações entre raça negra, genética das mulheres negras em contrair inferioridade intelectual, loucura e degenera- sífilis e com uma decadência moral/sexual ção. Tal associação “poderia ser utilizada como eram atribuídas à herança psíquica de negros um instrumento importante para justificar e e mestiços. Essas são análises extremamente legitimar a implantação de mecanismos mais preconceituosas e racistas que ignoravam as sutis de controle social”21(5). condições sociais desumanas que homens O Dr. Henrique Roxo analisou o ‘Quadro es- negros e mulheres negras viveram ao longo tatístico dos doentes internados no pavilhão de dos anos, violências determinantes para a observação do Hospital Nacional de Alienados manifestação desses fenômenos. – HNA (1894-1903)’, reproduzido no quadro 1. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. ESPECIAL 3, P. 264-277, OUTUBRO 2020 Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira 269 Quadro 1. Quadro estatístico dos doentes internados no pavilhão de observação do Hospital Nacional de Alienados (1894-1903) Ano População total Brancos Pardos Pretos 1894 418 217 91 110 1895 606 349 130 127 1896 623 389 128 106 1897 704 381 151 172 1898 707 396 179 152 1899 697 379 168 150 1900 615 356 132 127 1901 608 333 153 122 1902 614 328 159 127 1903 657 321 203 133 Fonte: Engel21(6). Para sua surpresa, com exceção de 1903, o mórbidas, uma vez que: ‘As raias da imbecili- número de pretos e pardos somados é inferior dade atingem, em geral, todos os pretos’21(6). ao número de brancos, o que levou o médico a fazer observações/interpretações de que: Com esses e outros argumentos, o psiquiatra conclui sua tese justificando não apenas as in- a taxa de negros internados era considerável ternações da população negra em manicômios, e, neste sentido, argumenta que os brancos mas a suposta inferioridade dessa população, incluíam os estrangeiros e que os pretos eram o que abonaria determinados tipos de relações quantitativamente inferiores aos brancos na sociais e de trabalho hierarquizadas racialmen- cidade do Rio de Janeiro21(6). te, tornando-se um modo de controle social. Nas primeiras décadas do século XX, ainda O médico constatava uma presença percen- na região Sudeste, porém, na cidade de São tual maior de pretos e pardos internados, em Paulo, outro famoso médico psiquiatra pra- comparação aos brancos, quando comparava ticava a manicomialização com princípios com na população da cidade do Rio de Janeiro, eugenistas, dessa vez, com crianças, sendo embora não tenha feito um levantamento possível identificar que quantitativo rigoroso, comprovando uma fa- laciosa ideia de inferioridade e periculosidade. o Juquery, nesse momento, servia de palco de uma psiquiatria experimental que buscava Analisando o quadro [...] ele afirma, por solucionar as dificuldades enfrentadas pelo exemplo, que a mania é mais rara nos negros crescimento da cidade de São Paulo20(86). do que a lypemania (melancolia delirante), ar- gumentando ser a primeira ‘uma manifestação Em nome e em busca do ‘mito da raça pau- dos cérebros de evolução normal’ e, portanto, listana’, aperfeiçoado por uma ideologia de mais rara nos ‘tipos da raça inferior’, enquan- heróis bandeirantes, políticas eugenistas foram to em relação à segunda ‘temos observado implementadas, buscando a normalização, ser própria dos cérebros menos inteligentes’. a disciplina e o branqueamento. O médico Afirma ainda que a imbecilidade não seria muito psiquiatra Pacheco e Silva foi um dos grandes frequente nos pacientes negros, mas apressa-se protagonistas desse processo, como mostram a esclarecer estar se referindo às manifestações as autoras Serra e Scarcelli20: SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. ESPECIAL 3, P. 264-277, OUTUBRO 2020 270 David EC, Vicentin MCG O argumento central em favor do tratamento ‘controlar’ a vida. Nesse sentido, amparados de internação para os “menores anormais” era pelo caráter científico da higiene mental e da que a prevenção e as medidas educativas cor- eugenia, ações profiláticas, preventivas e restri- retivas diminuiriam os gastos do Estado com tivas foram utilizadas de diversas formas com o a construção de novos presídios. E Pacheco e intuito de ‘aperfeiçoar’ a genética populacional. Silva tinha convicção dessa proposta, já que Vimos como a ideia de uma raça ‘pura’, tão uti- estimava que metade dos presidiários apresen- lizada em países europeus, precisou ser revista tavam anomalias neuropsíquicas que poderiam e adaptada às condições brasileiras. Se somos ter sido evitadas pela assistência precoce e o um país de miscigenados, essa característica tratamento adequado20(93). não poderia fadar o fracasso brasileiro. Para evitar o descontentamento dos ideais de uma Desse modo, o psiquiatra justificava a inter- raça superior, a mistura racial foi bem aceita e nação de crianças e indicava que isso deveria encarada com certo otimismo. Para os psiquia- acontecer o mais cedo possível, assim, os riscos tras da LPHM, se houvesse a miscigenação, em seriam menores para a sociedade. A interna- algumas décadas, haveria o embranquecimento ção das crianças em hospitais psiquiátricos, populacional20(94). segundo o médico, permitiria a investigação da ‘personalidade delinquente’. Tratava-se de É necessário frisar que esse processo euge- uma pesquisa que utilizaria a metodologia de nista com foco na infância ocorreu em razão ‘decomposição sintética da personalidade’, que da incumbência de médicos psiquiatras cum- comportaria a análise de fatores biográficos, prirem um projeto de excelência racial para o genealógicos e sociológicos, que iriam compor Estado20, no qual negros(as) não iriam fazer essa ‘personalidade’, ‘deformando’ o indivíduo parte do ‘mito da raça paulistana’. com o passar dos anos20. Outro período a ser abordado é o das Pacheco e Silva, embora fosse jovem, era um décadas de 1960 a 1980, marcado pela vigên- influente médico, com importante entrada no cia do regime de ditadura militar no Brasil. cenário político da época. Suas apostas clíni- As informações referentes ao quantitativo de cas recebiam financiamento, o que permitiu a negros(as) em manicômios nesses anos são construção da Escola Pacheco e Silva, dentro praticamente inexistentes ou pouco confiáveis. do Hospital do Juquery, em 1929, para estudar Por exemplo, no censo de 1970, a pergunta os ‘menores anormais’ e ‘abandonados’, bus- sobre raça/cor foi suprimida, sendo que o cando a prevenção e a cura da delinquência20. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Mais uma vez, a psiquiatria foi aplicada (IBGE) foi impedido de coletar dados que em busca de padrões normativos, propondo levassem em consideração raça/cor como a ‘delinquência’ como marcador social da diferença22. A herança manicomial racista dos anos an- consequência das patologias específicas de tecedentes somada às difíceis condições vigen- cada menor, e o crime seria compreendido tes no Brasil, impostas pela ditadura militar pelas disfunções ‘anormais’ do corpo, fosse desde 1964, fizeram com que a população por herança biológica, fosse pelas condições negra compusesse maioria nos hospitais psi- de vida, e não como reflexo de estruturas eco- quiátricos. Sem os dados estatísticos da época, nômicas, sociais e políticas20(93). optamos por não desenvolver análises sobre esse período, todavia, sugerimos que os regis- Percebemos que o aumento do contingente tros fotográficos do período podem sustentar populacional nas cidades paulistas pressupu- a afirmação de que a manicomialização teve/ nha, aos psiquiatras da LPHM [Liga Paulista de tem cor no Brasil do regime militar. Daniela Higiene Mental], novas formas de ‘ordenar’ e Arbex23, em seu livro ‘Holocausto brasileiro’, SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. ESPECIAL 3, P. 264-277, OUTUBRO 2020 Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira 271 publicado em 2013, apresenta uma gama de o estado civil informado é predominantemente imagens que permite essa compreensão. solteiro tanto para homens (média de 84,7% Brum24, ao prefaciar o livro de Arbex, para pretos e pardos) quanto para mulheres aponta que, entre os internos, “cerca de 70% (média de 74% para pretas e pardas) [...] na não tinham diagnóstico de doença mental. população total do censo, o percentual é de Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, 82,1%11(1240). prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais A lógica da organização das instituições totais poder”, lógica manicomial que não foi (total- é arquitetada para que não ocorram encon- mente) abandonada com a virada do século, tros, os pátios são separados, os horários de conforme veremos nos próximos parágrafos. banho e sol são separados, a vida segue o ritmo Por fim, chega-se aos anos 2000, mais es- institucional, os desejos ficam submetidos à pecificamente, a partir de 30 de novembro de censura dos vigias. Essa lógica, sustentada nos 2007, data adotada como linha-base para Censo princípios eugênicos e profiláticos do final do Psicossocial dos Moradores em Hospitais século XIX e princípio do século XX no Brasil, Psiquiátricos do Estado de São Paulo10. silencia a expressão das formas particulares O censo citado “identificou que 6.349 de existência11(1240). pessoas moram em 56 dos 58 hospitais psi- quiátricos existentes no estado”10. Quando os Segundo os autores, os dados sobre escola- autores analisaram os números, ridade são espantosos, chegando a somar 70% de “analfabetos”11; destes, 9% sabem apenas constataram que, enquanto 27,4% da população escrever o próprio nome. do estado de São Paulo se autodeclara preta e parda, entre os moradores dos hospitais psiqui- Essa realidade mostra-se mais perversa em átricos do estado de São Paulo, esse percentual relação aos pretos e pardos, pois esse extrato é de 38,36%11(1.237). da população moradora totaliza 64,8% de anal- fabetos entre os seus 2.435 não cidadãos11(1241). Barros et al.11 consideram que os números apontados pelo censo permitem constatar uma A barreira do analfabetismo aprofunda os presença maior de moradores(as) negros(as) mecanismos de exclusão social dessa popula- em hospitais psiquiátricos do que quando com- ção porque a impede de exercer o ato mínimo parado com a população geral no estado de São de sobrevivência, que é ler e compreender Paulo. Os autores sugerem que é importante o mundo. Por meio da leitura e da escrita, é pensar sobre o possível ampliar repertórios pessoais, ajuizar valores e eventos, participar da vida política e impacto dos processos ininterruptos de pre- civil, organizar-se como cidadão de direitos. conceito, exclusão, abandono e apartamento A escolaridade de mulheres e homens brancos social na saúde mental; so bre populações vul- distribui-se entre os diferentes níveis de escola- neráveis e saúde mental e/ou sobre os ‘efeitos ridade. Dentre os pretos e pardos, prevalecem psicossociais do racismo’11(1239). os não alfabetizados. O analfabetismo expressa mais um dos direitos negados a essas pessoas, A pesquisa não se limitou ao número de e aprofunda os mecanismos de exclusão social, moradores nos hospitais psiquiátricos; dessa dificultando sua participação na vida política forma, foram também analisados aspectos como e civil11(1241). a situação conjugal dos moradores internados e os dados de escolaridade. Em ambos os aspectos, Quando são investigados os motivos de a condição da população negra chama a atenção: permanência nos hospitais psiquiátricos, o SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. ESPECIAL 3, P. 264-277, OUTUBRO 2020 272 David EC, Vicentin MCG estudo demonstra a ‘precariedade social’, aqui estes(as), a escansão racial existente nos ma- entendida como a inexistência de uma morada nicômios nunca passou despercebida, ‘em fora do hospital e/ou a impossibilidade de branco’, como não passou para Lima Barreto25, renda. Considera-se que cerca de 65,3% das nos seus relatos (autobiográficos), assim como pessoas estão internadas em hospitais psi- nos livros Diário do hospício e O cemitério quiátricos por causa da precariedade social dos vivos, pois evidenciam a realidade racial somada ao transtorno mental ou às doenças dos hospitais psiquiátricos. Nas palavras dele: clínicas, sendo que 8,2% das pessoas (totali- zando 519) estão internadas exclusivamente Esse pátio é a coisa mais horrível que se pode pela precariedade social. imaginar. Devido à pigmentação negra de Essa realidade, quando analisada com o uma grande parte dos doentes aí recolhidos, a recorte raça/cor, deflagra diferentes contextos imagem que se fica dele é que tudo é negro. O para brancos(as) e negros(as): negro é a cor mais cortante, mais impressio- nante; e, contemplando uma porção de corpos 11,4% dos moradores pretos, 9,3% dos brancos negros nus, faz ela que as outras se ofusquem e 8,0% dos homens pardos. Dentre as mulheres no nosso pensamento. É uma luz negra sobre esse percentual é de 8,2% entre as pretas, 6,3% as coisas, na posição de que, sob essa luz, o entre as brancas e 4,7% entre as moradoras nosso olhar pudesse ver alguma coisa25(211). declaradas pardas11(1241). Ao compreendermos população negra como a somatória de pretos(as) e pardos(as), Aquilombar a Reforma os dados apontam que, dos internados por Psiquiátrica Brasileira: uma ‘precariedade social’, 19,4% são homens negros, enquanto 9,3% são homens brancos; e, entre exigência antimanicomial as mulheres, o dado não é diferente, pois 12,9% são mulheres negras, enquanto 6,3% A vinculação entre população negra e loucura é são mulheres brancas. Em ambos os gêneros, secular no Brasil. Porém, reconhecer os efeitos o número de negros e negras internados por desse atrelamento, em seus distintos contextos ‘precariedade social’ é mais do que o dobro sociais e políticos ao longo dos anos, oferece- quando comparado aos brancos e brancas. -nos elementos para produzir um ethos com- promissado com o aquilombamento e com a A população negra sofre historicamente proces- necessária desconstrução do crioulo doido26 e sos ininterruptos de abandono e apartamento da negra maluca. Essa manicomialização teve, social. O lugar por excelência do abandono e no decorrer do tempo, diferentes formas que exclusão social é o manicômio, assim como vão do abono das crises socioeconômicas das outras instituições totais. Os dados consolida- primeiras décadas do regime republicano, em dos comprovaram que à população negra cabe razão da abolição da escravatura, à famigera- a injusta posição de prioritária no ranking da da busca antiabolicionista; à ‘arianização’; ao exclusão social nos hospitais psiquiátricos do combate de vícios como o álcool e o tabaco; estado de São Paulo11(1240). ao incentivo de ‘bons hábitos, atividade física e intelectual’; à política do branqueamento e Finalizamos este item com a compreen- às práticas de controle de imigração dos con- são de que a relação entre loucura e popu- siderados ‘inaptos’; à proibição de casamento lação negra exige que escutemos as vozes entre os ditos ‘anormais’; à esterilização dos daqueles(as) que foram e estão sendo mani- ‘degenerados’, atualizando-se no genocídio comializados, ou seja, os(as) negros(as). Para da população pobre, preta e periférica; assim SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. ESPECIAL 3, P. 264-277, OUTUBRO 2020 Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira 273 como à guerra contra as drogas e ao combate em preconceito racial”32(244), é fundamental am- relação ao crack11,14,20,26-28. Independentemente pliarmos os estudos e as ações de cuidado que de sua forma e ação, o escopo central dessas abordem o preconceito racial e seu impacto práticas, ao longo dos anos, tem sido o controle na saúde mental da população brasileira32. social a partir da interseccionalidade raça/cor, Nessa direção, Santos32 afirma que o Estado classe social e gênero. Assim, consideramos não determina apenas quem deve morrer e que, no Brasil, não haverá Reforma Psiquiátrica quem deve viver, mas também “os que devem plena enquanto a Luta Antimanicomial não ter saúde mental, e os que podem viver ator- compuser a luta antirracista interseccionada mentados em seu sofrimento produzido pelas a essas outras lutas. condições sociais”29(247), e acrescenta que Se o racismo é estrutural, “decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo é o Estado racista também que determina sob ‘normal’ com que se constituem as relações quais condições tratamos da saúde mental da políticas, econômicas, jurídicas e até familia- população brasileira, que tipo de investimento, res, não sendo uma patologia social”29(38), e, com quais psicologias e quais abordagens29(247). muitas vezes, institucionalizado, na medida em que expressa o “fracasso das instituições Atentar-se aos saberes utilizados pela e organizações em prover um serviço profis- Reforma Psiquiátrica Brasileira ao longo dos sional e adequado às pessoas devido à sua cor, anos de Luta Antimanicomial é olhar para o cultura e origem racial ou étnica”30(2); trata-se que subsidia e autoriza o fazer das equipes de de traçar estratégias e propostas para que a saúde mental, em especial, na esfera da saúde dimensão racial ganhe centralidade no debate pública35. Adotar uma perspectiva decolonial da saúde mental brasileira. na Reforma Psiquiátrica Brasileira irá ampliar Estudo recente31 aponta que: “problemati- e fortalecer o saber/fazer de saúde, utiliza- zar o manicômio e suas expressões, abordando dos no campo psicossocial da saúde mental, as relações de raça, gênero e classe, é ultrapas- como sugere a campanha ‘O SUS está de braços sar os próprios muros que compõem a forma- abertos para a saúde da população negra’36, ção social brasileira”31(14), para isso, “racializar que objetiva a os corpos e a própria história faz parte dos novos rumos da Luta Antimanicomial”31(14). inclusão de práticas culturais afro-brasileiras, Nessa esteira, anuímos à provocação de Santos: [...] entre outras manifestações ancestrais e contemporâneas de artes negras, nos progra- levando em conta estarmos num mundo feito mas de promoção da saúde36(27). para os brancos, sob o signo do genocídio e o sentimento de ‘inexistência’, nossa decisão da Abdias Nascimento37 aponta o quilombismo produção da saúde mental do negro está só como uma práxis de libertação da opressão e começando32(257). assunção da própria história pelo povo afro- -brasileiro que se inspira no quilombo como Assim, surgem, recentemente, importantes um modelo de organização dinâmica, em trabalhos como os de Passos31; Oliveira, Duarte exercício desde o século XV, enquanto for- e Pitta33 e David, Silva, Silva e Lucas34. mulação política de garantia de humanidade De fato, se já temos, hoje, no campo das e comunidade em suas dimensões subjetivas políticas de saúde, especialmente nos marcos e sócio-histórica. legais (ou na dimensão jurídico-política), dis- Inspirados no autor, chamamos de aqui- posições para não “ignorar as relações raciais lobamento uma direção ético-política antir- e o gravíssimo problema de saúde mental racista que exige um alargamento de todas da maioria da população brasileira, que é o as bases vigentes na reforma psiquiátrica, SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. ESPECIAL 3, P. 264-277, OUTUBRO 2020 274 David EC, Vicentin MCG especialmente quanto às relações entre saúde atendendo ao princípio de equidade racial mental e racismo, e um agir em saúde que tanto nas condições de vida da população contribua para a promoção da equidade racial quanto no impacto no perfil de saúde, e, acima e para a desinstitucionalização do racismo. de tudo, levando em conta o papel do racismo Essa atitude ético-política exige análise crítica na história do País, que ganha maior evidência permanente dos efeitos do racismo nos pro- no atual momento político-social. cessos de trabalho nos serviços de saúde/ Esse é um projeto mais urgente no atual saúde mental e um radical projeto de atenção momento na medida em que “nos últimos aos efeitos do racismo como uma questão tempos, temos assistido ao avanço de forças antimanicomial. conservadoras – força política ancorada no Nesse projeto, é necessário escapar da cilada fundamentalismo conservador e ultraliberal eurocêntrica que baliza (de modo patriarcal) na economia”38(3-4), exigindo a organização nossa Reforma Psiquiátrica, tomando como de gestores(as), trabalhadores(as) e sociedade principais (ou únicos) referenciais os modelos civil na luta pela sustentação e ampliação de italianos e franceses de desinstitucionalização, recursos para as políticas públicas sociais e na e incorporar as experiências e saberes afro- garantia dos direitos sociais, atentando para -ameríndios, a exemplo do que ocorre na Rede iniquidades raciais. Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), que compõe o SUS em uma pers- pectiva de saber-fazer afrodiaspórica. Trata-se Colaboradores de (re)tomar criticamente as epistemologias e práticas utilizadas pela Reforma Psiquiátrica David EC (0000-0002-2571-3133)* contribuiu Brasileira, abrindo espaço para outros modos para a revisão de literatura e para a elaboração de saber, pensar e cuidar, considerando a sin- do manuscrito. Vicentin MCG (0000-0003- gularidade de cada usuário/sujeito atendido 1718-6721)* contribuiu para a elaboração do em seus distintos territórios, respeitando os manuscrito. s direitos humanos, garantindo direitos sociais, SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. ESPECIAL 3, P. 264-277, OUTUBRO 2020 Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira 275 Referências 1. Bauru. Manifesto de Bauru. 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