Da instrumentalidade à materialização do processo: As relações contemporâneas entre direito material e direito processual PDF

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University of Rio de Janeiro State

2021

Antonio Cabral

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legal theory civil procedure substantive law legal studies

Summary

This article explores the contemporary relationship between substantive and procedural law through the lens of two contemporary legal phenomena: negotiation about the process and self-help mechanisms. It examines the concept of "substantivisation of procedural law" and how it redefines the roles of substantive and procedural norms. The author delves into the historical evolution of the relationship between law and process, particularly focusing on the shift from the instrumental function of procedure to a more substantive approach.

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3 Da instrumentalidade à materialização do processo: as relações contemporâneas entre direito material e direito processual1...

3 Da instrumentalidade à materialização do processo: as relações contemporâneas entre direito material e direito processual1 From a purely instrumental function to the substantivisation of civil procedure: the contemporary links between substantive law and procedural law Antonio Cabral Professor at th e University of Rio de Janeiro State, Brazil Resumo: A partir de dois fenômenos do direito contemporâneo (negociação sobre o processo e autotutela), o texto aborda o movimento de retorno do processo ao direito material, realinhando as relações entre ambos e redefinindo o papel das normas materiais e processuais nas regulações primária e secundária de conduta, dentro ou fora do Judiciário. 1. Artigo convidado, escrito originalmente para a coletânea de estudos em homenagem ao Professor Cândido Rangel Dinamarco, e é resultado das atividades do Grupo de Pesquisa “Transformações nas Estruturas Fundamentais do Processo”, vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro fundador da ProcNet – Rede Internacional de Pesquisa sobre Justiça Civil e Processo contemporâneo” (http://laprocon.ufes.br/rede-de-pesquisa-0). Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 69 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus Palavras-chave: Relações entre direito e processo. Direito Processual. Direito material. Materialização do processo. Abstract: Departing from two contemporary legal phenomena (litigation agreements and self-help mechanisms), the article approaches the return of procedural law to substantive law, which is named “substantivisation of procedural law”, a path that realigns the relations between substantive legal norms and procedural legal norms, redefining their role in regulating behavior primarily and secundarily, wether throgh judicial proceedings or outside the Judiciary. Keywords: Substantive law. Procedural Law. Substantivisation. Sumário: 1. Introdução; 2. A relação instrumental entre direito e processo em Cândido Dinamarco; 3. As relações entre direito e processo. Esboço do percurso histórico desde a emancipação do direito processual até o instrumentalismo do final do séc.XX; 3.1. Primeira fratura: da autonomia do direito processual ao afastamento exacerbado do direito material; 3.1.1. Categorias diversas e independentes do direito substancial; 3.1.2. Requisitos e pressupostos próprios do direito processual; 3.1.3. Purismo conceitual como bandeira da emancipação. A insistência em negar que o direito processual fosse “adjetivo” ou “acessório”. O vocabulário próprio como forma de aceitação do processualista; 3.1.4. Autonomia com objetivos convergentes por nexo de finalidade: a dependência que persistia. A identificação de escopos do processo autônomos como último degrau de afastamento; 3.2. Segunda fratura: a relação necessária entre jurisdição e processo; 3.3. Terceira fratura: secundariedade das normas processuais e a exclusividade das normas materiais na regulação de conduta fora do Judiciário; 3.4. Conclusão parcial; 4. Fenômenos que parecem indicar a inflexão de algumas das premissas da instrumentalidade do processo ; 4.1. Convenções das partes sobre o processo e o procedimento. As interações pré-judiciais e os negócios jurídicos prévios como rearranjo das relações entre direito e processo. Normas processuais como regulação primária de conduta.; 4.2. O futuro da autotutela e a autoexecutoriedade dos contratos: caminhamos rumo à autossatisfação dos direitos e a uma progressiva desnecessidade da atividade jurisdicional executiva?; 5. Perspectivas para o futuro: rumo a uma materialização do processo e relações de convergência coaxial entre direito e processo; 6. Referências. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 70 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL 1. INTRODUÇÃO Lembro da primeira vez que vi Cândido Rangel Dinamarco, compondo a banca de uma defesa de tese de doutorado na minha faculdade. Foi um verdadeiro acontecimento para mim, um jovem estudante da graduação em direito. Àquela época, o professor já era uma das grandes referências na minha formação. Ao final das arguições, fui pedir-lhe o autógrafo no exemplar que eu ganhei de minha mãe do Fundamentos do processo civil moderno. Até hoje fico olhando com carinho para a dedicatória, a primeira que tive o prazer de vê-lo assinar em um dos muitos livros de sua autoria que tinha adquirido. Alguns anos antes daquela defesa de tese, mais precisamente em 1987, Cândido Rangel Dinamarco escrevera uma obra-prima, um texto que marcou gerações e gerações de juristas. Trata-se da Instrumentalidade do processo, sua tese de titularidade na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo. Já disse de público que foi a primeira monografia de direito processual que li, ainda nos bancos escolares; e que provavelmente sem o Instrumentalidade não tivesse eu me encantado pela área, e jamais estaria aqui rendendo a este gigante do direito brasileiro essa justa homenagem. Dentre muitas sementes – o livro contém um feixe de teses – queria retomar algumas das ideias expostas por Dinamarco nesse estudo lapidar, e confrontá-las com os rumos que o direito processual parece trilhar nos últimos anos. Procurarei demonstrar que o direito brasileiro atual está seguindo um caminho do que pode ser chamado de “materialização do processo”, um retorno do direito processual ao direito material, que acaba por desfazer parcialmente algumas conclusões da Instrumentalidade do processo. Não obstante, o fenômeno de que vou tratar não significa um retorno ao sincretismo romano (em que direito processual era um apêndice do direito material), mas reaproxima direito e processo em outras dimensões, abrindo novas perspectivas de estudo e aplicação das normas processuais. 2. A RELAÇÃO INSTRUMENTAL ENTRE DIREITO E PROCESSO EM CÂNDIDO DINAMARCO Em seu estudo sobre a instrumentalidade do processo, Cândido Dinamarco partiu da concepção da jurisdição como fenômeno sóciopolítico, e defendeu a ideia de que a função jurisdicional possui finalidades públicas maiores e que precedem a “mera tutela dos direitos” na hierarquia de importância desses objetivos: escopos sociais e políticos.2 2. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. São Paulo: Malheiros, 9ª ed., 2001, p.149-152. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 71 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus Dentre os escopos sociais, encontram-se a pacificação dos conflitos,3 a educação da sociedade,4 e também a promoção da igualdade.5 Dentre os objetivos políticos da jurisdição, elencava a afirmação do poder estatal,6 a proteção da liberdade individual (limitando e contendo o exercício do poder político),7 e o fomento à participação dos cidadãos na vida política do país.8 Abaixo destes objetivos sociais e políticos, numa escala de prioridade que o colocaria em terceiro plano, viria o chamado escopo jurídico, a tutela do direito objetivo, restaurando lesões ou ameaças de violações aos direitos garantidos pela ordem jurídica. A tese teve enorme importância histórica. De um lado, contribuiu para o fortalecimento institucional do Judiciário no contexto de redemocratização do Brasil pós-ditadura militar.9 E foi também um pensamento relevante para ressaltar as relações entre processo e direito material numa visão até então absolutamente nova no Brasil, posicionando a jurisdição no quadro do exercício do poder do Estado.10 O processo, como procedimento estatal de formação de decisões, deveria também preocupar-se com questões como legitimação política e participação dos cidadãos, e portanto teria funções e finalidades que transcenderiam aquelas do direito material, não podendo ser totalmente neutro em relação ao conteúdo deste.11 O direito processual deveria ter, nessa linha, um “comprometimento axiológico”.12 3. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT, 8ª Ed., 1991, p.27-28. 4. Destaca Dinamarco que a educação da sociedade é um objetivo do processo, desejoso de “chamar a própria população a trazer as suas insatisfações a serem remediadas em juízo”, ou seja, conscientizá- la de seus direitos. DINAMARCO, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Op.cit, p.163. 5. Também Barbosa Moreira fala do objetivo processual de promover a igualdade processual entre indivíduos mais e menos dotados de força política e de recursos culturais e econômicos. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Por um processo socialmente efetivo. Revista de Processo, ano 27, vol.105, jan-mar, 2002, p.181-184. 6. O poder do Estado deveria ser afirmado e superposto sobre as demais formas de poder na sociedade, já que o poder estatal pode atuar suas decisões de maneira coercitiva. Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. Op. cit., p.88 ss. Na página 98, afirma que: “franquear a coerção e permitir decisões incensuráveis valeria por renunciar à soberania. O exercício da jurisdição, e sua promessa solene têm, portanto, esse expressivo significado político de enérgica afirmação da soberania”. 7. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. Op. cit., p.170. 8. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. Op. cit., p.173. 9. Não se pode esquecer que, no período mais imediato após a redemocratização, havia uma esperança no “novo” Judiciário. Era um período também de maior assistencialismo, com crença disseminada na “constituição dirigente”. 10. DINAMARCO, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Op.cit, p.77 ss, 179. 11. Dinamarco lembra os regimes autoritários, cujos sistemas processuais não continham mecanismos que permitissem corrigir a justeza das previsões normativas do direito material. DINAMARCO, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Op.cit, p.181. 12. DINAMARCO, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Op.cit, p.36. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 72 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL Recordemos ainda que a tese de Dinamarco focava a proteção aos direitos por meio da jurisdição e dos instrumentos estatais, ampliando os poderes do juiz e reduzindo as perspectivas de as partes poderem desenvolver sua autonomia como protagonistas da solução do conflito e da condução do procedimento. Por essas e outras razões, o instrumentalismo de Cândido Dinamarco sofreu duras críticas, em tom por vezes excessivamente ríspido e com uma certa dose de enviesamento.13 Muitos autores propuseram paradigmas alternativos, como o formalismo- -valorativo, 14 o garantismo 15e o neogarantismo, 16 o neoinstitucionalismo, 17 o 13. ABBOUD, Georges; OLIVEIRA, Rafael Tomas de. O dito e o não-dito sobre a instrumentalidade do processo: críticas e projeções a partir de uma exploração hermenêutica da teoria processual. Revista de Processo, vol. 166, 2008. Veja-se a defesa empreendida por José Roberto Bedaque em BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Instrumentalismo e garantismo: visões opostas do fenômeno processual? in BEDAQUE, José Roberto dos Santos; CINTRA, Lia Carolina Batista; EID, Elie Pierre (coord.). Brasília: Gazeta Jurídica, 2016, p.1-39. 14. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo- valorativo. São Paulo: Saraiva, 3a Ed., 2010; ZANETI JR., Hermes. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Confira-se a crítica, tanto ao instrumentalismo de Dinamarco, como ao formalismo-valorativo de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira em ROLO, Rafael Felgueiras. O processo coletivo e o papel da coletividade ausente: a afirmação de um contraditório transcendente. Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado, 2015, capítulo 1. 15. GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: o “processo justo”. in Estudos de Direito Processual, ed.Faculdade de Direito de Campos, 2005, p.225-286. 16. Em especial aquelas da mais recente formulação de estudiosos filiados à ABDPro, em textos esparsos na internet, dos quais destaco: COSTA, Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia, disponível em https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose- costa-processo-instituicao-garantia, acessado em 28/09/2020; COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo: garantia de liberdade (“freedom”) e garantia de liberdade (“liberty”), disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/processo-garantia-de-liberdade-freedom-e-garantia-de- liberdade-liberty, acessado em 28/09/2020. Note-se que, ao posicionar o processo como instituição de garantia “contrajurisdicional”, pressupõem que o fenômeno processual é dependente da jurisdição estatal, quando há atos processuais e aplicação de normas processuais fora da jurisdição. No mais, o neogarantismo não enfrenta o problema da relação entre direito material e direito processual. Se o processo é “instituição de garantia”, “contrapoder”, se se volta contra o Estado e é neutro em relação aos direitos, e se dos direitos “se ocupa apenas a jurisdição”, parece que essa vertente do garantismo tem um vício de berço, que é relacionar necessariamente processo e jurisdição. Aliás, é até certo ponto curioso que não se desenvolva esse aspecto em teses que partem de uma visão de Estado mínimo e pregam o empoderamento das partes, expressamente aceitando negócios jurídicos processuais. 17. Defendido sobretudo por Rosemiro Pereira Leal. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002; LEAL, Rosemiro Pereira. A Teoria Neoinstitucionalista do Processo: uma trajetória conjectural. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013; LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008; COSTA, Alexandre Araújo; COSTA, Henrique Araújo. Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: uma avaliação das Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 73 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus “processualismo constitucional democrático”,18 o “modelo constitucional de processo”,19 o neoprocessualismo.20 Não nos cabe aqui entrar nesse embate nem expor todas as nuances dessas propostas. Nossa proposta é mais modesta. Para nossos objetivos, é relevante lembrar que a Instrumentalidade do processo era fruto do espírito de seu tempo, e foi resultado de uma evolução histórica que se forjou pouco a pouco a partir da emancipação do direito processual em relação ao direito material. Sem embargo, na busca por autonomia do direito processual em relação ao direito material, foram sendo lançadas as bases teóricas que levariam à independência do processo e a estruturação de institutos e teses que o apartariam do direito substancial. E, como nosso foco de análise aqui são as relações entre direito e processo, entendemos relevante, ainda que brevemente, recordar esse percurso histórico, destacando aspectos que serão importantes para uma mirada para o futuro. 3. AS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E PROCESSO. ESBOÇO DO PERCURSO HISTÓRICO DESDE A EMANCIPAÇÃO DO DIREITO PROCESSUAL ATÉ O INSTRUMENTALISMO DO FINAL DO SÉC.XX Uma das grandes questões, sempre polêmicas, do estudo do direito processual, é sua relação com o direito material.21 O processo realiza escopos próprios ou estaria sempre pautado pelo direito substancial? críticas neoinstitucionalistas à teoria da instrumentalidade do processo, mimeografado, disponível em www.academia.edu. 18. Forte na escola mineira NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá, 2008; NUNES, Dierle. Processualismo Constitucional Democrático e padronização decisória. Revista de Processo, ano 36, vol.199, set., 2011; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Por um novo paradigma processual. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, vol.26, jan-jun, 2008, p.79-98; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Processo, jurisdição e processualismo constitucional democrático. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 101, jul.-dez. 2010, p.61-96; BRÊTAS, Ronaldo. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. 19. ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile italiano. Torino: G.Giappichelli, 1990; BUENO, Cassio Scarpinella. O “modelo constitucional do direito processual civil”: um paradigma necessário de estudo do direito processual civil e algumas de suas implicações. Revista de Processo, vol. 161, 2008, p. 261-270. 20. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. in Processo e Constituição: Estudos em Homenagem ao Prof. José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: RT, 2006, p.662-683. Confira-se análise crítica dessa nomenclatura em DIDIER JR., Fredie. Teoria do processo e teoria do direito: o neoprocessualismo. in DIDIER JR., Fredie (Org.). Teoria do Processo: panorama doutrinário mundial – vol.2. Salvador: Juspodivm, 2010. 21. São inúmeros os estudos sobre as relações entre direito e processo no direito estrangeiro. Confiram-se, por todos, sem pretensão de exaurir as referências, HENCKEL, Wolfram. Prozessrecht und materielles Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 74 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL De um lado, há aqueles que afirmam que o processo é iluminado por elementos do direito material no que se refere aos seus objetivos, valores econômicos, éticos, e seria dependente também do desenho das estruturas do Estado, porque deve implementar a justiça em todas essas dimensões.22 Outros autores defendem que o direito processual é um ramo estritamente técnico, alheio e neutro aos valores materiais do ordenamento.23 As relações entre direito e processo sempre foram tortuosas por conta do nascimento tardio do processo a partir do direito substancial. E nesse caminho para a autonomia científica do direito processual, observamos algo que podemos retratar como “fraturas históricas”, que foram paulatinamente afastando os dois campos. Vejamos essas fissuras e a repercussão que tiveram nas relações entre direito e processo. 3.1. Primeira fratura: da autonomia do direito processual ao afastamento exacerbado do direito material A primeira fratura foi decorrente da alforria dogmática que o direito processual conquistou em relação ao direito material. Até então, direito e processo eram integrados, e o direito processual era visto como um apêndice, um aspecto do direito material.24 Recht. Göttingen: Otto Schwartz, 1970, p.30 ss ; CARNELUTTI, Francesco. Diritto e processo. Napoli: Morano, 1958; CARNELUTTI, Francesco. Profilo dei rapporti tra diritto e processo. Rivista di Diritto Processuale, ano XXXV, n.4, 1960; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. São Paulo: Malheiros, 6a Ed., 2011, p.24 ss; FAZZALARI, Elio. Note in tema di diritto e processo. Milano: Giuffré, 1957. 22. LENT, Friedrich. Zivilprozessrecht. München: Beck, 1947, p. V ss „Das Verfahrensrecht ist in wesentlichen Teilen eng verknüpft mit Überzeugungen, die ihre Grundlage in außerrechtlichen Bezirken haben, in Staatsauffassung, Wirtschaft, Ethik. Vergessen wir nie, dass auch das Zivilprozessrecht ein Stück des großen Ringens um Gerechtigkeit verkörpert, dessen Bedeutung uns erst wieder so recht klar geworden ist, seit wir erleben mussten, wie Recht und Gerechtigkeit vernichtet wurden“. No Brasil, falando sobre essa orientação do processo aos valores substanciais do ordenamento, BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Sobre a multiplicidade de perspectivas no estudo do processo. in Temas de Direito Processual - 4a série. São Paulo: Saraiva, 1989, p.11 ss. 23. STEIN, Friedrich. Grundriβ des Zivilprozeβrechts und des Konkursrechts. Tübingen: Mohr, 1921, p.III: „Der Prozeß ist für mich das technische Recht in seiner allerschärfsten Ausprägung, von wechselnden Zweckmäßigkeiten beherrscht, der Ewigkeitswerte bar“. No Brasil, Aroldo Plínio Gonçalves destacou essa neutralidade do processo em relação ao resultado, destacando o que denominou de “instrumentalidade técnica”. GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Belo Horizonte: Aide, 1992, p.165, 168-169, 171-179. 24. Degenkolb, citando Wetzell, afirmava que “A teoria do processo civil vive (...) essencialmente de crédito. O conceito de ação lhe é oferecido em empréstimo pelo direito civil; o de jurisdição, foi recepcionado pela tradição do direito público. Somente na sua aplicação prática pertence a jurisdição ao direito processual. Em tais circunstâncias, decerto não foi uma empreitada inútil a de Bülow (ligada à de alguns de seus antecessores), ao reivindicar para o processo civil a sua substância”. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 75 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus De fato, direito material e direito processual são diferentes e deveriam ser tratados de modo distinto. Porém, voltando-se contra tal integração indevida, ao buscar tornar o direito processual um campo separado do direito material, os primeiros autores que pregaram a autonomia do direito processual buscaram construir categorias independentes, estruturando a teoria da ação e do processo de forma a que os institutos do direito processual fossem depurados das características que até então estavam “impregnadas” de direito material. 3.1.1. Categorias diversas e independentes do direito substancial Nessa linha, foi conhecida a evolução história da problemática em torno da ação, que consistia sobretudo em posicionar a ação frente ao direito subjetivo material. Haveria prioridade da ação em relação ao direito, e se não houvesse, qual seria a relação da ação com o direito material? No direito romano, durante muito tempo o que se viu era um sistema de actiones, não de direitos subjetivos. Como o que se invocava em juízo era a actio, afirmar ter ação contra alguém era equivalente a dizer que se era titular de um “direito material perseguível em juízo”. Havia um sincretismo entre ação e direito. A actio era ao mesmo tempo o que hoje compreendemos como direito subjetivo e o direito à sua tutela jurisdicional.25 Os materialistas pensavam que a ação fosse um componente do próprio direito material uma vez violado. Era o direito “em atitude defensiva”, o direito “armado para guerra”, cuja armadura era justamente a ação a provocar a jurisdição.26 A ação era, portanto, uma qualidade considerada “imanente” ao direito material, por isso essa corrente de pensamento foi denominada de “imanentista”. 27 Com a autonomia do direito de ação em relação ao direito material, passou-se a afastar a ação do direito. Mais uma vez percebemos o mote das teorias que se desenvolveram no período de emancipação do direito processual, que se esforçaram em separá-lo e afastá-lo do direito material. Assim ocorreu com o direito de ação. DEGENKOLB, Heinrich. Einlassungszwang und Urteilsnorm: Beiträge zur materiellen Theorie der Klagen insbesondere der Anerkennungsklagen. Leipzig: Breitkopf und Härtel, 1877, p.2. No original: “Die Civilprocesstheorie lebt nach Wetzell’s Schilderungen wesentlich vom Credit. Den Begriff der Klage soll sie ihm zufolge vom Civilrecht entlehnen, den der Gerichtsbarkeit vom Staatsrecht überliefert erhalten. Nur von Seite ihrer praktischen Anwendung gehört die Gerichtsbarkeit dem Processrecht an. Unter solchen Umständen war es gewiss kein überflüssiges Unternehmen Bülow’s unter Anknüpfung an einzelne Vorgänger dem Processrecht seine Substanz zu vindiciren”. A passagem é citada por Liebman parcialmente na 4a edição de seu manual. 25. DINAMARCO, Cãndido Rangel. Os institutos fundamentais do direito processual. in Fundamentos do processo civil moderno. São Paulo: RT, 2a ed., 1987, p.48-49. 26. BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, vol.V, 6a ed., 1947, p.335-336. 27. Confira-se a lógica civilista na análise de: von SAVIGNY, Friedrich Carl. System des heutigen Römischen Rechts. Berlin: Veit & Comp., vol. V, 1841, p.5-11 e vol.VI, 1847, p.1-8. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 76 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL Mas a doutrina da época não se deu por satisfeita com a autonomia da ação. A teoria da ação, a partir da concepção de “ação abstrata”, exacerbou ainda mais a distância entre ação e direito substancial.28 O direito de ação deveria ser não só independente do direito material, mas também abstraía a existência efetiva deste: também exerceriam direito de ação aqueles que não tinham direitos materiais reconhecidos no processo, como no caso de julgamento de improcedência e nas decisões de procedência em ações declaratórias negativas. Não esqueçamos tampouco a evolução história da teorização sobre o processo e sua natureza jurídica. Após a tese de Bülow, que fundou o publicismo processual, passou-se a conceber o processo como uma relação pública, autônoma e diferente da relação de direito material debatida no processo. A relação jurídica disputada entre as partes pode ser privada (de direito civil, comercial etc.), e portanto não equivaleria à relação jurídica processual, que era pública por envolver o Estado-juiz. Assim, jamais se poderia imaginar que o processo equivalesse ao direito material. Essas foram as bases do processualismo primevo, na primeira fase de seu desenvolvimento histórico.29 3.1.2. Requisitos e pressupostos próprios do direito processual O próximo passo na odisseia por autonomia levou os processualistas a construírem categorias próprias para os pressupostos de existência e requisitos de validade dos atos processuais que fossem também diferentes daqueles do direito material.30 A partir da processualística alemã, desenvolveram-se os chamados pressupostos processuais, requisitos para o controle da existência, validade e eficácia dos atos processuais que se pretendiam diferentes dos pressupostos de incidência das normas materiais (que diriam respeito ao mérito).31 Aliás, esse debate levou às incontáveis linhas para definição do que seria o objeto do processo, tema até hoje muito caro à doutrina germânica, e que tinha como pano de fundo a necessidade de diferenciar elementos como a pretensão de direito material (Anspruch) de outros conteúdos de cariz exclusivamente processual, como o pedido (Antrag), a demanda, a pretensão processual etc. 28. Para isso, no Brasil, contribuiu a pouca adesão da doutrina à tese da “ação de direito material”, propagada por Pontes de Miranda e Ovídio Baptista da Silva. Zaneti Jr. percebeu o potencial da discussão na análise das relações entre direito e processo: ZANETI JR., Hermes. Processo constitucional, Op.cit., p.213 ss. 29. DINAMARCO, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Op.cit, p.44 ss. 30. FAZZALARI, Elio. L’esperienza del processo nella cultura contemporanea. Rivista di Diritto Processuale, ano XX, jan-mar., 1965, p.26-27. 31. Por todos, RIMMELSPACHER, Bruno. Zur Prüfung vom Amts wegen im Zivilprozess. Göttingen, 1966. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 77 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus Lembremos ainda as teses acerca das “condições da ação”, fruto da processualística italiana. Após a ação tornar-se autônoma em relação ao direito material, reconhecendo-se tratar-se de situações jurídicas diferentes, fazia-se necessário compreender a relação entre eles. Foi vitoriosa a teoria abstrata da ação, que enxergava a existência da ação desconectada da existência do direito. Mas a abstração do direito de ação fez o conceito desprender-se demais do direito material,32 ao ponto de praticamente equivaler ao direito de petição: um direito de obter uma resposta qualquer do Estado. Sem reconhecer o erro, a doutrina italiana organizou categorias que supostamente seriam filtros relacionados ao direito material, mas que teriam natureza processual. Eram as “condições da ação”, que seriam analisadas “à luz das alegações” (a “teoria” da asserção). Desse modo, evitar-se-ia misturar tais filtros com o direito material, mantendo a pureza do processo. Nesse contexto, as condições da ação serviram para argumentativamente afirmar que o direito de ação não estaria premido ou condicionado pelo direito material.33 Foram muitos os problemas dogmáticos que se derivaram dessa postura. A ação abstrata seria equivalente ao direito de petição? O que são as condições da ação senão filtros com base no direito material? Ora, se assim é, estaria a ação misturada com pressupostos materiais, essa formulação representaria uma volta ao sincretistmo, ao imanentismo? Por isso que a literatura alemã recusa-se a adotar a categoria das condições da ação, e no Brasil autores como Didier Jr. e Nery Jr. já atentaram para a diferença: legitimidade ordinária é mérito34 e legitimidade extraordinária seria pressuposto processual.35 Além disso, lembremos da artificialidade da “teoria da asserção”, que mostra muitas vezes que do jeito que foram formuladas, as condições da ação não filtram nada e permitem que a própria parte, por meio de suas alegações, atribua a ela mesma legitimidade e interesse.36 32. Confira-se a crítica de ZANETI JR., Hermes. Processo constitucional, Op.cit., p.206-207. 33. Como notou MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2006, p.239-244. 34. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, vol.1, 22a ed., 2020, p.455 ss. 35. Nery Jr. adotava a classificação alemã de enxergar a legitimidade extraordinária como “legitimidade autônoma para condução do processo”. Cf. NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: RT, 3’ ed., 1997, p.1395. 36. Greco critica a asseração falando de uma “autolegitimação”. GRECO, Leonardo. A teoria da ação no processo civil. São Paulo: Dialética, 2003, p.21-28. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 78 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL 3.1.3. Purismo conceitual como bandeira da emancipação. A insistência em negar que o direito processual fosse “adjetivo” ou “acessório”. O vocabulário próprio como forma de aceitação do processualista Nesse caminho de libertação do direito material, passou-se a criticar de atécnico o vocabulário do jurista, quando se referisse a uma ação como sendo “ação possessória” ou “ação de consignação em pagamento”, associada à estrutura da tipicidade das ações no direito romano.37 Erudito seria falar “demanda continente de pretensão possessória”, afinal de contas a ação não poderia ser nominada a partir do direito material postulado. O purismo terminológico era acompanhado de uma necessidade de higienização do terreno. Afirmava-se, p. ex., que muitos institutos supostamente processuais, como a prova e a nulidade, jamais poderiam ser examinados como pertencendo ao direito privado. Porém, dada a acessoriedade do processo em relação ao direito material, ainda se viam movimentos de degradação ou depreciação do direito processual, visto como uma mera verbalização de procedimentos. E talvez, de alguma forma, essa acessoriedade fosse vista como uma dependência que ainda minava sua autonomia científica.38 Até hoje, autores de várias gerações fazem questão de enfatizar que o direito processual não deve ser qualificado de “adjetivo”,39 porque se pensava que tal denominação diminuía seu status, fazia ser visto como algo sem importância. E alguns preferem referir-se a ele como “direito formal”, por oposição a “direito material”.40 3.1.4. Autonomia com objetivos convergentes por nexo de finalidade: a dependência que persistia. A identificação de escopos do processo autônomos como último degrau de afastamento Apesar dessas várias conquistas para a autonomia científica do direito processual, persistia um problema que incomodava ideologicamente. Até o séc. XX, pensava-se que o processo seria um “instrumento” em relação ao direito material, o processo existia para fazer cumprir as normas materiais, era pensado e só tinha sentido em função da concretização dos direitos.41 37. DINAMARCO, Cãndido Rangel. Das ações típicas. in Fundamentos do processo civil moderno. São Paulo: RT, 2a ed., 1987, p.272 ss. 38. O que transparece em DINAMARCO, Cãndido Rangel. Os institutos fundamentais do direito processual. Op.cit., p.58. 39. DINAMARCO, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Op.cit, p.182; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio Quinaud. Teoria geral do processo. Salvador: Juspodivm, 2020, p.248. 40. Penso ser equivocada essa oposição, porque o direito material também regula formas para a prática de atos jurídicos substanciais. Confira-se LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.19-20. 41. LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Op.cit., p.17-19, 69. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 79 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus Mais recentemente, afirma-se que a relação finalística que se estabelece entre o direito material e o processo seria circular. O processo deve ser um instrumento a serviço do direito material, mas para tanto é necessário que seja informado por ele.42 De fato, a noção de “instrumento” implica relatividade a partir dos fins;43 e, de alguma maneira, se esses fins estivessem no direito material, a despeito de tantas conquistas teóricas e dogmáticas, essa convergência de finalidades da instrumentalidade mantinha a dependência e acessoriedade do processo em relação ao direito material. Então, para equiparar o direito processual ao mesmo patamar de importância, libertando-o da alcunha de “adjetivo”, havia necessidade de identificar-lhe finalidades diversas (ainda que coordenadas). Necessário enxergar escopos do processo que fossem inexistentes no direito material ou prescindissem dele. Neste ponto, a tese de Cândido Dinamarco cumpriu papel decisivo. Ao identificar finalidades como a pedagogia aos infratores da lei (educação da sociedade), pacificação social e participação política nos canais judiciários – funções concebidas como sendo “neutras” em relação aos direitos44 – ultrapassava-se a última trincheira que prendia o direito processual ao direito material. Era a derradeira etapa de libertação: o processo teria finalidades que não se esgotariam no direito material, e por isso não poderia ser um “simples meio de exercício dos direitos”. 45 42. ZANETI JR., Hermes. Teoria Circular dos planos (Direito Material e Direito Processual). in AMARAL, Guilherme Rizzo; MACHADO, Fábio Cardoso (org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito material e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 165 ss, 192.; ZANETI JR., Hermes. Processo constitucional, Op.cit., p.224. A tese ganhou a adesão de DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Op.cit., p.47 ss. Como se verá adiante, essa ideia não é capaz de abarcar fenômenos contemporâneos que remodelaram as relações entre direito e processo, porque também pressupõe uma primariedade do direito material na regulação de conduta, e a secundariedade do direito processual. 43. Como reconhece DINAMARCO, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Op.cit, p.149 ss. 44. Como bem percebeu MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. Op.cit., p.108-109. 45. DINAMARCO, Cãndido Rangel. Os institutos fundamentais do direito processual. Op.cit., p.51. Lembre- se que muitos doutrinadores posteriores a Dinamarco identificavam a “aplicação do direito objetivo” como um dos escopos da jurisdição. A tutela aos direitos era imaginada como aplicação da lei pelo juiz, e assim se mantinha uma maior independência dos objetivos do processo e da jurisdição em relação àqueles do direito material. Confira-se OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Efetividade e tutela jurisdicional, Revista dos Tribunais, vol.836, jun., 2005, p.11 ss. Durante décadas, e até os dias de hoje, como veremos, de alguma forma essa maneira de pensar continua influenciando boa parte da doutrina brasileira, que sequer vislumbra qualquer possibilidade de tutela dos direitos que não seja jurisdicional. A ressalva mais relevante certamente é a concepção de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, que estruturam seu pensamento em torno da tutela dos direitos, expressamente concebendo-a como não necessariamente jurisdicional. Além disso, percebem que as necessidades humanas surgem no direito material. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. São Paulo: RT, vol.1, 2015, p.124 ss; MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. Op.cit., p.109, 245-246. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 80 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL 3.2. Segunda fratura: a relação necessária entre jurisdição e processo A instrumentalidade do processo, ao salientar quais seriam os escopos da jurisdição, cumpriu na minha opinião dois papéis fundamentais na evolução do direito brasileiro. O primeiro foi resgatar a dignidade da função jurisdicional como centro do exercício de direitos pelos cidadãos, algo absolutamente essencial naquele momento histórico, quando o Brasil saía de um longo período ditatorial.46 O segundo foi abrir perspectivas para a procedimentalização do fenômeno jurídico. Em vários quadrantes, passamos a reconhecer a importância do procedimento no desenvolvimento do direito. Revigorou-se a ideia de procedimentalização no direito privado47 e também no direito público, 48 com foco na participação e nas formalidades para o controle do poder.49 Na teoria do direito e no direito público, estudos contemporâneos constataram que, na dificuldade de obtenção de critérios claros, consistentes e controláveis de justiça, justeza material, o fenômeno jurídico em grande medida começou a orientar-se para o procedimento. De fato, atualmente se percebe uma virada em direção à chamada “justiça procedimental”.50 Como, no mundo atual, é difícil crer na existência de um ethos universalmente aceitável, no sonho de uma “justiça substancial” delimitada por critérios materiais únicos, a busca pela “justiça” ou “justeza” das decisões passou a ser justificada processualmente, garantindo-se a correção das regras do procedimento e das condições da argumentação prática racional. Esta concepção resgatou o valor do procedimento, do iter que precede a formação da decisão final, das interações intersubjetivas entre jurisdição, ação e defesa.51 É o próprio debate judicial que legitima as decisões estatais. 46. Lembre-se que a tese do professor Cândido Dinamarco é do ano de 1987. 47. No direito privado, sustenta-se que a obrigação pode ser vista como um processo. SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, reimpressão, 2006, p.63 ss. 48. MEDAUAR, Odete. Administração pública: do ato ao processo. in ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Forum, 2008, p.411-419. 49. Como sempre foi a preocupação dogmática de DINAMARCO, Cãndido Rangel. Os institutos fundamentais do direito processual. Op.cit., p.64 ss, 81-83. 50. PÉREZ RAGONE, Álvaro. Contornos de la justicia procesal (procedural fairness): la justificación ética del proceso civil. Revista de Derecho Procesal, 2005, p.676-679. 51. ZANETI JR., Hermes. Processo constitucional, Op.cit., p.115-116; PICARDI, Nicola. Il principio del contraddittorio. Rivista di Diritto Processuale, ano LII, 1998, p.678; INOUE, Harunori. Der Zivilprozeß als gleichberechtiges Dialogverfahren. Zur neueren Prozeßdiskussion im japanischen Zivilprozeß. Zeitschrift für Zivilprozeß, ano 98, n.4, 1985, p.382; STALEV, Zhivko. Das Verfahren als dynamischer Tatbestand. Zeitschrift für Zivilprozeß, ano 88, n.2, 1975, p.194. São muitas variantes dessa ideia. No Brasil, recentemente, tem sido divulgada, na doutrina do direito constitucional, a proposta de Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 81 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus Nessa caminhada, o direito processual passou a ser tão associados ao procedimento ao ponto de alguns autores dizerem que inexiste processo sem procedimento.52 É inegável, portanto, que essa ideia de procedimentalização do direito é salutar em muitos aspectos. Porém, a exacerbação desse movimento trouxe fenômenos hiperbólicos, que hoje vemos retrair. Um deles foi a ligação necessária entre jurisdição e processo. A partir do publicismo processual, o processo foi relacionado ao exercício de poder. Ainda que pensando em limitá-lo, relacionava-se o processo à formação procedimentalizada de decisões e provimentos, isto é, ligava-se o processo à legitimação da formação de decisões estatais.53 Desconsiderava-se que a jurisdição existe fora do Estado e que também aos indivíduos devem ser atribuídas formas privadas de solução de litígios. O problema, portanto, não está em processualizar a interpretação e aplicação do direito, movimento que tem muitos aspectos positivos. O desvio de rota, até certo ponto criticável, foi elaborar essa ideia a partir da premissa de que toda realização do direito é sempre estatal ou jurisdicional, traçando uma associação necessária entre processo e jurisdição, quase que fazendo equivalentes as expressões “processo” e “processo jurisdicional”.54 A partir dessa premissa de estatalidade da função jurisdicional, afirmava-se que, se o processo regula a jurisdição, a evolução de um conceito se daria em paralelo à „proceduralização“ do debate judicial em certos tipos de conflito. Por „proceduralização“, toma-se a ideia desenvolvida por Wiethölter e outros, e por aqui difundida por Georges Abboud, no sentido de que aqueles conflitos no Judiciário com alto potencial de gerarem impasses institucionais devem ser resolvidos com o juiz atuando com uma espécie de gestor ou catalisador, definindo „condições de interação“ entre as instituições: ao invés de determinar qual a solução no plano do direito material, o Judiciário deveria fixar procedimentos para que as partes cheguem a tal solução. ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 4a ed., 2020, p.1481 ss. 52. SALLES, Carlos Alberto de. Processo: procedimento dotado de normatividade – uma proposta de unificação conceitual. in ZUFELATO, Camilo; YARSHELL, Flávio Luiz. 40 anos da Teoria Geral do Processo no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2013, p.210. 53. NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio Quinaud. Teoria geral do processo. Salvador: Juspodivm, 2020, p.249, 252. 54. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Sobre a multiplicidade de perspectivas no estudo do processo. Op.cit., p.18; DINAMARCO, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Op.cit, p.265-266 e nota 1; DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p.123; GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Op.cit., p.55 ss. Era a premissa de trabalhar a jurisdição como “polo metodológico” do direito processual, seguida por muitos estudiosos a partir de Dinamarco. Uma das principais finalidades dessa premissa era banir as tentativas de teorizar sobre o processo em torno da “ação”, porque isso faria recair o polo metodológico nas partes, nos direitos de crédito e na disponibilidade, enquanto o processo era público, dominado pela indisponibilidade, devendo ter o Estado-juiz como figura central. Confira-se DINAMARCO, Cãndido Rangel. Os institutos fundamentais do direito processual. Op.cit., p.45 ss; DINAMARCO, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Op.cit, p.77 ss, 151-152. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 82 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL do outro.55 Não raramente, até hoje vemos alguma referência à tese de Dinamarco quando os comentaristas querem fazer menção aos “escopos da jurisdição” e/ou aos “escopos do processo”, expressões tomadas praticamente como equivalentes. No entanto, a ideia de processo não é exclusiva da jurisdição. Há algum tempo que se reconhece que o fenômeno processual está relacionado também a outras atividades estatais, do Poder Executivo e do Poder Legislativo,56 ou mesmo à atividade jurisdicional empreendida por instituições privadas (arbitragem sendo o maior exemplo).57 Observe-se ainda que, mesmo entre aqueles que admitem que há exercício de poder e que existem manifestações de processo fora do Estado (v.g. em instituições privadas), é frequente que tais autores, ao enfrentarem as relações do direito processual com o direito material, apontem que o direito processual é uma regulação “formal”, “secundária”, “adjetiva”, destinada a fazer valer as normas materiais por meio da jurisdição, “neutralizando” os conflitos que possam surgir a seu respeito na sociedade. Perceba-se que a ênfase quase sempre é na atividade estatal.58 Nessa linha, não se poderia “misturar” jurisdição com a ideia de “tutela de direitos”. O processo e a jurisdição não poderiam servir à tutela dos direitos porque também tem direito à jurisdição quem não tem razão.59 Pretendia-se banir a tutela dos direitos do repertório do processualista porque a expressão remeteria a um processo de caráter privado, próprio do direito romano antigo, contrário à feição publicista do direito processual contemporâneo.60 Ora, como se pode notar, fazia-se uma associação entre “tutela de direitos” e “tutela jurisdicional dos direitos”, uma ligação que parece ter raízes: na proibição da autotutela;61 e em não conceber a autocomposição como processo (e o sistema 55. SALLES, Carlos Alberto de. Processo: procedimento dotado de normatividade – uma proposta de unificação conceitual. Op.cit., p.203. 56. MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. São Paulo: RT, 1993, p.16-28. 57. Como lembram corretamente DINAMARCO, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Op.cit, p.64 ss; SICA, Heitor Vitor Mendonça. Velhos e novos institutos fundamentais do direito processual civil. in 40 anos da teoria geral do processo no Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: Malheiros, 2013, p.435; DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. Op.cit., p.79. 58. SALLES, Carlos Alberto de. Processo: procedimento dotado de normatividade – uma proposta de unificação conceitual. Op.cit., p.203, 209. 59. DINAMARCO, Cãndido Rangel. Os institutos fundamentais do direito processual. Op.cit., p.62-63; DINAMARCO, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Op.cit, p.18, 46, 151-152. 60. DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. Op.cit., p.22. 61. Forte em praticamente toda a doutrina brasileira, e também em DINAMARCO, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Op.cit, p.130, 170. Galeno Lacerda disse que é errado pensar até mesmo que as sociedades humanas teriam começado a resolver seus litígios por autotutela porque a autoridade sempre esteve presente. LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Op.cit., p.64. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 83 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus multiportas como não exclusivamente jurisdicional); e em separar a norma material da norma processual na atividade regulativa de conduta. Falaremos sobre algumas dessas questões adiante. Mas subjacente a tudo isso está a premissa de imaginar que o processo se manifesta apenas na atividade estatal,62 em especial na atividade jurisdicional. Essa verve do publicismo processual para a estatalidade foi ainda reforçada nas vertentes fazzalarianas a respeito da natureza do processo. Esse grupo de teses tentava “atualizar” o conceito de processo, relacionando-o com o procedimento, mas terminavam por levar a conclusões também voltadas para a estatalidade porque partiam da ideia de que todo procedimento é regrado em lei e voltado ao exercício da jurisdição.63 Portanto, vemos que a relação do processo com o Estado, que pressupunha ou punha ênfase no processo perante o Judiciário (processo jurisdicional), afastou o direito processual de institutos que promovessem formas privadas de solução de disputas, uma tendência contemporânea. 3.3. Terceira fratura: secundariedade das normas processuais e a exclusividade das normas materiais na regulação de conduta fora do Judiciário Na esteira de toda essa construção, e compreendendo o fenômeno processual nas premissas do publicismo, a terceira fratura que se pôde observar, esta não tão analisada na doutrina, foi separar na estrutura e na função normas materiais e processuais, com o objetivo evidente de segregar as normas processuais da regulação de conduta fora do Judiciário.64 Sem dúvida, a partir da autonomia do direito processual em relação ao direito substancial, começamos a praticar uma distinção estrutural e funcional das normas materiais e processuais. O direito material seria o conjunto das normas regentes dos fatos e relações “resultantes da própria vida”, a “vida ordinária do dia a dia”.65 Dá-se como exemplo o complexo de regras e princípios que regulam o casamento, o comércio, a aquisição de patrimônio, a morte e transmissão de bens pela sucessão, o castigo da sanção penal a quem cometeu certos tipos de crimes etc.66 62. LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Op.cit., p.64. 63. Mesmo aqueles que assim reconhecem, tecendo críticas a essa associação, por vezes acabam por traírem seu pensamento. Veja-se a crítica de MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. Op.cit., p.389-398. 64. Chiovenda foi um dos arautos desse movimento. Veja-se a crítica de MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. Op.cit., p.417-425. 65. DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. Op.cit., p.15. No mesmo sentido, LIEBMAN, Enrico Tullio. Norme processuali nel codice civile. in Problemi del Processo Civile. Napoli: Morano, 1962, p.169-170. 66. DINAMARCO, Cãndido Rangel. A formação do moderno processo civil brasileiro. in Fundamentos do processo civil moderno. São Paulo: RT, 2a ed., 1987, p.3. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 84 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL Já o direito processual não seria tão claramente percebido pelos indivíduos por ser formado por regras técnicas voltadas para o exercício de uma função estatal. 67 A norma processual surgiria apenas quando houvesse necessidade de ativar a jurisdição,68 para fazer cumprir as normas de direito material por meio de agentes estatais como o Estado-juiz. 69 Enquanto as regras do direito material seriam regulativas de condutas, as regras processuais regulariam a tomada de decisão.70 Era a propalada secundariedade das normas processuais.71 As regras processuais não regulariam a conduta das pessoas fora do processo: essa seria tarefa exclusiva do direito material.72 As regras processuais atuariam no descumprimento do direito substancial, relacionadas sempre ao processo judicial para restauração do direito material violado. Outra consequência do afastamento entre normas processuais e materiais foi conceber como um desvio a presença de regras processuais em leis predominantemente continentes de normas de direito material (regras chamadas de “atópicas”).73 Por isso se pensava que, toda vez que uma lei de direito material tratasse do tema da prova, p. ex., essas regras seriam um corpo estranho posicionado em um organismo no qual não pertencesse.74 67. DINAMARCO, Cãndido Rangel. Os institutos fundamentais do direito processual. Op.cit., p.57. 68. LIEBMAN, Enrico Tullio. Norme processuali nel codice civile. Op.cit., p.170. 69. FAZZALARI, Elio. L’esperienza del processo nella cultura contemporanea. Op.cit., p.22; DINAMARCO, Cãndido Rangel. A formação do moderno processo civil brasileiro. Op.cit., p.3-4; DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. Op.cit., p.45. 70. Distinção criticada por PÉREZ-RAGONE, Álvaro. Contornos de la justicia procesal (procedural fairness): la justificación ética del proceso civil. Op.cit., p.685. 71. CHIOVENDA, Giuseppe. Principii di Diritto Processuale Civile. Napoli: Jovene, reimpressão, 1965, p.298; CHIOVENDA, Giuseppe. Cosa giudicata e competenza, in Saggi di Diritto Processuale Civile. Milano: Giuffrè, vol.II, 1993, p.415; LIEBMAN, Enrico Tullio. Norme processuali nel codice civile. Op.cit., p.163, 169. 72. Nesse sentido, CARNELUTTI, Francesco. Lezioni di Diritto Processuale Civile. Padova: Cedam, vol.I, 1930, p.92-95; GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Op.cit., p.49- 50, 116, 168; LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Op.cit., p.169. Observe-se que esse mote perpassava aqueles debates sobre as categorias estruturais do direito processual. Afirmar a autonomia do processo em relação ao direito material, por recohecer que a relação jurídica processual (continente do Estado-juiz) era pública e por isso diferente da relação de direito material nele discutida, foi a conclusão propulsora da ideia de que as normas processuais não tinham função reguladora de conduta que não fosse perante a jurisdição. 73. LIEBMAN, Enrico Tullio. Norme processuali nel codice civile. Op.cit., p.155-158; THEODORO JR., Humberto. O novo Código Civil e as regras heterotópicas de natureza processual. in DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (org.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: Juspodivm, 2a ed., 2007, p.139-140. 74. LIEBMAN, Enrico Tullio. Norme processuali nel codice civile. Op.cit., p.172-173. Dinamarco afirmou que “Examinar certos institutos, como a ação, as nulidades processuais ou a prova, tal como se pertencessem ao direito privado, é dar-lhes tratamento inteiramente inadequado, em que se prescinde da participação do mais importante dos sujeitos do processo, que é o Estado-juiz”: DINAMARCO, Cãndido Rangel. Os institutos fundamentais do direito processual. Op.cit., p.60-62. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 85 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus 3.4. Conclusão parcial Ora, veja-se como as premissas decorrentes das fraturas entre direito material e direito processual foram historicamente se fundindo e se contaminando. A relação processual é pública porque contém o Estado-juiz, e por isso é diferente da relação de direito material; todo processo é processo jurisdicional; devemos separar conceitos processuais daqueles do direito material, e construir pressupostos e requisitos dos atos processuais que os diferenciem daqueles exigidos para a prática de atos jurídicos do direito substancial; devemos diferenciar também as normas materiais das normas processuais, pois estas são secundárias e só regulam situações jurídicas que se desenvolvem no processo perante o juiz estatal (a conduta humana fora do Judiciário é regulada primariamente pelas normas do direito substancial). Então, a busca por autonomia do processo em relação ao direito material levou a algumas consequências que podemos enumerar: a) afastamento do processo em relação ao direito material; b) pressuposição de que o fenômeno processual (suas normas e atos) só existem quando já há processo instaurado perante uma autoridade estatal (em especial, o Estado-juiz); c) desconsideração da possibilidade de que normas processuais atuem na regulação primária de conduta, mesmo fora do processo e da jurisdição; d) afastamento das formas contemporâneas de resolução privada de conflitos (autocompositivas e heterocompositivas). Como tentaremos demonstrar, estamos em um ponto de inflexão nessa rota, um retorno do processo ao direito material, que vem reescrevendo as relações entre direito processual e direito substancial, e a partir daí permite ressuscitar institutos antes proscritos ou renegados. 4. FENÔMENOS QUE PARECEM INDICAR A INFLEXÃO DE ALGUMAS DAS PREMISSAS DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO Não obstante todo esse caldo cultural, no qual todos nós fomos formados, a emergência de alguns fenômenos nos últimos dez anos tem mostrado um caminho diverso, praticamente oposto à direção que a processualística tomara no séc.XX. São eles: i) o novo vigor que os negócios jurídicos processuais obtiveram, permitindo às partes regularem o procedimento e as situações jurídicas processuais; ii) os caminhos contemporâneos de reabilitação da autotutela, que levam a possibilidades de autoexecutoriedade de prestações contratuais independentemente de uma atividade jurisdicional executiva; De alguma maneira, isso ainda se verifica até muito recentemente. Confira-se CÂMARA, Alexandre Freitas. Das relações entre o Código Civil e o Direito Processual Civil. in DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (org.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: Juspodivm, 2a ed., 2007, p.125-130; BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Anotações sobre o título “da prova” do novo Código Civil. in DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (org.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: Juspodivm, 2a ed., 2007, p.283-284. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 86 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL Esses fenômenos, como demonstrarei, empurram o jurista a repensar premissas caras ao publicismo processual, em especial: (a) a estatalidade das formas de tutela dos direitos; (b) o papel das normas processuais como regulação primária de comportamento, e não puramente secundária; e (c) a separação entre direito e processo, que impedia a aplicação de requisitos e pressupostos comuns. Vejamos no detalhe nos próximos itens. 4.1. Convenções das partes sobre o processo e o procedimento. As interações pré-judiciais e os negócios jurídicos prévios como rearranjo das relações entre direito e processo. Normas processuais como regulação primária de conduta. Uma primeira tendência, que revoluciona as relações entre direito e processo, e pode apontar para essa inflexão da instrumentalidade, é a ascensão, no Brasil e no mundo, dos negócios jurídicos processuais,75 em especial, das convenções processuais prévias, ajustes negociais que as partes celebram antes do processo e do litígio,76 inseridos em um contrato (ou outro negócio jurídico), com finalidade de regular o processo futuro para decidir as disputas oriundas daquele contrato.77 Essa possibilidade, revigorada pelas cláusulas gerais dos artigos 190 e 200 do CPC/15, estabelecem novas fronteiras de reflexão e estudo sobre o plano da pré- processualidade, já que estabelecem interações de natureza processual mas na fase pré-judicial. De fato, com a possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais prévios, o processo começa antes de sua judicialização, então nesse sentido vemos o fenômeno processual se desenrolar antes da jurisdição.78 Além disso, as convenções processuais promovem um rearranjo das relações entre direito e processo como nunca antes se experimentou. As regras do procedimento 75. Por todos, CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: teoria geral dos negócios jurídicos processuais. Salvador: Juspodivm, 3a ed., 2020; CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, tomo I, 4a ed., 2019. 76. Rompe-se, de um lado, com a pressuposição da doutrina clássica de que o processo apareceria só com o conflito, como se via em LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Op.cit., p.170. 77. CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: teoria geral dos negócios jurídicos processuais. Op.cit., p.94-101. 78. Não se trata apenas de afirmar que o que se estabelece é um “processo negocial”, um procedimento para a tomada de decisão de celebrar ou não um negócio jurídico. Enxergar a pré-processualidade no quadro descrito no corpo do texto, como uma regulação negocial de um processo futuro, determinando o procedimento para a tomada de decisão judicial, leva-nos à constatação de que há normas processuais incidindo, e atos processuais sendo praticados, fora do procedimento estatal perante o Estado-juiz, mas referentes a ele. Confira-se CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: teoria geral dos negócios jurídicos processuais. Op.cit., p.62, 106. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 87 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus assumiram um maior valor econômico79 e, no negócio jurídico, as partes podem pensar trocas entre direito material e direito processual, um trade-off entre formalidades processuais e benefícios no campo do direito material. Podem, p. ex., reduzir o preço em troca de renúncias a impenhorabilidades; ou conceder mais prazo para cumprimento em função de redução da complexidade ou duração do procedimento para recuperar o crédito judicialmente em caso de inadimplemento. Perceber esta possibilidade é unir ainda mais direito e processo, mas não apenas numa relação finalística (vetorial ou circular) em que as funções das normas processuais e materiais eram diversas, sem que as normas processuais tivessem qualquer papel de condicionamento de condutas externo ao processo judicial. A emergência das convenções das partes sobre o processo também nos permite admitir que também as normas processuais criam incentivos, operando como regulação primária de conduta dos indivíduos fora do Judiciário.80 De fato, porque inseridas frequentemente em uma mesma negociação, as normas produzidas por convenções processuais podem reforçar as normas do direito material, e nessa simbiose guiarem a tomada de decisão dos contratantes na sua performance contratual. Aliás, hoje em dia, diante da complexidade do direito contemporâneo, continente de diversas camadas normativas (regras e princípios constitucionais, legais e infralegais, frequentemente continentes de cláusulas gerais, dependentes de concretização em cada caso), há autores que colocam em xeque a suficiência das normas de direito material para regular e determinar ex ante condutas humanas.81 E no cenário em que, num mesmo instrumento negocial, convenções processuais e disposições contratuais de natureza substancial se misturam, é na imbricação formada por todas elas que as partes vão extrair os condicionamentos de suas condutas. Além disso, como observamos em outra sede, exatamente por essa interação entre negócios jurídicos de natureza material e processual no bojo de uma mesma negociação, quando estudamos a disciplina dos requisitos para a celebração dos acordos processuais, normas materiais e normas processuais se coordenam em uma 79. Correto NOYES, Henry S. If you (re)build it, they will come: contracts to remake the rules of litigation in arbitration’s image. Op. cit., p.618. Por isso, parece equivocada a opinião de Allorio, de que os direitos processuais seriam “meio”, e portanto, não poderiam ter valor próprio, só aquele funcionalizado em nome do direito substantivo. ALLORIO, Enrico. Patto di non denunciare e indisponibilità dei diritti processuali. in Problemi di Diritto. Milão: Giuffré, vol.II, 1957, p.354-355. 80. CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: teoria geral dos negócios jurídicos processuais. Op.cit., p.263-264. 81. Confira-se esse debate em AUER, Marietta. Materialisierung, Flexibilisierung, Richterfreiheit: Generalklauseln im Spiegel der Antinomien des Privatrechtsdenkens. Tübingen: Mohr Siebeck, 2005. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 88 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL corregulação normativa que decorre da conexão teleológica em que inseridas essas normas.82 Essa corregulação faz com que os requisitos e pressupostos previstos nas regras de direito material e de direito processual possam ser combinados a fim de controlar a validade das convenções processuais.83 Há, portanto, uma clara reaproximação entre normas de direito material e normas de direito processual, mas que não é mais baseada na pressuposição da secundariedade do processo em relação ao direito substancial.84 Como consequência disso, seria até mesmo de repensar a natureza (material, processual ou híbrida) de certos institutos como as nulidades, a prova, as garantias executivas (sobretudo as reais, como hipoteca e penhor), que sempre carregaram consigo inúmeras discussões acerca de seu posicionamento teórico e prático (se deveriam ser tratadas pela doutrina e pela lei como materiais ou processuais).85 4.2. O futuro da autotutela e a autoexecutoriedade dos contratos: caminhamos rumo à autossatisfação dos direitos e a uma progressiva desnecessidade da atividade jurisdicional executiva? Como ressaltado anteriormente, a partir da autonomia do direito processual, e com a vitória da concepção que passou a ver o processo como ramo do direito público (publicismo processual), uma das associações que constantemente se faz é pensar que toda forma de tutela dos direitos seria jurisdicional.86 Mas é preciso reconhecer que há formas de tutela dos direitos previstas no direito material, e portanto as formas de tutela não dependem da jurisdição ou do processo judicial.87 Atualmente, essa 82. WAGNER, Gerhard. Prozeßverträge: Privatautonomie im Verfahrensrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 1998, p.60-61, 126 ss; SILVA, Paula Costa e. Pactum de non petendo: exclusão convencional do direito de ação e exclusão convencional da pretensão material. in CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (Coord.). Negócios processuais. Salvador: Jus Podivm, 4a ed., 2019, p.316- 317. 83. CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: teoria geral dos negócios jurídicos processuais. Op.cit., p.310 ss, 337. 84. Há muito tempo, Sauer já se voltava contra os dois extremos, de enxergar o processo apenas como um anexo em segundo plano, em relação ao direito material; ou pensá-lo como superior ou independente do direito substancial. Confira-se SAUER, Wilhelm. Grundlagen des Prozessrechts. Stuttgart: Ferdinand Enke, 1919, p.20. 85. Embora sem desenvolver as premissas aqui expostas, o próprio Cândido Dinamarco, escrevendo já à luz do CPC/15, percebeu essa simbiose entre direito processual e direito material em institutos limítrofes como a prova e a responsabilidade patrimonial. Sustenta o professor que seriam um meio do caminho, e por isso seriam “pontes de passagem” entre direito material e direito processual. Tais institutos foram denominados por Dinamarco e Lopes de “direito processual material” DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. Op.cit., p.16. 86. Por todos, LIEBMAN, Enrico Tullio. Norme processuali nel codice civile. Op.cit., p.155 ss. 87. Correto DI MAJO, Adolfo. Forme e tecniche di tutela. In MAZZAMUTO, Salvatore (org.). Processo e tecniche di attuazione dei diritti. Napoli: Jovene, vol.1, 1989, p.11-12. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 89 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus constatação deve nos levar a admitir que dentro dessas formas contemporâneas de resolução de conflitos está a autotutela. Em breves palavras, a autotutela pode ser definida como técnica de composição de conflitos baseada na possibilidade de que uma das partes possa impor uma solução à outra, para a preservação ou restabelecimento de um direito ameaçado ou violado. A autotutela sempre esteve relacionada à ideia de coação, do uso da força, própria das sociedades arcaicas anteriores ao Estado moderno. Era o meio de solução de conflitos da brutalidade, associada a agrupamentos humanos pouco civilizados.88 Como salientei, talvez a premissa de pensar que todo processo de solução de conflitos seja estatal ou jurisdicional tenha sido influenciada pelo exacerbado preconceito com as formas de autotutela, que são vistas até hoje ou como totalmente proscritas ou como necessariamente excepcionais por serem fruto de um direito primitivo. Ou seja, a estatalidade na solução de conflitos aparece mais uma vez como o modelo da modernidade, um avanço histórico porque o Estado passou a ser o garantidor institucional de formas civilizadas de solução de conflitos, impedindo o uso da força contra a vontade de um dos litigantes.89 Porém, ao contrário de ser ultrapassado ou antiquado, talvez não haja tema mais novo e contemporâneo como o da autotutela. Sem embargo, despidos de preconceitos, podemos visualizar em diversas regras legais no sistema jurídico brasileiro formas e procedimentos pelos quais os próprios envolvidos satisfazem suas pretensões, o que remete a uma atividade autossatisfativa, por vezes permitindo que enxerguemos verdadeira atividade executiva extrajudicial.90 De início, lembremos a autoexecutoriedade dos atos administrativos, lugar comum no direito administrativo; ou ainda o desforço imediato, autorizado por lei em conflitos possessórios, e que representa uma autotutela da posse (art.1.210 §1º do Código Civil). É também importante lembrar do permissivo de que o proprietário proceda ao corte de galhos e raízes de árvores adjacentes ao seu terreno, e que tenham invadido os limites sua propriedade (art.1.283 do Código Civil). Trata-se de autotutela de direito de vizinhança. 88. Sobre o tema, ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, Niceto. Processo, autocomosición y autodefensa: contribuición al estúdio de los fines del processo. México: Universidade Nacional Autônoma de México, 2a ed., 1970, p.35-70. 89. Essa estatalidade necessária na solução de conflitos talvez tenha sido uma das razões não verbalizadas para o rechaço que a teoria da ação de direito material recebeu da doutrina. Zaneti Jr. observa bem que a ação de direito material se verifica nos pontos do sistema jurídico em que se autoriza a autotutela. Cf. ZANETI JR., Hermes. Processo constitucional, Op.cit., p.217. 90. SICA, Heitor Vítor Mendonça. Velhos e novos institutos fundamentais do direito processual civil. Op.cit., p.436. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 90 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL Vejam-se ainda a execução de cédula hipotecária (Decreto-lei n.70/1966), e a execução do contrato de alienação fiduciária de bens imóveis (Lei n.9.514/97), que permitem execução promovida pelo próprio credor sem intervenção estatal. É o credor que notifica o devedor, consolida a propriedade (que até ali era resolúvel) e toma posse do bem em leilão extrajudicial organizado por ele mesmo (art.27 da Lei n.9.514/97),91 sendo que o arremantante se socorre do juiz somente se tiver que ser imitido na posse (art.30).92 Ainda se podem lembrar os seguintes exemplos: leilão extrajudicial de mercadorias especificadas em warrant não pago no vencimento (art.23 §1º do Decreto 1.102/1903); venda extrajudicial pelo credor pignoratício da coisa empenhada (art.1.433, IV do CC), leilão extrajudicial de quota de terreno e de parte construída na incorporação pelo regime de administração (a preço de custo), como disciplina o art.63 da Lei 4.591/64, mecanismo generalizado para outros contratos de construção com pagamento a prazo (art.1º, VI e VII da Lei 4.864/65), depois estendido para o patrimônio de afetação (art.31-F § 14 da Lei 4.591/64, incluído pela Lei 10.931/2004); venda em bolsa de valores das ações do acionista remisso (art.107, II da Lei 6.404/76), venda do bem objeto da propriedade fiduciária no âmbito do mercado financeiro de capitais (art.66-B §3º da Lei 4.728/65, incluído pela Lei 10.931/2004). Lembremos ainda de formas convencionais que preveem alguma satisfação automática de pretensões materiais definida e operada pelas próprias partes. Exemplo é o negócio de certificação, uma convenção para fixar o entendimento ou interpretação de um ato jurídico ou contrato anterior. É possível, por seu objeto e efeitos, identificar nessa certificação negocial uma forma de autotutela declaratória,93 agora tipicamente prevista no art.113 §2° do CC, art.26 da LINDB e art.357 §2° do CPC. Todas essas previsões na legislação brasileira denotam que nosso sistema jurídico não é infenso à autotutela, e permite a adoção de métodos de private enforcement94 que apresentam para o indivíduo alternativas de tutela dos direitos de cariz não jurisdicional. Assim, não cabe mais confundir tutela dos direitos com tutela jurisdicional dos direitos. O ordenamento jurídico se concretiza com aplicação das normas dentro ou fora 91. Na alienação fiduciária de bens móveis dados em garantia (dec-lei n.911/69) o desapossamento judicial (via busca e apreensão) vem antes da expropriação, mas o fenômeno parece ser o mesmo. 92. Por isso, Heitor Sica identifica com razão que essas atividades executivas permitem concluir que nem toda atividade executiva é jurisdicional. Só haveria reserva de jurisdição para atos de força relacionados ao desapossamento de coisas corpóreas. 93. Aliás, muito próxima em finalidade e efeitos à sentença declaratória proferida em processo judicial. Sobre o tema, confira-se o nosso CABRAL, Antonio do Passo. Negócio de certificação (parte I): introdução, objeto e limites, mimeografado, 2020, no prelo. 94. KEHRBERGER, Roman F. Die Materialisierung des Zivilprozessrechts: Der Zivilprozess im modernen Rechtsstaat. Tübingen: Mohr Siebeck, 2019, p.136 ss, 150 ss. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 91 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus do Judiciário.95 E as formas de tutela, de um lado, e as técnicas processuais, de outro, estão em planos distintos.96 Veja-se o exemplo do negócio de certificação. Pode haver tutela declaratória fora do processo (autotutela negocial), mas ela também pode ser atuada por meio de uma sentença judicial.97 Cabe ao interessado visualizar as técnicas processuais disponíveis, dentro ou fora do ambiente judicial, e que são ofertadas pelo sistema jurídico como canais de possível efetivação da tutela dos direitos. Por isso, na atualidade, a autotutela passou a receber maior atenção porque, vencido o preconceito de enxergá-la como algo violento ou primitivo, foram aos poucos sendo identificadas e inventariadas hipóteses que o próprio ordenamento jurídico atribui a uma das partes em conflito a atuação concreta de seu direito, independentemente de interposição jurisdicional e mesmo contra a vontade dos demais envolvidos. Além disso, a autotutela voltou à baila com toda força e tem sido muito reabilitada no mundo atual sobretudo pelas aplicações de novas tecnologias ao direito.98 E me parece que tais novidades virão sobretudo dos chamados smart contracts, que vão revolucionar a forma como contratos e obrigações jurídicas em geral serão formados e, principalmente, executados. Os smart contracts não são apenas contratos celebrados por meio ditigal;99 são, na verdade, negócios jurídicos eletrônicos, que têm regras para supervisão do adimplemento que se desenrolam automaticamente a partir de um acontecimento relevante (evento-gatilho)100 que indica o cumprimento da prestação da contraparte.101 95. MICHELI, Gian Antonio. L’unità dell’ordinamento e il processo civile. Rivista di Diritto Processuale, vol. XXIII, 1968, p.436-437. 96. DI MAJO, Adolfo. Forme e tecniche di tutela. Op.cit., p.24 ss; MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. Op.cit., p.299-300. 97. Por isso que, com razão, quando fala da tutela dos direitos por meio da jurisdição, Marinoni prefere falar em tutela jurisdicional dos direitos. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. Op.cit., p.246, 293-295. 98. Destaquei este ponto em CABRAL, Antonio. Proceso y tecnología: nuevas tendencias. in PRIORI POSADA, Giovanni F. (Coord.). Justicia y proceso en el siglo XXI: desafíos y tareas pendientes. Lima: Palestra, 2019, p.449 ss. 99. Essa era a ideia externada por quem primeiro começou a estudá-los. Confira-se SZABO, Nick. The Idea of Smart Contracts, 1997, disponível em http://www.fon.hum.uva.nl/rob/Courses/InformationInSpeech/ CDROM/Literature/LOTwinterschool2006/szabo.best.vwh.net/smart_contracts_idea.html, acessado em 1º/3/2019. 100. HOFMANN, Franz. Smart Contracts und Overenforcement: Analytische Überlegungen zum Verhältnis von Rechtszuweisung und Rechtsdurchsetzung. in FRIES, Martin; PAAL, Boris P. Smart contracts. Tübingen: Mohr Siebeck, 2019, p.127. 101. BUTERIN, Vitalik. Ethereum White Paper: a Next Generation Smart Contract & Decentralized Application Platform, 2015, disponível em http://blockchainlab.com/pdf/Ethereum_white_paper-a_ next_generation_smart_contract_and_decentralized_application_platform-vitalik-buterin.pdf, acessado em 1º/3/2019. Sobre o tema, confira-se ainda Matzke, Robin. Smart Contracts statt Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 92 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL Esses contratos baseiam-se na ideia de embedded legal knowledge, de que produtos e serviços sejam desenhados de maneira a assegurar confiança e transparência das ofertas e evitar o inadimplemento (e com isso, prevenir a necessidade do uso do Judicário para fazê-los cumprir). Operam, por assim dizer, uma autoexecutoriedade das prestações contratuais.102 Nos contratos inteligentes, todos os elementos do contrato são redigidos em códigos de computador e algorítmos,103 e muitas vezes operados por aplicativos de celular, nos quais as partes inserem dados bancários ou de cartões de crédito e as prestações de cada contratante são entregues automaticamente.104 Com esse tipo de tecnologia, as rotinas de cumprimento contratual tornam-se cada vez mais industrializadas, reduzindo sobremaneira os custos para a efetivação de direitos que até então eram muito mais altos.105 Isso se dá porque até hoje a execução do contrato era sempre uma opção ex post: as partes decidem se vão cumprir e como vão prestar, o que abre oportunidade para inadimplir; com os contratos inteligentes, o mesmo mecanismo que define as obrigações também define ex ante o adimplemento, e a única chance para as partes não o cumprirem é violar o código, o que torna o descumprimento improvável porque praticamente inviável, sobretudo à vista da velocidade com que os contratos são executados. Mas para o direito processual, os smart contracts permitem rever a lógica da proibição de autotutela porque praticamente eliminam o juízo da execução por relacionarem as partes diretamente (peer to peer) como sendo os sujeitos que definem também o enforcement, independentemente do Judiciário.106 Como se sabe, no Estado de Direito, a autotutela é concebida como excepcional porque o Estado, ao assumir o monopólio da jurisdição e do uso da força, proíbe os Zwangsvollstreckung: Zu den Chancen und Risiken der digitalisierten privaten Rechtsdurchsetzung. in FRIES, Martin; PAAL, Boris P. Smart contracts. Tübingen: Mohr Siebeck, 2019, p.100. 102. RIEHM, Thomas. Smart Contracts und verbotene Eigenmacht. in FRIES, Martin; PAAL, Boris P. Smart contracts. Tübingen: Mohr Siebeck, 2019, p.89; LOBE, Adrian. Smart contracts: Wenn der Algorithmus Selbstjustiz übt. Süddeutsche Zeitung, 08/04/2018, disponível em https://www.sueddeutsche. de/digital/smart-contracts-wenn-der-algorithmus-selbstjustiz-uebt-1.3934283, acessado em 24/02/2019; WRIGHT, Aaron; DE FILIPPI, Primavera; Decentralized Blockchain Technology and the Rise of Lex Cryptographia, 2015, p.11. 103. PAULUS, Christoph G.; MATZKE, Robin. Digitalisierung und private Rechtsdurchsetzung: Relativierung der Zwangsvollstreckung durch smarte IT-Lösungen? Computer und Recht, 2017, p.771. 104. RASKIN, Max. The Law and the Legality of Smart Contracts. Georgetown Law Technology Review, vol.1, 2017, p.304 ss; FINCH, Victor. Smart Contracts: The Essential Quick & Easy Blueprint to Understand Smart Contracts and Be Ahead of Competition, e-book, 2017, p.77-82. 105. Sobre a redução dos custos de transação com a tecnologia, HOFMANN, Franz. Smart Contracts und Overenforcement: Analytische Überlegungen zum Verhältnis von Rechtszuweisung und Rechtsdurchsetzung. Op.cit., p.126. 106. MATZKE, Robin. Smart Contracts statt Zwangsvollstreckung: Zu den Chancen und Risiken der digitalisierten privaten Rechtsdurchsetzung. Op.cit., p.109. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 93 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com Civil Procedure Review – Ab Omnibus Pro Omnibus cidadãos de implementarem os contratos por seus próprios meios contra a vontade da contraparte.107 Mas até que ponto, um hotel que desabilita o cartão eletrônico do hóspede, negando-lhe acesso ao quarto do hotel depois do horário do check out não está operando a autotutela do contrato? A autotutela seria um obstáculo aos contratos inteligentes ou deveria ser repensada?108 Além disso, a proibição do uso privado da força levou à concepção de que todos os atos de execução deveriam ser necessariamente estatais. Na atualidade, será que não deveríamos repensar a necessidade do Estado na execução civil? Existe, na execução, um monopólio estatal para a prática de qualquer ato jurídico (reserva de jurisdição),109 mesmo que não represente subtração forçada de patrimônio corpóreo?110 Será que todos os atos executivos devem ser operados pelos agentes estatais ou poderiam ser, pela vontade das partes, atribuídos a agentes privados?111 Essas são apenas algumas das questões que a autotutela traz para o jurista do nosso tempo. Aqui, e para os estritos limites deste estudo, quero destacar que a autotutela representa um empoderamento das pessoas em conflito para solucioná-los, e que mostra que o sistema jurídico é previdente de instrumentos não judiciais para a tutela dos direitos. De certo modo, mostra também que as normas materiais e processuais estão mais uma vez imbricadas na solução do litígio. 107. BEURSKENS, Michael. Privatrechtliche Selbsthilfe: Rechte, Pflichten und Verantwortlichkeit bei digitalen Zugangsbeschränkungs- und Selbstdurchsetzungsbefugnissen. Tübingen: Mohr Siebeck, 2017, p.4-25. Veja-se também PAULUS, Christoph G.; MATZKE, Robin. Digitalisierung und private Rechtsdurchsetzung: Relativierung der Zwangsvollstreckung durch smarte IT-Lösungen? Computer und Recht, 2017, p.769 ss. 108. Questão abordada por RIEHM, Thomas. Smart Contracts und verbotene Eigenmacht. in FRIES, Martin; PAAL, Boris P. Smart contracts. Tübingen: Mohr Siebeck, 2019, p.92 ss. 109. MATZKE, Robin. Smart Contracts statt Zwangsvollstreckung: Zu den Chancen und Risiken der digitalisierten privaten Rechtsdurchsetzung. Op.cit., p.110. 110. Riehm defende a ideia que meios executivos destinados a apreenderem coisas não podem ser empregados por contratos inteligentes; admite, todavia, que essas ferramentas possam operar para prestações pecuniárias, com algumas ressalvas em relação aos contratos de adesão. Confira-se RIEHM, Thomas. Smart Contracts und verbotene Eigenmacht. Op.cit., p.98. 111. Acerca das convenções processuais em execução, DIDIER JR., Fredie ; CABRAL, Antonio do Passo. Negócios jurídicos processuais atípicos e execução. Revista de Processo, vol. 275, 2018, p.193 ss, especialmente p.220 ss. Sobre a delegação de competências em geral, e dos atos executivos em especial, confira-se CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual: flexibilização, delegação e coordenação de competências no processo civil. Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Tese apresentada ao concurso de professor titular de Direito Processual Civil, 2017, p.454 ss. Civil Procedure Review, v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. 94 ISSN 2191-1339 – www.civilprocedurereview.com DA INSTRUMENTALIDADE À MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO: AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL 5. PERSPECTIVAS PARA O FUTURO: RUMO A UMA MATERIALIZAÇÃO DO PROCESSO E RELAÇÕES DE CONVERGÊNCIA COAXIAL ENTRE DIREITO E PROCESSO A reflexão precedente parece afastar o direito processual contemporâneo de algumas das características do instrumentalismo de Dinamarco. O processo brasileiro do séc.XXI surge mais flexível, com maior protagonismo das partes e redução dos poderes do juiz, cenário em que temas como os negócios jurídicos processuais e a autotutela puderam florescer e se revigorar. Ao invés de acreditar na solução jurisdicional dos conflitos, relacionando o processo ao Estado, o sistema jurídico empresta ênfase a processos privados de resolução de disputas (autocompositivos ou heterocompositivos). Por isso, as relações entre processo e direito material mudaram drasticamente. Não vejo mais como possível associar processo e jurisdição, tampouco elencar-lhes escopos que sejam totalmente independentes dos direitos materiais. E os paradigmas alternativos que a doutrina apresentou ao criticar o instrumentalismo tampouco atentaram para essa tendência.112 Normas materiais e processuais não necessariamente se diferenciam como antes se procurava fazer. A secundariedade das regras processuais deve ser questionada à luz da admissibilidade de negócios jurídicos processuais prévios. Penso que, atualmente, ambos os tipos de norma podem se misturar na corregulação de requisitos e pressupostos, e também interagem ao produzirem incentivos de conduta e mecanismos de autotutela. Normas processuais, portanto, passam a cumprir função primária de condicionamento dos comportamentos humanos, mesmo fora do Judiciário. Nessa toada, o diagnóstico exposto neste ensaio permite questionar se não estaria havendo um retorno do processo ao direito material, algo que poderia ser descrito como uma materialização do processo. Por “materialização do processo” entendemos uma renovada aproximação entre direito material e direito processual que se coloca em várias dimensões e com intensidade muito diferente do que até hoje se viu.113 112. Aliás, em grande parte, todos os críticos partem geralmente da premissa de que toda forma de tutela dos direitos é jurisdicional (unindo processo e jurisdição e pressupondo que o Estado estará sempre presente) e não abordam o tema da autotutela. O fenômeno que vem sendo referido na doutrina do direito constitucional como sendo uma “proceduralização” do direito tampouco abrange esses fenômenos porque pressupõe que o conflito será levado ao Judiciário (i.e. não se propõe a imaginar a interação entre direito e processo fora do espaço judiciário), tampouco retoma a necessidade e os critérios de distinção entre norma processual e norma material.

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