De Svante Arrhenius ao Peagâmetro Digital (PDF)

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Michelle da Silva Gama e Júlio Carlos Afonso

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pH measurement acidity chemistry

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This article explores the historical development of acidity measurement, tracing it from Svante Arrhenius to the digital pH meter. It highlights the key scientific breakthroughs and advancements in the understanding and measurement of acidity in chemical solutions during the 19th and 20th centuries.

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Quim. Nova, Vol. 30, No. 1, 232-239, 2007 Assuntos Gerais DE SVANTE ARRHENIUS AO PEAGÂMETRO DIGITAL: 100 ANOS DE MEDIDA DE ACIDEZ Michelle da Silva...

Quim. Nova, Vol. 30, No. 1, 232-239, 2007 Assuntos Gerais DE SVANTE ARRHENIUS AO PEAGÂMETRO DIGITAL: 100 ANOS DE MEDIDA DE ACIDEZ Michelle da Silva Gama e Júlio Carlos Afonso* Departamento de Química Analítica, Instituto de Química, Universidade Federal do Rio de Janeiro, CT, Bloco A, CP 68563, 21949-900 Rio de Janeiro - RJ, Brasil Recebido em 6/4/05; aceito em 13/1/06; publicado na web em 11/8/06 FROM SVANTE ARRHENIUS TO THE DIGITAL pH METER: A CENTURY OF ACIDITY MEASUREMENT. This work describes the establishment of the concept of pH and the evolution of its measurement. The origin of the pH definition can be found in the development of the chemistry of aqueous solutions during the XIXth century. The electrolytic dissociation theory by Svante Arrhenius played a central role. After the proposal of the pH scale by Sörensen, many years were necessary for the acceptance of this new parameter among chemists in general. Its importance was first recognized in biochemistry and related areas. Twenty years after, its importance had been recognized in many industrial and laboratorial practices. The previous methods were based on colorimetric and electrometric methods, but both suffered from many problems. Acceptance of pH in Chemistry was only possible after the development of experimental trustable measurements. The invention of the pH meter was the primordial step. Keywords: pH; pH meter; acidity measurement. O CONHECIMENTO DA QUÍMICA EM SOLUÇÃO cionando a magnitude dessa dissociação com a força do ácido ou AQUOSA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX da base. Segundo Arrhenius, ácidos são substâncias que produzem, em solução aquosa, íons hidrogênio; analogamente, bases produ- Na segunda metade do século XIX, muitos conceitos físico- zem íons hidroxila em solução. químicos estavam sendo estabelecidos1-5. Na década de 1860, Cato Com o advento da teoria de Arrehenius e os avanços das medi- M. Guldberg (1836-1902) e Peter Waage (1833-1900) formularam das elétricas, foi possível determinar a constante de dissociação da a lei da ação das massas. Em 1877, Wilhelm Pfeffer (1845-1920) água pura, pela aplicação da lei da ação das massas. Foi Wilhelm produziu a primeira membrana semipermeável, com a qual desco- Ostwald (1853-1932), em 1893, quem primeiro fez essa determi- briu a proporcionalidade entre pressão osmótica e concentração nação, empregando uma célula de concentração4. No ano seguinte, da solução. François-Marie Raoult (1830-1901) publicou em 1883 Friederich Kohlrausch e Adolf Heydweiller (1856-1925) determi- seus estudos sobre abaixamento do ponto de congelamento e ele- naram essa constante utilizando medidas de condutância5. Todas vação do ponto de ebulição. Esse trabalho serviu de base para os essas determinações levaram a valores próximos de 1x10-14 a 25 ºC. trabalhos de Jacobus H. Van’t Hoff (1852-1911) na sua lei de solu- Com base no processo de auto-ionização da água: ção diluída, em 1886. Entretanto, as soluções de sais inorgânicos não obedeciam a essa lei e Van’t Hoff introduziu o fator de corre- H2O H+ + OH- (1) ção i (chamado coeficiente de Van’t Hoff, que indica o número médio de partículas formadas por molécula. Ele é associado ao tem-se, de acordo com a lei da ação das massas: grau de dissociação da mesma6). Até aquele momento não havia nenhuma explicação para este fato. [H+] [OH-] Nessa mesma época, uma outra frente de estudos a respeito da K = ————— (2) [H2O] pilha voltaica e descobertas relacionadas se estabeleceu. O concei- to de íon foi introduzido por Michael Faraday (1791-1867), em 1833, a partir de seus estudos de eletrólise1,4,5. Em 1853, Johann W. Como esse processo ocorre em extensão mínima, a concentra- Hittorf (1824-1914) descobriu que os íons se moviam sob a ação ção da água no equilíbrio é praticamente igual à concentração ini- de uma corrente, e que isso variava de espécie para espécie2,3. Em cial, onde: 1876, Friederich W. G. Kohlrausch (1840-1910) desenvolveu um novo método para determinar a condutividade, e com isso estabe- K[H2O] = K’ = [H+] [OH-] (3) leceu a lei da migração independente dos íons1-3. Svante Arrhenius (1859-1927) percebeu em sua teoria de Ao produto [H+] [OH-] deu-se o nome de produto iônico da dissociação eletrolítica (1887) que a lei da ação das massas podia água, Kw, etapa importante no estabelecimento posterior do con- ser aplicada às reações iônicas3-5. Supôs que algumas das molécu- ceito de pH. Naquela época já era conhecido que Kw era depen- las de um eletrólito eram dissociadas em seus íons que, por serem dente da temperatura. Por ex., as medições de Friederich Kohlrausch partículas carregadas, eram passíveis de movimento independente e Adolf Heydweiller, em 18945,7, davam para Kw, a 10 e a 60 oC, os sob ação de um campo elétrico. Assim, calculou a pressão osmótica valores respectivos de 0,31 x 10-14 e 11,04 x 10-14. O estabeleci- pela lei de Van’t Hoff, elucidando o fator i. Além disso, também mento do conceito de Kw referia-se à água pura apenas, mas já se determinou a constante de dissociação dos ácidos e das bases, rela- percebia naquele tempo que a dissolução de sais derivados de áci- dos e bases fortes não perturbava o equilíbrio iônico da água, pela *e-mail: [email protected] ausência de fenômenos de hidrólise dos íons adicionados a ela1,3,6,7. Vol. 30, No. 1 De Svante Arrhenius ao peagâmetro digital 233 A IMPORTÂNCIA DO ÍON HIDROGÊNIO NOS (força iônica), ou seja, em soluções concentradas é o produto da SISTEMAS BIOLÓGICOS molaridade pela força iônica. Na prática, a definição original de Sörensen ainda pode ser utilizada porque os instrumentos empre- Por volta de 1900, muitas equações matemáticas utilizadas para gados para fazer a medição podem ser calibrados com soluções de expressar equilíbrio químico, concentração de H+, etc já haviam concentração de íon hidrogênio conhecida3,6,12. sido elaboradas. Para os químicos da época, a determinação da O conceito de pH, a rigor, só se aplica a soluções aquosas e concentração do íon hidrogênio era uma questão de interesse pura- tanto mais diluídas estas forem. Caso se necessitasse calcular a mente teórico, mas para biólogos e bioquímicos a situação era muito basicidade de um meio (pOH), utilizava-se a expressão pH + pOH diferente4-5. Por trabalharem com organismos vivos, lidavam cons- = 14. Por isso, a importância do produto iônico da água (Kw) no tantemente com os sistemas de tampões naturais e, por conseguin- estabelecimento do pH. Isso também ilustra que os valores da es- te, com o desafio de determinar a concentração do íon H+, fator cala de pH não são arbitrários, mas se originam da medida experi- crítico nesse sistema. mental do Kw. Como este varia com a temperatura, a escala de pH Em 1900 Auguste Fernbach (1860-1939) e L. Hubert (1865- também variará. Por ex., na temperatura do corpo humano (37 ºC), 1943), pesquisadores franceses, perceberam que o extrato de malte pH + pOH = 13,6 e o pH referente à neutralidade é de 6,811. apresentava a propriedade de não variar sua atividade enzimática Apesar do conceito de pH como “– log[H+]” ser exclusivamen- quando se adicionavam pequenas quantidades de um ácido ou de te creditado a Sörensen, os trabalhos de Friedenthal de determina- uma base. Eles então concluíram que o malte, assim como muitos ção da concentração do íon hidrogênio forneceram o subsídio fun- fluidos naturais, compartilhava a propriedade de resistir a mudan- damental para o estabelecimento do artifício logarítmico. Seria mais ças abruptas de acidez ou de alcalinidade. Foram os primeiros a justo, pois, creditar a ambos o mérito da introdução do conceito de utilizar a palavra tampão para explicar esse fenômeno1,4,5. pH; muitos autores mesmo opinam que Friedenthal foi o real Por volta de 1903, o fisiologista húngaro Pal Szily (1878-1945) introdutor dessa escala5,13. constatou que o soro sanguíneo possuía propriedades tamponantes; Até Sörensen propor a escala de pH, não havia uma forma através de seus estudos definiu os limites em que ocorriam as rea- amplamente aceita de expressar a concentração do íon hidrogê- ções no soro, na faixa de concentração de íon hidrogênio [H+] entre nio7,8,11. O emprego do conceito de pH espalhou-se rapidamente 1x10-4 e 2x10-10 mol L-1. Sob orientação de Hans Friedenthal (1870- entre bioquímicos e enzimologistas, que o utilizaram em estudos 1943), Slizy trabalhou na determinação da concentração do íon de ação tamponante dos tecidos vivos14. Por outro lado, muitos hidrogênio utilizando métodos colorimétricos1,2,4,5. químicos foram vagarosos, e mesmo reticentes, em aceitar esse Em 1875 Louis Pasteur (1822-1895), em seus estudos de fer- novo conceito1,4,8,14-16. Um exemplo desse ceticismo com que foi mentação, foi o primeiro a reconhecer que a acidez real é bem dife- tratado o pH está no texto a seguir: “Para físicos e químicos, a rente da acidez total, pois ácidos com mesmo número de hidrogêni- noção de pH não provocou grande entusiasmo; o mesmo não suce- os ionizáveis não têm necessariamente a mesma força. Daí surgiu a deu na biologia e na medicina, que se perderam na filosofia e na necessidade de medir e exprimir essa acidez em solução, pois se poesia, sem se deter no rigor científico, o que explica o porquê de tratava de uma variável importante nos procedimentos biológicos e tantos trabalhos sobre pH devidos a eles (...). O pH, isoladamente, bioquímicos em geral3,8,9. Isso significa que a importância e a neces- significa coisa alguma ou quase nada”15. É interessante notar que sidade de quantificar a acidez se estabeleceram antes do advento do as questões de ordem prática relativas à concentração do íon hidro- pH. Contudo, antes de Sörensen, era raro um trabalho que relacio- gênio não figuravam nos assuntos de interesse dos químicos da nasse o andamento de uma reação química e a acidez do meio9. época. Isso fica mais evidente quando se constata que boa parte dos conceitos, das medições e teorias elaboradas sobre o assunto A INVENÇÃO DA ESCALA DO pH E SUA ABRANGÊNCIA foram formuladas, defendidas e publicadas por bioquímicos, bió- logos e profissionais de áreas afins. Em 1904, Hans Friedenthal10 recomendou a utilização da con- centração do íon hidrogênio para caracterizar soluções, e também A DIFUSÃO DO pH NO MUNDO CIENTÍFICO sugeriu que as soluções alcalinas poderiam ser caracterizadas, em termos de concentração do íon hidrogênio, desde que fossem sem- A escala de pH, apesar de cômoda e hoje usual, não foi aceita pre iguais a 1 x 10-14/CH+, isto é, [H+] x [OH-] =10-14. Naquela épo- de imediato entre os químicos, sofrendo duras críticas. O primeiro ca, na área de ácido-basicidade e de tampões, os gráficos de livro de Química que menciona o conceito de pH foi publicado em neutralização eram apresentados tendo como uma das variáveis a 19144, cinco anos após a proposição de Sörensen, sob o título Die concentração do íon hidrogênio [H+] ou o log [H+], sem aplicação Wasserstoffionenkonzentration, sendo escrito por Leonor Michaelis da definição de Sörensen5,7,9. Para contornar o uso de muitos zeros (1875-1950), professora de Química Médica em Berlim. No prefá- trabalhava-se com notação científica e, quando da aplicação do cio de seu livro, ela lamenta a falta de interesse dos químicos pelo logaritmo, com números negativos7,8. assunto. Em 1920, William M. Clark (1884-1964) publicou o livro Em 1909 Sören P. T. Sörensen (1868-1939), bioquímico dina- The Determination of Hydrogen Ions, de grande repercussão na marquês, estabeleceu uma maneira conveniente de expressar a aci- época, pois introduziu a dosagem eletrométrica com vistas a obter dez utilizando o logaritmo negativo da concentração do íon hidro- medidas mais precisas4,5. Esse livro foi o primeiro de uma série gênio: pH = - log [H+]. Ele chamou de expoente do íon hidrogênio publicada ao longo de 20 anos sobre o íon hidrogênio. Na década representado pelo símbolo pH “pondus hidrogenni - potencial de de 1920, a literatura registra algo em torno de 10.000 trabalhos16 hidrogênio”. Devido ao uso do artifício matemático “– log [H+]” neste campo, o que comprova quão importante se tornou esse as- os valores dessa escala são positivos na faixa de concentração abaixo sunto na época. de 1 mol L-1. A rigor, o pH é mais bem definido como sendo pH = No Brasil, o pH começou a figurar em livros de Química em -logah, onde ah é a atividade do íon hidrogênio11,12. Em soluções meados dos anos 1920. Contudo, a título de ilustração, as obras contendo mais de um íon a atividade e a concentração são diferen- Pontos de Chimica17, de 1928, e Noções Rudimentares de Química tes, porque a atividade é a concentração real de um eletrólito em Analítica e Quantitativa18, de 1932, editadas no Brasil, limitavam- solução. Ela é função de todos os componentes iônicos em solução se a uma descrição muito sucinta da definição de pH e da 234 Gama e Afonso Quim. Nova metodologia de determinação; a ênfase recaía no cálculo puro e alcalina da ácida (Tabela 1). A despeito do nítido apoio de pesquisa- simples, em detrimento do significado do conceito em questão. dores russos e italianos4.5,9.15, a escala de Giribaldo não se consa- Foram encontrados livros-texto editados ao final dos anos 1920 grou23,29-31. A partir da fórmula apresentada na Tabela 1 e da expres- em que ainda se usava a expressão [H+] [OH-] = 1 x 10-14 (a propos- são [H+] [OH-] = 1 x 10-14, pôde-se demonstrar que os valores de PR ta de H. Friendenthal, de 1904) para traçar as curvas de titulação não variavam com o logaritmo da concentração do íon hidrogênio, ácido-base19. Apesar da grande quantidade de trabalhos publicados mas sim com o logaritmo do quadrado dessa concentração (PR = 14 naquela época, o conceito de pH proposto por Sörensen não estava + 2 log [H+]), o que amplificava o erro desse parâmetro no caso de totalmente consolidado. medida incorreta de acidez. Apesar de Giribaldo afirmar27,28 que sua escala era insensível à temperatura (ao contrário do que sucede A IMPOSIÇÃO DO pH COMO MEIO DE AVALIAÇÃO DA com o pH), o quociente [H+]/[OH-] é sensível às variações de Kw ACIDEZ com a temperatura, exceto unicamente no caso da neutralidade. Diversas outras tentativas de se criar uma escala alternativa Na década de 1920, houve uma grande discussão sobre a real àquela proposta por Sörensen apresentavam fórmulas de cálculo utilidade da notação de Sörensen e várias escalas foram propostas mais complexas que a do pH, o que levou ao abandono dessas pro- para substituí-la. postas pela não praticidade no uso rotineiro23. O emprego do conceito de pH tinha a vantagem de evitar cál- A dificuldade do conceito de pH se estabelecer entre os quími- culos com número muito pequenos, cheios de zeros à esquerda, ou cos talvez se explique, ao menos em parte, por outro ângulo32: na a manipulação de números negativos, facilitando a construção de década de 1920, a teoria de Arrhenius, sob a qual se insere o con- gráficos e reduzindo as possibilidades de erro de cálculo7-9,20-22. ceito de pH, sofria duras críticas por conta de suas limitações à Os inconvenientes da escala de Sörensen que geravam recla- vista do progresso que a Química experimentava até então. As teo- mações eram1,4,5,8,9,13,15,20-22: o problema de a acidez decrescer quan- rias protônicas (Brönsted-Lowry) e eletrônica (Lewis) foram pro- do o pH subia e vice-versa; a falta de uma marca que caracterizas- postas para resolver as lacunas que a teoria de Arrhenius não expli- se a passagem de acidez à alcalinidade; a variação de acidez não cava. Para estas novas teorias o conceito de pH era irrelevante, e correspondia à do pH, ou seja, uma unidade logaritmica significa- casos onde o pH tinha aplicabilidade duvidosa (caso de meios áci- va uma variação de 10 vezes a acidez do meio; não havia uma dos e básicos concentrados, reações em sistemas sólidos, etc) pas- maneira uniforme de representar a escala de Sorensen: fora a ma- saram a ter um tratamento conceitual. neira hoje consagrada de representar como pH, ainda se escrevia O conceito de pH foi bem acolhido nos Estados Unidos, era PH, Ph, pH, PH, conforme o país onde se originava o trabalho. Se a considerado um meio conveniente de expressar a acidez de solu- concentração do íon hidrogênio fosse maior que 1 mol L-1, o pH, ções de ácidos/bases e de caracterizar produtos industriais e fisio- pela sua definição, seria um valor negativo, mais um fator a con- lógicos9. Na área de ensino8, em razão da freqüência com a qual se fundir a mente do operador ou do aluno23. Além disso, quanto me- empregava a expressão “pH” unicamente como ferramenta de cál- nor o grau de dissociação de um ácido ou de uma base, menor a culo algébrico, foi necessária a publicação de obras que visassem variação do pH de sua solução aquosa em função da concentração esclarecer esse novo parâmetro físico-químico. H. Chakmakjiam, desse soluto8,9,15. Por tudo isso diversas outras escalas de acidez professor da Escola de Medicina de Boston e membro da “Division foram propostas, como se vê na Tabela 19,15,24-28. of Chemical Education” da “American Chemical Society” defen- A proposta de Wherry foi duramente criticada por William M. deu em reunião daquela divisão: “A questão é que a redução do Clark e por Izaak M. Kolthoff (1894-1993), que a consideravam conceito a uma mera operação matemática incomodava, pois os “bizarra e tratava-se apenas de uma outra forma não linear de alunos aprendiam pH sem relacioná-lo aos fenômenos físico-quí- relacionar a acidez com a escala proposta”29,30. Ambos também micos pertinentes. Era necessária a junção de conceitos termo- acreditavam que não havia nenhuma razão para se dar um signifi- dinâmicos e eletroquímicos para dar uma melhor visão do que ocor- cado especial à neutralidade pois, a rigor, somente a água pura e re nas soluções iônicas, dispersando a aura de mistério que cerca soluções diluídas de sais derivados de ácido e base fortes tinham a mente do aluno”31. No início dos anos 1960, a idéia da acidez pH 7. As escalas de Blackaddor e Guillaumin eram restritas a ca- crescer com o abaixamento do pH, e vice-versa, era ainda uma sos especiais, que não se prestavam para uso prático geral. A esca- dificuldade apontada pelos alunos no ensino americano23. la de Giribaldo, proposta em 192527,28, foi a alternativa mais co- A introdução do pH como ferramenta de controle revolucionou mentada no meio científico da época, sendo muito atrativa devido inúmeros processos industriais em meio aquoso: precipitações, cultu- à simplicidade de sua definição e à capacidade de distinguir a faixa ras bacteriológicas, produção de vacinas, galvanoplastias, fermenta- Tabela 1. Escalas alternativas à definição de pH proposta por Sörensen Escala Descrição Comentários 24 Blackaddor pH: 4,8 - acidez potencial = 0 (ponto isoelétrico da Adequada para segmentos das indústrias bioquímica, gelatina), variação logaritmica em torno deste ponto fotográfica e alimentícia Guillaumin25 Divisão do segmento pH 6,77-7,60 em 200 partes Destinada a estudos fisiológicos e bioquímicos 26 Wherry Em pH = 7 atribuir “acidez ativa” = 1; Grau de acidez e alcalinidade é descrito como mínimo, pH = 6, acidez ativa 10; submédio e super (termo superácido aparece pela pH = 5, acidez ativa = 100 e assim por diante; primeira vez na literatura) pH = 8, alcalinidade ativa = 10; pH = 9, alcalinidade ativa = 100 e assim por diante Giribaldo27,28 Cálculo da razão R = [H+]/[OH+]; Em pH 7 o valor de PR é zero; assume valores positivos logR = PR = log [H+]/[OH+] na faixa ácida e negativos na faixa alcalina Vol. 30, No. 1 De Svante Arrhenius ao peagâmetro digital 235 ções, produção de leite e derivados, curtição de couro, etc e, também, 1915, William M. Clark e Herbert A. Lubs introduziram as diversas operações unitárias da indústria (filtração, decantação, sulfoftaleínas 37, o que aumentou a versatilidade dos métodos flotação), feitas antes às custas de procedimentos inadequados, tanto colorimétricos (determinação em faixa estreita e maior durabilida- do ponto de vista dos processos quanto da saúde do operador8,9,33,34: de dos indicadores)5. A Tabela 2 ilustra diversos sistemas tampão permanência por longo período na área de produção sem equipamen- disponíveis em 192538. Cada substância componente da mistura tos de proteção adequados; manipulação de grandes volumes de amos- tampão era dosada (por gravimetria, volumetria, titulometria) an- tras; lentidão na obtenção dos resultados (o que aumentava o risco de tes de ser utilizada no preparo dos padrões. Devido à facilidade de acidentes, devido à demora em corrigir alguma variável de processo). preparo e purificação, os indicadores de Clark e Lubs (Tabela 3) Os exemplos acima e muitos outros mostram que, mesmo antes do foram dos mais utilizados na época34,35,38. estabelecimento de metodologias confiáveis e definitivamente reprodutíveis, o pH assumiu importância fundamental no segmento Tabela 2. Sistemas-tampão já estabelecidos em 1925 industrial8,9.20.31,33,34, situação válida até hoje. Contudo, houve relatos de emprego sem critério do pH, levando a situações inusitadas, como Proponente(s) Ano Faixa de pH atestam os seguintes exemplos 8,33: ajuste do pH de um meio Sörensen 1908 1,04-12,9 fermentativo sem que a temperatura do mesmo estivesse na faixa ade- Clark e Lubs 1919 01,2-10,0 quada à cultura microbiana; neutralização de soluções a 80-90 ºC afir- Mc IIvaine 1921 2,2-8,0 mando que o pH era 7; regular a “acidez” de soluções onde o solvente Walpole 1910 3,8-5,7 não era água pura e sim, misturas de solventes (água + álcool, por ex.). Politsch 1915 06,7-9,24 Esses casos mostraram que o pH não podia ser o único parâmetro de Mc Clendon et al. 1922 07,45-9,050 controle, devendo ser associado a outros itens de monitoramento do Kolthoff 1925 10,17-11,36 processo (temperatura, composição do meio, vazão, etc). Isso tam- Ringer 1924 10,97-12,06 bém justificou a publicação naquela época de obras esclarecedoras sobre o pH para clientela não-química (farmacêuticos, engenheiros, geólogos, agrônomos, técnicos, etc), para que esses profissionais ti- rassem o máximo proveito desse conceito em seus trabalhos. Isso se Tabela 3. Corantes e soluções-tampão propostos por Clark e Lubs revelou um exemplo de cooperação entre indústria e academia8,31,33. (1919) Indicador Mudança de cor Faixa de DETERMINAÇÃO DO pH viragem Os métodos disponíveis para determinação do pH são funda- Azul de timol Vermelho-amarelo 1,2-2,8 mentalmente colorimétricos e eletrométricos. Apesar destes últi- Azul de bromofenol Amarelo-azul 3,0-4,6 mos serem utilizados quase que exclusivamente hoje em dia, os Vermelho de metila Vermelho-amarelo 4,4-6,0 métodos colorimétricos foram favorecidos por muitos anos devido Púrpura de bromocresol Amarelo-púrpura 5,2-6,8 à falta de conhecimentos técnicos que pudessem fazer dos méto- Azul de bromotimol Amarelo-azul 6,0-7,6 dos eletrométricos algo rotineiro. Vermelho de fenol Amarelo-vermelho 6,8-8,4 Vermelho de cresol Amarelo-violeta 7,2-8,8 Os métodos colorimétricos Azul de timol Amarelo-azul 8,0-9,6 Soluções-tampão Esses procedimentos foram usados empiricamente durante dé- cadas, embora teorias físico-químicas, hoje, expliquem o princípio KCl 0,2 mol L-1 + HCl 0,2 mol L-1 1,2-2,2 dos indicadores utilizados (W. Ostwald, em 1894, foi o primeiro a Ftalato ácido de potássio 0,2 mol L-1 + 2,2-3,8 dar uma explicação do fato). Eles se baseiam na mudança de cor HCl 0,2 mol L-1 quando certas substâncias entram em contato com meio ácido ou Ftalato ácido de potássio 0,2 mol L-1 + 4,0-6,2 alcalino. Na concepção de Sörensen e Friedenthal, a comparação NaOH 0,2 mol L-1 do pH de uma substância desconhecida era feita contra uma série KH2PO4 0,2 mol L-1 + NaOH 0,2 mol L-1 5,8-8,0 de soluções preparadas com pH bem delineado (tamponadas) e de H3BO3 + KCl + NaOH 0,2 mol L-1 7,8-9,6 coloração característica, chamada escala colorimétrica. Por com- paração entre a coloração dos padrões da escala e da amostra che- gava-se a um pH próximo do real. Essa metodologia apresentava Como critério visual, a mudança da cor da forma ácida para a erros, tais como a acuidade visual diferenciada de cada um, a vira- básica (e vice-versa) ocorre quando a razão entre as concentrações gem de indicador pouco marcante, a influência da temperatura e da forma ácida (alcalina) e da alcalina (ácida) for maior que aproxi- da concentração das espécies e os efeitos de espécies salinas, madamente 10. Essa razão pode ser melhor determinada utilizando- oxidantes e redutoras12,13,29,35. se um método espectrofotométrico. O equilíbrio da mudança de cor Além da comparação a olho nu, também se utilizavam aparelhos (em uma dada força iônica) pode ser dado pela Equação 4 conhecidos como comparadores (como o modelo de Walpole), e colorímetros como os de Dubosq24-27. Em ambos os casos, fazia-se a pH = pKin + log [InB]/[InA] (4) comparação ótica das cores da solução em análise e dos padrões de pH conhecidos. Não era qualquer substância corada que mudava de onde pKin é a chamada constante aparente do indicador. Com base cor com o pH que poderia ser utilizada como indicador36. na mudança de cor em função das concentrações das espécies áci- As misturas tampão oferecidas no comércio cobriam a faixa de da e básica (10/1 ou 1/10), a faixa de viragem da cor do indicador 1 a 13 de pH, com variação interna de até 0,05 unidades. Algumas pode ser expressa segundo a Equação 5 dessas soluções duravam pouco tempo, o que exigia uma escolha criteriosa do tampão para a faixa que se desejava trabalhar. Em pH = pKin ± 1 (5) 236 Gama e Afonso Quim. Nova ou seja, a faixa de viragem do indicador corresponde a cerca de espaço13,34,35, pois superavam deficiências dos métodos colorimé- duas unidades de pH. tricos, tais como melhor precisão, existência de soluções sem um O primeiro indicador de pH comercialmente vendido foi o bom indicador e determinação de soluções coradas19. Apesar de, tornassol (litmato de cálcio). O reagente era originalmente sólido em 1893, W. Ostwald já ter medido a concentração iônica utilizan- e vendido em grãos na cor vermelha (faixa ácida) ou azul (faixa do medidas condutimétricas e Walter H. Nernst (1864-1941), em alcalina). Era obtido de diversas fontes, desde liquens até crustáce- 1889, ter estabelecido uma relação matemática entre potencial e os. A partir do final dos anos 1920, já havia à venda a tintura de concentração iônica, fatores de fórum prático impediam a ampla tornassol (lackmus tinktur). A impregnação dessa tintura em papel utilização de métodos eletrométricos. Nos primeiros anos do sécu- foi a grande idéia que possibilitou o uso generalizado desse lo XX, a precariedade de equipamentos, a carência de profissio- insumo35,39,40. Entretanto, outras substâncias conhecidas na época nais qualificados para operação dos instrumentos e o alto custo dos agiam sob uma faixa de pH mais estreita, conhecida como zona de mesmos eram sérios entraves à difusão dos métodos eletrométricos viragem. A cada momento surgiam novos indicadores capazes de de determinação da acidez de uma solução13,20,31,41. alargar a faixa de pH passível de ser medida ou de estreitar a deter- As montagens elétricas eram feitas através da união de vários minação a um intervalo cada vez menor. componentes, unidos por fios, ou seja, não havia um instrumento Em lugares onde não era possível levar aparelhagens (zona ru- único para determinação da acidez de uma solução31,32. Esses es- ral, jazidas minerais, etc) utilizava-se papel impregnado com indi- quemas podiam apresentar diversos problemas13,20,42: possibilidade cador para se medir o pH. Este ainda não era o papel indicador de ligações equivocadas ou de inversões de polaridade que leva- universal como é conhecido hoje. Os primeiros papéis surgiram vam a curto-circuitos e mesmo explosões de eletrodos; dificuldade nos anos 1920 a partir de várias pesquisas, particularmente as de de ajustar o “zero” - a flutuação excessiva da corrente levava a Izaak M. Kolthoff34. O papel surgiu inicialmente apenas para esti- oscilações que dificultavam medidas reprodutíveis; os fios nem mativas grosseiras de pH onde a rapidez da obtenção do resultado sempre eram verificados quanto à sua integridade física, bem como era primordial, daí a pouca receptividade em seus primeiros tempos. as soldas e junções nas conexões dos diversos componentes; os O caminho seguido até o lançamento dos papéis indicadores de eletrodos apresentavam freqüentemente defeitos, especialmente o pH universal passou pela formulação de kits de soluções contendo de hidrogênio (negro de platina oxidado ou não homogêneo), ou vários indicadores de pH bem delineados e com coloração caracte- seja, a baixa durabilidade do instrumento e sua confiabilidade du- rística (a escala colorimétrica). A impregnação dos indicadores em vidosa; a temperatura da medida era diferente da do ambiente, sem papel e o refinamento das misturas dos mesmos permitiram obter que se pudessem utilizar fatores de correção no instrumento; o apa- os tão conhecidos papéis de pH universal, bastantes utilizados des- recimento do potencial de junção (líquida) entre as células e a difi- de os anos 195040. Quando o papel universal entrou em uso, a esca- culdade de controlá-lo, ou, pelo menos, de minimizá-lo. la comparativa (colorimetria) perdeu a utilidade31,33,35,39. Donald M. Um dos componentes obrigatórios dessas montagens era a pi- Quintela, professor de Química Analítica da Faculdade Nacional lha-padrão, que tem a característica de apresentar um potencial de Farmácia da Universidade do Brasil e um dos que difundiu o constante e independente do pH, prestando-se para comparação papel universal no país, reconhecia a sua utilidade no ensino: “Já entre seu potencial e o do sistema que se deseja medir9,15,34,36. A têm sido propostas e divulgadas diversas fórmulas dos chamados primeira versão foi proposta em 1872 por Josiah L. Clark (1822- indicadores universais (...) É de grande utilidade prática, em mui- 1898), baseada no sistema Hg(Zn)/ZnSO4 saturado. Foi o primeiro tos laboratórios, poder estimar a ordem de grandeza do pH em um modelo reprodutível e de sucesso comercial. Foram introduzidos líquido em exame, dispondo apenas de recursos ordinários do pró- melhoramentos, culminando em 1892 pela proposta da chamada prio laboratório, isto é, sem concurso de aparelhos especiais, ge- pilha de Weston (Edward Weston, 1850-1936), que tem um poten- ralmente de preço muito superior ao valor intrínseco”39. cial de + 1,0183 V à 20 oC (constante até cerca de 40 oC), baseada A apresentação dos papéis de pH no mercado não mudou sig- no sistema Hg(Cd)/HgSO4. Os modelos tinham em comum a en- nificativamente ao longo do tempo, sendo comercializados sob trada para termômetro, ligação (+)/(-) da conexão elétrica, visor de várias formas (tiras, rolos, blocos, etc). Atualmente, os indicado- nível de líquido e entrada de reposição de água. res são quimicamente imobilizados sob papel ou plástico a fim de Uma alternativa à pilha-padrão é o eletrodo de referência (antes evitar a rápida dissolução do corante (sangramento) quando a tira chamada pilha de concentração). Em 1893, Max J. L. Le Blanc (1865- permanece na solução por longos períodos de tempo, problema 1943) mostrou que um eletrodo de platina platinizada funcionava este bastante comum nas primeiras versões de papéis indicadores como um eletrodo reversível de hidrogênio, se este gás fosse borbu- utilizados no início da década de 193013. O indicador é ligado lhado ao redor do eletrodo. Em 1895, O. F. Tower sugeriu a utiliza- covalentemente à fibra de celulose, ou copolimerizado com ção de uma solução concentrada de cloreto de potássio entre as duas acrilamina e metacrilato13. meias células para diminuir o potencial de junção líquida12,13,43 (de- corrente da diferença de velocidade de migração (mobilidade) entre Os métodos eletrométricos de medição de acidez até os anos os íons, em especial os íons H+ e OH-, que são mais móveis. Ele 1920 aparece entre duas soluções eletrolíticas diferentes, que estão em contato por meio de uma interface). O potencial de junção limita a Com o passar dos anos, o pH estabeleceu-se como um dos prin- exatidão da medida porque contribui, com uma parcela desconheci- cipais parâmetros de medida em vários segmentos industriais, além da, para a medida de potencial que aparece entre elas. de seu uso no meio acadêmico gerando, por isso, uma demanda Sörensen foi o primeiro a utilizar o eletrodo de calomelano cada vez maior de medidas de pH precisas, o que de certa forma, (Hg2Cl2/Hg) para determinar o pH (potencial igual a + 0,246 V à era praticamente impossível com os métodos colorimétricos, ape- 25 oC)20. Já em 1906, o biólogo M. Z. Cremer (1865-1935), utili- sar destes serem reconhecidos como sendo de utilização mais rápi- zando uma membrana de vidro, percebeu o aparecimento de um da e cômoda8,9,20,36. potencial entre duas soluções alcalinas4,5. Por fim, em 1909, Fritz A partir de cerca de 1920 os procedimentos eletrométricos Haber (1868-1934) e Z. Klemensiewicz (1874-1948) descobriram (potenciometria, condutimetria, amperometria), os viscosimétricos que o potencial na membrana de vidro era função da concentração e o emprego de eletrodos de óxidos metálicos começaram a ganhar dos íons hidrogênio4,5,44. Vol. 30, No. 1 De Svante Arrhenius ao peagâmetro digital 237 Em 1921, E. Biilmann (1873-1946) introduziu o eletrodo de quinidrona (quinona/hidroquinona)14,31, muito utilizado na época. Ele mesmo defendeu sua proposta dessa forma: “O eletrodo de hidro- gênio é tedioso de manipular e freqüentemente apresenta falhas na utilização. A platina precisa ser platinizada por eletrólise. Após isso o eletrodo precisa ser lavado e saturado com hidrogênio por eletrólise numa solução diluída de ácido sulfúrico. Além disso, o eletrodo só pode ser utilizado cerca de 20 vezes.(...) Todos esses problemas e perda de tempo e material podem ser eliminados pela utilização de um eletrodo de quinidrona, que é muito mais simples e também confiável”21. No eletrodo de quinidrona, ao invés de utilizar gás hidrogênio, um pouco de quinidrona era introduzida ao redor do eletrodo de platina (não era preciso platinizá-lo). O equilíbrio entre o hidrogê- nio e a quinidrona na solução era alcançado em curto período de tempo e a medida era constante. Apesar de seu excelente desempe- nho em meio ácido, o eletrodo de quinona/hidroquinona não funcio- Figura 1. O primeiro peagâmetro comercial (1935), exibido pelo próprio nava bem em pH acima de 8, pois era afetado por reações de con- Arnold Beckman. Cortesia de Beckman Coulter, Inc. sumo irreversíveis do reagente20,31. Apesar de todos os esforços, inclusive no que tange à adoção Isso só foi possível porque Beckman possuía um grande co- de diversos formatos, os eletrodos apresentavam muitos proble- nhecimento de engenharia elétrica (componentes eletrônicos e tu- mas, especialmente a durabilidade e a inexatidão das medidas com bos de vácuo), de modo que pôde integrar os componentes de seu o uso contínuo5,44-46. Esses problemas só foram solucionados em aparelho, fato então inédito naquela época. Seu produto permitia o 1931, depois que Duncan A. McInnes (1885-1965) e Malcolm Dole emprego do eletrodo de vidro, recém-inventado, o que significou (1903-1990) desenvolveram um vidro apropriado sensível ao íon um salto espetacular na obtenção de medidas rápidas e confiáveis hidrogênio46. Sua composição, utilizada até os dias atuais, é SiO2, da acidez11,48. 72%; Na2O, 22% e CaO, 6%. Apesar de representar um notável Beckman percebeu o grande potencial de mercado que seu pro- avanço para o estabelecimento de medidas de pH, o eletrodo de duto possuía44,47,48 e tentou oferecê-lo para várias indústrias, sem vidro também apresenta limitações6,12,13,35,43,46: sua faixa ótima de sucesso. Então resolveu criar sua própria empresa. Em 1935, fun- operação situa-se entre pH 2 e 11. Acima de 11, ocorre o chamado dou a “National Technical Laboratories”, que comercializou o pri- “erro alcalino”: a resposta não é mais linear ao pH. Abaixo de pH meiro medidor de pH, e que foi o começo da empresa que hoje é 2 (alta concentração do íon hidrogênio), superpõe-se o chamado conhecida como “Beckman Instruments”. Seu aparelho chamava- “potencial de difusão”, muito elevado devido à excepcional mobi- se “acid-o-meter”, daí os termos “acidimeter” e “acidímetro”. Por lidade iônica do H+, à força eletromotriz medida. Mesmo após cui- conta da medida de pH que realiza, o termo “peagâmetro” se im- dadosa calibração, a confiabilidade é prejudicada porque esse po- pôs mais tarde na língua portuguesa. Em 1935, uma segunda ver- tencial de difusão varia consideravelmente com a concentração são do instrumento foi lançada comercialmente, e a patente foi do íon hidrogênio em acidez muito elevada. depositada no ano seguinte. As vendas de peagâmetros nos Estados Os outros componentes de uma montagem eram: instrumento Unidos saltaram de 444 unidades, em 1936, para quase 2000 uni- de zero - tinha o objetivo de constatar a presença ou a ausência de dades, três anos depois48. corrente no sistema elétrico. Para isso, empregava-se um galvanô- Uma vantagem imediata deste aparelho era o tamanho menor metro, um eletrômetro capilar ou um microamperímetro15,16; caixa frente às montagens então em voga; isso decorria da integração de resistência variável ou reostato - regulava a milivoltagem (mi- dos componentes em um único aparelho. Ele não funcionava a ele- liamperagem) em função da variação da resistência propiciada pelo tricidade, mas a bateria (chumbo-ácido, provavelmente), o que jus- equipamento. Em geral, 1 Ohm de resistência devia corresponder à tificava o peso do aparelho em relação ao seu tamanho. Todavia, queda de 1 milivolt no sistema e, acessórios - fios, interruptores e isso permitia que fosse transportado para o local onde era necessá- comutadores. ria a medida de pH, o que era de valor especial nas áreas de geolo- Por volta de 1930, além da confiabilidade problemática das gia, agronomia, veterinária e na indústria química em geral. montagens existentes, ainda não havia consenso sobre em que uni- Apesar de ser normalmente creditado a Beckman o lançamen- dade seria expressa a medida experimental da acidez de uma solu- to do primeiro peagâmetro, deve-se registrar que em 1935 uma ção (milivolts, miliamperes, Ohms)3,20,35. outra proposta desse aparelho foi lançada pela empresa dinamar- quesa Radiometer45,49. O que a literatura indica claramente é que A INVENÇÃO DO MEDIDOR DE pH (ACIDÍMETRO OU ambas as “descobertas” tiveram como inspiração o trabalho de L. PEAGÂMETRO) W. Elder e W. H. Wright50, professores do Departamento de Quí- mica da Universidade de Illinois. Eles foram os primeiros a sugerir Em 1930 Arnold O. Beckman44,47 (1900-2004), químico e en- que as medidas de pH fossem realizadas com eletrodo de vidro e genheiro químico americano, foi contratado por uma agroindústria potenciômetro de tubo de vácuo, superando a montagem baseada para desenvolver um método robusto e confiável de testar a acidez na agregação de componentes isolados. Independente de quem ou de frutas. Beckman, então, criou uma nova solução utilizando um qual foi a empresa que “inventou” o medidor de pH, é importante tubo de vácuo amplificado integrado aos medidores e eletrodos enfatizar que foi a junção dos conceitos de química em solução que a agroindústria já empregava, dando origem ao primeiro apa- aquosa (pH, tampões), eletroquímica (eletrodo) e eletrônica (me- relho medidor de acidez. Em 1934 surgia o primeiro bem-sucedido didor) que tornou possível a concretização do aparelho. medidor de pH (Figura 1), sendo comercializado a partir do ano O advento do peagâmetro fez com que a dosagem de acidez seguinte. por indicadores corados se restringisse a procedimentos de rotina 238 Gama e Afonso Quim. Nova bem estabelecidos, à área de ensino (iniciação às técnicas de dosa- gem), ou ainda a casos onde a precisão da medida não precisa ser rigorosa13,35,42. A evolução do peagâmetro Com o passar dos anos, foram introduzidas grandes melhorias nos medidores de pH até sua forma atual, incluindo eletrodos de vidro de alta estabilidade, controle por microprocessadores e visores digitais. As Figuras 2 a 4 ilustram a evolução técnica do instrumento, visando dar a ele versatilidade e aplicabilidade crescentes. O primeiro passo foi a eletrificação do aparelho, em contraste Figura 3. Primeiro modelo de peagâmetro construído no Brasil, 1964: (a) com as primeiras versões (que funcionavam à bateria)47. Mas esses seletor de temperatura; (b) seletor de escala; (c) seletor de pH de tampão modelos ainda eram muito limitados. No instrumento da década (calibração); (d) ajuste de zero (grosso/fino). O visor mostra escalas de pH e de 1950 (Figura 2), existe apenas um ajuste de escala pelo parafu- de milivoltagem. Dimensões: 30 cm de comprimento, 28 cm de largura e 20 so preto, realizado ao se colocar uma solução de pH rigorosamente cm de altura; m = 3,5 kg. Acervo do Museu da Química Professor Athos da 7,00; o desvio na escala era compensado pelo ajuste da posição do Silveira Ramos ponteiro por meio do parafuso. Já os modelos fabricados a partir do início dos anos 1960 apresentam uma variedade de recursos muito maior, com destaque para a introdução do circuito interno de compensação de temperatura, ponto que responde pela versati- lidade do instrumento. A forma de apresentação do resultado pas- sou a ser feita tanto em valores de pH como em milivoltagem; o mostrador evoluiu do modelo analógico (Figura 3) para o digital (Figura 4). O ajuste do zero passou a ter dois controles: ajuste grosso e fino. Os modelos atuais possuem menos de 50% do tamanho dos instrumentos da década de 1980. Além disso, uma originalidade é Figura 4. Peagâmetro digital, origem nacional, 1982, um dos primeiros a ausência de botões para controle e ajuste dos parâmetros, mas modelos comerciais deste tipo: (a) ajuste de zero (grosso/fino); (b) ajuste de comandos que são acionadas sob pressão. ganho; (c) seletor de temperatura; (d) seletores de escala. Dimensões: 36 cm de comprimento, 30 cm de largura e 20 cm de largura; m = 2,0 kg Na faixa de pH 2-11, a faixa ótima de operação, a dependência do potencial do eletrodo de vidro com o pH pode ser expressa se- gundo a Equação 7 Evidro = Evidroo - 0,059 pH (7) onde Evidro0 é o potencial padrão do eletrodo de vidro. Esse valor varia para cada instrumento, dependendo também da conservação e do uso do eletrodo. CONCLUSÕES A necessidade de se determinar a acidez de um meio foi reco- nhecida muito antes de se estabelecerem metodologias experimen- tais confiáveis e reprodutíveis de dosagem. Desse modo, pode-se Figura 2. Peagâmetro de origem norte-americana, década de 1950. Seu visor traçar a evolução da inserção da determinação da acidez na rotina apresenta duas escalas de pH alternadas: 1 a 13 (superior) e 2 a 14 (inferior). do trabalho em Química e outras ciências correlatas, em vários Dimensões: 24 cm de comprimento, 20 cm de largura e 16 cm de altura; m = estágios distintos: estabelecimento de fatos experimentais e dosa- 1,6 kg. Acervo do Museu da Química Prof. Athos da Silveira Ramos gens colorimétricas em base empírica; proposição de teorias que explicassem os fenômenos observados e de concepções que levari- O princípio dos peagâmetros atuais é a determinação da força am ao estabelecimento posterior do conceito de pH; adoção de di- eletromotriz (f.e.m.) de uma célula eletroquímica constituída por versos modos de expressar a concentração do íon hidrogênio, par- uma solução cujo pH se deseja medir e dois eletrodos. Um deles é ticularmente aquela proposta por H. Friedenthal; a proposição da o eletrodo de referência, cujo potencial independe do pH da solu- definição de pH, por Sörensen e, o desenvolvimento de métodos ção. O outro é o eletrodo indicador, o qual adquire um potencial eletrométricos, culminando com a invenção do peagâmetro, com o dependente do pH da solução sob exame. O eletrodo de vidro é o qual eram superadas as limitações dos métodos colorimétricos e as modelo mais usado para as medidas de pH. montagens complicadas e frágeis dos sistemas elétricos de então. A medição da f.e.m. de uma célula pode ser expressa por: O conceito de pH adveio de uma situação muito própria dos pesquisadores que lidam com sistemas biológicos, mas esbarrou F.e.m. = [Evidro - Ereferência] (6) no ceticismo e no não reconhecimento imediato pelos químicos Vol. 30, No. 1 De Svante Arrhenius ao peagâmetro digital 239 como um parâmetro de real utilidade para trabalhos de rotina. Essa 15. Kopaczewski, W.; Les Ions D’Hydrogene, Gauthier-Villars et Cie: Paris, situação mudou quando se reconheceu seu valor em procedimentos 1926. 16. Clark, W. M.; The Determination of Hydrogen Ions, van Darmstad: laboratoriais e industriais. Baltimore, 1926. A invenção do peagâmetro é um claro exemplo de instrumento 17. Pontos de Chimica - Segundo os Programmas do Collegio Pedro II (ou concebido para responder às deficiências e necessidades da ciên- Suplemento a Chimica de Basin) - Coleção FTD, Livraria Paulo de cia em geral, no afã de buscar medidas confiáveis de um parâmetro Azevedo e Cia: Rio de Janeiro, 1928, cap XV. 18. Pinto, P. A.; Noções Rudimentares de Química Analítica e Quantitativa, de grande aplicabilidade prática. Esse invento só foi possível ao se Livraria Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1932. conjugar conhecimentos de diversas áreas que possibilitaram o gran- 19. Blasdale, W. C.; The Fundamentals of Quantitative Analysis, van Nostrand: de salto que o viabilizou: a integração dos componentes, antes Nova Iorque, 1928. empregados isoladamente, em um único aparelho. Essa evolução 20. Britton, H. T.; Hydrogen Ions: The Determination and Importance in Pure prosseguiu ao longo do século XX, com a adoção de novos recur- and Industrial Chemistry, van Nostrand: Nova Iorque, 1932. 21. Biilmann, E.; Ann. Chim. Phys. 1921, 15, 109. sos oferecidos pelo peagâmetro e a digitalização dos componentes 22. Boll, M.; Leroide, J.; Précis d´Analyse Chimique, Dunod: Paris, 1927. (fenômeno observado na instrumentação em geral), o que levou à 23. Crane Jr., F. E.; J. Chem. Educ. 1961, 38, 365. redução do tamanho do aparelho. 24. Blackaddor, T.; J. Am. Leather Chem. Assoc. 1924, 19, 650. 25. Guillaumin, C. O.; Bull. Soc. Chim. Biol. 1926, 8, 160. 26. Wherry, E. T.; Bull Wagner Free Inst. Sci. 1927, 2, 59. AGRADECIMENTOS 27. Giribaldo, F.; Biochem. Z. 1925, 163, 8. 28. Giribaldo, F.; F. Bull. Soc. Chim. Biol. 1925, 7, 652. Aos Prof. C. A. L. Filgueiras, L. M. B. Gomes e N. P. dos 29. Clark, W. M.; J. Wash. Acad. Sci. 1921, 11, 199. Santos (IQ/UFRJ) pela análise crítica deste trabalho e pelas suges- 30. Kolthoff, I. M.; Biochem. Z. 1926, 169, 490. tões oferecidas. 31. Chakmakjiam, A. H.; J. Chem. Educ. 1929, 6, 1659. 32. Chagas, A. P.; Quim. Nova 2000, 23, 126. 33. Kintner, R. 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