Assobiando à Vontade PDF
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Summary
A short story about a child on a bus who notices a man whistling. The child is fascinated by the man, whilst a woman on the bus is annoyed by the noise. The story has themes of social commentary and human behavior.
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Assobiando à vontade De repente, uma criança que ia sentada junto duma janela e já se sentia enfastiada de olhar para a rua interessou-se pelo homem. Achava-lhe tanta graça, com o seu chapéu coçado, o seu sobretudo castanho, o seu assobio... Era uma criança muito pálida, de cabelos louros e encarac...
Assobiando à vontade De repente, uma criança que ia sentada junto duma janela e já se sentia enfastiada de olhar para a rua interessou-se pelo homem. Achava-lhe tanta graça, com o seu chapéu coçado, o seu sobretudo castanho, o seu assobio... Era uma criança muito pálida, de cabelos louros e encaracolados, vestida de azul. Interessou-se tanto pelo homem que começou a bater palmas. Mas uma senhora nova e bonita, que ia ao lado dela, segurou-lhe as mãos com gentileza e afastou-lhas. Devia ir calada e quietinha. Era muito feio fazer barulho no elétrico. Uma menina bonita não fazia barulho. «Que disse eu à minha filha?» No entanto, a senhora nova e bonita não antipatizava com o homem. Olhava os embrulhos de papel vistoso que trazia nos joelhos e pensava: se não pudesse mais e começasse também a assobiar? No fundo, admirava a sem- cerimónia do homem do chapéu coçado. Não seria adorável ela própria, uma senhora casada e mãe duma garota de cinco anos, começar a assobiar num elétrico se lhe apetecesse? Quando era da idade da filha, a senhora bonita ia muitas vezes ao campo vestida com coisas velhas para poder atirar-se para a relva à vontade. Tinha uma voz muito suave e muito fresca, gostava de fazer precisamente aquilo que uma menina bonita não deve fazer. Os amigos do pai pegavam- lhe ao colo, atiravam-na ao ar. E ela ria, ria, ria até ficar sufocada. A mãe dizia: «Pronto, pronto, vamos a ter juízo, não se ri assim dessa maneira.» E, quanto mais lho diziam, mais lhe apetecia rir, rir, rir. De vez em quando, um passageiro saía. A plataforma do carro ia-se esvaziando. E, pouco a pouco, os que ficavam foram-se habituando àquele estúpido assobio. Os cavalheiros tinham esquecido os jornais. Algumas senhoras sorriam. Já se vira um disparate assim? Principalmente a senhora opulenta não podia mais. Apertava os lábios. Sentada num banco de lado, encontrava os olhos de toda a gente. Era irresistível. E a senhora bonita pensava em alivre e nos tempos da infância. Na escola aprendera a assobiar e a lançar o pião. Havia vozes que tinham ficado dentro dela: «Uma menina a assobiar, Nini?» Em dada altura, o homem, sem deixar de assobiar, levantou-se e puxou o cordão da campainha. Era um homenzinho insignificante, ainda novo e já de cabelos grisalhos, chapéu coçado, sobretudo castanho muito lustroso nas bandas. Mas havia nele uma indiferença soberana pelo elétrico inteiro. Toda a gente o olhava. Com desprezo? Com ironia? Com inveja? Abriu a porta, fechou-a e saltou com o carro ainda em andamento.