Summary

This book, "História do Brasil", by Boris Fausto, provides a comprehensive overview of Brazilian history from its colonial period to the contemporary era. It emphasizes the interplay of economic, political-social, and ideological elements in shaping Brazilian society. The author aims to make this history accessible to a wide audience, while simultaneously acknowledging the significance of this historical exploration for civic education.

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Ied“sP Copyright © 1994 by Boris Fausto 1* edigio 1994 8* edigio 2000 2 edigio 1995 9 edigio 2001 3" cdigdo 1995 10° cdigio 2002 4 edigio 1996 11* edigio 2003 S edigio 1997 12* edigio 2004 6* edigio 1998...

Ied“sP Copyright © 1994 by Boris Fausto 1* edigio 1994 8* edigio 2000 2 edigio 1995 9 edigio 2001 3" cdigdo 1995 10° cdigio 2002 4 edigio 1996 11* edigio 2003 S edigio 1997 12* edigio 2004 6* edigio 1998 12* edigiio, 1* reimpressio 2006 7* edigio 1999. Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagio (CIP) (Cémara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Fausto, Boris, Histéria do Brasil / Boris Fausto. — 12. ed., 1. reimpr. — Sdo Paulo: Editora da Universidade de Sào Paulo, 2006. - (Diddtica, 1) Bibliografia 1SBN 85-314-0240-9 1. Brasil — Histéria 2. Brasil - Histéria (Ensino Médio) 1. Titulo. IL Série. 943180 CDD 981.007 fndices para catdlogo sistemdtico: 1. Brasil: Histéria: Ensino Médio 981.007 Dircitos reservados à Edusp — Editora da Universidade de Sào Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374 6° andar— Ed. da Antiga Reitoria — Cidade Universitiria 05508-900 — Sào Paulo — SP - Brasil Divisio Comercial: tel. (Oxx11) 3091-4008 / 3091-4150 SAC (0xx11) 3091-2911 — Fax (Oxx1 1) 3091-4151 www.usp.br/edusp — e-mail: [email protected] Printed in Brazil 2006 Foi feitoo depdsito legal SUMARIO Introduglio........ As Causas da Expansiio Maritima e a Chegada dos Portugueses aoBrasil....... LI O gostopelaaventura.......... 12 O desenvolvimento das técnicas de navegagio. A nova mentalidade.......... Lo 1.3. A atragio pelo ouro e pelas especiarias 1.4. A ocupagiio da costa africana e as feitorias.. 15. A ocupagio das ilhas do Atlantico 1.6. AchegadaaoBrasil....................... O Brasil Colonial (1500-1822) 2.1. Osindios................... 2.2. Os perfodos do Brasil colonial 2.3. Tentativas iniciais de exploragio 2.4. Inicio de colonizagào — as capitanias hereditdrias......... 2.5 O governo geral HISTORIA DO BRASIL 2.6. A colonizagdo se consolida................ 47 2.7. O trabalho compulsério 48 2.8. A escravidio — fndios e negros......... 49 2.9. O mercantilismo................. 54 2.10. O “exclusivo” cojonial 55 2.11. A grande propriedade agroexportadora e a acumulagio urbana.. 58 2.12. Estadoelgreja......................... 59 2.13. O Estado absolutista e o “bem comum”™.............. 62 2.14. As institui¢des da administragdo colonial.... 63 2.15. As divisdes sociais 65 2.16. Estadoe Sociedade......................., 74 2.17. As primeiras atividades econdmicas 76 2.18. As invasdes holandesas 84 2.19. AcolonizagiodoNorte................. 90 2.20. A colonizagio do Sudeste e do Centro-Sul 91 221 Quro e diamantes 98 2.22. A crise do Antigo Regime 106 2.23. A crise do sistema colonial 108 2.24. Os movimentos de rebeldia 113 2.25. A vinda da familia real para o Brasil............... 120 2.26. Alndependéncia a re a e E E FI 129 2.27. O Brasil no fim do perfodo colonial...... 135 O Primeiro Reinado (1822-1831) 141 3.1. A consolidagdo da Independéncia 143 32 Uma transi¢do sem abalos.................... 146 3.3 A Constituinte 3.4. A Constituigdo de 1824......... 3.5. A Confederagao do Equador 3.6. A abdicagiode Dom Pedrol................... 154 A Regéncia (1831-1840)..................... 4.1. As reformas institucionais................ 4.2. As revoltas provinciais........ 4.3. A politica no perfodo regencial SUMARIO 9 O Segundo Reinado (1840-1889)........ 173......... 5: 1 O “Regresso”.. v v v v e e e 175 52 A luta contra o Império centralizado.......... 176 5.3. O acordo das elites e o “parlamentarismo”............ 179 5.4. Os partidos: semelhangas e diferengas.............. 180 5.5. A preservagio da unidade territorial....... 183 5.6. A estrutura socioecondmica e a escraviddo........... 186 1. A GuerradoParaguai........ 208 5.8. A crise do Segundo Reinado.......... 217 5.9. Balango econdmico e populacional........... 236 A Primeira Republica (1889-1930)................ 243 6.1. A primeira Constituigio republicana............... 249 6.2. O Encilhamento......... 252 6.3. Deodoro na presidéncia 252 6.4. Floriano Peixoto......... 254 6.5. A Revolugio Federalista 255 6.6. Prudente de Morais........ 256 6.7. Campos Sales...... 258 6.8 Caracteristicas politicas da Primeira Repiblica..... Wi 200 6.9. O Estado e a burguesiadocafé.................. 273 6.10. Principais mudangas socioecondmicas — 1890 a 1930....... 275 6.11. Os movimentos sociais........o 295 6.12. O processo politiconos anos 20....... 305 6.13. ARevolugiode 1930.......... 319 O Estado Getulista (1930-1945)............... 329 7.1.. 332 A colaboragdio entre o Estado e algreja........... 7.2. A centralizagdo.......... 7.3. A politica do café........ 7.4. A politica trabalhista EES A educagio 7.6. O processo politico (1930-1934)................. 340 7.7. A gestagiio do Estado Novo 7.8. O Estado Novo........... INSTORIA DO BRASIL 7.9. As mudangas ocorridas no Brasil entre 1920 e 1940....... 389 O Perfodo Democritico (1945-1964).... 395 8.1. A eleigdo de Dutra 8.2, A Constituigdo dg 1946 399 8.3. OgovernoDutra............... 401 8.4. O novo governo Vargas 406 8.5. A eleigào de Juscelino Kubitschek............ 419 8.6. O governo JK 422 8.7. A sucessào presidencial 436 8.8. O governo Jànio Quadros...... 437 8.9. A sucessào de Jànio 442 8.10. 443 O Regime Militar (1964-1985).... 463 9.1. O Ato Institucional n° | e a repressio. 465 9.2 O governo CasteloBranco.................... 468 9.3. O governo Costae Silva.... 475 9.4, A junta militar 481 9.5. O governo Médici..... oo 482 9.6. O governo Geisel 488 9.7. O governo Figueiredo 500 9.8. Caracterizagio Geral do Regime Militar............. 512 9.9. Morte de Tancredo Neves.................... 514 10. Completa-se a Transi¢do: o Governo Sarney (1985-1989).... 517 10.1 Politica econdmica.. 520 107, O Plano Cruzado. 522 10.3. As eleigòes de 1986.. 524 10.4. A Assembléia Nacional Constituinte............... 524 10.5. A transigfio avaliada.. 526 1. Principais Mudangas Ocorridas no Brasil entre 1950 e 1980... 529 1.1, Populagio 11.2. Economia SUMARIO ! 11.3. Indicadores Sociais............ 543 12. A Nova Ordem Mundial e o Brasil....... rr a SSE Cronologia Histérica................. 557 Glossdrio Biogrdfico............. 597 Referéncias Bibliograficas....................... 641 {ndice Onomdistico..« o v v v 649 Fonte Ieonogrifica 659 INTRODUGAO Esta Histéria do Brasil se dirige aos estudantes do 22 grau e das uni- versidades e tem a esperanga de atingir também o piiblico letrado em geral. A ambicdo de abrangéncia parte do principio de que, sem ignorar a complexidade do processo histérico, a Historia é uma disciplina acessivel a pessoas com diferentes graus de conhecimento. Mais do que isso, é uma disciplina vital para a formagdo da cidadania. Nio chega a ser cidaddo quem ndo consegue se orientar no mundo em que vive, a partir do conhecimento da vivéncia das geragdes passadas. Qualquer estudo histérico, mesmo uma monografia sobre um assunto bastante delimitado, pressupde um recorte do passado, feito pelo historiador, a partir de suas concepgdes e da interpretagdo de dados que conseguiu reunir. A prépria selegào de dados tem muito a ver com as concepgdes do pesquisador. Esse pressuposto revela-se por inteiro quando se trata de dar conta de uma seqiiéncia histérica de quase quinhentos anos, em algumas centenas de pé- ginas. Por isso mesmo, o que o leitor tem em mao nao é a Histdria do Brasil — tarefa pretensiosa e alids impossivel — mas uma Histéria do Brasil, narrada e interpretada sinteticamente, na éptica de quem a escreveu 14 HISTORIA DO BRASIL O recorte do passado, seja ele qual for, obedece a um critério de rele- vància e implica o abandono ou o tratamento superficial de muitos processos e episédios. Como todo historiador, fago também um recorte, deixando de lado temas que por si sés mereceriam monografias. Entre tentar “incluir tudo”, com o risco da incongruéncia, e limitar-me a estabelecer algumas conexo de sentido bdsicas, preferi a segunda opgào. Com esse objetivo, procurei integrar os aspectos econémicos, politico-sociais e, em certa medida, ideo- 16gicos da formagio social brasileira, deixando de lado as manifestagdes da cultura, tomada a expressdo em sentido estrito. Essa exclusdo nào se baseou em um critério de releviincia, mas de outra natureza que é necessirio esclare- cer. Parti da constatagio de que o inter-relacionamento entre a estrutura socio- econdmica e as manifestagdes da cultura é por si s6 um problema especifico, que demanda seguir outros e dificeis caminhos. Como nào poderia percorré- los, preferi deixar de lado os fatos da cultura, em vez de simplesmente enu- merd-los, em um esfor¢o de mera catalogacdo. Por exemplo: ao falar das Minas Gerais dos tltimos decénios do século XVIII, deixei de lado o arca- dismo literdrio, a arquitetura e a musica barroca; ao lidar com os anos 20 deste século, deliberadamente, nio cogitei do movimento modernista. Cabe ainda lembrar uma razào adicional para esse procedimento: um outro volume da colcgdo versard sobrc a litcratura. O leitor poderd perceber, no correr da leitura, os pressupostos deste trabalho, mas hd alguns que convém explicitar. Rejeitei duas tendéncias opos- tas, na exposi¢io do processo historico brasileiro. De um lado, aquela que vé a Histéria do Brasil como uma evolugdo, caracterizada pelo progresso per- manente — perspectiva simplista que os anos mais recentes se encarregaram de desmentir. De outro lado, aquela que acentua na Histéria do Brasil os tragos de imobilismo, como, por exempio, o clientelismo, a corrupgio, a imposigdo do Estado sobre a sociedade, tanto na Col6nia como nos dias de hoje. A iltima tendéncia estd geralmente associada ao pensamento conservador. Por meio dela, é fécil introduzir a idéia da inutilidade dos esforgos de mudanga, po‘is o Brasil é e serd sempre o mesmo; conviria assim adaptar-se à realidade, tecida pelos males citados e onde se inclui, ndo por acaso, a imensa desigualdade social. Na minha exposigio, estd implicita uma posigdo oposta a esse tipo de pensamento. A cada passo, na passagem do Brasil Col6nia para o Brasil INTRODUCAO 15 independente, na passagem da Monarquia para a Repiblica etc. procurei mostrar que, em meio a continuidades e acomodagdes, o pais muda, conforme 0 caso no plano socioeconémico ou no plano politico e, às vezes, em ambos. No equilibrio entre as virias partes do livro, dei maior peso à fase que se inicia em fins do século XIX e vai até os dias de hoje. Deliberadamente, à medida que me aproximei da época atual, tratei de abrir maior espago a narrativa, enfatizando os acontecimentos politicos. Essa opgào nào indica que considere menos significativo o periodo colonial ou a época de construgio do Brasil independente. Pelo contririo, ai devem ser buscadas as “raizes do Brasil”, na feliz expressio de Sérgio Buarque de Holanda. Se dei maior énfase ao periodo mais préximo de nossos dias, foi porque ele se encontra em parte presente na nossa memdria e porque incide diretamente nas opgdes da atua- lidade. Ndo hi como negar, por exemplo, que estamos mais interessados na significagdo do regime militar do que nas capitanias hereditdrias. Tratei de tornar explicita a controvérsia entre historiadores sobre ques- tdes relevantes da histéria brasileira, por duas razées. Em primeiro lugar, porque esta é uma boa maneira de se demonstrar a inexisténcia de uma verdade histérica imutével, que o historiador vai descobrindo e sobre a qual pòe seu selo. O passado histérico é um dado objetivo e ndo pura fantasia, criada por quem escreve. Mas essa objetividade, composta de relagSes materiais, de produtos da imaginagio social e da cultura, passa pelo trabalho de construgio do historiador. Como disse antes, ele seleciona fatos, processos sociais etc., e os interpreta, de acordo com suas concepgdes e as informagdes obtidas. Por isso, a0 mesmo tempo que nào é arbitrdria, a Histéria — tanto ou mais do que outras disciplinas — se encontra em constante elaboragdo. Em segundo lugar, procurei destacar as controvérsias por uma razio mais simples — a de colocar o leitor a par do debate mais recente em torno de questdes centrais. Em alguns casos, expus apenas as opinides em confronto; em outros, achei necessério tomar partido, o que niio significa que o leitor deva concordar com o meu ponto de vista. Considerando-se os fins deste livro, ndo pude incluir notas contendo observagdes marginais e referéncias às obras utilizadas. Se isso tornou o livro mais leve, criou a0 mesmo tempo um problema para o autor. Muito do texto se deve a trabalhos de outros autores que incorporei € selecionei para os meus fins. Como ndo citd-los. sem fazer injusticas e correr o risco de ser acusado 16 HISTORIA DO BRASIL de plagio? Procurei resolver o problema através das referéncias bibliogréficas finais. As referéncias nào abrangem todas as fontes consultadas e nào contém necessariamente a bibliografia essencial. Elas abrangem apenas aqueles textos diretamente utilizados na redagiao. Obviamente, por utilizd-los, considero-os importantes. Por tiltimo, desejo agradecer a todas as pessoas que me ajudaram na elaboragdio do livro. Fernando Antdnio Novais e Luis Felipe de Alencastro leram, respectivamente, os capitulos sobre a Colònia e o Império, fazendo virias sugestoes, incorporadas em grande medida no texto final. Pedro Paulo Poppovic leu os originais, fez observagoes e colaborou bastante para o livro. Lourdes Sola, Carlos e Sérgio Fausto, Amaury G. Bier, Albertina de Oliveira Costa, entre outros, fizeram sugestdes sobre partes do texto ou esclareceram duvidas sobre questdes especificas. Devo agradecer também a institui¢oes e pessoas que, com sua gentileza e conhecimento, possibilitaram o uso das imagens constantes do livro. Com o risco de incorrer em omissdes, lembro Mònica Kornis, do Setor de Documentagdo do CPDOC da FGV (RJ); José Enio Casalecchi, Diretor do Arquivo do Estado de Sdo Paulo; Cliudia Vada Souza Ferreira, coordenadora do acervo da Fundagio Maria Luisa-Oscar Americano (SP); Ànge]u Araujo, Diretora do Arquivo Edgard Leuenroth (UNICAMP); Miyoko Makino, historiégrafa do Museu Pauli sta. Winia Tavares da Silva digitou, com muito cuidado, os originais. Como se costuma dizer, o mérito da ajuda é deles; as eventuais falhas do produto final sio minhas. AS CAUSAS DA EXPANSAO MARITIMA E A CHEGADA DOS PORTUGUESES AO BRASIL Desde cedo, aprendemos em casa ou na escola que o Brasil foi desco- berto por Pedro Alvares Cabral em abril de 1500. Esse fato constitui um dos episddios de expansdo maritima portuguesa, iniciada em principios do século XV. Para entendé-la, devemos comegar pelas transformagdes ocorridas na Europa Ocidental. a partir de uma data situada em torno de 1150. Foi nessa época que a Europa, nascida das rufnas do Império Romano e da presenga dos chamados povos birbaros, comegou pouco a pouco a se modificar. pela ex- pansiio da agricultura e do comércio. Que Europa era essa? Uma regiào esmagadoramente rural, onde as cidades haviam regredido e as trocas econdmicas diminuido muito. embora sem desaparecerem comple- tamente. Ao mesmo tempo, o poder politico se fragmentara ¢ se descen- tralizara, nào obstante o mito do Império ainda proporcionar certa coeréncia cultural e mesmo legal a toda a drea. A expansào agricola foi possivel gragas à abertura de novas regides cultivadas, com a derrubada de florestas, a secagem de pantanos e o incentivo da expansdo comercial. Esta resultou de virjos fatores. Dentre eles, a crescente existéncia de produtos agricolas niio consumidos nos grandes dominios rurais 20 HISTORIA DO BRASIL que constitufam excedentes econdmicos passiveis de troca. Outros fatores foram a especializa¢fio de fungdes, demandando a compra de bens nào pro- duzidos em cada dominio rural, e a busca de produtos destinados ao consumo de luxo da aristocracia. As cidades comegaram a crescer e a se transformar em ilhas de relativa liberdade, reunindo artesios, comerciantes ¢ mesmo antigos servos que tentavam encontrar af uma alternativa de vida, fugindo dos campos. A partir do século XIII, foram-se definindo por uma série de batalhas algumas fronteiras da Europa que, no caso da Franga, da Inglaterra e da Espanha, permanecem aproximadamente as mesmas até hoje. Dentro das fronteiras foi nascendo o Estado como uma organizagio politica centralizada. cuja figura dominante — o principe — e a burocracia em que se apoiava tomaram contornos proprios que nào se confundiam com os grupos sociais mesmo os mais privilegiados, como a nobreza. Esse processo durou séculos e alcangou seu ponto decisivo entre 1450 e 1550. Também ocorreu uma expansio geogréfica da Europa cristd, antecessora em outras condigdes da expansio maritima iniciada no século XV, pela recon- quista de territérios ou a ocupagdo de novos espagos. A Peninsula Ibérica foi sendo retomada dos mouros; o Mediterraneo deixou de ser um “lago drabe”, onde os europeus nao conseguiam sequer colocar um barquinho; os cruzados ocuparam Chipre, a Palestina, a Siria, Creta e as ilhas do Mar Egeu; no noroeste da Europa, houve expansio inglesa na dire¢do do Pais de Gales. da Escocia e da Irlanda; no leste europeu, alemàes e escandinavos conquistaram as terras do Bdltico e as habitadas pelos eslavos. Mas todo esse avanco nào foi, como se poderia pensar, um impulso irresistivel, sem marchas e contramarchas, rumo aos tempos modernos. Pelo contrério, perdeu o impeto e uma crise profunda se instalou, af pelo inicio do século XIV. Nessa época, uma exploragio mais intensa dos camponeses pro- vocou virias rebelides ao longo dos anos, em lugares tào diversos como o norte da Itdlia na virada do século XIV, a Dinamarca (1340) e a Franga (1358). A nobreza dividiu-se internamente em uma série de guerras. Houve declinio da populagdo, escassez de alimentos, epidemias, das quais a mais famosa foi a Peste Negra, que grassou entre 1347 e 1351, Grandes extensdes de terra ocupadas por camponeses foram abandonadas e aldeias inteiras desaparece- ram. Esse processo ocorreu, tanto em conseqiiéncia da crise como do reagru- AS CAUSAS DA EXPANSAO MARITIMA E A CHEGADA DOS PORTUGUESES AO BRASIL 2l pamento de terras por parte de grandes senhores que visaram à sua exploragio comercial, em novos moldes. Houve também um retrocesso da expansio territorial: os mouros permaneceram em Granada, os cruzados foram expulsos do Oriente Médio, os mongdis invadiram a planicie russa etc. As discusses mais significativas sobre as causas da crise tém salientado o impacto das epidemias e as caracteristicas do meio fisico, como as variagdes do clima e as condi¢des do solo, mas integram esses fatores em uma expli- cagio maior. H4 historiadores que sustentam que, dadas as limitacdes inerentes i organizagdo social feudal, ndo havia suficiente reinvestimento de lucros na agricultura de modo a aumentar significativamente a produtividade; com isso, os bens disponiveis se restringiram, levando às guerras entre senhores e camponeses e, em uma seqiléncia de fatos, à estagnacio. Essa explicagdo. na aparéncia distante do nosso tema, é importante porque, segundo ela, a tnica saida para se tirar a Europa Ocidental da crise seria expandir novamente a base geogrifica e de populagào a ser explorada. Mas isso nào quer dizer que fatalmente, em meio crise, um pequeno pafs do sudoeste da Europa deveria langar-se no que viria a ser uma grande aventura maritima. Por que Portugal iniciou pioneiramente a expansao, no comego do século XV, quase cem anos antes que Colombo, enviado pelos espanhdis, chegasse as terras da América? A resposta nào é simples, pois uma série de fatores devem ser consi- derados. O proprio peso atribuido a cada um deles pelos historiadores tem variado, seja pela aquisigào de novos conhecimentos dos fatos da época, seja pela continua mudanga de concepgdes sobre o que é mais ou menos importante para se explicar o processo histérico. Por exemplo, sem ignorar o papel do Infante Dom Henrique (1394-1460) e de sua lenddria Escola de Sagres no incentivo à expansdo, hoje nào se acredita que esses fatos tenham sido tào relevantes quanto se pensava até alguns anos atrés. Para comegar, Portugal se afirmava no conjunto da Europa como um pais autonomo, com tendéncia a voltar-se para fora. Os portugueses jd tinham experiéncia,; acumulada ao longo dos séculos XIII e XIV, no comércio de longa distancia, embora ndo se comparassem ainda a venezianos e genoveses, a quem irfam ultrapassar, Alids, antes de os portugueses assumirem o controle de seu comércio internacional, os genoveses investiram na sua expansdo, 2 HISTORIA DO BRASIL transformando Lisboa em um grande centro mercantil sob sua hegemonia. A experiéncia comercial foi facilitada também pelo envolvimento econòmico de Portugal com o mundo islimico do Mediterrineo, onde o avango das trocas pode ser medido pela crescente utilizagio da moeda como meio de pagamento. Sem diivida, a atragdo para o mar foi incentivada pela posigào geogrifica do pais, proximo à ilhas do Atlantico e à costa da Africa. Dada a tecnologia da época, era importante contar com correntes maritimas favordveis. e elas come- ¢avam exatamente nos portos portugueses ou nos situados no sudoeste da Espanha. Mas hd outros fatores da histéria politica portuguesa tào ou mais impor- tantes do que os jd citados. Portugal ndo escapou a crise geral do ocidente da Europa. Entretanto, enfrentou-a em condigdes politicas melhores do que a de outros reinos. Durante todo o século XV, Portugal foi um reino unificado e menos sujeito a convulsoes e disputas, contrastando com a Franga, a In- glaterra, a Espanha e a Itdlia, todas envolvidas em guerras e complicagdes dindsticas. A monarquia portuguesa consolidou-se através de uma histéria que teve um dos seus pontos mais significativos na revolugio de 1383-1385. A partir de uma disputa em torno da sucessiio ao trono portugués, a burguesia comercial de Lisboa se revoltou. Seguiu-se uma grande sublevagao popular, a “revolta do povo mitido”, no dizer do cronista Fernào Lopes. A revolugio era semelhante a outros acontecimentos que agitaram o ocidente europeu na mesma época, mas teve um desfecho diferente das revoltas camponesas esma- gadas em outros paises pelos grandes senhores. O problema da sucessio dindstica confundiu-se com uma guerra de independéncia, quando o rei de Castela, apoiado pela grande nobreza lusa, entrou em Portugal para assumir a regéncia do trono. No confronto, firmaram-se ao mesmo tempo a indepen- déncia portuguesa e a ascensiio ao poder da figura central da revolu¢ao, Dom Joào, conhecido como Mestre de Avis, filho bastardo do Rei Pedro I. Embora alguns historiadores considerem a revolugào de 1383 uma revo- lugiio burguesa, o fato importante estd em que ela reforgou e centralizou o poder mondrquico. a partir da politica posta em prdtica pelo Mestre de Avis. Em torno dele, foram se reagrupando os vdrios setores sociais influentes da sociedade portuguesa: a nobreza, os comerciantes, a burocracia nascente. Esse é um ponto fundamental na discussio sobre as razdes da expansio portuguesa. Isso porque, nas condigdes da época, era o Estado, ou mais propriamente a AS CAUSAS DA EXPANSAO MARITIMA E A CHEGADA DOS PORTUGUESES AO BRASIL 28 Coroa, quem podia se transformar em um grande empreendedor, se alcangasse as condicdes de forga e estabilidade para tanto. Por tltimo, lembremos que, no inicio do século XV, a expansio corres- pondia aos interesses diversos das classes, grupos sociais e institui¢des que compunham a sociedade portuguesa. Para os comerciantes era a perspectiva de um bom negécio; para o rei era a oportunidade de criar novas fontes de receita em uma época em que os rendimentos da Coroa tinham diminuido muito, além de ser uma boa forma de ocupar os nobres e motivo de prestigio; para os nobres e os membros da Igreja, servir ao rei ou servir a Deus cristia- nizando “povos bérbaros” resultava em recompensas ¢ em cargos cada vez mais dificeis de conseguir, nos estreitos quadros da Metrépole; para o povo, langar-se ao mar significava sobretudo emigrar, tentar uma vida melhor, fugir de um sistema de opressdes. Dessa convergéncia de interesses s6 ficavam de fora os empresdrios agricolas, para quem a saida de bragos do pais provoca- va o encarecimento da mio-de-obra. Daf a expansio ter-se convertido em uma espécie de grande projeto nacional, ao qual todos, ou quase todos, aderiram e quc atravessou os séculos. 1.1. O GOSTO PELA AVENTURA Pela mengdo dos grupos interessados, podemos perceber que os impulsos para a aventura maritima nào eram apenas comerciais. Niio é possivel tentar en- tendé-la com os olhos de hoje, e vale a pena, por isso, pensar um pouco no sen- tido da palavra aventura. Hà cinco séculos, estdvamos muito distantes de um mundo inteiramente conhecido, fotografado por satélites, oferecido ao desfrute por pacotes de turismo. Havia continentes mal ou inteiramente desconhecidos, oceanos inteiros ainda nào atravessados. As chamadas regides ignotas concen- travam a imaginagio dos povos europeus, que af vislumbravam, conforme o caso, reinos fantdsticos, habitantes monstruosos, a sede do paraiso terrestre. Por exemplo, Colombo pensava que, mais para o interior da terra por ele descoberta, encontraria homens de um s6 olho e outros com focinho de ca- chorro, Ele dizia ter visto trés sereias pularem para fora do mar, decepcio- nando-se com seu rosto: ndo eram tdo belas quanto imaginara, Em uma de suas cartas, referia-se às pessoas que, na diregào do poente, nasciam com rabo. 24 " HISTORIA DO BRASIL ALo 1. Conquista e Colonizagdo na América, Theodore de Bry, gravurista belga do século XVI que se dedi- cou principalmente a ilustragdes de viagens Em 1487, quando deixaram Portugal encarregados de descobrir o caminho terrestre para as indias, Afonso de Paiva e Pero da Covilhi levavam instrugdes de Dom Joio 11 para localizar o reino do Preste Jodo. A lenda do Preste Joio. descendente dos Reis Magos e inimigo ferrenho dos mugulmanos. fazia parte do imagindrio europeu desde pelo menos meados do século XII. Ela se cons- truiu a partir de um dado real — a existéncia da Etiépia, no leste da Africa, onde vivia uma populagiio negra que adotara um ramo do cristianismo. Niio devemos tomar como fantasias despreziveis, encobrindo a verdade representada pelo interesse material, os sonhos associados à aventura mari- tima. Mas nào hd divida de que o interesse material prevaleceu, sobretudo quando os contornos do mundo foram sendo cada vez mais conhecidos e questdes priticas de colonizagio entraram na ordem do dia. AS CAUSAS DA EXPANSAO MARITIMA E A CHEGADA DOS PORTUGUESES AO BRASIL 2 1.2. O DESENVOLVIMENTO DAS TECNICAS DE NAVEGAGAO. A NOVA MENTALIDADE Dois tltimos pontos devem ser notados ao falarmos em termos gerais da expansio maritima portuguesa. De um lado. ela representou uma portante renovagio das chamadas “técnicas de marear”™. Quando principiaram as viagens lusitanas rumo à Guiné, as cartas de navegag@io nio indicavam ainda latitudes ou longitudes, mas apenas rumos ¢ distdncias. O aperfci- goamento de instrumentos como o quadrante e 0 astroldbio, que perm conhecer a localizagio de um navio pela posigiio dos astros, representou uma importante inovagio. Os portugueses desenvolveram também um tipo de arquitetura naval mais apropriada. com a construgdo da caravela. ut ada a RUC SIVE NOYVS AMERICA IV OI RSECT ENKOP RESPECTY VTR g ¢ INEOE GS‘ TERREBTAIS PAR:V= 1606 -E. e° ® 2N 2 - T PJ : 23K 2. Mapa da América em 1596. de Theodore de Bry. 1 HISTORIN DO RRASH partir de 1441, Era uma embarcagdo leve e veloz para as condigoes da época, de pequeno calado, permitindo por isso aproximar: se bastante da terra firme 2 evitar, ate certo ponto, o perigo de encalhar. A caravela Toi a menina dos wlhos dos portugueses, que a empregaram bastante nos séculos XVI e XVII, nas viagens para o Brasil, O outro ponto importante da expansio portuguesa diz respeito a uma eradual mudanca de mentalidade, notivel em humanistas portugueses como Duarte Pacheco Pereira, Diogo Gomes e Dom Joio de Castro. No plano coletivo, as mentahidades ndo mudam rapidamente, ¢ o imagindrio lantastico continuou a existir, mas a expansao maritima foi mostrando cada vez mais como antigas concepedes cram equivocadas — por exemplo, a descricio do mundo na Geografia de Plolomeu — ¢ como era necessirio valorizar o conhe- cimento baseado na experiéneia. Com isso, o critério de autoridade, ou seja, a accitacdo de uma afirmativa como verdadeira sé por ter sido feita por alguém que se supde entender do assunto, comegou a ser posto em divida, 13. AATRACAO PELO OURO E PELAS ESPECIARIAS Quais 0s bens mais buscados no curso da expansio portuguesa? A dupla formada pelo ouro e pelas especiarias. É fdcil perceber o inte- resse pelo ouro. Ele era utilizado como mocda confidvel ¢ empregado pelos aristocratas asiaticos na decoragio de templos ¢ paldcios ¢ na confecgio de roupas. Mas por que as especiar S? Primeiro ¢ preciso esclarecer o sentido da palavra. Ela provém do latim especia, termo usado pelos médicos para designar “substancia™ O termo ganhou depois o sentido de substincia muito ativa, muito cara, utilizada para virios fins, como condimento — isto ¢, tempero de comida —, remédio ou perfumari Especiaria se associa tambem à idéia de produto raro, utilizado em pequenas quantidades. Houve produtos, como o aguicar, que foram especiarias mas, com a introdugio de seu consumo em mas sa, deix ram de ser. Sdo condimentos, entre outros, a noz-moscada, o wvengibre, a canela, o cravo ¢, nagueles tempos. sobretudo a pimenta, a ponto de se usar a expressio ‘’caro como pimenta”. O alto valor das especiarias se explica pelos limites das teenicas de conservagdo existentes na ¢pocy ¢ também por hibitos alimentares. A Europa AS CAUSAS DA EXPANSAO MARITIMA E A CHEGADA DOS PORTUGUESES AO BRASIL 27 Duragdo Aproximada das Viagens Maritimas, a partir de Salvador, nos Séculos XVII e XVHI Salvador Rio de Janciro , Ocidental da Idade Média foi “uma civilizagiio carnivora”. Grandes quanti- dades de gado eram abatidas no inicio do veriio, quando as forragens acabavam no campo. A carne era armazenada e precariamente conservada pelo sal, pela defumagiio ou simplesmente pelo sol. Esses processos, usados também para conservar o peixe, deixavam os alimentos intragdveis, e a pimenta servia para disfargar o que tinham de desagraddvel. Os condimentos representavam tam- bém um gosto alimentar da época, como o café, que bem mais tarde passou a 28 HISTORIA DO BRASIL ser consumido em grande escala em todo o mundo. Havia mesmo uma espécie de hierarquia no seu consumo: na base, os de cheiro acre, como o alho e a cebola; no alto, os condimentos mais finos, com odores arométicos, suaves, lembrando o perfume das flores. Ouro e especiarias foram assim bens sempre muito procurados nos sécu- los XV e XVI, mas havia outros, como o peixe, a madeira, os corantes, as drogas medicinais e, pouco a pouco, um instrumento dotado de voz — os escravos africanos. 1.4. A OCUPACAO DA COSTA AFRICANA E AS FEITORIAS Costuma-se considerar a conquista da cidade de Ceuta, no norte da Africa, em 1415, como o ponto de partida da expansio ultramarina por- tuguesa. Esse episédio, porém, é pouco tipico do que viria depois. Os histo- riadores portugueses tém versdes diversas sobre ele. Para alguns, a conquista tinha por objetivos principais abrir caminho na busca do ouro do Suddo e controlar incursdes piratas dos drabes nas costas de Portugal. Para outros, foi uma grande expedigdo da nobreza, promovida pelo rei, em busca de saque e aventura. A expansdo metddica desenvolveu-se ao longo da costa ocidental afri- cana e nas ilhas do Occano Atlantico. Fruto de um mesmo movimento, o contato com esses dois espagos geograficos resultou em situagdes tào di- versas, que vale a pena separd-los em nossa exposigdo. O reconhecimento da costa ocidental africana ndo se fez da noite para o dia. Levou 53 anos, da ultrapassagem do Cabo Bojador por Gil Eanes (1434) até a temida passagem do Cabo da Boa Esperanca por Bartolomeu Dias (1487). A partir da entrada no Oceano [ndico, foi possivel a chegada de Vasco da Gama à india, a so- nhada e iluséria India das especiarias. Depois, os portugueses alcangaram a China e o Japdo, onde sua influéncia foi considerdvel, a ponto de os histo- riadores japoneses chamarem de “século cristào” o periodo compreendido entre 1540 e 1630. Sem penetrar profundamente no territério africano, os portugueses fo- ram estabelecendo na costa uma série de feitorias, que eram postos forti- ficados de comércio; isso indica a existéncia de uma situagdo em que as AS CAUSAS DA EXPANSAO MARITIMA E A CHEGADA DOS PORTUGUESES AO BRASIL 29 trocas comerciais eram precdrias, exigindo a garantia das armas. A parte comercial do niicleo era dirigida por um agente chamado feitor. Cabia a ele fazer compras de mercadorias dos chefes ou mercadores nativos e estoci- las, até que fossem recolhidas pelos navios portugueses para a entrega na Europa. A opgiio pela feitoria praticamente tornava desnecesséria a colo- nizagdo do territério ocupado pelas populagdes africanas, bem organizadas a partir do Cabo Verde. Mas se os portugueses ndo avangaram territorialmente, a Coroa orga- nizou o comércio africano, estabelecendo o monopélio real sobre as transagdes com ouro, obrigando a cunhagem de moeda em uma Casa da Moeda e criando também, por volta de 1481, a Casa da Mina ou Casa da Guiné, como uma alfindega especial para o comércio africano. Da costa ocidental da Africa, os portugueses levavam pequenas quantidades de ouro em pé, marfim, cujo comércio se achava até entdo em méos de mercadores drabes e era feito através do Egito, a variedade de pimenta chamada malagueta e, a partir de 1441, sobretudo escravos. Estes foram, no comego, encaminhados a Portugal, sendo utilizados em trabalhos domésticos e ocupagdes urbanas. 1.5. A OCUPACAO DAS ILHAS DO ATLANTICO A histéria da ocupagdo das ilhas do Atlantico é bem diferente do que ocorreu na Africa. Nelas os portugueses realizaram experiéncias significa- tivas de plantio em grande escala, empregando trabalho escravo. Apés dis- putar com os espanhdis e perder para eles a posse das Ilhas Candrias, con- seguiram se implantar nas outras ilhas: na Madeira, por volta de 1420, nos Acgores, em torno de 1427, nas Ilhas de Cabo Verde, em 1460, e na de Sào Tomé, em 1471. Na Ilha da Madeira, dois sistemas agricolas paralelos com- petiram pela predominancia econdmica. O cultivo tradicional do trigo atraiu um mimero considerdvel de modestos camponeses portugueses, que tinham a posse de suas terras. Ao mesmo tempo, surgiram as plantagdes de cana-de- aglicar, incentivadas por mercadores e agentes comerciais genoveses e ju- deus, baseadas no trabalho escravo. A economia agucareira acabou por triunfar, mas seu éxito foi breve. O ripido declinio deveu-se tanto a fatores internos como à concorréncia do agicar do Brasil e de Sdo Tomé. De fato, 30 HISTORIA DO BRASIL nessa ilha, situada no Golfo da Guiné, os portugueses implantaram um siste- ma de grande lavoura da cana-de-agiicar, com muitas semelhangas ao criado no Brasil. Préxima da costa africana, especialmente das feitorias de Sdo Jorge da Mina e Axim, a ilha contou com um abundante suprimento de es- cravos. Nela existiram engenhos que, segundo uma descrigdo de 1554, che- gavam a ter de 150 a 300 cativos. Sdo Tomé foi sempre um entreposto de escravos vindos do continente para serem distribuidos na América e na Euro- pa, e esta acabou sendo a atividade principal da ilha, quando no século XVII a indistria agucareira atravessou tempos dificeis. 1.6. A CHEGADA AO BRASIL Nao sabemos se o nascimento do Brasil se deu por acaso, mas ndo hà diivida de que foi cercado de grande pompa. A primeira nau de regresso da viagem de Vasco da Gama chegou a Portugal, produzindo grande entusiasmo, em julho de 1499. Meses depois, a 9 de margo de 1500, partia do Rio Tejo em Lisboa uma ftota de treze navios, a mais aparatosa que até entdo tinha deixado o reino, aparentemente com destino às {ndias, sob o comando de um fidalgo de pouco mais de trinta anos, Pedro Alvares Cabral. A frota, apés passar as Ilhas de Cabo Verde, tomou rumo oeste, afastando-se da costa africana até avistar o que seria terra brasileira a 21 de abril. Nessa data, houve apenas uma breve descida a terra e s6 no dia seguinte a frota ancoraria no litoral da Bahia, em Porto Seguro. Desde o século XIX, discute-se se a chegada dos portugueses ao Brasil foi obra do acaso, sendo produzida pelas correntes maritimas, ou se jà havia conhecimento anterior do Novo Mundo e Cabral estava incumbido de uma espécie de missdo secreta que o levasse a tomar o rumo do ocidente. Tudo indica que a expedigdo de Cabral se destinava efetivamente às Indias. Isso nào elimina a probabilidade de navegantes europeus, sobretudo portugueses, terem freqilentado a costa do Brasil antes de 1500. De qualquer forma, trata- se de uma controvérsia que hoje interessa pouco, pertencendo mais ao campo da curiosidade histérica do que à compreensio dos processos histéricos. No comego deste livro, falamos em nascimento e descobrimento do Brasil. Chegou a hora de dizer que essas expressdes se prestam a engano, IS& d 1 104 VIO Aoy 021N} ONYI20 ODUINYILV ONYID0 A& l:aM IIIAX OF 1AX So|n99s sop sesanSnuog siweioiawo)) seioy stedioug g F H e s AS CAUSAS DA EXPANSAO MARITIMA E A CHEGADA DOS PORTUGUESES AO BRASIL 33 4 Cena de Canibalismo. Theodore de Bry. Exemplo do imagindrio europeu sobre o canibalismo, visto como tipica expressdo da barbdric indigena pois podem dar idéia de que nào havia presenga humana anterior à chegada dos portugueses ao Novo Mundo. Estamos nos referindo obviamente i existén- cia da populagio indigena. O BRASIL COLONIAL 1500-1822 2.1. OS INDIOS Quando os europeus chegaram A terra que viria a ser o Brasil, encontra- ram uma populagdo amerindia bastante homogénea em termos culturais e lingiiisticos, distribuida ao longo da costa e na bacia dos Rios Parani-Paraguai. Podemos distinguir dois grandes blocos que subdividem essa populagao: os tupis-guaranis e os tapuias. Os tupis-guaranis estendiam-se por quase toda a costa brasileira, desde pelo menos o Ceard até a Lagoa dos Patos, no extremo Sul. Os tupis, também denominados tupinambis, dominavam a faixa litorinea, do Norte até Cananéia, no sul do atual Estado de Sdo Paulo; os guaranis localizavam-se na bacia Parana-Paraguai e no trecho do litoral entre Cananéia e o extremo sul do que viria a ser o Brasil. Apesar dessa localizagdo geografica diversa dos tupis e dos guaranis, falamos em conjunto tupi-guarani, dada a semelhanca de cultura e de lingua. Em alguns pontos do litoral, a presenga tupi-guarani era interrompida por outros grupos, como os goitacases na foz do Rio Paraiba, pelos aimorés no sul da Bahia e no norte do Espirito Santo, pelos tremembés na faixa entre o Ceara e o Maranhao. Essas populagées eram chamadas tapuias, uma palavra 38 HISTORIA DO BRASIL genérica usada pelos tupis-guaranis para designar indios que falavam outra lingua. Devemos lembrar que a classificagdo descrita resulta de estudos recentes dos antropélogos, baseando-se, como dissemos, em afinidades culturais e lingiifsticas. Os portugueses identificaram de forma impressionista muitas “nagdes” indigenas, como os carijés, os tupiniquins, os tamoios etc. É dificil analisar a sociedade e os costumes indigenas, porque se lida com povos de cultura muito diferente da nossa e sobre a qual existiram e ainda existem fortes preconceitos. Isso se reflete, em maior ou menor grau, nos relatos escritos por cronistas, viajantes e padres, especialmente jesuitas. Existe nesses relatos uma diferenciagdo entre indios com qualidades positivas e indios com qualidades negativas, de acordo com o maior ou menor grau de resisténcia oposto aos portugueses. Por exemplo, os aimorés, que se desta- caram pela eficiéncia militar e pela rebeldia, foram sempre apresentados de forma desfavordvel. De acordo com os mesmos relatos, em geral, os indios viviam em casas, mas os aimorés viviam como animais na floresta. Os tupi- nambds comiam os inimigos por vinganga; os aimorés, porque apreciavam carne humana. Quando a Coroa publicou a primeira lei em que se proibia a escravizagio dos indios (1570), s6 os aimorés foram especificamente exclui- dos da proibigio. Ha também uma falta de dados que nào decorre nem da incompreensio nem do preconceito, mas da dificuldade de sua obtengdo. Nio se sabe, por exemplo, quantos indios existiam no territério abrangido pelo que é hoje o Brasil e o Paraguai, quando os portugueses chegaram ao Novo Mundo. Os célculos oscilam entre nimeros tào variados como 2 milhdes para todo o territério e cerca de 5 milhdes s6 para a Amazonia brasileira. Os grupos tupis praticavam a caga, a pesca, a coleta de frutas e a agricul- tura, mas seria engano pensar que estivessem intuitivamente preocupados em preservar ou restabelecer o equilibrio ecolégico das dreas por eles ocupadas. Quando ocorria uma relativa exaustdo de alimentos nessas dreas, migravam temporéria ou definitivamente para outras. De qualquer forma, nào hé divida de que, pelo alcance limitado de suas atividades e pela tecnologia rudimentar de que dispunham, estavam longe de produzir os efeitos devastadores da poluigdo de rios com merctirio, ou da derrubada de florestas com motosserras, caracteristicas das atividades dos brancos nos dias de hoje. O BRASIL COLONIAL v 5. Figura de Indio, segundo o naturalista $ 40 HISTORIA DO BRASIL Para praticar a agricultura, os tupis derrubavam arvores e faziam a quei- mada — técnica que iria ser incorporada pelos colonizadores. Plantavam feijào, milho, abébora e principalmente mandioca, cuja farinha se tornou também um alimento basico da Colònia. A economia era basicamente de subsisténcia e destinada ao consumo préprio. Cada aldeia produzia para satisfazer a suas necessidades, havendo poucas trocas de géneros alimenticios com outras aldeias. Mas existiam contatos entre elas para a troca de mulheres e de bens de luxo, como penas de tucano e pedras para se fazer botoque. Dos contatos resultavam aliangas em que grupos de aldeias se posicionavam uns contra o$ outros. A guerra e a captura de inimigos — mortos em meio a celebragio de um ritual canibalistico — eram elementos integrantes da sociedade tupi. Dessas atividades, reservadas aos homens, dependiam a obtencào de prestigio e a renovagio das mulheres. A chegada dos portugueses representou para os {ndios uma verdadeira catdstrofe. Vindos de muito longe, com enormes embarcagdes, os portugueses, e em especial os padres, foram associados na imaginagdo dos tupis aos grandes xamis (pajés), que andavam pela terra, de aldeia em aldeia, curando, profe- tizando e falando-lhes de uma terra de abundincia. Os brancos eram ao mesmo tempo respeitados, temidos ¢ odiados, como homens dotados de poderes especiais. Por outro lado, como nio existia uma nagdo indigena ¢ sim grupos dispersos, muitas vezes em conflito, foi possivel aos portugueses encontrar aliados entre os préprios indigenas, na luta contra os grupos que resistiam a eles. Por exemplo, em seus primeiros anos de existéncia, sem o auxilio dos tupis de Sdo Paulo, a Vila de Sào Paulo de Piratininga muito provavelmente teria sido conquistada pelos tamoios. Tudo isso ndo quer dizer que os indios nào tenham resistido fortemente aos colonizadores, sobretudo quando se tratou de escravizi-los. Os indios que se submeteram ou foram submetidos sofreram a violéncia cultural, as epidemias e mortes. Do contato com o europeu resultou uma populagio mestica, que mostra, até hoje, sua presenca silenciosa na formagdo da sociedade brasileira. Uma forma excepcional de resisténcia dos indios consistiu no isola- mento, alcangado através de continuos deslocamentos para regides cada vez O BRASIL COLONIAL 41 mais pobres. Em limites muito estreitos, esse recurso permitiu a preservagdo de uma heranga biolégica, social e cultural. Mas, no conjunto, a palavra “catdstrofe” é mesmo a mais adequada para designar o destino da populagio amerindia. Milhòes de indios viviam no Brasil na época da conquista e apenas cerca de 250 mi! existem nos dias de hoje. 2.2. OS PERIODOS DO BRASIL COLONIAL Podemos dividir a histéria do Brasil colonial em trés periodos muito desiguais em termos cronoldgicos: o primeiro vai da chegada de Cabral à instalagdo do governo geral, em 1549; o segundo é um longo lapso de tempo entre a instalagio do governo geral e as iltimas décadas do século XVIII; o terceiro vai dessa época a Independéncia, em 1822. O que justifica essa periodizagio ndo sdo os fatos apontados em si mesmos, mas sim aquilo que expressam. O primeiro periodo se caracteriza pelo reconhecimento e posse da nova terra e um escasso comércio. Com a criagdo do governo geral inicia-se a montagem da colonizagio que ird se consolidar ao longo de mais de dois séculos, com marchas e contramarchas. As tltimas décadas do século XVIII sdo uma referéncia para indicar um conjunto de transformagdes na ordem mundial e nas colònias, que dio origem à crise do sistema colonial e aos movimentos pela independéncia. 2.3. TENTATIVAS INICIAIS DE EXPLORAGCAO O descobrimento do Brasil ndo provocou, nem de longe, o entusiasmo despertado pela chegada de Vasco da Gama a India. O Brasil aparece como uma terra cujas possibilidades de exploragiio e contornos geogrificos eram desconhecidos. Por vdrios anos, pensou-se que nio passava de uma grande ilha. As atracGes exdticas — indios, papagaios, araras — prevaleceram, a ponto de alguns informantes, particularmente italianos, darem-lhe o nome de terra dos papagaios. O Rei Dom Manuel preferiu chamd-la de Vera Cruz e logo de Santa Cruz. O nome “Brasil” comegou a aparecer em 1503. Ele tem sido associado à principal riqueza da terra em seus primeiros tempos, o pau-brasil. 42 HISTORIA DO BRASIL Seu cerne, muito vermelho, era usado como corante, e a madeira, de grande resisténcia, era utilizada na construgdo de méveis e de navios. É curioso lembrar que as “ilhas Brasil” ou coisa parecida sào uma referéncia fantasiosa na Europa medieval. Em uma carta geogrifica de 1367, aparecem trés ilhas com esse nome, espalhadas no grupo dos Agores, na latitude da Bretanha (Franga) e na costa da Irlanda. As primeiras tentativas de exploragio do litoral brasileiro se basearam no sistema de feitorias, adotado na costa africana. O Brasil foi arrendado por trés anos a um consorcio de comerciantes de Lisboa, liderado pelo cristdo- novo Ferndo de Loronha ou Noronha, que recebeu o monopélio comercial, obrigando-se em troca, a0 que parece, a enviar seis navios a cada ano para explorar trezentas léguas (cerca de 2 mil quilémetros) da costa e a construir uma feitoria. O consércio realizou algumas viagens mas, aparentementc, quando em 1505 o arrendamento terminou, a Coroa portuguesa tomou a exploragdo da nova terra em suas màos. Nesses anos iniciais, entre 1500 e 1535, a principal atividade econdmica foi a extragdo do pau-brasil, obtida principalmente mediante troca com os indios. As drvores nào cresciam juntas, em grandes dreas, mas encontravam- se dispersas. A medida que a madeira foi-se esgotando no litoral, os europeus passaram a recorrer aos indios para obté-la. O trabalho coletivo, especialmente aderrubada de érvores, era uma tarefa comum na sociedade tupinamba. Assim, o corte do pau-brasil podia integrar-se com relativa facilidade aos padrées tradicionais da vida indigena. Os fndios forneciam a madeira e, em menor escala, farinha de mandioca, trocadas por pegas de tecido, facas, canivetes e quinquilharias, objetos de pouco valor para os portugueses. O Brasil foi, inicialmente, muito associado à India, seja como ponto de descanso na rota jà conhecida para esse pais, seja como possivel passagem de um novo caminho, buscado principalmente pelos espanhéis. Ao descobrir a América em 1492 chegando às Antilhas, Colombo pensara ter alcangado o Mar da China. A posse da nova terra foi contestada por Portugal, daf resultan- do uma série de negociagdes que desembocaram no Tratado de Tordesilhas (1494), nome de uma cidade espanhola onde se deu sua assinatura. O mundo foi dividido em dois hemisférios, separados por uma linha que imagina- riamente passava a 370 léguas a oeste das Ilhas de Cabo Verde. As terras des- O BRASIL COLONIAL 43 cobertas a oeste da linha pertenceriam a Espanha; as que se situassem a leste caberiam a Portugal. A divisido se prestava a controvérsias, pois nunca foi possivel estabelecer com exatiddo por onde passava a linha de Tordesilhas. S6 em fins do século XVII os holandeses conseguiram desenvolver uma técnica precisa de medigio de longitudes. Por exemplo, a foz do Amazonas no norte ou a do Rio da Prata no sul, vistas como possiveis rotas no rumo das fndias pela via do Ocidente, estariam em territério portugués ou espanhol? Virias expedi¢Ges dos dois paises se sucederam ao longo da costa brasileira na dire¢do sul até que um portugués a servi¢o da Espanha, Ferndo de Magalhaes, atravessou o estreito que hoje tem seu nome e, navegando pelo Oceano Pacifico, chegou às Filipi- nas (1521). Esse feito espetacular de navegagio foi ao mesmo tempo uma decepgio para os espanhéis. O caminho das indias pelo Ocidente fora encon- trado, mas era demasiado longo e dificil para ser economicamente vantajoso. Os olhos espanhdis se fixaram nas riquezas em ouro e prata que iam sendo encontradas nas terras americanas sob seu dominio. Mas a maior ameaga a posse do Brasil por Portugal nào veio dos espa- nhéis e sim dos franceses. A Franga nào reconhecia os tratados de partilha do mundo, sustentando o principio de que era possuidor de uma drea quem efetivamente a ocupasse. Os franceses entraram no comércio do pau-brasil e praticaram a pirataria, ao longo de uma costa demasiado extensa para que pudesse ser guarnecida pelas patrulhas portuguesas. Em momentos diversos, iriam mais tarde estabelecer-se no Rio de Janeiro (1555-1560) e no Maranhio (1612-1615). 2.4. INICIO DE COLONIZAGAO - AS CAPITANIAS HEREDITARIAS Consideragdes politicas levaram a Coroa Portuguesa a convicgio de que era necessdrio colonizar a nova terra. A expedi¢do de Martim Afonso de Sousa (1530-1533) representou um momento de transi¢do entre o velho e o novo periodo. Tinha por objetivo patrulhar a costa, estabelecer uma col6nia através da concessdo ndo-hereditdria de terras aos povoadores que trazia (S3o Vicente, 1532) ¢ explorar a terra, tendo em vista a necessidade de sua efetiva ocupagio. 44 HISTORIA DO BRASIL Hi indicios de que Martim Afonso ainda se encontrava no Brasil quando Dom Jodo III decidiu-se pela criagào das capitanias hereditdrias. O Brasil foi dividido em quinze quinhdes, por uma série de linhas paralelas ao equador que iam do litoral ao meridiano de Tordesilhas, sendo os quinhdes entregues aos chamados capitdes-donatérios. Eles constituiam um grupo diversificado, no qual havia gente da pequena nobreza, burocratas e comerciantes, tendo em comum suas ligagdes com a Coroa. Estavam entre os donatdrios o experiente navegador Martim Afonso; Duarte Coelho, militar de destaque no Oriente, sem grandes recursos, cuja histéria no Brasil seria ressaltada pelo éxito em Pernambuco; Jorge Figueiredo Correia, escrivio da Fazenda Real e grande negociante, associado a Mem de Sà e a Lucas Giraldes, da familia dos Giraldi, negociantes e banqueiros de origem florentina; e Pero do Campo Tourinho, que vendeu suas propriedades em Portugal e seguiu para o Brasil com seiscentos colonos. Posteriormente, Tourinho veio a ser denunciado à Inquisi¢do, apés conflitos com os colonos, e embarcou de volta a Portugal. Antes de 1532, Ferndo de Noronha recebeu do rei a primeira capitania do Brasil — a Ilha de Sào Jodo, que hoje tem seu nome. Nenhum representante da grande nobreza se inclufa na lista dos dona- tarios, pois os negécios na India, em Portugal ¢ nas ilhas atldnticas eram por essa época bem mais atrativos. Os donatdrios receberam uma doagiio da Coroa, pela qual se tornavam possuidores mas nào proprietdrios da terra. Isso significava, entre outras coisas, que nào podiam vender ou dividir a capitania, cabendo ao rei o direito de modificd-la ou mesmo extingui-la. A posse dava aos donatdrios extensos poderes tanto na esfera econdmica (arrecadagdo de tributos) como na esfera administrativa. A instalagdo de engenhos de aglicar e de moinhos de dgua e o uso de depdsitos de sal dependiam do pagamento de direitos; parte dos tributos devidos a Coroa pela exploragào de pau-brasil, de metais preciosos e de deri- vados da pesca cabiam também aos capitaes-donatérios. Do ponto de vista administrativo, eles tinham o monopélio da justiga, autorizagio para fundar vilas, doar sesmarias, alistar colonos para fins militares e formar milicias sob seu comando. A atribuigdo de doar sesmarias é importante, pois deu origem a formagdo de vastos latifiindios. A sesmaria toi conceituada no Brasil como uma extensio O BRASIL COLONIAL 45 de terra virgem cuja propriedade era doada a um sesmeiro, com a obrigagào — raramente cumprida — de cultivd-la no prazo de cinco anos e de pagar o tributo devido à Coroa. Houve em toda a Colònia imensas sesmarias, de limites mal- definidos, como a de Bris Cubas, que abrangia parte dos atuais municipios de Santos, Cubatào e Sdo Bernardo. Os direitos reservados pela Coroa, ao instituir as capitanias hereditarias, nào se limitaram a uma espécie de vigilincia quanto a manutengào de sua forma. O rei manteve o monopdlio das drogas e especiarias, assim como a percepgdo de uma parte dos tributos. Assegurou ainda o direito de aplicar a justiga, quando se tratasse de morte ou retalhamento de partes do corpo de pessoas de condi¢do nobre. Nomeou, além disso, uma série de funciondrios para garantir que as rendas da Coroa fossem recolhidas. As capitanias hereditdrias sào uma instituicdo a que fregiientemente se referem os historiadores, sobretudo portugueses, defensores da tese da nature- za feudal da colonizagdo. Essa tese e a propria discussdo perderam hoje a importincia que jà tiveram, cedendo lugar à tendéncia historiografica mais recente, que ndo considera indispensavel rotular com etiquetas rigidas forma- cdes sociais complexas que ndo reproduzem o modelo europeu. Sem avangar neste assunto, lembremos que ao instituir as capitanias a Coroa langou mio de algumas [Grmulas cuja origem se encontra na sociedade medieval européia. É o caso, por exemplo, do direito concedido aos donatdrios de obter pagamen- (o para licenciar a instalagio de engenhos de agdicar, esse direito € andlogo às “banalidades” pagas pelos lavradores aos senhores feudais. Mas, em esséncia, mesmo na sua forma original, as capitanias representaram uma tentativa transitéria e ainda tateante de colonizagio, com o objetivo de integrar a Colbnia a economia mercantil européia. Sabemos que, com excegdo das Capitanias de Sdo Vicente e Pernambuco, as outras fracassaram em maior ou menor grau, por falta de recursos, desenten- dimentos internos, inexperiéncia, ataques de indios. Nào por acaso, as mais présperas combinaram a atividade agucareira e um relacionamento menos agressivo com as tribos indigenas. As capitanias foram sendo retomadas pela Coroa, ao longo dos anos, através de compra e subsistiram como unidade administrativa, mas mudaram de cariter, por passarem a pertencer ao Estado. Entre 1752 e 1754, o Marqués 46 HISTORIA DO BRASIL de Pombal completou praticamente o processo de passagem das capitanias do dominio privado para o piblico. 2.5. O GOVERNO GERAL A decisio tomada por Dom Joio III de estabelecer o governo geral do Brasil ocorreu em um momento em que alguns fatos significativos aconteciam com relagio à Coroa portuguesa, na esfera internacional. Surgiam os primeiros sinais de crise nos negécios da India, sugeridos no uso da expressdo “fumos da Îndia” — ou seja, fumaga da [ndia, pondo em divida a solidez do comércio com o Oriente. Portugal sofrera vdrias derrotas militares no Marrocos, mas o sonho de um império africano ainda nào estava extinto. No mesmo ano em que Tomé de Sousa foi enviado ao Brasil como primeiro governador geral (1549), fechou-se o entreposto comercial portugués de Flandres, por ser defi- citério. Por tltimo, em contraste com as terras do Brasil, os espanhéis tinham crescente éxito na exploragiio de metais preciosos, em sua coldnia americana, e, em 1545, haviam descoberto a grande mina de prata de Potosi. Se todos esses fatores podem ter pesado na decisdo da Coroa, devemos lembrar que, internamente, o fracasso das capitanias tornou mais claros os problemas da precdria administragio da América lusitana. Assim, a institui¢do do governo geral representou, de fato, um passo importante na organizagio administrativa da Coldnia. Segundo as cronicas da época, Tomé de Sousa era um fidalgo sisudo, com experiéncia na Africa e na fndia. Chegou a Bahia acompanhado de mais de mil pessoas, inclusive quatrocentos degredados, trazendo consigo longas instrugdes por escrito conhecidas como Regimento de Tomé de Sousa. As instrugdes revelam o prop6sito de garantir a posse territorial da nova terra, coloniza-la e organizar as rendas da Coroa. Foram criados alguns cargos para o cumprimento dessas finalidades, sendo os mais importantes o de ouvidor, a quem cabia administrar a justiga, o de capitio-mor, responsdvel pela vigilancia da costa, e o de provedor-mor, encarregado do controle e crescimento da arrecadagio. Nio devemos imaginar porém que, no século XVI, o Brasil propor- cionasse riquezas considerdveis aos cofres reais. Pelo contrdrio, segundo O BRASIL COLONIAL 47 calculos do historiador Vitorino Magalhàes Godinho, em 1558 a arrecadagào proveniente do Brasil representava apenas algo em torno de 2,5% das rendas da Coroa, enquanto ao comércio com a fndia correspondiam 26%. Vinham com o governador-geral os primeiros jesuftas — Manuel da N6- brega e seus cinco companheiros —, com o objetivo de catequizar os indios e disciplinar o ralo clero de ma fama existente na Colònia. Posteriormente (1532) criou-se o bispado de Sào Salvador, sujeito ao arcebispado de Lisboa, caminhando-se assim para a organizacào do Estado e da Igreja, cstreitamente aproximados. O inicio dos governos gerais representou também a fixagào de um pélo administrativo na organizagào da Colònia. Obedecendo às instrugoes recebidas. Tomé de Sousa empreendeu o longo trabalho de construcào de Sào Salvador, capital do Brasil até 1763. A instituicào de um governo geral representou um esforgo de centra- lizacào administrativa, mas isso nào significa que o governador geral detivesse todos os poderes, nem que em seus primeiros tempos pudesse exercer uma atividade muito abrangente. A ligagào entre as capitanias era bastante precdria, limitando o raio de agào dos governadores. A correspondéncia dos jesuitas d& claras indicagdes desse isolamento. Em 1552, escrevendo da Bahia aos irmàos de Coimbra, o Padre Francisco Pires queixa-se de s6 poder tratar de assuntos locais, porque “às vezes passa um ano e nao sabemos uns dos outros, por causa dos tempos e dos poucos navios que andam pela costa e às vezes se véem mais cedo navios de Portugal que das capitanias”. Um ano depois, metido no sertio de Sio Vicente, Nébrega diz praticamente a mesma coisa: “Mais facil é vir de Lisboa recado a esta capitania que da Bahia”. 2.6. A COLONIZACAO SE CONSOLIDA Ap6s as trés primeiras décadas, marcadas pelo esforgo de garantir a posse da nova terra, a colonizagio comecou a tomar forma. Como aconteceu em toda a América Latina, o Brasil viria a ser uma coldnia cujo sentido bAsico seria o de fornecer ao comércio europeu géneros alimenticios ou minérios de grande importincia. A politica da Metropdle portuguesa consistird no in- centivo à empresa comercial, com base em uns poucos produtos exportdveis em grande escala e assentada na grande propriedade. Essa diretriz deveria 48 HISTORIA DO BRASIL atender aos interesses dc acumulagdo de riqucza na Mctrépole lusa, cm màos dos grandes comerciantes, da Coroa e seus afilhados. Como Portugal nào tinha o controle dos circuitos comerciais na Europa, controlados, ao longo dos anos, principalmente por espanhdis, holandeses e ingleses, a mencionada diretriz acabou por atender também ao conjunto da economia européia. A opgdo pela grande propriedade ligou-sc ao pressuposto da conve- niéncia da produg¢do em larga escala. Além disso, pequenos proprietarios autonomos tenderiam a produzir para a sua subsisténcia, vendendo no mercado apenas um reduzido excedente, 0 que contrariaria os objetivos da Coroa e dos grandes comerciantes. 2.7. O TRABALHO COMPULSORIO Ao lado da empresa comercial e do regime de grande propriedade, acres- centemos um terceiro elemento: o trabalho compulsério. Também nesse as- pecto, a regra serd comum a toda a América Latina, ainda que com variagGes. Diferentes formas de trabalho compulsério predominaram na América es- panhola, enquanto uma delas — a escravidio — foi dominante no Bra Por que se apelou para uma relagdo de trabalho odiosa a nossos olhos, que parecia semimorta, exatamente na época chamada pomposamente de aurora dos tempos modernos? Uma resposta sintética consiste em dizer que nem havia grande oferta de trabalhadores em condigdes de emigrar como semi- dependentes ou assalariados, nem o trabalho assalariado era conveniente para os fins da colonizagdo. Dada a disponibilidade de terras, pois uma coisa era a concessdo de sesmarias, outra sua efetiva ocupagào, ndo seria ficil manter trabalhadores assalariados nas grandes propriedades. Eles poderiam tentar a vida de outra forma, criando problemas para o fluxo de mio-de-obra para a empresa mercantil. Dando um salto de virios séculos no tempo, lembremos que, nas pri- meiras décadas do século XX, a disponibilidade de terras no Estado de Sào Paulo representou uma alternativa para que imigrantes europeus e asifticos se transformassem de colonos em pequenos proprietdrios. Mas se a introdugdo do trabalho escravo se explica resumidamente dessa forma, por que se optou preferencialmente pelo negro e ndo pelo indio? Em O BRASIL COLONIAL 49 primeiro lugar, lembremos que houve uma passagem da escravidio do indio para a do negro, que variou no tempo e no espago. Essa passagem foi menos demorada no nicleo central e mais rentdvel da empresa mercantil, ou seja, na economia agucareira, em condigdes de absorver o prego da compra do escravo negro, bem mais elevado do que o do indio. Custou a ser feita nas regides periféricas, como é o caso de Sdo Paulo, que s6 no inicio do século XVIII, com a descoberta das minas de ouro, passou a receber escravos negros em nimero regular e considerdvel. 2.8. A ESCRAVIDAO - {NDIOS E NEGROS As razdes da opgio pelo escravo africano foram muitas. É melhor nào falar em causas, mas em um conjunto de fatores. A escravizagdo do indio chocou-se com uma série de inconvenientes, tendo em vista os fins da colo- nizagào. Os indios tinham uma cultura incompativel com o trabalho intensivo e regular e mais ainda compulsério, como pretendido pelos europeus. Nio eram vadios ou preguigosos. Apenas faziam o necessdrio para garantir sua subsisténcia, o que ndo era dificil em uma época de peixes abundantes, frutas e animais. Muito de sua energia e imaginagdo era empregada nos rituais, nas celebragSes e nas guerras. As nogdes de trabalho continuo ou do que hoje chamariamos de produtividade eram totalmente estranhas a eles. Podemos distinguir duas tentativas bdsicas de sujei¢do dos indios por parte dos portugueses. Uma delas, realizada pelos colonos segundo um frio cilculo econdmico, consistiu na escravizago pura e simples. A outra foi tentada pelas ordens religiosas, principalmente pelos jesuitas, por motivos que tinham muito a ver com suas concepgdes missiondrias. Ela consistiu no esforgo em transformar os indios, através do ensino, em “bons cristios”, reunindo-os em pequenos povoados ou aldeias. Ser “bom cristdo” significava também adquirir os habitos de trabalho dos europeus, com o que se criaria um grupo de cultivadores indigenas flexivel às necessidades da Colonia. As duas politicas nào se equivaliam. As ordens religiosas tiveram o mérito de tentar proteger os indios da escravidao imposta pelos colonos, nascendo daf inimeros atritos entre colonos e padres. Mas estes ndo tinham também qualquer respeito pela cultura indigena. Ao contririo, para eles chega- 50 HISTORIA DO BRASIL va a ser duvidoso que os indios fossem pessoas. Padre Manuel da Nébrega, por exemplo, dizia que “indios sdo cdes em se comerem e matarem, e sdo porcos nos vicios e na maneira de se tratarem”, Os indios resistiram às vérias formas de sujeigào, pela guerra, pela fuga, pela recusa ao trabalho compulsério. Em termos comparativos, as populagdes indigenas tinham melhores condigGes de resistir do que os escravos africanos. Enquanto estes se viam diante de um territério desconhecido onde eram implantados a forga, os indios se encontravam em sua casa. Outro fator importante que colocou em segundo plano a escravizagio dos indios foi a catistrofe demogrifica. Esse é um eufemismo erudito para dizer que as epidemias produzidas pelo contato com os brancos liquidaram milhares de indios. Eles foram vitimas de doengas como sarampo, variola, gripe, para as quais nào tinham defesa biolégica. Duas ondas epidémicas se destacaram por sua violéncia entre 1562 e 1563, matando mais de 60 mil indios, ao que parece, sem contar as vitimas do sertdo. A morte da populagio indigena, que em parte se dedicava a plantar géneros alimenticios, resultou em uma terrivel fome no Nordeste e em perda de bragos. Nio por acaso, a partir da década de 1570 incentivou-se a importagdo de africanos, e a Coroa comegou a tomar medidas através de vdrias leis, para tentar impedir o morticinio ¢ a cscravizagio descnfrcada dos indios. As leis continham ressalvas e eram burladas com facilidade. Escravizavam-se indios em dccorréncia de “guerras justas”, isto ¢, guerras consideradas defensivas, ou como punigdo pela prdtica de antropofagia. Escravizava-se também pelo resgaste, isto é, a compra de indigenas prisioneiros de outras tribos, que estavam para ser devorados em ritual antropofdgico. S6 em 1758 a Coroa de- terminou a libertagdio definitiva dos indigenas. Mas, no essencial, a escra- viddo indigena fora abandonada muito antes pelas dificuldades apontadas e pela existéncia de uma solugdo alternativa. Como vimos, ao percorrer a costa africana no século XV, os portugueses haviam comegado o trifico de africanos, facilitado pelo contato com socie- dades que, em sua maioria, ji conheciam o valor mercantil do escravo. Nas dltimas décadas do século XVI, ndo s6 o comércio negreiro estava razoa- velmente montado como vinha demonstrando sua lucratividade. Os colonizadores tinham conhecimento das habilidades dos negros, so- bretudo por sua rentdvel utilizagdo na atividade agucareira das ilhas do O BRASIL COLONIAL 51 Atlantico. Muitos escravos provinham de culturas em que trabalhos com ferro e a criagdo de gado eram usuais. Sua capacidade produtiva era assim bem superior à do indigena. O historiador americano Stuart Schwartz calcula que, durante a primeira metade do século XVII, nos anos de apogeu da economia do agiicar, o custo de aquisi¢io de um escravo negro era amortizado entre treze e dezesseis meses de trabalho e, mesmo depois de uma forte alta nos precos de compra de cativos apés 1700, um escravo se pagava em trinta meses. Os africanos foram trazidos do chamado “continente negro” para o Brasil em um fluxo de intensidade varidvel. Os cdlculos sobre o nimero de pessoas transportadas como escravos variam muito. Estima-se que entre 1550 e 1855 entraram pelos portos brasileiros 4 milhGes de escravos, na sua grande maioria jovens do sexo masculino. A regido de proveniéncia dependeu da organizagdo do trifico, das con- digdes locais na Africa e, em menor grau, das preferéncias dos senhores brasileiros. No século XVI, a Guiné (Bissau e Cacheu) e a Costa da Mina, ou seja, quatro portos ao longo do litoral do Daomé, forneceram o maior nimero de escravos. Do século XVII em diante, as regiGes mais ao sul da costa africana — Congo e Angola — tornaram-se os centros exportadores mais importantes, a partir dos portos de Luanda, Benguela e Cabinda. Os angolanos foram trazidos em maior ndmero no século XVIII, correspondendo, ao que parece, a 70% da massa de escravos trazidos para o Brasil naquele século. Costuma-se dividir os povos africanos em dois grandes ramos étnicos: os sudaneses, predominantes na Africa ocidental, Sudào egipcio e na costa norte do Golfo da Guiné, e os bantos, da Africa equatorial e tropical, de parte do Golfo da Guiné, do Congo, Angola e Mogambique. Essa grande divisdo nào nos deve levar a esquecer que os negros escravizados no Brasil provinham de muitas tribos ou reinos, com suas culturas préprias. Por exemplo: os ioru- bas, jejes, tapas, haugds, entre os sudaneses; e os angolas, bengalas, monjolos, mogambiques, entre os bantos. Os grandes centros importadores de escravos foram Salvador e depois 0 Rio de Janeiro, cada qual com sua organizagào prépria e fortemente con- correntes. Os traficantes baianos utilizaram-se de uma valiosa moeda de troca no litoral africano, o fumo produzido no Recéncavo. Estiveram sempre mais ligados à Costa da Mina, à Guiné e ao Golfo de Benin, neste tltimo caso apés meados de 1770, quando o trifico da Mina declinou. O Rio de Janeiro recebeu 52 HISTORIA DO BRASIL sobretudo escravos de Angola, superando a Bahia com a descoberta das minas de ouro, o avango da economia agucareira e o grande crescimento urbano da capital, a partir do inicio do século XIX. Seria errdneo pensar que, enquanto os indios se opuseram 2 escravidio, os negros a aceitaram passivamente. Fugas individuais ou em massa, agressoes contra senhores, resisténcia cotidiana fizeram parte das relagoes entre senhores e escravos, desde os primeiros tempos. Os quilombos, ou seja, estabele- cimentos de negros que escapavam à escraviddo pela fuga e recompunham no Brasil formas de organizagio social semelhantes às africanas, existiram às centenas no Brasil colonial. Palmares — uma rede de povoados situada em uma regido que hoje corresponde em parte ao Estado de Alagoas, com virios milhares de habitantes — foi um desses quilombos e certamente o mais im- portante. Formado no inicio do século XVII, resistiu aos ataques de por- tugueses e holandeses por quase cem anos, vindo a sucumbir, em 1695, as tropas sob o comando do bandeirante Domingos Jorge Velho. Admitidas as vérias formas de resisténcia, nio podemos deixar de re- conhecer que, pelo menos até as ltimas décadas do século XIX, os escravos africanos ou afro-brasileiros nio tiveram condigdes de desorganizar o trabalho compulsério. Bem ou mal, viram-se obrigados a se adaptar a ele. Dentre os virios fatores que limitaram as possibilidades de rebeldia coletiva, lembremos que, ao contririo dos indios, os negros eram desenraizados de seu meio, separados arbitrariamente, langados em levas sucessivas em territdrio es- tranho. Por outro lado, nem a Igreja nem a Coroa se opuseram à escravizagao do negro. Ordens religiosas como a dos beneditinos estiveram mesmo entre os grandes proprietrios de cativos. Virios argumentos foram utilizados para justificar a escravidio africana. Dizia-se que se tratava de uma institui¢ao ji existente na Africa e assim apenas transportavam-se cativos para o mundo cristdo, onde seriam civilizados e salvos pelo conhecimento da verdadeira religido. Além disso, o negro era considerado um ser racialmente inferior. No decorrer do século XIX, teorias pretensamente cientificas reforcaram o pre- conceito: o tamanho e a forma do crinio dos negros, o peso de seu cérebro etc. “demonstravam” que se estava diante de uma raga de baixa inteligéncia e emocionalmente instdvel, destinada biologicamente à sujeigio. O BRASIL COLONIAL st 6 Dumingos Jorge Velhuae Seu Lugar-tenente Antonio Fernandes, de Benedito Calisto( dque nasceu em Sào Paulo e decorou muitos teat 54 HISTORIA DO BRASIL Lembremos também o tratamento dado ao negro na legislagào. O con- traste com os indigenas é nesse aspecto evidente. Estes contavam com leis protetoras contra a escravidio, embora, como vimos, fossem pouco aplicadas e contivessem muitas ressalvas. O negro escravizado nào tinha direitos, mes- mo porque era considerado juridicamente uma coisa e nào uma pessoa. Vejamos alguns aspectos da questào demografica. Embora os nimeros apurados variem, hà dados sobre a alta taxa de mortalidade dos escravos negros do Brasil, especialmente das criangas e dos recém-chegados, quando comparada, por exemplo, & da populagio escrava nos Estados Unidos. Obser- vadores de principios do século XIX calculavam que a populagdo escrava declinava a uma taxa entre 5 e 8% ao ano. Dados recentes revelam que a expectativa de vida de um escravo do sexo masculino, ao nascer, em 1872, era de 18,3 anos, enquanto a da populagdo como um todo era de 27,4 anos. Por sua vez, um cativo homem nascido nos Estados Unidos em torno de 1850 tinha uma expectativa de vida de 35,5 anos. Apesar desses niimeros gritantes, nào se pode dizer que os escravos negros tenham sido atingidos por uma catdstrofe demogrifica tdo grande como a que dizimou os indios. Aparentemente, negros provenientes do Congo, do norte de Angola e do Daomé — atual Benim — eram menos suscetiveis ao contégio de doengas como a varfola. De qualquer forma, mesmo com a destrui- cào fisica prematura dos negros, os senhores de escravos tiveram sempre a possibilidade de renovar o suprimento pela importagdo. A escravidio brasilcira se tornou mesmo totalmente dependente dessa fonte. Com raras exceges, nào houve tentativas de se ampliar o crescimento da populagdo escrava jà instalada no Brasil. A fertilidade das mulheres escravas era baixa. Além disso, criar uma crianga por doze ou catorze anos era considerado um investimento de risco, tendo-se em conta as altas taxas de mortalidade, decorrentes das préprias condigdes de existéncia. 2.9. O MERCANTILISMO A forma pela qual, ao longo de alguns séculos, a Coroa portuguesa tratou de assegurar os maiores ganhos do empreendimento colonial relaciona-se com as concepgdes de politica econdmica vigentes na época, abrangidas pela O BRASIL COLONIAL 55 expressio “mercantilismo”. Falamos em “concepgdes” no plural porque seria equivocado imaginar que houve uma politica econdmica dos Estados eu- ropeus, sempre idéntica, entre os séculos XV e XVIIL Ela variou muito, de pais a pais, de periodo a periodo, mas alguns tragos essenciais podem ser definidos. Antes de fazer isso, lembremos que a doutrina mercantilista nào era, em si mesma, uma teoria econdmica baseada em conceitos, mas um receitudrio de normas de politica econémica. Foi a partir da prética e para Jjustificd-la que se chegou a formulagdo de uma teoria. Tanto a prdtica como a teoria partiam do principio de que nào hd ganho para um Estado sem prejuizo de outro. Como alcangar o ganho? Atraindo para si a maior quantidade possivel do estoque mundial de metais preciosos e tratando de reté-lo. Isso deveria ser alcangado por uma politica de protegào dos produtos do pais através de uma série de medidas: reduzir pela tributagio clevada, ou proibir a entrada de bens manufaturados estrangeiros ¢ facilitar o ingresso de matérias-primas; inversamente, proibira saida de matérias-primas produzidas no pais ¢ estimular a exportagdo de manufaturados quando estes concorressem vantajosamente no mercado internacional. Pelo conjunto de medidas, verifica-se que a politica mercantilista pres- supunha uma ampla intervengdo do Estado, seja assumindo diretamente certas atividades econdmicas, seja criando condi¢Ges favordveis a determinados grupos para alcangar os objetivos visados. Nio se tratava de uma politica absurda, como poderia parecer por sua obsessiio pelos metais preciosos. Pelo contrdrio, era coerente com as possibilidades de agào dos Estados nacionais em via de criagào e crescimento, em um periodo no qual a moeda metélica tinha uma grande importancia para consolidar o Estado. 2.10. O “EXCLUSIVO” COLONIAL Qual o significado e o papel das coldnias nesse contexto? Elas deveriam contribuir para a auto-suficiéncia da metrépole, trans- formando-se em dreas reservadas de cada poténcia colonizadora, na con- corréncia internacional com as demais. Para isso, era preciso estabelecer uma série de normas e préticas que afastassem os concorrentes da exploragio das respectivas coldnias. Esse conjunto de normas e priticas, criado de acordo 56 HISTORIA DO BRASIL com as concepgdes mercantilistas, constituia o sistema colonial. Seu eixo basico consistia no “exclusivo” metropolitano, segundo a expressiva lin- guagem da época, ou seja, na exclusividade do comércio externo da colònia em favor da metrépole. Tratava-se de impedir a0 mdximo que navios estrangeiros transportassem mercadorias da coldnia, sobretudo para vender diretamente em outros paises da Europa. Inversamente, procurava-se também impedir que mercadorias, em especial as ndo produzidas na metrépole, chegassem a colònia em navios desses paises. Em termos simplificados, buscava-se deprimir, até onde fosse possivel, os pregos pagos na colénia por seus produtos, para vendé-los com maior lucro na metrépole. Buscava-se também obter maiores lucros da venda na coldnia, sem concorréncia, dos bens por ela importados. O “exclusivo” colonial teve vdrias formas: arrendamento, exploragio direta pelo Estado, criagdo de companbhias privilegiadas de comércio, beneficiando determinados grupos comerciais metropolitanos etc. Tomando agora o caso portugués, quc nos interessa dc perto, seria equi- vocado pensar que os preceitos mercantilistas foram aplicados sempre con- sistentemente. Se insistimos em lhes dar grande importincia, é porque eles apontam para o sentido mais profundo das relagGes Metrépole-Col6nia, cm- bora nào contem toda a histéria dessas relagdes. Curiosamente, a aplicagio mais conseqiiente da politica mercantilista s6 se deu em meados do século XVIII, sob o comando do Marqués de Pombal, quando seus principios jd eram postos em divida no resto da Europa Ocidental. A Coroa lusa abriu brechas nesses principios, principalmente devido aos limites de sua capacidade de imp6-los. Ndo estamos falando apenas da exis- téncia do contrabando, pois o contrabando era uma quebra pura e simples das regras do jogo. Estamos falando sobretudo da posigao de Portugal no conjunto das nagdes européias. Os portugueses estiveram na vanguarda da expansio maritima, mas nio tinham os meios de monopolizar seu comércio colonial. JA durante o século XVI, as grandes pragas comerciais nào se situavam em Portugal, mas na Holanda. Os holandeses foram importantes parceiros co- merciais de Portugal, transportando sal e vinho portugueses e agicar brasileiro, em troca de produtos manufaturados, queijos, cobre e tecidos. Obtiveram com isso muitas facilidades. O BRASIL COLONIAL 57 Posteriormente, ao longo do século XVII, a Coroa seria levada a es- tabelecer relagdes desiguais com uma das novas poténcias emergentes: a Inglaterra. Dessas condigdes resulta que o “exclusivo” colonial luso oscilou de acordo com as circunstincias, ficando entre a relativa liberdade e um sistema centralizado e dirigido, combinado com concessdes especiais. Essas concessdes representavam, no fundo, a participagio de outros paises no usu- fruto da exploragdo do sistema colonial portugués. Resumindo todo esse longo processo de oscilagdes do “exclusivo” co- lonial, podemos dizer que houve uma fase de relativa liberdade comercial de 1530 até 1571, data em que o Rei Dom Sebastido decretou a exclusividade dos navios portugueses no comércio da Coldnia, coincidindo, alids, a medida com os anos iniciais da grande expansdo da economia agucareira. O periodo da chamada unido das duas Coroas (1580-1640), quando o rei da Espanha ocupou também o trono de Portugal, caracterizou-se por crescentes restri¢des à participagdo de outros paises no comércio colonial, visando especialmente a Holanda, que estava em guerra com a Espanha. Mesmo assim, h noticias de um trifego regular e direto entre o Brasil e Hamburgo na Alemanha, por volta de 1590. Apés o fim do dominio espanhol, com a aclamagio de Dom Jodo IV como rei de Portugal, seguiu-se uma breve fase de “livre comércio”, com pouca regulamentagio e auséncia de controle sobre o mercado colonial de importagcdo. Mas, em 1649, passou-se a um novo sistema de comércio cen- tralizado e dirigido, por meio de frotas. Com capital obtido principalmente de cristdos-novos, foi criada a Companhia Geral do Comércio do Brasil. A com- panhia deveria manter uma frota de 36 navios armados para comboiar navios mercantes que saiam do Brasil e aqui chegavam, duas vezes por ano; em troca, usufruiria do monopélio das importagdes de vinho, farinha, azeite de oliva e bacalhau e do direito de estabelecer os pregos para esses artigos. A partir de 1694, a companhia foi transformada em 6rgdo governamental. Entretanto, a criagio da empresa ndo impediu concessdes feitas por Portugal à Holanda e especialmente à Inglaterra. Em poucas palavras, a Coroa buscava a protecio politica inglesa, dando em troca vantagens comerciais. Um bom exemplo disso é o tratado imposto por Cromwell em 1654, em que se garantia aos ingleses o direito de negociar com a col6nia brasileira, exceto 58 HISTORIA DO BRASIL no tocante aos produtos monopolizados pela Companhia Geral do Comércio. O sistema de frotas s6 foi abandonado em 1765, quando o Marqués de Pombal resolveu estimular o comércio e restringir o crescente papel dos ingleses. Isso se fez através da criagào de novas companhias (Companhia do Grao-Par4 e Maranhio; Companhia de Pernambuco e Paraiba), que representaram as ilti- mas expressdes nitidas da politica mercantilista no Brasil. 2.11. A GRANDE PROPRIEDADE AGROEXPORTADORA E A ACUMULAGAO URBANA O sentido da colonizagdo, até a descoberta dos metais preciosos, foi dado pela grande propriedade, onde se cultivava predominantemente um género destinado 2 exportagdo, com base no trabalho escravo. A expressào da lingua inglesa plantation, de uso cada vez mais corrente, sintetiza essa descricdo. A afirmativa de que a plantation foi a forma bdsica da colonizagio portuguesa no Brasil se tornou cldssica a partir dos trabalhos de Caio Prado Janior. Ela vem sendo criticada, hé alguns anos, por historiadores como Fran- cisco Carlos Teixeira da Silva e Ciro Flamarion Cardoso. Teixeira considera que o projeto “plantacionista” era assumido pela classe dominante colonial, mas a Coroa sempre se preocupou em diversificar a produgdo e garantir o plantio de géneros alimenticios para consumo na prépria Coldnia. Cardoso assinala que a obsessdo com o conceito de plantation fez com que se deixas- sem de lado alguns fatos importantes da complexa realidade econémico-social brasileira. Assim, nào se deu o necessdrio relevo às dreas geogréficas pe- riféricas e houve uma excessiva redugdo da estrutura social a senhores, em um pélo, e escravos, em outro, esquecendo-se a importancia dos brancos e ignorando-se a existéncia de um campesinato, ou seja, de pequenos pro- prietdrios, na sociedade rural. A critica é significativa, entre outros aspectos, por chamar a atengdo para o fato de que o Brasil colonial nào foi s6 agiicar, ouro, grande propriedade agricola; mas parece-nos excessivo dizer que o projeto de colonizagio de tipo plantarion fosse um empreendimento da classe dominante colonial — senhores O BRASIL COLONIAL 59 de engenho, grandes plantadores de cana, grandes comerciantes ligados à exportagdo — e ndo da Coroa portuguesa. Por certo, havia diferengas entre essas duas esferas, mas elas ndo nasciam de um desinteresse da Coroa pela plantation. Derivavam, sim, do fato de que de um lado apareciam diretamente interesses privados; de outro, a principal instituigio responsavel pela organizagio geral da vida na Colénia. Dai, por exemplo, o continuo interesse do governo portugués na produgào de alimentos e as resisténcias opostas pelos proprietdrios rurais a utilizar terras com esse objetivo menos rentével. A concepgào definidora da colonizagio pela grande empresa mono- cultora escravista é um modelo cujo valor consiste em dar as linhas bésicas de entendimento de um sistema que caracterizou o Brasil na Col6nia e deixou suas marcas apés a Independéncia. Que marcas sào essas? A grande propriedade, a vinculagdo com o exterior através de uns poucos produtos primérios de exportagio, a escraviddo e suas conseqiiéncias. Recentemente, historiadores, entre os quais se destacam Jodo Fragoso e Manolo Tolentino, enfatizaram a importancia da acumulagdo de capitais, por parte de um reduzido, mas poderoso grupo, cuja base de atuagdo era o Rio de Janeiro, embora nào se limitasse a ele. Desde a primeira metade do século XVIII, constatamos um processo de acumulagio urbana propiciado, em boa medida, por capitais investidos no trifico de escravos. Os negécios negreiros cresceram tendencialmente a partir dessa época, ganhando impulso com a elevagdo do Rio de Janeiro a capital da Colònia e, vérias décadas depois, com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil. O grupo de traficantes poderosos nào se especializava apenas no significativo comércio de homens, dedicando-se aos investimentos em prédios urbanos, à usura e às operagdes de importagdo e exportagio. 2.12. ESTADO E IGREJA As duas instituigSes bésicas que, por sua natureza, estavam destinadas a organizar a coloniza¢io do Brasil foram o Estado e a Igreja Cat6lica. Embora 60 1HISTORIA DO BRASIL se trate de instituigdes distintas, naqueles tempos uma estava ligada a outra. Nio existia na época, como existe hoje, o conceito de cidadania, de pessoa com direitos e deveres com relago ao Estado, independentemente da religido. A religido do Estado era a catdlica e os suditos, isto €, os membros da so- ciedade, deviam ser catélicos. Em principio, houve uma divisdo de trabalho entre as duas instituices. Ao Estado coube o papel fundamental de garantir a soberania portuguesa sobre a Col6nia, dotd-la de uma administragdo, desenvolver uma politica de po- voamento, resolver problemas bdsicos, como o da mio-de-obra, estabelecer o tipo de relacionamento que deveria existir entre Metrépole e Coldnia. Essa tarefa pressupunha o reconhecimento da autoridade do Estado por parte dos colonizadores que se instalariam no Brasil, seja pela forga, seja pela aceitagdo dessa autoridade, ou por ambas as coisas. Nesse sentido, o papel da Igreja se tornava relevante. Como tinha em suas mios a educagio das pessoas, o “controle das almas™ na vida didria, era um instrumento muito eficaz para veicular a idéia geral de obediéncia e, em especial, a de obediéncia ao poder do Estado. Mas o papel da Igreja nào se limitava a isso. Ela estava presente na vida e na morte das pessoas, nos episédios decisivos do nascimento, casamento e morte. O ingresso na co- munidade, o enquadramento nos padrdes de uma vida decente, a partida sem pecado deste “vale de ldgrimas” dependiam de atos monopolizados pela Igreja: o batismo, a crisma, o casamento religioso, a confissio e a extrema-ungio na hora da morte, o enterro em um cemitério designado pela significativa ex- pressio “campo-santo”. Na histéria do mundo ocidental, as relagdes entre Estado e Igreja varia- ram muito de pafs a pais e ndo foram uniformes no ambito de cada pais, ao longo do tempo. No caso portugués, ocorreu uma subordinagio da Igreja ao Estado através de um mecanismo conhecido como padroado real. O padroado consistiu em uma ampla concessào da Igreja de Roma ao Estado portugués, em troca da garantia de que a Coroa promoveria e asseguraria os direitos e a organizacào da Igreja em todas as terras descobertas. O rei de Portugal ficava com o direito de recolher o tributo devido pelos stditos da Igreja conhecido como dizimo, correspondente a um décimo dos ganhos obtidos em qualquer atividade. Cabia também a Coroa criar dioceses e nomear os bispos. O BRASIL COLONIAL 61 Muitos dos encargos da Coroa resultavam, pelo menos em tese, em maior subordinagio da Igreja, como é o caso da incumbéncia de remunerar o clero e construir e zelar pela conservagio dos edificios destinados ao culto. Para supervisionar todas essas tarefas, o governo portugués criou uma espécie de departamento religioso do Estado: a Mesa da Consciéncia e Ordens. O controle da Coroa sobre a Igreja foi em parte limitado pelo fato de que a Companhia de Jesus até a época do Marqués de Pombal (1750-1777) teve forte influéncia na Corte. Na Coldnia, o controle sofreu outras restrigdes. De um lado, era muito dificil enquadrar as atividades do clero secular — aquele que existe fora das ordens religiosas —, disperso pelo territério; de outro, as ordens religiosas conseguiram alcangar maior grau de autonomia. A maior autonomia das ordens dos franciscanos, merceddrios, beneditinos, carmelitas e principalmente jesuitas resultou de virias circunstincias. Elas obedeciam a regras proprias de cada institui¢do e tinham uma politica definida com relagiao a questdes vitais da colonizagdo, como a indigena. Além disso, na medida em que se tornaram proprietdrias de grandes extensdes de terra e empreendimentos agricolas, as ordens religiosas nào dependiam da Coroa para sua sobrevi- véncia. Padres seculares buscaram fugir ao peso do Estado e da prépria Igreja, quando havia oportunidade, por um caminho individual. Exemplo célebre é o de alguns padres participantes da Inconfidéncia Mineira, que se dedicavam a grandes lavouras, a trabalhos de mineragio, ao trifico de escravos e diamantes. A presenga de padres pode ser constatada praticamente em todos os mo- vimentos de rebelido, a partir de 1789, prolongando-se apés a independéncia do Brasil até meados do século XIX. As razdes dessa presenga estdo pouco estudadas. O historiador José Murilo de Carvalho, analisando a época imperial, contrastou o procedimento conservador dos magistrados com o comportamento rebelde dos padres. Suge- riu que a rebeldia destes tinha origem em sua extragiio social, nas dificuldades de ascensdo na carreira, na atuagio mais préxima a populagdo. De qualquer forma, seria engano estender a todo o clero essa caracteristica de rebeldia, visivel mas excepcional. Na atividade do dia-a-dia, silenciosamente e às vezes com pompa, a Igreja tratou de cumprir sua missdo de converter indios e negros, ¢ de inculcar na populagdo a obediéncia aos seus preceitos, assim como aos preceitos do Estado. 62 HISTORIA DO BRASIL 2.13. O ESTADO ABSOLUTISTA E O “BEM COMUM” O Estado portugués na época da colonizagdo é um Estado absolutista. Em teoria, todos os poderes se concentram por direito divino na pessoa do rei. O reino — ou seja, o territrio, os sdditos e seus bens — pertence ao rei, constitui seu patrim6nio. Dai o uso da expressdo “Estado patrimonialista” para definir o Estado absolutista, utilizada por muitos autores, a partir da con- ceituagdo do socidlogo alemdo Max Weber. No Estado absolutista ndo hd — sempre em teoria — distingdo entre a esfera piiblica, como campo de atividade do Estado, e a esfera privada, como campo de agdo dos individuos com direitos maiores ou menores. Nele, tudo é piblico, pois ndo h limites preestabelecidos ao poder real. Por exemplo, quando em 1446, na época do Rei Afonso V, foi efetuada uma revisdo e organizagdo das leis do reino, seu autor dizia que “o rei tem seu poder das mios de Deus e como seu vigdrio tenente (isto é, como delegado de Deus) é livre de toda lei humana”. Tudo isso ndo quer dizer que o rei nào devesse levar em conta os in- teresses dos diferentes estratos sociais — nobres, comerciantes, clero, gente do povo — nem que governasse sozinho. A preferéncia pela expressdo “Coroa” em vez de “Rei” para designar ò poder da monarquia portuguesa é significativa nesse sentido. Se a palavra decisiva cabia ao rei, tinha muito peso na decisdo uma burocracia por ele escolhida, formando um corpo de governo. Mesmo a indefinigdo das fronteiras entre o piblico e o privado nào foi completa; pelo menos no reinado de Dom Jodo IV (1640-1656), uma série de medidas foram tomadas, principalmente no àmbito fiscal, com o objetivo de estabelecer limites à agdo do rei. O “bem comum” surgia como uma idéia nova que justificava a restrigo aos poderes reais de impor empréstimos ou se apossar de bens privados para seu uso. A montagem da administragdo colonial desdobrou e enfraqueceu o poder da Coroa. Por certo, era na Metrépole que se tomavam as decisdes centrais, mas os administradores do Brasil tinham de improvisar medidas, diante de situagdes novas, e ficavam muitas vezes se equilibrando entre as pressdes imediatas dos colonizadores e as instrugdes emanadas da distante Lisboa. O BRASIL COLONIAL 63 2.14. AS INSTITUIGOES DA ADMINISTRAGAO COLONIAL Vejamos em sintese quais foram as principais instituigòes e érgios da administragiio portuguesa no Brasil, a partir do governo geral. Antes, lem- bremos que nào havia especializagdo clara dos diferentes 6rgdos como hoje ocorre. Atividades executivas e judicidrias, por exemplo, ndo estavam deli- mitadas. Existiam autoridades que tanto realizavam tarefas de administrar como de julgar questdes surgidas entre as pessoas. Entre as figuras de cipula, destacavam-se os governadores de capitania, especialmente os das mais importantes. Acima deles, ficava o governador- geral. A partir de 1763, quando a sede do governo foi transferida da Bahia para o Rio de Janeiro, tornou-se comum a outorga ao governador-geral, pelo rei, do titulo de Vice-Rei e Capitdo-General do Mar e Terra do Estado do Brasil. Os vice-reis tinham e

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